As Famílias Modernas da Televisão: de \"Family Ties\" a \"Modern Family\"

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Análises

As famílias modernas da televisão por Daniel Ribas

de Family Ties a Modern Family

As Famílias Modernas da Televisão Daniel Ribas

Um dos temas dramatúrgicos principais no desenvolvimento narrativo é a família. Veja-se, por exemplo, que, desde a tragédia grega clássica até à telenovela contemporânea, a família é o centro narrativo nuclear onde se concentram os principais conflitos dramáticos. A televisão, como é óbvio, sempre incorporou a família como centro da sua prática de programação – uma estratégia para falar a todos, o catch all, que permita um desenvolvimento comercial e a venda de publicidade. As séries de televisão, como consequência, assumem, muitas vezes, a família como esse centro. Por exemplo, citemos os caso históricos de All in the Family/Uma Família às Direitas (1971-1978), e os Simpsons (1989-). Mas também outras séries, cujo focos narrativos se passam em ambientes profissionais (séries de médicos ou policiais, etc.), desenvolvem linhas narrativas paralelas ligadas à família. A partir desta ideia do núcleo familiar, pretendemos ver, de seguida, como é que duas séries de televisão, do modelo sitcom, separadas por mais de duas décadas, se desenvolvem à volta da família. É óbvio que não podemos deixar de notar que ambas são produções norte-americanas e, por isso, elas vão espelhar as transformações da sociedade americana, embora muitos dos temas que são abordados tenham um alcance global, até por que fazem parte de um momento abrangente da modernidade tardia e da globalização. Aliás, o sinal mais evidente de que as duas séries falam para além do seu país de produção é o facto de terem sido (ou ainda serem) um sucesso em Portugal. Family Ties/Quem Sai aos Seus (1982-1989, sete temporadas) é uma série central da América dos anos 80. É protagonizada por uma família de classe média que assume as contradições entre os pais – ambos da geração de 60 – e os filhos, que seguem as tendências sociais da América conservadora, partidária de um capitalismo liberal. É interessante, sobretudo, a caracterização de Alex P. Keaton – o filho, protagonizado por Michael J. Fox – um pós-adolescente com um brilhante percurso académico, acérrimo defensor do Partido Republicano e da economia do mercado livre. Ele surge em contradição social com os pais – Steve e Elyse –, cuja vida, desde a juventude, passa pela esquerda libertária. Ambos representam um centro histórico da luta contra a guerra do Vietname, mas que se propaga pelas correntes principais de um movimento amplo: a ecologia, a luta contra a guerra e contra o armamento, a igualdade de género ou os direitos sociais. Mas não é só Alex que contradiz alguns dos valores dos pais: Mallory, a filha do meio, é doida por moda e rapazes, a antítese da preocupação intelectual de Steve e Elyse. Enfim, este modelo de organização familiar aflora em todos os episódios, em que assuntos mais fortes são colocados na narrativa – por exemplo: a primeira vez de Alex; uma saída à noite de Mallory com um rapaz; ou um assalto a casa que os faz ponderar comprar uma arma para “autodefesa”. Até os avós surgem na narrativa, ampliando o contraste daquele casal hippie e a América conservadora dos anos 80. Esse contexto social é determinante para entender a série: recorde-se que Ronald Reagan é o Presidente durante quase toda a década (81-89), promovendo uma dura política liberal, de completa desregulação do mercado. Modern Family/Uma Família Muito Moderna (2009-; inicia em 2013 a quinta temporada) é, no nosso entender, uma série que responde a uma América do século XXI. Estruturada em três núcleos familiares, ela desenvolve-se a partir das novas mentalidades abertas na última década. Dois desses núcleos são, por isso, novas formas de família (ou, podemos dizer, velhas formas de família,

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agora socialmente aceites): (1) o patriarca, Jay Prichett, divorciado, volta a casar com uma mulher muito mais nova que ele, Gloria, colombiana com curvas perfeitas, divorciada e já mãe de um filho, Manny; (2) um dos filhos de Jay é Mitchell, que tem um casamento gay com Cameron com quem adota uma criança vietnamita, Lily. O terceiro núcleo é bastante mais tradicional: Claire – filha de Jay – é casada com Phil e ambos têm três filhos: Haley, Alex e Luke. Em termos narrativos, cada episódio tem estruturas mais complexas, misturando sempre as três famílias, mas sempre trazendo uma história principal para primeiro plano. Não se pode dizer que haja um núcleo central, até porque uma das estratégias da série é utilizar equilibradamente todas estas personagens. Nesse sentido, cada episódio tem um tema que depois é tratado pelas diferentes famílias, revelando a partilha moral dos mesmos valores. Como típicas sitcom, as duas séries baseiam-se numa característica distintiva das famílias: o espaço da casa. Claro que, neste aspeto, devem distinguir-se a estrutura de ambas: Family Ties é a típica sitcom filmada em direto para uma audiência (o modelo do teatro filmado) – o que reduz a margem de manobra na escolha dos locais – enquanto Modern Family utiliza muito mais espaços – desde logo, a casa única de Family Ties é desdobrada em três em Modern Family, uma para cada uma das famílias. Mas o espaço da casa, mantém-se, nas duas séries, como um espaço refúgio, que acolhe as frustrações das personagens e onde se dão os encontros mais sentimentais e regeneradores entre os membros da família. A organização narrativa de ambas é, também ela, muito semelhante: cada episódio estrutura-se à volta de um problema principal dedicado a algum membro das famílias. Essa linha diegética principal deve acolher um tema ou um problema premente das famílias contemporâneas que deve ser resolvido, satisfatoriamente, no final de cada episódio. Esta linha narrativa é auxiliada por linhas narrativas menores – normalmente apenas uma em Family Ties, e duas em Modern Family –, que pretende ser um escape cómico da linha principal. Muitas vezes, são problemas menores do dia-a-dia. O naturalismo quotidiano é uma razão imediata de identificação dos espectadores com as personagens. Parte importante destas estruturas narrativas está no final de cada episódio. Como séries familiares, há uma necessidade de convocar um certa normatividade, um regresso à “razão” de uma das personagens. Esse regresso é feito em cada uma das séries com duas estratégias diferentes: em Family Ties, essa cena final costuma juntar dois membros da família, que dialogam para resolver o problema (que pode ser entre eles; ou entre um deles com um agente externo), numa conversa afetiva e reconfortante; em Modern Family, muitas vezes o episódio é resolvido com uma voz-off de um dos membros da família, que resume a moralidade do episódio e reforça a importância da família como último recurso na defesa contras os problemas externos que a sociedade coloca. Aliás, como já referimos, o final deve reforçar os valores familiares que são comuns a todos estes núcleos. Em todo o caso, é suposto as duas séries terminarem com uma piada, depois de resolvido o problema. Tudo está bem quando acaba bem.

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Sim, na verdade, estas duas séries – exibidas em prime-time – não desenvolvem crises dramáticas muito profundas – apesar de utilizaram temas polémicos – e estas famílias parecem estar imunes à desagregação. Se essa possível decomposição é visível no panorama social que as séries também exibem, ela não acontece nestas famílias-modelo. (É curioso, a este propósito, um episódio de Modern Family, em que os três filhos estão aborrecidos porque apanharam os pais a fazer sexo, mas acabam por olhar à sua volta e só encontrar famílias de pais separados, coisa que, percebem eles, não acontece na sua família.) Por isso mesmo, há uma certa estabilidade social destas famílias: elas são de classe média, média-alta, sem quaisquer problemas financeiros e o seu dia-a-dia parece fácil (há uma referência solitária, num dos episódio de Modern Family, à crise financeira do mercado imobiliário, que parece afetar Phil, ele próprio um agente imobiliário). Aliás, é muito raro encontrar referências explícitas ao mundo do trabalho (embora elas sejam sinalizadas várias vezes em ambas as séries). No entanto, e isso é bastante curioso de notar, estas duas séries não evitam mostrar temas potencialmente problemáticos: num dos episódios de Family Ties, Mallory é assediada por um tio, muito mais velho; ou, noutro episódio, Alex tem a sua primeira experiência sexual; em Modern Family, um amigo de Luke, filho mais novo, já com alguma idade, acaba por morrer e o miúdo tem que enfrentar a sua morte. É no aspeto de famílias-modelo que se pode discutir, nestas séries, uma certa ambivalência da “modernidade”. Isto é, ambas parecem retratar uma normalidade da diversidade de formas familiares (pais hippies com filhos conservadores; pais gay que adotam; casamentos com grandes diferenças de idade, etc.). Em certo sentido, é inegável que as duas séries propõem diversos modelos das estruturas familiares. Aliás, se pensarmos num registo cruzado de culturas, é quase revolucionário – tanto no contexto português, como no contexto de certas geografias americanas – ver um casal gay que adota e que tem uma vida de normalidade. Esse facto, por si só, é sintomático da tal “modernidade” de costumes que estas séries evocam. Ainda assim, neste caso, é necessário talvez relativizar essa modernidade em Family Ties, que reforça, a todo o tempo, a estrutura tradicional de família. Em todo o caso, parte do núcleo narrativo da série pretende passar uma ideia de educação pela liberdade de pensamento, algo muito caro à América liberal. O que, por outro lado, reforça um mito americano: a família tem laços muito mais fortes que quaisquer divergências políticas. (Este aspeto pode até ser visto em contraste com uma série como All in the Family, cujas divergências geravam problemas familiares muito mais sérios). Esta normalidade de formas diversas de família é, no entanto, desafiada em certos aspetos. Daí dizermos que estas séries têm uma “modernidade” ambivalente. Isso acontece, sobretudo, através dos estereótipos, quase sempre relacionados com as mulheres: nas duas séries, há sempre a figura da rapariguinha que só liga aos namorados e ao seu aspeto físico (Mallory e Halley; curiosamente, como sinal dos tempos, Halley aparece sempre muito mais “despida” que Mallory; e, outra curiosidade, ambas têm namorados pouco inteligentes que os pais não aprovam). Mas, mais grave, é a posição da

mulher em Modern Family: tanto Gloria como Claire são domésticas, não trabalhando e vivendo à custa do salário do marido. Esta subalternização social reforça ainda um estereótipo de género. Também a relação gay tem alguma ambivalência, sobretudo pelos sinais exteriores de afeto: é mais fácil ver um beijo de Halley ao seu namorado, que ver alguma sinal de carinho entre Mitchell e Cameron. Ainda as referências culturais ao passado de Gloria – numa aldeia colombiana – não parecem conseguir ultrapassar a caricatura. Para além disso, é forçoso falarmos, finalmente, da complexidade narrativa e técnica que separa as duas séries: a linearidade de Family Ties contrasta com a sofisticação narrativa de Modern Family. Se, na primeira, qualquer flashback é necessariamente montado a partir de estratégias clássicas (música em eco, imagens montadas através de dissolve); na segunda, é comum vermos alterações sucessivas do tempo e do espaço narrativo, para além da existência de um dispositivo narrativo que emula o documentário – as personagens falam para a câmara, como se estivessem numa entrevista. Este último pormenor é também interessante e um sinal dos tempos: vinda da tradição dos reality-show e popularizado por séries como The Office, estes dispositivos são aceites com naturalidade e fazem parte de uma nova cultura visual. Permitem o comentário imediato das personagens (algo que já acontecia, por exemplo, no teatro, com a utilização dos apartes). Em certo sentido, Family Ties é tradicional, baseando-se, sobretudo, na utilização das talking heads e dos diálogos abundantes, enquanto Modern Family tem uma estrutura de escrita dramática mais visual e sugerindo, constantemente, ligações narrativas que são disruptivas do tempo e do espaço. Em resumo, tentamos mostrar como as duas séries usam a família para traçar uma certa normatividade do funcionamento da sociedade. Há sempre um reforço do papel das relações familiares enquanto regeneradoras dos problemas que cada uma das personagens enfrenta. Em épocas distintas, as duas séries também são filhas do seu tempo, tentando enfrentar a sua “modernidade” e exibindo novas formas de relação familiar. Ainda assim, por vezes esta modernidade é ambivalente, porque reforça certos papéis de género e esconde certos aspetos potencialmente ofensivos para o espectador médio. Prefere uma certa caricatura à dissensão social. Nesse sentido, tanto Family Ties como Modern Family são séries que refletem as contradições políticas e sociais da sociedade em que estão inseridas, introduzindo essas diferenças no núcleo familiar. Por isso, estas transformações sociais são mitigadas pela harmonia e pela afetividade que rodeia uma família. Essas transformações podem, assim, ser percebidas como mais aceitáveis.

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