As Formas da Arte Japonesa: Ma e Basara, Tatuagem e Teatro Nô

October 8, 2017 | Autor: Bruno Pereira | Categoria: Japanese Studies, Social and Cultural Anthropology, Japanese Culture
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As Formas da Arte Japonesa: Ma e Basara, Tatuagem e Teatro Nô Bruno Pereira de Araujo - UNIFESP

Figura 1 - À esquerda: "Deep bowl with sculptural rim [Japan]". In: Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 2000–. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/works -of-art/1992.252.1. (último acesso: out. 2014); À direita: "Storage jar [Japan]". In: Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 2000–. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/works -of-art/1975.268.378. (último acesso: out. 2014)

As cerâmicas apresentadas na Figura 1 são respectivamente dos períodos Jomon (11.000 a.c. – 300 a.c.) e Yayoi (300 a.c. – 300 d.c.). Podemos perceber as diferenças entre os dois estilos: a quantidade de detalhes inscritos na superfície do primeiro recipiente aliada as formas circulares que ornam sua borda contrastam radicalmente com a quase total ausência de detalhes do segundo. Tal diferença entre esses estilos “primitivos” do Japão foi apropriada por Seigo Matsuoka para exemplificar a persistência histórica de duas estéticas distintas presentes nas formas expressivas japonesas: ma e basara. Esses termos foram propostos por Matsuoka com o intuito de descrever a “consciência histórica” em que reside a chave para compreender o “ser japonês”. O ma estaria mais associado às formas expressivas “tradicionais” do Japão1, aquelas que são marcadas pela presença de espaços vazios e pela simplicidade da composição; enquanto basara estaria associado a um Japão mais exuberante, mais carregado de formas e elementos, mais plural, excessivo. Yayoi e Jomon respectivamente. A vida desses conceitos nos estudos japoneses parece ser bastante prolífica e isso nos faz pensar nos potenciais que eles têm para descrever, como queria Matsuoka, o “ser” da arte 1

É importante não equivaler tradicional:contemporâneo com ma:basara. O Kabuki, por exemplo, é um teatro japonês bastante tradicional, mas que é geralmente associado à estética basara.

no Japão. Desdobrar o uso de tais conceitos e os efeitos que eles possuem em nossas descrições é por si só uma tarefa interessante, mas aqui o objetivo não é apenas esse. O que buscarei é pensar “com” esses conceitos e não pensar “a partir” deles (DELEUZE e GUATTARI, 2010; DELEUZE, 1992; STENGERS e PIGNARRE, 2011; STENGERS, 2011). O esforço é de articular uma experiência de pensamento que propicie uma contrainvenção desses conceitos a partir de uma relação com nossos objetos de pesquisa (VIVEIROS DE CASTRO, 2009). No meu caso, o objeto é alguns elementos retirados do teatro Nô e personificados através da figura de Zeami; minha questão é saber qual seria o uso possível que Zeami faria de conceitos como ma e basara. Mas antes disso, tomemos como um exemplo da carreira desses conceitos nos estudos japoneses um interessante trabalho de Simonia Fukue (2014). O objetivo da pesquisadora é estabelecer a maneira pela qual os mangás Basara e Sengoku Basara II (Figura 2) trabalham “a questão histórica, ideológica e conceitual da estética/espírito basara” (p.

Figura 2 - À esquerda: Basara, criado por Yumi Tamura, editado por Shôgakukan. 1990. À direita: Sengoku Basara II, adaptado por Haibara Yaku, editado por Media Works, 2007. Reproduzidos em: Fukue, 2014.

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744), sendo que ela entende por basara um conceito que expressa “percepção e liberdade na arte”2 (p. 744). Essa compreensão do conceito como uma expressão de liberdade deriva de seus desdobramentos históricos, que são descritos por Fukue. Etimologicamente o termo deriva de vajra (do sânscrito), significando tanto diamante — apontado pela autora — como relâmpago e ao adentrar no Japão, ele passa a ser associado ao estilo de vida exuberante e extravagante de alguns daimyos do século XIV. Com o passar do tempo, o conjunto de associações simbólicas de basara3 passou a incorporar também o mundo do entretenimento. De maneira sintética Simonia Fukue afirma: Assim, basara se tornou também forma de “arte” da vida, uma mistura de provocações com o anticonformismo que, aliás, alguns guerreiros, homens e mulheres das classes mais baixas procuravam como modelo a fim de se distinguirem dos demais, buscando a exuberância, seguindo contra os valores autoritários, sendo extravagantes e valorizando a filosofia de que “o baixo supera o alto”. (2014, p. 737)

Vemos dessa maneira a associação do basara com um “anticonformismo” que indicaria uma “sociedade que está em movimento” (p. 736) e que portanto expressa uma busca de liberdade. Liberdade passa a ser então a contraposição ao “sistema tradicional”. Se como afirma Matsuoka, ma está bastante presente nas artes tradicionais, principalmente aquelas que possuem um corpus bastante codificado de convenções, basara assume a forma de seu oposto. Enquanto ma é o reino da convenção, a criatividade artística (a “liberdade”) é associada a basara. É claro que essa não é a única forma de conceituar ma. Michiko Okano (2007) realizou um intenso trabalho de compreender/traduzir o ma, um conceito que está bastante presente na cultura japonesa. Partindo de uma perspectiva semiótica, a autora defende que o ma é “um quase-signo, uma possibilidade” (p. 2).

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Minha preocupação aqui é antes com o uso que Simonia Fukue faz do conceito que com sua origem em outro autor que a pesquisadora pode ter se inspirado. Isto se dá pela maneira que compreendo os conceitos que é inspirada por Deleuze e Guattari (2010). Os autores dizem: “Cada conceito tem componentes que podem ser, por sua vez, tomados como conceitos [...]. Os conceitos vão, pois, ao infinito e, sendo criados, não são jamais criados do nada” (p. 27). Dessa forma, me interesso nos componentes do conceito (poderíamos dizer, em sua dimensão sincrônica) e como esses componentes podem ser partidos e assim, partilhados para construir novos conceitos. Esse movimento ficará mais claro, espero, no decorrer do texto. 3 A glosa de associações simbólicas deriva da teoria do símbolo de Roy Wagner (2009), que afirma que os elementos simbólicos ganham seus significados a partir de seus contextos convencionais, isto é, do conjunto de associações que ele condensa.

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O Ma, semioticamente, pode ser considerado como um estágio pré-sígnico, pertencente à primeiridade peirciana, isto é, anterior à existência do objeto como fenômeno. Assim, no momento em que ele se manifesta no mundo, e, portanto, adentra o reino da segundidade peirciana, inúmeras espacialidades são construídas ao se agregarem outras semânticas, como a do entre-espaço (Okano, 2014, p. 151).

O que aponta Okano nessa última citação é que o ma enquanto uma “conjunção entre a possibilidade e a virtualidade” (OKANO, 2007, p. 12) só é passível de ser reconhecido quando se torna signo, isto é, é instanciado enquanto fenômeno sob as variadas formas daquilo que ela chama de espacialidades ma (Ibid., p. 12-17). Uma dessas formas de explicitação do ma é encontrada em alguns mangás, como por exemplo Orufesu no mado (Figura 3).

Figura 3 - Orufeusu no mado (Das Fenteer Von Orpheus – Janela de Orfeu), de autoria de Riyoko Ikeda, publicado pela editora Shûei de 1975 a 1981, em 18 volumes. Reproduzido de Okano, 2014.

Dos inúmeros exemplos que poderia trazer para explicitar o que é o ma, o exemplo do manga apontado por Michiko Okano (2013-2014) é significativo, pois interrompe a associação do ma com a estética tradicional (além de manter a proximidade com o tema do trabalho de Fukue4).

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Simonia Fukue também tem um trabalho sobre o Ma no mangá.

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A presença do Ma não se limita às obras artísticas tradicionais japonesas, mas pode também ser visualizada na contemporaneidade, como no mangá, um dos elementos representativos da cultura pop japonesa, hoje tão globalizado. Verifica-se que a linearidade geométrica e regular normalmente encontrada na composição dos quadros da HQ tradicionais dá espaço a formas irregulares, algumas com a utilização da diagonalidade, e outras sem as linhas que demarcam as bordas, indicando uma liberdade de enquadramento e desenvolvimento de uma estética cuidadosamente estudada. (p. 155)

Mas a autora não só rompe tal associação como também mostra a possibilidade do ma indicar uma certa liberdade. Dessa forma tanto ma quanto basara parecem poder indicar uma expressão de liberdade em relação a uma criação estética, a oposição aparente entre os dois termos parece esconder as possibilidades que são simultâneas aos dois5. Como afirmei, esse texto é uma tentativa de pensar “com” ma e basara o Nô de Zeami e enfatizar as associações de liberdade que ambos os conceitos podem assumir é uma estratégia para transmitir meu argumento: que para pensarmos o Nô é importante que levemos em conta sua estética basara, apesar dele ser frequentemente associado à estética ma. No entanto, um pequeno desvio se faz necessário.

Trazendo formas à tona: as tatuagens Irezumi é o nome dado às tatuagens japonesas bastante associadas aos membros dos grupos da Yakuza, “máfia” japonesa. Sob influência da China, que após o século VI usara as tatuagens como forma de punição de criminosos, o Japão passou a desaprovar oficialmente as tatuagens e destiná-las como forma de marcar também os criminosos e os intocáveis. “Foi dentro desse contexto”, afirma Karina Taniguti (2014, p. 555), “que começou a ser delineada a relação entre a tattoo e a máfia japonesa Yakuza”. Yakuza é um nome derivado da pior combinação de cartas possível em um jogo de hanafuda — ya/ku/za (8/9/3). O termo era utilizado para designar grupos de bakutos e tekiyas 6 e se relaciona com o baixo status que esses criminosos tinham na sociedade japonesa. De fato, a Yakuza não designa um grupo homogêneo, mas um conjunto diverso de diferentes grupos. Dos 3.197 grupos criminosos no Japão em 1998, 1.397 são filiados

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Não pretendo afirmar que ma e basara são o mesmo. Na verdade, para minha exposição a diferença entre eles é importante. Contudo, como será visível no desenvolvimento do argumento estou fazendo uso bastante específico dos conceitos. 6 Bakutos eram criminosos associados aos jogos de azar, enquanto tekiyas eram “mascates” itinerantes.

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a três dos maiores “sindicatos” nacionais da Yakuza: o Yamaguchi-gumi, o Inagawa-kai, e o Sumiyoshi-kai (HILL, 2003). Cada um desses sindicatos, afirma Peter Hill (2003), é composto de diferentes ikka ou “famílias” que conjugam três sistemas hierárquicos distintos que se justapõem: uma hierarquia administrativa, uma hierarquia baseada no ie (“unidade doméstica” japonesa) e uma hierarquia inter-grupos. Focarei nas duas primeiras. A primeira hierarquia é fundamentada em princípios de “rank and duty” (status e dever). Segundo Hill (2003, p. 65, tradução nossa), “ela compreende a estrutura formal da organização com estratos [sociais] claramente definidos; cada um vinculando deveres, status e privilégios específicos”. Tal organização hierárquica (ver figura 4) tem como ápice o “chefe da família”, kumi-chō, seguido de saika-kanbu (executivos sêniores); kanbu (executivos); kumi-in (soldados); e jun-kasei-in (aprendizes/estagiários).

KUMI-CHŌ SAIKA-KANBU KANBU KUMI-IN JUN-KASEI-IN Figura 4 - Estrutura hierárquica administrativa de um ikkai da Yakuza.

A segunda hierarquia (ver Figura 5) é baseada na unidade doméstica japonesa chamada ie (cf. CHIE, 1967; 1970). Ela é marcada por uma dupla constituição relacional. Uma verticalmente vetorializada, oyabun-kobun — isto é, uma estrutura pai-filho. Outra marcada por um vetor horizontal, kyōdaibun — isto é, relação entre irmãos (a distinção interna entre irmãos mais velhos e mais novos, introduz um vetor vertical dentro da relação horizontal) (HILL, 2003; KAPLAN e DUBRO, 2003).

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OYABUN

KOBUN [MAIS VELHO → MAIS NOVO] Figura 5 - Estrutura hierárquica baseada em ie de um ikkai da Yakuza.

Esses conjuntos de relações hierarquizadas tornam o ikkai uma unidade relacional, onde as conexões (internas e externas) são expressão da riqueza de um determinado grupo da Yakuza. De fato, Hill (2003) comenta sobre frequentes cerimônias que tornam visíveis essas conexões na forma de itens de riqueza. Essas cerimônias são conhecidas como girikake. Os girikake são variados, mas são comuns exibirem os itens recebidos de parceiros como forma de explicitar a extensão da rede de relações que um ikkai tem a sua disposição. Talvez o papel mais insidioso realizado pelo girikake é de um mecanismo para transferência de dinheiro dentro do mundo yakuza. Ao participar de um girikake, os participantes tipicamente pagam alguma quantia em dinheiro pela honra [de ser convidado]. No caso de um funeral, o dinheiro será dividido entre a família do falecido e sua gangue. Na prefeitura de Iwate, onde, de acordo com informantes policiais e da Yakuza, a Yakuza está entre os menos ricos no Japão, o funeral de um chefe de uma das maiores gangues na prefeitura (pouco menos que 50 membros integrais) levantou ¥1.5 m. A quantidade levantada em um funeral de um chefe da Yamaguch-gumi (um membro do primeiro escalão ou chefe da família) seria de aproximadamente ¥20 m. (HILL. 2003, p. 79, tradução nossa)

Outra cerimônia bastante importante é sakazuke, originalmente realizada como cerimônia de iniciação. Nessa cerimônia, as hierarquias são tornadas visíveis através da quantidade de sake que cada participante recebe para beber: quanto mais baixa a posição de um membro, menos sake ele recebe. O sake nessas cerimônias representa a substância compartilhada (o “sangue” em comum) entre os membros de uma família da Yakuza (KAPLAN e DUBRO, 2003, p. 9). Hiroaki Iwaii (1963 apud KAPLAN e DUBRO, 2003, p. 9, tradução nossa) descreve uma dessas cerimônias sakazuke: Um dia auspicioso é escolhido e todos os membros da organização irá participar, com torimochinin ou azukarinin (“guarantidores”) presentes como intermediários. Arroz,

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peixe e pilhas de sal são colocadas na alcova de um templo Shinto, em frente do qual oyabun e kobun sentam um de face para o outro. O torimochinin organiza cerimonialmente o peixe e enche os copos com saquê, adicionando escamas de peixe e sal... Eles então se voltam solenemente para os kobun e os avisa de suas obrigações futuras: “Tendo tomado do copo do oyabun e ele do seu, você agora deve lealdade ao ikka e devoção a seu oyabun. Mesmo que sua mulher e filhos passem fome, mesmo que lhe custe a vida, seu dever é agora para com o ikka e o oyabun”, ou “De agora em diante você não tem nenhuma outra ocupação até o dia de sua morte. O oyabun é seu único parente [familiar]; siga-o através do fogo e da enchente.”

Mas se as cerimônias tornam visíveis as conexões de um grupo, as tatuagens, poderíamos induzir, tornam visíveis as conexões de uma pessoa. Quanto mais complexa é a tatuagem de alguém mais provavelmente essa pessoa tem acesso a recursos financeiros (já que fazer tatuagens é caro), o que implica que essa pessoa ou tem “patrocinadores” poderosos ou então que ela própria acumula certo poder. Contudo, há outra dimensão da tatuagem tornar visíveis as conexões de uma pessoa: a assinatura do artista-tatuador inscrita na pele (Figura 6). A possibilidade de acesso ao trabalho, ou melhor, a se tornar o trabalho de um determinado artista-tatuador renomado permite a pessoa tornar evidente em sua pele uma conexão que ele é capaz de entreter. Mas não é apenas o tatuado, seja ele membro ou não da Yakuza, que se “beneficia” da tatuagem. O artista-tatuador também ganha prestígio ao exibir sua assinatura através do corpo de outros. O artista-tatuador estende a si mesmo, se torna maior, através de habitar a superfície corporal de outras pessoas na forma de assinaturas (e desenhos) inscritos

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Figura 6 – Fotografia de tatuagem feita por Sandi Fellman. Podemos ver no canto superior esquerdo a assinatura do artista-tatuador.

nela7. De fato, meu foco se direcionará menos para os tatuados (e para a Yakuza) e mais para o artista-tatuador e sua prática de inscrição corporal. A técnica tradicional de tatuagem japonesa é extremamente dolorosa. Consiste em aplicação de tinta através de um instrumento chamado hari, formado por um feixe de pequenas agulhas acoplado a um cabo de madeira/bambu. O processo é longo e caro, além de envolver um comprometimento grande por parte tanto do artista-tatuador quanto do futuro tatuado. Alguém que busca uma tatuagem entra em contato com o artistatatuador através de alguém que já o conheça ou com alguma forma de indicação (RICHIE;

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Tal descrição de uma distribuição de agência é inspirado nos trabalhos de Alfred Gell (1999; 1998) sobre a relação entre objetos (de arte) e agência (isto é, capacidade de elicitar nos outros um efeito).

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BURUMA, 1980), o que contribui para o valor da tatuagem enquanto índice de acesso a uma relação, como já dito. O processo de tatuagem, segundo Donald Richie e Ian Buruma (1980), empreende dois momentos após o encontro entre cliente e artista-tatuador: suji e bokashi. Suji é processo de inscrição dos contornos do desenho da tatuagem utilizando sumi, uma tinta enegrecida feita de carvão vegetal. É nesse momento que são tornados visíveis as imagens que serão gravadas definitivamente sobre a superfície corporal de uma pessoa. Já bokashi é o processo de preenchimento dos contornos com cores. Inicialmente poucas cores eram usadas, pois as tintas eram de origem vegetal ou mineral. Atualmente, com a produção química de tintas, uma maior variedade de cores está disponível. Mas o que dizer da discussão desse artigo sobre os conceitos de ma e basara? De fato, as tatuagens podem ser duplamente associadas a basara: primeiramente, pela exuberância e quantidade de formas que se entrelaçam e adornam a pele de alguém; em segundo lugar, pois as tatuagens podem demonstrar um certo “anticonformismo” que expressaria uma liberdade em relação as regras da sociedade. Mas a questão que me coloco é: o que aconteceria se incluíssemos na discussão sobre as tatuagens uma dimensão ma igualmente importante a sua dimensão basara? Horikin, um famoso mestre de tatuagem japonês, entrevistado por Sandi Fellman durante a realização de seu ensaio fotográfico sobre as tatuagens, nos faz uma potente descrição sobre o ato de tatuar: “Você nunca realmente aperfeiçoa o trabalho de sua vida de qualquer forma... Há sempre um novo lugar para tatuar, mas o homem sempre morre antes de seu trabalho estar pronto” (1986, p. 14, tradução nossa). Se levarmos à sério a fala de Horikin, cujo nome real é Mitsuaki Ohwada, podemos perceber como a tatuagem é uma arte do infinito8, em que sempre há um novo lugar para se tatuar, e é exatamente uma arte do infinito devido a finitude da vida de um homem. Certamente, o espaço corporal — tomado como circunscrito pela pele — é uma superfície de área finita, mas como a duração da vida antecede a duração da finalização (isto é, da inscrição incessante) das tatuagens, a pele se constitui como um espaço de multiplicidade, de possibilidades abertas e infinitas.

Um amigo me chamou a atenção para um trabalho de Foucault (2009) intitulado “A Linguagem ao Infinito” que oferece uma descrição da literatura também como uma arte do infinito. 8

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Ora, é essa a descrição que fizemos do ma acima: um campo de possibilidades. Dessa forma, a fala de Horikin me leva a pensar como a possibilidade de inscrição das formas basara através da tatuagem, está relacionada com a existência do ma, enquanto pele vazia que permite a inscrição infindável de novos desenhos. Realmente, se repararmos cada tatuagem pode ser decomposta em partes que isoladas aparecem como todo. Isto é, o corpo tatuado é formado de várias partes que se analisadas isoladamente podem ser todos em si mesmas; e essa, eu proporia, é uma das características mais interessantes das tatuagens japonesas: cada todo em relação aos outros se torna uma parte de um (outro) todo. No entanto, voltemos ao que é essencial para nossa discussão: a relação entre ma e basara nas tatuagens. Se o que afirmei está correto, isto é, que as tatuagens têm uma forma basara que atualiza o potencial de infinitude de uma forma ma de uma pele ainda “em branco”, poderíamos dizer que as tatuagens nos permitem conceber o basara enquanto contido no ma. Basara seria ma de outra forma. A tarefa do artista-tatuador consistiria então de trazer à tona a forma basara contida em potência na forma ma.

Apresentando formas de outra forma: o teatro nô O Teatro Nô por sua vez parece articular ma e basara de uma maneira distinta. Antes de fazer emergir o basara contido no ma, o que me parece ser buscado por Zeami é como conter o basara através de uma forma ma, ou seja, a preocupação é em como apresentar a diversidade de formas do basara através da forma simples do ma. As máscaras de Nô constituem um interessante exemplo. Sua história está intrinsecamente relacionada a história do próprio Teatro Nô. Conhecidas como omote ou men, as máscaras de Nô indicam a proximidade dessa forma expressiva com o budismo e o xintoísmo (LEE, 1975): as máscaras foram introduzidas por artistas de sangaku (umas das formas teatrais que possibilitaram a emergência do Nô) entre os séculos XIII e XIV como uma forma de estabelecer um vínculo com as religiões do povo e assim aumentar o prestígio social desses artistas (ORTOLANI, 1995). O tamanho das máscaras é de aproximadamente 20 cm, pesando por volta de 177 gramas (LEE, 1975), dessa forma, elas cobrem apenas parte da superfície do rosto do ator. Elas são esculpidas em madeiras retiradas de ciprestes, e é durante o trabalho de entalhamento 11

que elas ganham vida. Mas o auge da vida de uma máscara é alcançado quando ela está em uma apresentação de Nô. A relação entre o artista e a máscara é marcada por um profundo sentimento de reverência. Antes de iniciar uma apresentação, o artista se prepara em um ambiente chamado kagami no Ma, traduzido por Michiko Okano (2007) como Ma do espelho, consistindo em uma sala com um espelho, em que o ator se olha após vestir a máscara. No entanto, antes de vestir a máscara o ator a contempla e precisa pedir por sua permissão; para que ambos possam se tornar um só, é preciso que ambos estejam sincronizados (KUSANO, 1988). Dessa forma, poderíamos dizer que além do artista usar a máscara, a máscara usa o artista. Reproduzo uma bela citação de Okano (2007, p. 31) sobre o percurso de vestir a máscara no Teatro Nô e ascender ao palco da apresentação: O palco do teatro Nô é símbolo de uma arquitetura que tece o tempo e o espaço: a espacialidade do kagami no Ma (Ma do espelho) constitui o lugar da conexão do ator com o espírito [materializado pela máscara] — lembrando que o espelho é considerado símbolo divino — quando a máscara é colocada, antes de entrar em cena; a do hashigakari (passagem-ponte) constrói uma passagem da escuridão ao palco, símbolo da luz e do mundo dos vivos. A encenação é realizada de maneira a atravessar tempos longínquos e espaços da morada dos espíritos, constituindo uma performance de cruzamentos entre o real e o irreal sem produzir, no entanto, nenhum tipo de estranhamento para o observador.

A descrição feita pela autora busca relacionar o Teatro Nô com seu conceito de espacialidade ma: o palco do nô (Figura 7) é descrito como uma das formas em que o ma pode se instanciar. Mas esse não é o único movimento feito pela autora. Okano também explicita a dinâmica presente no tempo e espaço do Nô, enquanto uma experiência de transformação e apresentação (no sentido, de mostrar, de revelar; não no de atuar ou de representar). O artista se transforma a partir de sua relação com a máscara, e esta transformação é simbolizada no percurso que ele efetua entre o kagami no Ma e o honbutai (parte “central” do palco) através do hashigakari.

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Figura 7 - Ilustração do palco do Teatro Nô.

Contudo não é apenas o artista que se transforma, a máscara contém em si uma capacidade transformativa inscrita enquanto virtualidade pelo seu criador e atualizada pelo artista através de sutis movimentos da face que se articulam com a iluminação do local. Me refiro a uma característica muito comentada das máscaras de Nô: elas podem expressar uma grande amplitude de emoções. Novamente encontramos uma maneira possível de articulação de ma e basara. Ao observar uma máscara de Nô, nos sobressai sua sobriedade, sua simplicidade e seu caráter misterioso. De fato, quando colocadas lado a lado, é difícil perceber grandes diferenças entre elas (Figura 8). Assim as máscaras podem ser descritas como exemplos de ma. Mas o que fazer com a característica que descrevi anteriormente da diversidade de expressões que uma máscara pode transmitir? Não seria essa característica um exemplo da exuberância de basara? É precisamente essa duplicidade que busco dar conta quando afirmo que as preocupações do Nô são de como controlar uma forma basara através de uma forma ma.

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Figura 8 - Máscaras de rostos de mulher.

Para tornar mais claro o que objetivo dizer, tomemos como ponto de discussão o conceito de monomane de Zeami 9 . Foi durante o período Heian que houve uma mudança no sangaku de um foco em um espetáculo circense para uma concentração na arte de monomane (ORTOLANI, 1995). “Isso significou uma mudança de habilidades físicas a habilidades miméticas” (Ibid., p. 58). O movimento em direção ao monomane é descrito por Benito Ortolani como um movimento em direção a apresentações realistas (para o padrão da época). Contudo, penso que realismo é uma escolha de termo equivocada, pelo menos se mantermos o nosso uso convencional do termo. No Fushikaden, tratado escrito por Zeami, um dos capítulos é dedicado à prática de monomane. O conceito é geralmente traduzido como “imitação”, implicando que o que está em jogo na prática é uma representação de algo ou alguém. Mas o que parece Zeami pretender designar com o termo é uma prática de transformação: o artista não representa uma personagem, ele busca tornar-se essa personagem. Daí sua relação com as máscaras. O processo de tornar-se uma personagem implica que o artista de Nô esteja bem familiarizado com o estilo de vida dela. Isso não quer dizer que o que Zeami postula que é preciso “representar” realisticamente uma dada personagem. Conhecer para se transformar é necessário, pois a transformação só acontece realmente quando se é capaz 9

Zeami é considerado um dos fundadores do Teatro Nô e escreveu inúmeros tratados sobre a arte.

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de capturar o hon’i da personagem, isto é, seus “afetos verdadeiros”, se desvencilhando daquilo que é supérfluo e que pode prejudicar o encanto da peça. Monomone pode ser visto como uma técnica de apresentar uma forma através de outra forma. É um modo de tornar visível aquilo que não é: o hon’i da personagem. Assim, o que é central na prática monomane é manifestar de maneira sensível o encanto de um personagem, sendo capaz de reproduzir esse encanto para encantar a audiência. Se aliarmos essa concepção de monomane com os deslocamentos que fiz até aqui nos conceitos de ma e basara, podemos dizer que monomane é uma forma de produzir o primeiro como forma de controlar o segundo. Destarte, se nas tatuagens o que parece acontecer é a produção de basara através do ma, no Teatro Nô se produz ma através de basara. Antes de serem opostos, um é o outro de outra forma.

Considerações finais Está claro até o momento que durante o percurso deste ensaio os conceitos de ma e basara sofreram diversos deslocamentos. O efeito, como pode ser visto, é que neste ponto os conceitos provavelmente já não se parecem muito com a maneira que eles foram usados por Seigo Matsuoka. Como explicitado no início deste ensaio, meu objetivo era pensar com tais conceitos. Pensando com eles, ao invés de através deles, somos levados a nos entregar no campo de possibilidades que eles abrem ao dialogar com nossos diversos materiais de estudo. E é aqui que reside seu potencial: conceitos são ferramentas criativas, portanto, de nada são úteis se seu emprego tirar para fora do jogo a própria criatividade que os cria. Contudo, é preciso tornar mais claro o uso que fiz dos conceitos de ma e basara. Busquei utilizá-los como maneiras de objetificar dois processos de produção de formas que podem ser pensados em uma relação de figura e fundo (STRATHERN, 2014 e 2006; WAGNER, 1987). No caso das tatuagens, enquanto o ma parece assumir a posição de fundo, basara aparece enquanto um processo, ou seja, é figura. Assim, o ma é polo não marcado de uma espécie de dialética10 de formas, em que basara consistiria tanto da antítese (enquanto processo) quanto da síntese (enquanto figura resultante). Mas nessa própria dialética, a 10

Dialética entendida aqui em termos hegeliano-marxistas, como processo constituído de tese, antítese e síntese.

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elicitação do basara, inscreveria a própria reemergência do ma, por isso, minha descrição da infinitude da tatuagem. Já no Teatro Nô, poderíamos descrever essa dialética de formas de maneira inversa. Basara enquanto tese, isto é, polo não marcado, se torna o espaço de inscrição de ma que aparece simultaneamente como antítese ou processo e como síntese ou resultado. E da mesma forma como acontece nas tatuagens, o próprio processo de fazer o basara aparecer na forma ma, constitui o ma como índice de basara. Dessa forma, descrevi as máscaras de Nô que apesar de apresentarem uma forma ma, quando postas em cena numa performance são desdobradas enquanto multiplicidade11. Compreender esses conceitos não apenas enquanto forma, mas também enquanto modo de produção (de formas) me permite avançar um argumento bastante particular, que vai de encontro com as caracterizações do teatro como uma forma tradicional que não há espaço para a criação inovadora. Não digo que tal caracterização não possa ser verificada, mas me parece que ela só o é quando não levamos a sério o que é o Teatro Nô e o colocamos à força em um universo simbólico que é apenas “nosso”. As ideias e preocupações com as tradições são uma preocupação recente no “Ocidente”, como nos lembra Eric Hobsbawm (1997). Portanto, seria um pouco surpreendente que já nos séculos XIV e XV, Zeami se preocupara com a preservação da tradição. O que proponho ao pensar a produção de formas é argumentar que o que está em jogo para o artista de Nô, não é inovar, ou produzir a cada ocasião uma forma nova, mas sim, fazer e refazer em todos os momentos uma mesma forma. Por isso, a impressão de que não há criação inovadora no Teatro Nô. Mas a partir do momento que vemos essa constante “reprodução” de uma mesma forma enquanto processo produtivo que vem acompanhado de uma reflexão sobre o que causa um encanto sobre outrem12, penso sermos capaz de encontrar a dimensão criativa do Nô. A inovação nessa forma expressiva se dá pelo processo de não produzir o novo. A preocupação é antes em causar um efeito na audiência (aquilo que Zeami chamou de yūgen), e para isso, o artista já conhece a maneira adequada.

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Apesar de tornar o argumento homólogo entre a tatuagem e o Teatro Nô, não quero com isso propor que todas as formas expressivas japonesas se renderiam a uma das duas maneiras que tentei articular o ma e o basara neste ensaio. Na verdade, tal tentativa de generalização iria contra o meu objetivo, que é pensar “com” tais conceitos. Espero que as pessoas também possam pensar com tais conceitos ou com este ensaio e serem capazes de se deixar surpreender pelas articulações que seus próprios materiais de pesquisa permitem fazer. 12 Esse parece ser o assunto de muito dos tratados de Zeami.

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Toda sua energia motivadora é então direcionada em como produzir da melhor maneira essa forma eficaz. Talvez possamos retirar daí um grande ensinamento.

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