As mortes ignoradas: o Plano de Segurança e a população trans

May 20, 2017 | Autor: Luanna Tomaz | Categoria: Transexualidade, Violência, Segurança Pública, Gênero E Sexualidade
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As mortes ignoradas: o Plano de Segurança e a população trans – Por Luanna Tomaz de Souza e Flávia Haydeé Almeida Lopes Colunas e Artigos

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Por Luanna Tomaz de Souza e Flávia Haydeé Almeida Lopes – 20/01/2017 Hoje o Brasil é país que mais mata travestis e transexuais no mundo[1]. Segundo a ONG Transgender Europe, o Brasil responde por 42% dos 295 casos de assassinatos de pessoas trans registrados, em 2015, no mundo. Em 2016, houve um recorde de mortes[2]. Essa realidade, contudo, parece não ter chamado atenção do governo. As políticas para mulheres, negros/as, população LGBT e direitos humanos no governo federal receberam 35% menos recursos em 2016, em relação a 2015[3]. Sem contar que, ao assumir, Temer fechou o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Recentemente foi lançado o Plano Nacional de Segurança Pública do governo federal. O Plano tem como eixos: redução de homicídios dolosos, feminicídios e violência contra a mulher; racionalização e modernização do sistema penitenciário; combate integrado à criminalidade organizada transnacional.

Não há, todavia, atenção aos assassinatos de LGBT´s (Lésbicas, gays, bissexuais e travestis) no Plano. O único ponto do eixo que menciona a população LGBT a rma: Curso de atendimento humanizado em ocorrências de violência contra as mulheres, crianças e adolescentes, público GLBT (difusão da Norma Técnica – Atenção humanizada às pessoas em situação de violência sexual com registro de informações e coleta de vestígios – Material físico da SPM). Além de usar uma sigla que já não é mais usada pelos movimentos (o que já mostra desprezo pela questão), o Plano parte do pressuposto de que essas mortes podem ser evitadas somente através de um curso de “atendimento humanizado em ocorrências”. De fato, é fundamental melhorar o atendimento à essa população, mas é necessário enfrentar o que leva a essas mortes, esgarçar a discriminação existente em nossa sociedade. Precisamos fazer o que Zaffaroni[4] nos ensina: ouvir mais os mortos. Ao olharmos para as pessoas trans assassinadas veremos que há um cenário complexo que conjuga diferentes formas de discriminação. De acordo com a Transgender Europe, grande parte das mortes de transexuais são resultado da exclusão social. A maioria das mortes são de pessoas negras, pobres, em situação de prostituição. Cerca de 79% das pessoas trans assassinadas são prostitutas. Boa parte dessas mortes acontecem em vias públicas no país. No Brasil, transexuais são socialmente rechaçadas/os, invisibilizadas/os, em especial se foram negras/os e/ou se prostituírem. A sociedade retira dessas pessoas a condição de humanos, impedindo o reconhecimento de seus direitos. Em realidade, direitos não passam de normas programáticas, sem a efetiva existência e aplicação, é a letra morta da lei. Nota-se que os direitos dessas pessoas são renegados pelo simples fato de irem de encontro à norma heteronormativa e binária posta que dividem o mundo entre “coisas de homem e de mulher”. Uma sociedade que ainda resume a sexualidade humana ao critério biológico, deixando de lado os aspectos sociais, culturais e históricos que compõe a sexualidade. Convivemos com um padrão heteronormativo, que nos impõe papeis sociais e identidades e tudo aquilo que foge à regra é considerado desviante, sendo necessário normatizar[5]. O Plano não contribui em nada para combater o assassinatos de transgêneros, porque suas mortes que são antes de tudo simbólicas, fruto da negação histórica de direitos. Barbosa e Silva[6] citam algumas das várias formas de cerceamento de direitos e violências existentes na vida de pessoas transexuais, como, por exemplo, negar a uma pessoa transexual o direito a adequação do seu sexo, como o direito à educação, quando estas pessoas ainda na infância e adolescência são expulsas das escolas, negar até mesmo o direito de ter seu nome civil condizente com a identidade de gênero. Os crimes contra essa população são brutais e revelam todo o ódio e preconceito da população: 44% daqueles registrados entre 2008 e 2016 foram por disparos de armas, cerca de 24% por punhaladas, 13% por pauladas, 5% por estrangulamento, 3% por apedrejamento e 2% por desmembramento ou degola. Esse contexto de marginalização e discriminação inicia desde a juventude. Desta forma, o enfrentamento a violência contra esse segmento deve passar primeiro pelo reconhecimento da existência desses sujeitos e permitir a eles condições de acesso a direitos a todos reconhecidos como trabalho, educação, saúde e vida. A Rede Trans (Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil) divulgou relatório que mostra que 82% das travestis e mulheres transexuais abandonam o ensino médio entre os 14 e 18 anos no Brasil[7].

Em 2015, ainda no governo Dilma, foi lançada pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), um órgão integrante da estrutura básica da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), a Resolução nº 12/2015. A Resolução garante o uso do nome social desde a seleção, na frequência e nas avaliações, permite o uso de banheiros e vestiários, assim como indumentária conforme a identidade de gênero da pessoa, vendando qualquer tipo de objeção de consciência, ou seja, não podem os professores e diretores escusar-se de utilizar os nomes sociais. No caso de adolescentes transexuais e travestis em idade escolar, os mesmos não precisam da autorização de seus responsáveis, podem ir diretamente à direção e requerer o uso do seu nome social. Tais medidas são fundamentais para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais nos sistemas e nas instituições de ensino, sendo o instrumento mais avançado que temos de respeito e promoção da cidadania transexual. Em 2016, próximo do m de seu governo, Dilma assinou o Decreto 8.727/2016, o qual dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Há medidas dessa natureza em diversos estados, garantindo o respeito ao nome social nos órgãos da administração municipal. De forma simbólica, tais documentos são uma forma de reconhecer a cidadania dessa população, permitindo que o indivíduo exista no meio social, combatendo a transfobia. Essas mudanças já podem ser percebidas. Em levantamento feito pela Secretária de Educação do Estado de São Paulo[8] apontou que até setembro de 2016, 358 estudantes travestis ou transexuais solicitaram o uso do nome social em suas escolas, um aumento de 51% em comparação com o mesmo período em 2015, quando eram 182. O Plano Nacional de Segurança trata todos os assassinatos como iguais e centra a resolução desse problema na atuação policial e no Poder Judiciário, ignorando que estes espaços apresentam inúmeras contradições. São graves as denúncias de violência policial e de um sistema de justiça despreparado. Recentemente, na análise do julgamento do Recurso Extraordinário nº 845779 no Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministro Luiz Fux advertiu: “Imagine como cará o pai mais conservador que tem uma lha, sabendo que ela está numa escola e qualquer pessoa com gênero idêntico ao dela (sic) vai poder frequentar o mesmo banheiro que a lha”. O Ministro ignorou a vulnerabilidade dessa população, o número de assassinatos e agressões sofridos por essas pessoas, pintando-as, pelo contrário, como possíveis abusadores/as, como um incômodo. O enfrentamento à violência contra transgêneros, em especial o absurdo número de mortes, passa por questões mais amplas do que aumentar o efetivo policial ou capacitar algumas unidades para um atendimento humanizado, envolve enfrentar uma sociedade transfóbica, uma dura realidade de negação de direitos, de marginalidade social e discriminação. O Plano passa ao largo disso, aposta em uma lógica carcerocêntrica, policialesca, um populismo penal que tenta enganar a população, fazendo-a crer que é com um suposto incremento da segurança pública que teremos diminuição da violência. Travestis e transexuais tem nos ensinado muito com sua resistência. Esperamos que no atual cenário de crescimento do conservadorismo, de recrudescimento das ações educacionais, sociais e econômicas voltadas à subverter as imposições de gênero, raça e sexualidade, elas possam continuar nos ensinando a lutar. Só podemos mandar, seguindo a música da Mc Xuxu: “um beijo pras travestis”.

Notas e Referências:

[1]

http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/com-600-mortes-em-seis-anos-brasil-e-o-

que-mais-mata-travestis-e [2]

http://www.24horasnews.com.br/noticias/ver/com-mais-de-340-assassinatos-2016-bate-recorde-em-numero-

de-mortes-de-lgbts.html [3]

http://www.poder360.com.br/governo/politicas-para-mulheres-negros-e-direitos-humanos-perdem-35-dos-

recursos/ [4] ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. [5] ANACLETO, Aline Ariana Alcântara; MAIA, Ana Claúdia Bortolozzi. Gênero na infância: análise do lme “la vie in rose” como instrumento pedagógico em educação sexual. Revista Ibero-americana de Estudos em Educação. São Paulo. V. nº04, nº03 (2009). [6] BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira; SILVA, Laionel Vieira da. Morte e exclusão: crimes contra a mulher. Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito Centro de Ciências Jurídicas – Universidade Federal da Paraíba nº 01 – Ano 2015 [7] http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/04/201cnome-social-e-maior-conquista-para-as-transexuaise-travestis201d-diz-lideranca-transexual [8]

http://www.educacao.sp.gov.br/noticias/sao-paulo-registra-aumento-de-51-no-uso-de-nome-social-por-

estudantes-de-escolas-estaduais

. Luanna Tomaz de Souza é Doutora em Direito (Universidade de Coimbra). Professora de Direito Penal da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia e da Clínica da Atenção à Violência da UFPA. Autora do livro: “Da expectativa à realidade: a aplicação de sanções na Lei Maria da Penha”.

. . Flávia Haydeé Almeida Lopes é Graduanda em Direito (UFPA). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Direito Penal e Democracia. . .

Imagem Ilustrativa do Post: AIDS vs. the people : rainbow pride/peace warrior ag, harvey milk plaza, castro, san francisco (2013) // Foto de: torbakhopper // Sem alterações Disponível em: https://www. ickr.com/photos/gazeronly/8406299629

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