As Narradoras da Cantuária - Representação das mulheres em Geoffrey Chaucer

June 3, 2017 | Autor: Anna Esser | Categoria: Late Middle Ages, Chaucer
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Atas da IX Semana de Estudos Medievais 16 a 18 de novembro de 2011

Organização Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Juliana Salgado Raffaeli Leila Rodrigues da Silva

Programa de Estudos Medievais Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro

Atas da IX Semana de Estudos Medievais Copyright © by Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva; Juliana Salgado Raffaeli e Leila Rodrigues da Silva (org.). Direitos desta edição reservados ao Programa de Estudos Medievais (PEM) Instituto de História (IH) | Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Largo São Francisco de Paula, 1 - sala 325-B Rio de Janeiro, RJ. CEP: 20051-070 Fax.: (21) 2252-8032 - Ramal 104 E-mail: [email protected] | http://www.pem.historia.ufrj.br

Edição: Alexandre Santos de Moraes ISBN: 978-85-88597-15-0

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; RAFFAELI, Juliana Salgado; SILVA, Leila Rodrigues da (org.). Atas da IX Semana de Estudos Medievais / Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Juliana Salgado Raffaeli e Leila Rodrigues da Silva (organizadores). -Rio de Janeiro: PEM, 2012. Bibliografia: ISBN: 978-85-88597-15-0 1. História Medieval 2. Programa de Estudos Medievais 3. Instituto de História. I. Título.

André Rocha de Oliveira Reflexões sobre o papel das muralhas na cidade medieval .................................. p. 92 Andréa Reis Ferreira Torres As relações entre monacato e episcopado na Península Ibérica Centro-Medieval e suas representações hagiográficas ........................................ p. 102 Anna Beatriz Esser dos Santos As Narradoras da Cantuária - Representação das mulheres em Geoffrey Chaucer ............................................................................................ p. 114 Bárbara Vieira dos Santos Considerações sobre as viúvas nos Concílios de Toledo: primeiras reflexões ................................................................................................. p. 125 Bruna Cruz Baptista A imagem na Idade Média: um breve estudo ..................................................... p. 134 Bruno Gonçalves Alvaro Os eixos de poder no Episcopado de Singüenza no século XII: uma análise comparativa de suas estratégias e táticas ........................................ p. 142 Bruno Marconi da Costa O conceito de feudalismo em Portugal - uma discussão historiográfica ........... p. 155 Bruno Uchoa Borgongino O corpo: perspectivas teóricas e historiografia medievalista .............................. p. 166 Carolina Coelho Fortes Os estudos como elemento de identidade entre os frades dominicanos no século XIII: os casos dos conversos e das monjas .................... p. 178 Daniel Augusto Arpelau Orta Genealogia política como identidade nobiliárquica. O estudo da Crônica do Conde D. Duarte de Meneses (século XV) ..................................... p. 190 Diego Schneider Martinez O reinado de Honório (395-417) entre a incerteza e a esperança ................... p. 203 Douglas de Freitas Almeida Martins Sociabilidade e “economia moral na Vita Secunda de Tomás de Celano (1244 – 1247) ....................................................................................... p. 215 Douglas Mota Xavier de Lima A diplomacia na construção da Campanha de Ceuta ......................................... p. 226 Eduardo Cardoso Daflon Transição e Hierarquização no mundo germânico ............................................ p. 236

AS NARRADORAS DA CANTUÁRIA - REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES EM GEOFFREY CHAUCER Anna Beatriz Esser dos Santos (Mestranda PPGHC - UFRJ) Os Contos da Cantuária1 foram um marco para a Língua Inglesa, pois têm o objetivo de ser um extrato da vida dessa sociedade do final do século XIV. A partir deste, serão verificadas as transformações sociais ocorridas no período e como os ideais cristãos foram articulados pelo autor da obra. Deste modo, será analisado o discurso presente no Conto da Prioresa, no Conto da Mulher de Bath, no Conto do Moleiro, no Conto do Mercador, no Conto do Marinheiro, no Conto do Escrivão, no Conto do Clérigo e no Conto de Chaucer, no que diz respeito à atuação da mulher e seu espaço na sociedade medieval e em como a historiografia aborda os valores de conduta femininos presentes nesses Contos, comparando-os com a crítica social presente em Chaucer. Os Contos da Cantuária começou a ser produzido em 1386, e não chegou a ser concluído, devido à morte do autor em 1400. Estes Contos têm o objetivo de ser um extrato da vida e da sociedade Inglesa do final do século XIV. Esta obra propicia a discussão sobre diversos aspectos vigentes na cultura da época. Quanto à estrutura narrativa, os Contos da Cantuária têm como ponto de partida, uma peregrinação composta por vinte e nove peregrinos, que incluem o próprio Chaucer entre eles. Estes peregrinos rumam à cidade da Cantuária, para visitar o túmulo de São Thomas Beckett, arcebispo da mesma cidade, assassinado durante o reinado de Henrique II, em 1170, por ter jurado fidelidade ao Papa quando dos conflitos entre o poder da Coroa e o do Papado. Quando param em Southwark, reúnem-se na Taberna do Tabardo, onde o Albergueiro sugere aos peregrinos que cada um conte uma história, o melhor narrador ganharia um jantar como prêmio. Os Contos estão precedidos por um Prólogo onde são apresentados, todos os personagens; que representam os membros CHAUCER, Geoffrey. Os Contos da Cantuária. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: T.A. Queiroz, 1988. 1

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da aristocracia como o Cavaleiro e o Escudeiro; membros do clero como a Prioresa, o Monge, o Frade, a Freira e seu Secretário, o oficial de Justiça Eclesiástica, o Pároco, o Vendedor de Indulgências e o Estudante de Oxford; da burguesia temos o Mercador, o Médico, o Advogado, a Mulher de Bath (fabricante de tecidos) e o proprietário de terras alodiais; das classes populares temos o Feitor, o Moleiro, o Carpinteiro e o Camponês. O conteúdo das histórias também são relacionados à posição social e ao temperamento dos seus narradores. Na verdade, Os contos de Cantuária constituem uma pintura da sociedade da época e, pela variedade dos gêneros em que se enquadram os diferentes contos, apresenta um panorama completo da literatura medieval. Mais que tudo isso, porém, é uma análise da natureza humana. O Tempo de Chaucer Para nossa análise é necessário abordar algumas transformações sociais, econômicas e políticas da Inglaterra do século XIV, analisando também o plano religioso Inglês e como essas questões influíram para a construção dos “Contos” por Chaucer. O período em que viveu nosso autor (1340-1400) abrange os reinados de Eduardo III (1327-1377) e Ricardo II (1377-1399), que assinalam características da transição do final do Feudalismo para o início da época moderna em que a Inglaterra começara a se firmar como um reino autônomo, mesmo tendo momentos de crise.2 De uma forma mais específica, ao nos centrarmos na Baixa Idade Média Inglesa, observamos ter nela abrigado, num mesmo momento, Para esta temática, utilizaremos como referência as seguintes obras: BOITAN, Piero e MANN, Jill. The Cambridge Chaucer Companion. Londres: Cambridge University Press, 1986; DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Estampa, 1994. 2v., V.1. p. 19-83; DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do Feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982; GARDNER, John Champlin. The life and times of Chaucer. Nova York: Alfred A. Knopf, 1977; LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa, 1984. 2v.; ___. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; MANN, Jill. Chaucer and the Medieval Estates Satire. Londres: Cambridge University Press, 1973. MISKIMIN, Harry. A Economia do Renascimento europeu (1300-1600). Lisboa: Estampa, 1998. p. 209-354; FRANCO Jr., Hilário. Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1995; FRYDE, Natalie. La crisis de La baja edad media en Inglaterra según la investigación anglosajona de los últimos veinte años. Barcelona: Crítica, 1997. 2

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os desastres provocados por uma grande fome, por uma grande peste e por uma seqüência de guerras, agrupadas no que chamamos atualmente de a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). De acordo com Hilário Franco Júnior, além de se caracterizarem por uma serie de batalhas contra a França em uma disputa que debatia questões específicas como as reivindicações entre as dinastias Plantageneta e Capetíngia, tinham como objetivo a quebra com “os vínculos feudais entre si: o rei da Inglaterra era vassalo francês”,3 onde a necessidade de se manifestar as pretensões ao trono francês em 1337 foi a forma da nobreza inglesa para “restabelecer seu poder e controlar o próprio Estado”.4 Verifica-se durante a vida de Chaucer, uma nova articulação feudal. No século XIV, as relações servis foram sendo substituídas gradualmente por terras arrendadas e pagamentos em dinheiro. Também devido à guerra, a monarquia estava se fortalecendo; uma prova desta maior consciência percebe-se nos Contos de Chaucer, que se tornou um marco no desenvolvimento da língua Inglesa. O que é possível perceber de maneira geral sobre o reinado de Eduardo III foi que este período foi assinalado por uma liderança inglesa que se enfraqueceu nos últimos anos do reinado; assim, acumularam-se dificuldades financeiras trazidas tanto pelos gastos com a guerra como com a mortalidade ocasionada pela peste negra. Após o falecimento de Eduardo III, o reino foi ficando cada vez mais instável, o Parlamento tornou-se cada vez mais influente e a divisão entre os lordes e os comuns mais nítida. Além do fator político, durante a época de Chaucer, há também a questão religiosa, essencial como pano de fundo às críticas feitas aos membros do clero para os contos analisados. A Inglaterra no plano religioso,5 a que contribuiu para o questionamento que a sociedade Inglesa fazia à Igreja Católica da FRANCO Jr., Hilário. Op. Cit., p. 105. Ibidem, p. 107. 5 Para a elaboração desta síntese sobre o momento religioso da época de Chaucer, foram utilizadas as seguintes obras: BALARD, Michel. Idade Média Ocidental: dos Bárbaros ao Renascimento. Lisboa: Dom Quixote, 1996. p. 307-382; BERLIOZ, Jacques. Monges e religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994; VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995; PILOSU, Mario. A mulher, a luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Estampa, 1995. 3 4

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época à respeito das condutas e das práticas, tem como fator inicial de ruptura o evento conhecido como O Grande Cisma do Ocidente, a divisão que ocorreu entre 1378 e 1417, que veio contribuir para a crise por que passava a instituição eclesiástica. Com esta crise na liderança papal, a população cristã ficava abalada com tanta instabilidade, que além de estar agravada pela crise da Europa no fim do século XIV, contava também com mostras da corrupção que rondava os membros do clero. Todo esse clima de descrença em relação à Igreja que marcou a parte do século XIV, culminou em críticas de vários setores em relação aos gastos excessivos e à cobiça dos clérigos. No decorrer das últimas décadas do século XIV, verifica-se um aparecimento de heresias por toda a Europa, assim como críticos à Igreja. Como tentativa de reafirmar a crença da população no clero, os pregadores adquiriram uma importância pela Europa, aliados ao movimento de peregrinação. Segundo André Vauchez, locais como Santiago de Compostela, Roma, Montserrat, Jerusalém e o Túmulo de Thomas Becket em Canterbury, que é o mote central dos “Contos da Cantuária”, “se tornaram grandes pólos de peregrinação”.6 Neste momento de mudanças no plano religioso, percebe-se que as mulheres religiosas estavam em campo crescente onde tomavam seu espaço dentro do universo religioso. Nesta época, existia o imaginário de certos modelos de mulheres. Havia o modelo de Eva, que levou Adão e, conseqüentemente, toda a humanidade para os sofrimentos terrenos: “O principal papel que a mulher (Eva) tem no Antigo Testamento é o de instrumentum diaboli, um instrumento que causa a perdição do gênero humano, resgatado depois pela descida do Salvador”.7

Há também outros exemplos do Velho Testamento onde a visão da mulher enquanto instrumento diabólico é um componente presente na religião judaica e depois na cristã. Há por exemplo em Sansão que, por meio de um engano feminino, de Dalila, arca com a morte de vários filisteus ou Salomão, que ajoelha diante de um falso ídolo por uma mulher. 6 7

VAUCHEZ, André. Op. Cit., p.77. PILOSU, Mario. Op. Cit., p.29. 117

Esse perigo representado pela mulher tentadora se enquadrava em uma noção cultural em que a mulher assumia um papel subordinado ao homem. Os perigos a evitar são a traição da religião tradicional e também a perdição, o desencantamento do desejo e a impureza que conduz ao inferno. Porém no Novo Testamento, há também outros modelos de mulher, há também Maria Madalena, que é a pecadora arrependida, a que se redime. Vemos que as atitudes de Jesus para com a mulher estrangeira (samaritana), a adúltera (depois associada à Maria Madalena) condenada ao apedrejamento eram de igualdade e compaixão. E principalmente, a figura que representa o modelo máximo de virtude, Maria, Mãe de Jesus, que se mostrou um exemplo de resignação, boa conduta e amor à Deus pois enfrentou todas as adversidades para dar à luz e criar o Salvador, aquele que guiaria os homens; resgatando assim, os pecados cometidos por Eva. Assim, A mulher não será, portanto, mais o instrumento material através do qual se exerce a tentação de Satanás: a Virgem resgatou o pecado original de Eva, a primeira tentadora, e a mulher já não é considerada perigosa como tal.8

À partir do século XIII percebeu-se uma maior entrada de mulheres na vida religiosa; foram criados muitos mosteiros, por iniciativas de famílias aristocráticas ligados à ordens já existentes. No século XIV, tornou-se evidente para os clérigos que certas mulheres adquiriram maior autonomia – e em alguns casos superioridade – em relação aos clérigos homens. Mas, apesar da criação de um número importante de mosteiros, muitas mulheres, principalmente as de meio urbano e burguês, não encontravam lugar nesses estabelecimentos, já que estes exigiam um dote que só permitia a entrada das pertencentes à famílias muito abastadas. Essa situação só muda com a entrada de mulheres para as ordens terciárias, ordens criadas para leigos, e que acabaram com o monopólio da aristocracia no recrutamento de freiras e irmãs.9 8 9

Ibidem, p.32. BERLIOZ, Jacques. Op. Cit., p. 199. 118

É possível perceber assim que essa classe de mulheres religiosas, formava um grupo bastante heterogêneo que abrangiam desde as aristocratas, até as mais humildes, que exerciam diferentes posições; seja cuidando dos mais pobres, sejam reclusas, sejam as que não se filiaram juridicamente às ordens; enfim, que desta forma, conseguiram um espaço para sua articulação neste espaço de maioria masculina. Podemos perceber que, embora a mulher estivesse, na teoria, destinada a permanecer na submissão no casamento, vemos, principalmente no trabalho de Chaucer, que este discurso teórico em relação à conduta feminina era amplamente discutido e questionado mesmo pelas mulheres, que encontravam subterfúgios para que nem sempre se comportassem como o prescrito nas normas. Em alguns dos Contos, o que se percebe no comportamento de alguns dos personagens é que a maioria das pessoas conhecia o discurso da moral cristão em relação às questões já apresentadas neste capítulo, porém nem sempre aplicavam este discurso na vida prática. As Mulheres nos Contos Madame Eglantine, a prioresa que está acompanhando o grupo de peregrinos até a Cantuária, é uma personagem à parte dentre da Obra, já que sua simples presença nestes contos já mostra uma crítica de Chaucer. Isso só pode ser percebido ao se comparar com os estudos dos cotidianos das religiosas nos conventos do período medieval, pois este espaço estabelece regras, direitos e deveres que permeavam a vida das religiosas. Percebe-se a ironia sutil de Chaucer ao descrever o perfil da Prioresa logo no prólogo, pois se trata de um cargo religioso de grande importância e não de uma crítica pessoal. No prólogo, Chaucer apresenta um perfil de Madame Eglantine, como uma senhora refinada, dotadas de boas maneiras, o que a diferenciava da maior parte dos peregrinos. Seus modos à mesa são de corte, não deixando cair nenhuma migalha em seu colo e não mergulhando demais os dedos no molho. Ao comer, ela estendia a mão gentilmente até a carne e limpava os lábios muito bem após comer, de modo que nenhuma marca aparecesse em seu copo. Ao perfil delineado de Madame Eglantine, se delineia ao mesmo tempo, uma crítica direta, pois comporta alguns elementos 119

da proliferação de hábitos e modos de corte no interior da Igreja, principalmente nos conventos. Por exemplo, no início da apresentação sobre Madame Eglantine, Chaucer menciona Santo Elói, pois este santo era conhecido por nunca ter feito um juramento. Então, jurar em seu nome, significava o mesmo que não fazer juramento nenhum. Santo Elói era muito utilizado nos círculos nobres do período e fazer menção a ele era uma forma de mostrar que se conhecia a moda da Corte: “A maior praga que rogava era ‘por Santo Elói’”.10 Percebemos, portanto, que há não só uma caracterização do estamento no qual pertence a Prioresa, mas também, uma crítica de Chaucer ao fato desta narradora praguejar por Santo Elói, por este significar um juramento falso. É mais um traço negativo do comportamento de Madame Eglantine. Na verdade, o comportamento de Madame Eglantine representa uma realidade medieval, a de que a maioria das freiras que ocupavam altos postos dentro da Igreja adivinha da nobreza. André Vauchez nos explica que, muitas vezes, estas religiosas eram filhas mais jovens que não tinham o dote necessário para se casar. Assim, a decisão de enviálas para conventos era freqüente, assim como a promoção de cargos se devia à boa nascença e aos bons contatos. Provavelmente, a prioresa pertencia a uma linhagem nobre, já que ocupa um dos maiores cargos a que uma mulher pode chegar, dentro da hierarquia eclesiástica no medievo.11 A Prioresa possuía animas de estimação, mais um costume das damas da Corte, e alimentava-os com leite, carne e o melhor pão produzido. E chorava se um deles morria ou se alguém os espancava. Salientamos aqui, a contradição criada pela ação da Prioresa em dar de comer aos cachorros os melhores alimentos em um momento em que vemos o clima de revolta no campo de efetuar, de uma forma nunca antes vista, contra a excessiva cobrança de impostos por parte da Coroa, que tentava a qualquer custo manter guerra contra a França.12 CHAUCER, Geoffrey. Op. Cit., p. 4. VAUCHEZ, André. Op. Cit., p. 44. 12 SELVATICI, Monica. Igreja Católica e sentimento religioso na Inglaterra do século XIV. Revista Aulas, Campinas, n. 4, p. 1-20, abril 2007/julho 2007. p.7. 10 11

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A renúncia em favor dos pobres, incentivada pela Bíblia, entra em conflito com o ato de Madame Eglantine de dar prioridade aos seus animais de estimação. Parece-nos que Chaucer quis representar uma Prioresa que tem seus valores muito superficiais, já que o fato de chorar por um animal morto não torna este personagem efetivamente caridoso e piedoso. Ao retratá-la desta forma, a Prioresa parece um tanto fútil para as reais necessidades das pessoas; talvez o fato de que este personagem é tão perfeito em seus modos e vestuários, que na verdade não seja tão perfectível quanto se apresenta. Chaucer, ao caracterizar a Prioresa, coloca numa personagem fictícia práticas vigentes do momento. Ele se baseia nos registros das condutas eclesiásticas de seu tempo, onde as proibições em relação à aspectos do comportamento das religiosas que refletissem práticas mundanas eram condenados. Isso demonstra que apesar dos esforços disciplinadores da Igreja, era difícil estar alheio aos valores do mundo. Neste Conto, o domínio do que era fútil em detrimento da busca por uma vida de privações materiais e de elevação espiritual é notadamente criticado por Chaucer. Chaucer ainda mostra sua ironia ao descrever que das contas do rosário da Prioresa pendia um medalhão de ouro e a escritura Amor Vincit Omni.13 Segundo a tradução de Paulo Vizioli, este termo se mostra um pouco irônico já que a palavra amor em latim também descreve o amor carnal; para falar de amor cristão o melhor termo seria charitas; se ressaltam neste trecho duas características, a de que a prioresa não tenha sentimentos profundos sobre a vocação religiosa e assim, ela demonstra que sua comoção seja apenas superficial, e a de que ela pertence à aristocracia, pois exibe seus objetos de ouro; um sinal de que Chaucer percebia a opulência do clero e, possivelmente não concordava com esta. O prólogo do Conto da Prioresa é um poema em louvor à virgem, onde a prioresa pede permissão ao Senhor para que fale sobre as virtudes de sua mãe; ela pede a Virgem que a guie, pois ela “O amor tudo vence”, tradução de Paulo Vizioli. CHAUCER, Geoffrey. Op. Cit., p. 291.

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é uma “criancinha que mal pode se exprimir sozinha”.14 Neste prólogo a personagem da Prioresa já estabelece a trama de seu Conto; ela irá falar de uma mãe que mantém características virtuosas como as da Virgem e de seu filho. Neste conto, apesar da prerrogativa ser de uma história para louvar o Cristo e a Virgem, a trama acaba culpando os judeus pelos crimes cometidos a Cristo. Outra narradora apresentada no prólogo geral,é a Mulher de Bath descrita como uma rica viúva, fabricante de tecidos. Uma mulher descrita como exuberante e independente tanto no ponto de vista pessoal como financeiro. É sabido que para as mulheres da época, uma das maneiras de ter uma certa independência pessoal, além da vida religiosa, era na viuvez já que a mulher recuperava sua personalidade legal, tinha direito a uma parte dos bens do marido e poderia tomar decisões independentes. Além disso, Alice, a narradora, se insere no grupo de mulheres que exerciam atividades comerciais e financeiras, tal como ilustrado nos Contos. No prólogo do Conto, temos um longo relato da mulher de Bath sobre o tipo de pessoa que foi e de seu passado. A narradora já foi casada diversas vezes na Igreja, e inicia discutindo a recomendação da época de que uma mulher não deveria casar novamente após a viuvez, mantendo-se casta para o resto da vida. Ela defende que é “melhor casar do que arder”15 e justifica seu discurso citando a Bíblia com as passagens da mulher Samaritana e o casa do Salomão. Apesar do conto já ser iniciado pela posição atípica da narradora, é necessário perceber que a personagem, em seu discurso, não promove uma contestação aberta aos padrões morais da época, admitindo que seu modo de vida foge aos ideais preconizados pelo discurso da Igreja que apontava a castidade como uma forma ideal de vida e a virgindade ligada ao modelo de Maria – a Virgem mãe. O casamento, nesta visão, teria como objetivo único a procriação. Nossa viúva reconhece esta posição, mas também afirma que não se encaixa nesses padrões, mas que acha que é melhor não manter a abstinência dentro do matrimônio. O foco principal deste prólogo é o ponto de vista de Alice sobre o casamento, que o descreve como um flagelo, fruto principalmente das 14 15

Idem, p. 97. Idem, p.115. 122

artimanhas femininas, afirmando que as mulheres juram e mentem com muito mais costume e facilidade. Ela relata que casar com os primeiros maridos somente por interesse, e também discorre sobre os subterfúgios utilizados por ela para enganar e manipular seus cônjuges – ela jurava ao maridos que saía a noite para espiar se eles estavam tendo encontros amorosos, mas na verdade quem os tinha era ela. Percebemos aí a crítica de Chaucer ao comportamento feminino, já que o autor constrói esta personagem com uma fala tão explícita que talvez seu objetivo fosse efetivamente chocar, expondo um comportamento que não condiz com o modelo de mulher a ser seguido na época. Ao dar continuidade ao seu relato a mulher atesta que o único de seus maridos que realmente amor foi o último. No entanto ela conta que este, sendo um estudante universitário, era letrado na antiguidade clássica e lia obras que ressaltavam o caráter pérfido das mulheres, o que gerava nela um grande incômodo, e por que Janekin, o marido era contra a sua opinião de quem deve comandar no casamento é a mulher. Apesar de muito amá-lo, com sua astúcia, Alice consegue fazê-lo mudar de idéia e dar a ela o controle e as posses da casa. Da mesma forma o conto narrado pela Mulher de Bath tem como objetivo mostrar que a mulher é quem deve ter o controle e a escolha no matrimônio. Assim percebemos que as proposições da Mulher de Bath acabam por respaldar as críticas de Chaucer em relação ao comportamento feminino, tendo em vista a forma como a ela manipulava e enganava seus maridos, estimulada pela ambição e pelo prazer do adultério. É possível apreender também que por mais que um comportamento obediente e humilde fosse esperado das mulheres casadas da época, possivelmente existiram mulheres que encontrassem maneiras de resistir ao domínio masculino. Desta forma o contato com esta fonte possibilitou um trabalho de pesquisa muito interessante para a percepção do contexto da época analisada, além da representação de uma mentalidade de atores sociais da época, entendendo a existência de grupos e setores sociais que tinham opiniões, que interagiam umas com as outras e que viviam e apreendiam informações através do ambiente em que viviam. 123

Além destas narradoras, que caracterizam um tipo feminino religioso e um do mundo do trabalho, nos contos de alguns personagens, são retratados outros tipos femininos, que utilizaremos em nossa análise dividindo-os em tipos femininos de condutas reprovadas e tipos femininos de condutas exaltadas. No primeiro grupo, temos Alison no Conto do moleiro, uma esposa que engana o marido para dormir com um homem mais jovem; May, do conto do Mercador, que enjoa do excesso de atenções do marido; e a esposa do Conto do Marinheiro, que consegue enganar seu marido e o irmão dele por dinheiro. No segundo grupo, Constância do Conto do Escrivão, que consegue converter com sua fé em Cristo, um sultão árabe e seu marido pagão; Griselda, do Conto do Clérigo, que mesmo com os diversos testes que seu marido a submete, mantevese fiel a ele; e Prudência, a esposa piedosa que perdoa aqueles que a violentaram no Conto de Chaucer. Com estas fontes, analisamos os tipos femininos retratados neste período para verificarmos como Chaucer, estando inserido nas transformações e nos eventos que permeiam sua época, constrói um relato que demonstra sua visão de como a sociedade de sua época absorvia os novos tempos e as mudanças de ordem política, religiosa e social.

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