As narrativas, a construção e a conservação da memória

May 31, 2017 | Autor: Victor Barcellos | Categoria: Narrativas, Memoria, Novas Narrativas
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As narrativas, a construção e a conservação da memória Victor Gomes Barcellos (USP) – [email protected]

Resumo: Entender como ao longo da história, em cada contexto social e tecnológico, as narrativas serviram de construtoras e fixadoras da memória se tornou fundamental para muitas áreas do conhecimento. Para isso, foi traçado um percurso histórico fazendo relações entre as principais narrativas de dados momentos e as memórias decorrentes delas, identificando como cada instrumento e forma de pensamento as influenciaram. Nessa trajetória, destaque é dado à contemporaneidade, demonstrando como as novas narrativas possibilitam enfrentar seus desafios. Ao fim, espera-se encontrar relações entre as formas narrativas e as memórias guardadas, mesmo com as peculiaridades de cada contexto. Palavras-chave: Narrativas; Memória; Conservação; Construção.

Abstract: Understanding how throughout history, in every social and technological context, narratives served as builders and fixing memory has become central to many areas of knowledge. For this, it traced a historical course making relations between the key moments data narratives and memories arising from them, identifying how each instrument and way of thinking influenced them. Along the way, emphasis is given to the contemporary, demonstrating how new narratives possible to face its challenges. At the end, it is expected to find relations between narrative forms and stored memories, even with the peculiarities of each context. Keywords: Narratives; Memory; Conservation; Construction.

1. Definição dos termos Ao voltarmos os nossos olhos para desde os primórdios do homem, veremos que este sempre sentiu a necessidade de vencer o devir, as contingências da vida, e buscou de alguma forma se eternizar. Dessa necessidade, nasceram as primeiras narrativas, que dentre a sua complexidade de funções na consciência e práxis humana, teve o papel fundamental de guardar nossas memórias. Tanto as narrativas tiveram essa função que hoje muito do que podemos conhecer dos povos antigos é através delas, e tanto registrar quanto resgatar as memórias se mostram atividades inerentes ao ser humano desde sempre. Segundo o caráter das mídias disponíveis em cada época, alguns registros sobrevivem até hoje, mesmo com tantas mudanças nas linguagens e formas de pensar. E dessa forma, as narrativas são o nosso elo com aqueles que nos antecederam, pois são, pela definição de Benjamin, “a faculdade de intercambiar experiências” (1936, p. 198). Memória, para essa análise, deve ser entendida em sua forma social. Não como um simples registro de experiências pessoais, e sim como uma construção, e constante reconstrução de um grupo de indivíduos com experiências coletivas. Assim, ressalta-se “o caráter não só pessoal, mas familiar, grupal, social, da memória” (GOETHE apud BOSI, 1994, p. 59). O que, como, por que é registrada está relacionada à narrativa que geralmente os grupos dominantes desejam escrever e deixar para as próximas gerações, e como se verá

sempre terá relações com o contexto político da época. É essa vida cultural plasmada e em constante evolução nas histórias registradas de cada povo que permitirá a análise da relação entre as narrativas e a memória. Talvez o ser humano acredite que pelo conhecimento do passado se possa desvelar o futuro, e por isso o grande empenho em conhecê-lo. Tanto no indivíduo quanto na cultura de uma forma geral, a memória é entendida de acordo com o que os últimos estudos têm provado a seu respeito, sendo não um mero depositório sem fim de experiências, mas um processo de construção e reconstrução, como esta passa a ser entendida a partir de Hugo Münsterberg (1983). A narrativa, já vastamente estudada e área de crescente interesse nas últimas décadas, pode ser entendida como uma das formas de se organizar a informação que privilegia o afeto, e com isso a fixação de memórias. Cada mídia disponível na época, como veremos, colocará os termos em que narrativas que serão contadas, influenciando não apenas no meio, mas também na mensagem, como aponta McLuhan (1969). Também aqui não se limitam aos meios orais e verbais, mas permeiam as diversas mídias de comunicação que acompanharam a evolução humana. Todavia, cada uma das técnicas emprestará à narrativa suas características: ora se privilegia a estabilidade, ora a instabilidade; ora mais poéticas, ora mais prosaicas; ora mais complexas e ora mais simples. Os narradores também se apresentarão os mais variados, dos poetas antigos aos comunicadores contemporâneos, e essas mudanças também se farão sentir no modo de narrar. 2. Resgate histórico Para entender melhor a relação entre os dois conceitos, um breve resgate histórico é útil, pois será possível notar como as mudanças em um acarretarão em transformações no outro. Esse tem sido um exercício constante nas diversas áreas da ciências humanas, em especial na antropologia e na psicologia, junto aos historiadores e arqueólogos, pois nos ajudam a entender o homem moderno a partir de suas origens, quando devidamente interpretados. Essa ponte é feita especialmente pelas narrativas, como salienta Carl G. Jung: “a história antiga do homem está sendo redescoberta de maneira significativa por meio dos mitos e das imagens simbólicas que lhe sobreviveram” (JUNG, 2008, p. 136). Se até alguns anos atrás a grande ênfase na construção das memórias era dada aos fatos históricos, hoje a análise das formas simbólicas nos têm permitido um acesso mais rico e significativo às vidas culturais passadas.

Um bom ponto de início para o resgate histórico dessa relação entre as narrativas e a memória são as pinturas rupestres, sendo representações dinâmicas que revelam de forma simbólica cenas da vida dos ancestrais humanos. De grande poder narrativo, as pinturas expressam, com muito movimento, cenas de seres humanos interagindo entre si, com os animais e a natureza. (MARTINEZ; MENEZES, 2009, p. 108). É com base nelas que hoje historiadores e antropólogos podem intentar a reconstrução da memória desse tempo, e por meio delas esses grupos podem viver até hoje. Mesmo essa forma de narrativa mais primitiva encontrou desafios para se fixar, foram barreiras de caráter natural, com o desgaste das pinturas, a dificuldade de acesso a elas e sua interpretação. Num segundo momento do desenvolvimento humano, as mitologias foram a próxima principal expressão narrativa. No início eram transmitidas oralmente, de geração em geração, e ressaltavam o caráter fluído da memória, pois podiam ser atualizadas conforme o contexto de cada época. Com o advento da escrita, seu impacto veio trazer a estabilidade que será sua principal característica até a Modernidade. A forma como na Antiguidade os diversos povos enxergavam o universo, como explicavam os fatos que os cercavam, quais eram seus medos e anseios, tudo isso se torna acessível nesses mitos. Todavia, com o surgimento do pensamento racionalista platônico, os mitos começaram a deixar de ser fonte legítima de conhecimento, pois seriam meras representações e não a realidade em si. Vemos aqui uma barreira diferente, não mais natural, mas pela mudança na forma de pensamento, e que retornará de forma semelhante na Modernidade. Na memória, isso se fez sentir com a sua fragmentação, pois passamos a ter acesso a memórias especialmente de determinados grupos, como a de certas escolas filosóficas e não do povo como um todo. Com isso também as histórias perdem o seu caráter transcendente, limitando-se aos fatos da realidade, dando início a um processo de desencantamento do mundo (WEBER apud NASSAR; RIBEIRO, 2012). Na Idade média, assiste-se à extinção do espaço público, o que garantia até então que as histórias coletivas fossem criadas e repassadas. A censura da Igreja Católica também representou resistência às narrativas, sendo que só eram autorizadas aquelas em acordo com as da religião oficial. A memória sente nesse período uma espécie de unificação, e vemos aqui como o controle da legitimidade das narrativas pode moldar a memória de uma sociedade, e com isso sua identidade. Foi preciso que no Renascimento uma nova narrativa a respeito da Idade Média fosse contada como alternativa à história única autorizada naquele tempo. Entretanto, por maior que seja a resistência à sua criação, jamais se extinguem, e conseguem manifestação nas oficinas, dos mestres que por terem sido viajantes e tinham muitas

experiências para contar, para os aprendizes que tinham sua experiência limitada. Dessa forma, nesse período a barreira que se impõe ao ato narrativo é de cunho político, com efeitos de produzir uma única versão e memória dominante. Com a entrada na Modernidade, as narrativas e consequentemente as memórias entraram em um processo maior de crise. A Revolução Industrial conduziu a vida a um processo de mecanização, onde as experiências afetivas e relacionais deram lugar ao pragmatismo. A prensa de Gutemberg trouxe a supervalorização da informação, como defende Benjamin (1936, p. 203), quase tudo passou a estar a serviço dela, e assim o imediatismo e a superficialidade sobrepuseram o cultivo e a complexidade da narrativa. A importância dada ao impresso nessa época privilegiou histórias estáveis e particulares, como foi o caso dos romances. Também os meios de comunicação de massa produziram seus efeitos, pois segundo Bosi (1994, p. 87): “o receptor da comunicação de massa é um ser desmemoriado”, já que a saturação de informação dificulta a fixação da memória. O retorno da ênfase na racionalidade, assim como na Grécia pós-platônica, também foi um fator enfraquecedor das narrativas. Nesse período, então, situam-se as velhas narrativas (NASSAR; RIBEIRO, 2012). Com isso, a memória foi fragmentada em memórias mais particulares, “o passado agora não conta com uma fórmula narrativa consensual própria” (GLEICK, 2011, p. 17), tornou-se cada vez mais enxuta porque os fatos perderam a relação entre si, e deixou de ser transmitida, por conta do isolamento dos indivíduos. A contemporaneidade, entretanto, apresenta muitos indícios de que as narrativas estão ganhando espaço novamente. Nesse contexto, resgatam-se interações relacionais entre indivíduos os mais diversos possível com o advento das mídias digitais. Em contraste com as comunicações de massa e os modelos rígidos de organização, o compartilhamento e a colaboração ganham ênfase e possibilitam novamente a criação de histórias coletivas. O caráter fluído das histórias ganha nova força com essa nova possibilidade tecnológica, e o empoderamento permite que, como nos teatros gregos, o povo participe da construção das narrativas. O mítico ganha novamente atenção especial, depois de uma era essencialmente racionalista, e as narrativas encontram novamente sua transcendência característica. O resultado disso é que as memórias voltam a se coletivizar, novas experiências tornam-se mais afetivas gravando-se mais significativamente como lembranças e acabam por ser a melhor estratégia de organizá-las em meio ao excesso informacional. No processo de digitalização da vida muito da nossa memória se perdeu em meio à desorganização informativa e a mudança

de linguagem fez com que aquilo que não pudesse ser traduzido se descartasse, todavia aquilo que sobreviveu tem maior chance de permanecer. 3. Novas narrativas São nessas condições que as chamadas “novas narrativas” (NASSAR; RIBEIRO, 2012) aparecem como a principal, se não a única forma, de se arquitetar a informação para realizar uma comunicação eficaz e eficiente. Caracterizam-se por seu caráter aberto, afetivo, coletivo. Com efeito, a memória ganha posição privilegiada, seu aspecto fluído, relacional e profundo destaca-se. Esta passa a ser trabalhada estrategicamente nas mais diversas esferas da sociedade, desde a construção da identidade de uma organização até o ensino. Não mais restrita aos grupos dominantes, as micronarrativas passam até mesmo a ser valorizadas, em contraste com seu eclipsamento em outros momentos históricos. As características das novas narrativas podem ser entendidas como ressonâncias das narrativas mais antigas aqui antes apresentadas. A valorização da oralidade, assim como no período anterior à escrita, pode ser notada nas novas micronarrativas (NASSAR, RIBEIRO, 2012), que têm sido muito usada pelos comunicadores nas organizações. Mas além disso, a valorização das histórias pessoais, e com isso as memórias particulares, fomenta uma cultura democrática, dando voz a minorias, diferentemente do que se viu na Idade Média. Assim, no contexto contemporêneo, as novas narrativas têm se mostrado com um grande potencial comunicativo, no sentido mais amplo do termo: oferecendo experiências profundas que geram memórias e afetam verdadeiramente as pessoas. Combinadas com as mídias digitais, as possibilidades de histórias se multiplicam, e as chances dessas se perderem diminui significamente com relação aos períodos em que as técnicas não privilegiavam o registro.

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4. Síntese Em suma, o ato narrativo, como essa atividade inerente ao ser humano, que organiza sua vida e dá sentido a seu mundo, é uma das mais principais formas ao longo da história de se construir, reconstruir e fixar memórias, esse montante de experiências sociais que constituem sua cultura. É por meio dessas narrativas que hoje se pode resgatar muito do passado e com isso desvelar parte do futuro. As mídias disponíveis em cada época ressaltaram determinadas características das narrativas e ocultaram outras, mas essas sempre se mostraram presentes na consciência e nas relações humanas. E como após uma profunda crise das narrativas, e concorrentemente das memórias na Modernidade, a contemporaneidade

oferece novas oportunidades para que as novas narrativas sejam histórias excelentes que resgatem a memória.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. O narrador. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Ed. Brasiliense, 1996. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. – 3. Ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1994. GLEICK, James. A informação. Ed. Companhia das Letras, 2011. JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. 2 ed. especial – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. MARTINEZ, Monica; MENEZES, José Eugenio de Oliveira. As narrativas da contemporaneidade a partir da relação entre a escalada da abstração de Vilém Flusser e as pinturas rupestres da Serra da Capivara. Revista Fronteiras – estudos midiáticos, 2009. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Ed. Cultrix, 1969. MUNSTERBERG, Hugo. A memória e a imaginação. In: Xavier, I. (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. NASSAR, Paulo; RIBEIRO, Emiliana. Velhas e novas narrativas. Estética, 2012. Disponível em: < http://www.usp.br/estetica/index.php/artigo-6-revista-8>. Acesso em 10 de maio de 2015.

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