As novas formas cibernéticas de vigilância e de controlo

June 14, 2017 | Autor: Adriano Rodrigues | Categoria: Ambiente, Monitoramento, Dispositivo, Vigilancia, Escrita Alfabética
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Ver a este propósito Rodrigues, Adriano Rodrigues, Afinal o que é a mídia?, in http://www.ciseco.org.br/index.php/artigos
Acerca da expressão qualquer um, ver Agamben 1990.
Tenciono desenvolver esta questão no colóquio do CISECO que terá lugar em 2016
Podemos associar o monitoramento mútuo e recíproco das interações face a face com os processos inerentes ao modelo de solidariedade a que Durkheim dava o nome de solidariedade mecânica. (Durkheim 1991).


As novas formas cibernética de vigilância e de controlo

Rodrigues, A. D.

Resumo:
Os estudos sobre a vigilância em ambientes criados pelos mais recentes dispositivos electrónicos emergiram a partir do final dos anos 1970, na sequência da publicação da obra de Michel Foucault, Vigiar e Punir. As pesquisas realizadas nas últimas décadas contrapõem os autores que sustentam que os novos dispositivos electrónicos continuam a inscrever-se no regine disciplinar do panóptico estudado por Foucault e os autores que sustentam que rompem com este regime e os inscrevem no regime dos simulacros pós modernos. Este texto procura mostrar que esta controvérsia adquire novos contornos se considerarmos a relação que os atuais dispositivos electrónicos estabelecem com a escrita alfabética, assegurando por isso idênticos processos de monitoramento dos comportamentos e da experiência.

Palavras-chave: ambiente; dispositivo; escrita alfabética; monitoramento; vigilância.
Introdução

A escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto, parecidíssima com a pintura, pois esta, em verdade, apresenta seus produtos como vivos; se alguém lhe formula alguma pergunta, cala-se cheia de dignidade. O mesmo se passa com os escritos. És inclinado a pensar que falas com seres inteligentes; mas, se com o teu desejo de aprender, os interpelas acerca do que eles dizem, só respondem de um único modo e sempre a mesma coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita, os discursos rolam daqui dali, sem o menor discrime, tanto entre os conhecedores da matéria como entre os que nada têm que ver com o assunto de que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não, e no caso de serem agredidos ou menoscabados injustamente, nunca prescindirão da ajuda paterna, pois por si mesmos são tão incapazes de se defenderem como de socorrer alguém. (Platão, 2011, 275 d-e: 185)

Com uma clarividência impressionante, Platão assinalava há já vinte cinco séculos, no Fedro, aquilo que está em jogo neste colóquio. As questões inerentes às modalidades de vigilância proporcionadas hoje pelos mais recentes dispositivos electrónicos não parecem ser substancialmente diferentes das que a invenção da escrita alfabética colocava já a Platão. Platão sublinhava que aquilo que caracteriza a escrita é o fato de fazer com que os discursos "rolem daqui dali", de adquirirem autonomia em relação ao seu pai, deixando por isso de poder contar com o seu apoio.
Utilizamos uma grande diversidade de dispositivos electrónicos para a realização de uma grande multiplicidade de tarefas nos mais diversos domínios da experiência. Temos hoje à nossa disposição a internet através de computadores pessoais, de celulares inteligentes, de cartões de crédito, de cartões de fidelidade para usufruirmos de benefícios num número cada vez maior de empresas, utilizamos dispositivos electrónicos para pagar pedágios nas autoestradas e o estacionamento nos parkings, adquirimos documentos digitais de identidade, somos submetidos a controlo electrónico nos aeroportos, nas nossas deslocações em empresas e nos espaços urbanos, frequentamos redes sociais, enviamos emails e interagimos uns com os outros através de diversos aplicativos informáticos. Estes dispositivos têm em comum com a escrita alfabética o fato de, quando os utilizamos, adotarmos comportamentos que, apesar de terem ocorrido num determinado momento e num determinado lugar, passarem a existir num outro ambiente, independente desse momento e desse lugar, no ambiente produzido pelo próprio dispositivo técnico utilizado. Quando, por exemplo, utilizamos um cartão de crédito para fazer um pagamento numa loja ou quando interagimos uns com os outros pelas redes sociais, as nossas compras ou as nossas interações ocorrem e ficam registadas no ambiente criado pelo próprio dispositivo utilizado e ficam registadas em bases de dados que ficam disponíveis para uma grande diversidade de outras utilizações. Neste novo ambiente, as nossas compras e as nossas interações não desaparecem mas ficam disponíveis para, por exemplo, servir estratégias de marketing por parte das empresas, de prova ou de álibi por parte da instituição judicial. Fora do ambiente criado por estes dispositivos, os nossos comportamentos desapareceriam no mesmo momento em que ocorrem para se alojarem apenas na nossa memória de curto ou de longo prazo, onde ficariam disponíveis apenas para as nossas recordações pessoais.
Para compreendermos a semelhança dos dispositivos electrónicos com a escrita alfabética, temos antes de mais que ter em conta a natureza da sua tecnicidade. Ao contrário dos utensílios, dos instrumentos e das máquinas, tanto a escrita como as técnicas cibernéticas são dispositivos técnicos. Este termo é muito utilizado, mas nem sempre o seu sentido é claramente definido.
Aquilo que caracteriza os dispositivos é o fato de estarem interiorizados na nossa experiência para criarem ambientes próprios, autónomos em relação aos ambientes concretos onde interagimos face a face uns com os outros. Enquanto dispositivos, estes objetos técnicos encadeiam-se com os nossos próprios comportamentos, tal como um marcapasso ou os órgãos artificiais se encadeiam com o funcionamento do nosso organismo.
Ao contrário do que muitos hoje parecem supor, esta modalidade de objetos técnicos não apareceu no nosso tempo, no tempo a que alguns autores gostam de dar o nome de pós moderno. Se houvesse alguma formação antropológica séria nos estudos de comunicação depressa nos aperceberíamos de que esta designação é absurda e de que os dispositivos são objetos técnicos tão antigos como a humanidade, uma vez que a sua invenção decorre da natureza técnica do nosso modo de estar no mundo, do fato de só podermos sobreviver nos ambientes produzidos tecnicamente pelos dispositivos que inventamos.
O primeiro e fundamental dispositivo técnico inventado para construirmos o nosso mundo é a linguagem. É da linguagem que decorrem todos os outros dispositivos técnicos que os seres humanos foram inventando ao longo do processo da sociogénese técnica. A invenção da escrita alfabética decorreu já da análise digital da linguagem. Basta observar a escrita para ver que se trata de uma técnica digital: os sinais gráficos fixam a distinção binária entre presença vs. ausência de traços distintivos da linguagem (sonoro/ ausência de som; labial / não labial; gutural / não gutural, palatal / não palatal; nasal / não nasal, etc.). Os dispositivos digitais não surgiram, por conseguinte, no nosso tempo, mas há já milhares de anos: foi a análise digital da linguagem que tornou possível a invenção do alfabeto.
Mas deixemos de lado a questão da digitalidade da escrita alfabética para repararmos que os atuais dispositivos técnicos electrónicos se caracterizam pelo fato de os ambientes por eles criados transformarem os mecanismos sociais de monitoramento. Quando utilizamos tanto os dispositivos da escrita como os electrónicos, os nossos comportamentos interacionais deixam de ser mútuos e recíprocos, deixam de ser realizados pelas pessoas no momento e no lugar concreto em que interagem entre si, para se transformarem em mecanismos de vigilância e de controlo que escapam à sua percepção e ao seu domínio. Para falarmos como Platão, os nossos comportamentos, uma vez realizados nestes ambientes, em vez de serem monitorados no lugar e no momento em que ocorrem pelos intervenientes que neles tomam parte, ficam disponíveis para processos de controlo e vigilância por qualquer um, processos que escapam a qualquer possibilidade de monitoramento mútuo e recíproco pelas pessoa que neles tomam parte. Os objetivos que os nossos discursos visam nos ambientes criados pelos dispositivos mediáticos escampam irremediavelmente à nossa percepção, uma vez que passam, ou a visar finalidades independentes da finalidade que os originou, como é o caso, por exemplo, da utilização para fins comerciais ou de marketing dos dados provenientes da frequentação de sites, ou a serem eles próprios produzidos no ambiente por eles criados, como é o caso, por exemplo, do controlo de passageiros nos aeroportos.
Depois desta rápida apresentação da relação entre a natureza da tecnicidade cibernética com as preocupações do nosso colóquio, gostaria agora de abordar algumas clivagens em torno da reflexão propostas pelos autores que têm procurado equacionar esta relação.
A génese do regime disciplinar da vigilância
As questões suscitadas pela transformação do processo de monitoramento mútuo e recíproco dos comportamentos face a face em processos de controlo e de vigilância deram lugar, a partir do final dos anos 1970, à formação de um dos campos emergentes da pesquisa interdisciplinar, sobretudo no Reino Unido, nos Estados Unidos da América, na Austrália e na Nova Zelândia. A emergência destes estudos ocorreu sobretudo a partir de 1975, ano em que Michel Foucault publicou Surveiller et Punir (Vigiar e Punir, na tradução brasileira). Os estudos publicados pelos autores que, ao longo dos últimos quarenta anos, têm procurado equacionar estas questões começam quase sempre por reconhecer a publicação desta obra de Foucault como fundadora deste campo de pesquisa, mesmo pelos autores que se demarcam das suas propostas. Estes estudos fazem também muitas vezes referência à novela 1984, que George Orwell tinha publicado já em 1949, vendo nela uma alegoria dos regimes políticos nazi e estalinista, e considerando estes regimes como uma antecipação ou um ensaio geral do advento das novas formas totalitárias que hoje vigoraria à escala planetária, formas totalitárias decorrentes da utilização generalizada dos dispositivos electrónicos (Cohen 2009).
Foucault procurava mostrar, no seu trabalho, que as transformações observadas no final do século XVIII no domínio judicial obedeciam a um modelo disciplinar de organização e de interiorização do controlo nas sociedades ocidentais. A sua reflexão estava centrada nas transformações que, no regime penal, surgiram com a Revolução Francesa e com o consequente fim do Antigo Regime. O modelo penal, que, até então, estava baseado em mecanismos de punição e de eliminação do criminoso, visando, não só a expiação redentora da sua culpa, mas a exemplaridade pública da sua condenação, dava origem, no fim do século XVIII, a um novo modelo, que Foucault designava como modelo disciplinar da vigilância.
A maior parte dos autores que trata desta questão refere sobretudo a terceira parte da obra, onde Foucault descreve minuciosamente o modelo arquitectónico a que o filósofo jurista inglês, Jeremy Bentham (1748-1832), dava o nome de panóptico. Era este modelo que Foucault associava metaforicamente à instauração do modelo disciplinar da vigilância. Ao contrário do modelo de punição, que visava a expiação pública pela tortura e pela eliminação do criminoso, o modelo do panóptico visava disciplinar o criminoso, de maneira a recuperá-lo e a convertê-lo num cidadão útil.
Tratava-se de inventar uma disposição arquitectónica propícia à visibilidade dos espaços destinados ao funcionamento do poder nas diversas instituições. Como sabemos, o panóptico era um modelo arquitectónico circular, com uma torre central e celas dispostas na periferia iluminadas por amplas janelas abertas para o exterior e com uma pequena abertura para o interior, de tal modo que fosse possível assegurar a um único vigilante ver em permanência os detidos sem ser por eles visto. Como os vigiados, uma vez que não podiam ver o vigilante, não poderiam saber se estavam ou não a ser efetivamente vigiados, este sistema acabaria inclusivamente por prescindir da presença do vigilante. Deste modo o funcionamento panóptico economizaria os custos da vigilância contando com a sua interiorização na própria consciência dos vigiados. Foucault sublinhava que este modelo, previsto para ser aplicado ao funcionamento do sistema prisional, servia afinal também de modelo dos sistemas de organização das outras instituições. Apesar de nunca ter sido realizado tal como Bentham o tinha projetado, o modelo arquitectónico do panóptico passaria a servir de referência, não só dos discursos do novo regime penitenciário, mas também dos discursos sobre o funcionamento de outras instituições, nomeadamente das instituições escolar, empresarial, hospitalar e militar.
Os trabalhos que estudam a vigilância cibernética e partem da obra de Foucault procuram averiguar se o modelo disciplinar de vigilância estudado por Foucault continua ainda hoje válido para compreendermos o regime de vigilância do nosso tempo. Thomas Allmer (2011: 577-581) reparte as posições dos autores que, ao longo destes últimos quarenta anos, têm trabalhado as questões da vigilância, entre os que defendem que o modelo do panóptico continua hoje atual e os pensam que o modelo do panóptico foi ultrapassado, com a implementação dos atuais dispositivos electrónicos.
Antes de apresentar os contornos deste debate, gostaria de retomar a relação que apresentei na introdução para fazer notar, antes de mais, que a relação que o modelo disciplinar do panóptico estabelece com a escrita alfabética foi completamente ignorada por Foucault e que, talvez por isso, costuma também ser ignorada pelos autores que, ao longo destes últimos quarenta anos, se têm dedicado ao estudo da vigilância. É, a meu ver, esta relação que se torna fulcral quando procuramos saber se a vigilância dos atuais dispositivos cibernéticos continua ou altera o regime disciplinar do modelo arquitectónico panóptico da vigilância estudado por Foucault.
A vigilância proporcionada, tanto pelo modelo arquitectónico do panóptico como pelos dispositivos electrónicos, decorre da natureza destas modalidades da tecnicidade, do fato de se tratar precisamente de efeitos produzidos em ambientes criados por estes dispositivos.
Par compreendermos estes efeitos temos que ter em conta que os dispositivos estão organizados e funcionam de maneira distinta dos outros objetos técnicos, nomeadamente dos instrumentos, dos utensílios e das máquinas. A principal diferença tem a ver com o fato de a organização dos dispositivos ser naturalizada, de estarem interiorizados na nossa experiência e de a sua tecnicidade se tornar, por conseguinte, imperceptível. Neste sentido, a tortura do regime penal do Antigo Regime não tinha a vigilância como efeito, uma vez que não era produzida por dispositivos, mas por instrumentos. O fato de podermos observar hoje estas técnicas de tortura em museus mostra a sua natureza instrumental. Ao contrário dos instrumentos de tortura que são manipulados por um profissional específico, pelo carrasco, o dispositivo panóptico funciona, em permanência, sem intervenção de profissionais específicos e, no caso de eles existirem, funcionam tanto melhor quanto mais imperceptível for a sua intervenção.
Os dispositivos de vigilância funcionam, como vimos, uma vez interiorizados na experiência, dispensando inclusivamente a presença do vigilante. O dispositivo é, por conseguinte, a mídia por excelência de constituição do ambiente da experiência da vigilância. É precisamente isso que o relaciona com a escrita alfabética, a mídia de constituição do ambiente da experiência da linguagem, autonomizando a fala em relação à sua realização face a face. A experiência do dispositivo da vigilância, tal como o dispositivo da escrita alfabética é, por isso, tanto mais perfeita quanto mais a interiorizamos e nos esquecemos de que ela é efeito técnico. Não é possível recolher num museu os dispositivos de vigilância, visto que são técnicas imateriais, por definição imperceptíveis.
Ao esquecer esta relação do dispositivo arquitectónico do panóptico com a escrita alfabética, Foucault ficou privado de elementos fundamentais para a compreensão da origem da natureza disciplinar do seu funcionamento. Como vemos, o paradigma disciplinar não foi propriamente criado pelo modelo arquitectónico do panóptico, mas pelo dispositivo da escrita alfabética ou, se quisermos utilizar a designação de Bentham, pela natureza panóptica da escrita alfabética. A esta luz, aquilo que Bentham fez não foi inventar o panóptico, mas conceber um modelo arquitectónico de realização do modelo disciplinar da escrita alfabética, modelo que atingiu no século XVIII um nível suficiente de interiorização nas sociedades ocidentais. De fato, no final do século XVIII, a escrita alfabética, e o modelo disciplinar do saber que corresponde ao ambiente por ela criado, estavam já suficientemente interiorizados na sociedade ocidental, sob a forma de um novo iluminismo ou, como se diz no Brasil, de um novo modelo de esclarecimento ou de racionalidade. Como o próprio termo sugere, o iluminista é o nome que damos à sociedade em que Bentham propõe o modelo panóptico. O cidadão esclarecido era um e-leitor, isto é, uma pessoa que, literalmente, retira da leitura as decisões acerca das leis que deveriam disciplinar a vida coletiva.
A relação do panóptico com a escrita não tem apenas a ver com o fato de a vigilância exigir a possibilidade de registo dos crimes e dos comportamentos vigiados; tem sobretudo a ver com a sua natureza disciplinar, com o fato de exigir a construção de ambientes adaptados ao exercício disciplinar e disciplinador da vigilância, contrapostos ao uso dos instrumentos de tortura, modalidade técnica que, por sua vez, decorria da interação visual concreta do público com o seu funcionamento instrumental.
Foi de fato o tipo de racionalidade iluminista, de claridade, do século XVIII que deu origem à invenção do dispositivo do panóptico e do regime disciplinar que lhe está associado. Mas, bem vistas as coisas, a natureza disciplinar do regime da vigilância é, antes de mais, indissociável do dispositivo midiático da escrita alfabética, originalmente constituído com o primeiro iluminismo, o da Grécia antiga do século IV a.C. e retomado com o ideal iluminista europeu do século XVIII. Não admira que a invenção da escrita tenha estado logo associada ao iluminismo grego e ao surgimento do modelo disciplinar de saber, tal como a invenção da imprensa escrita viria a estar associada ao iluminismo humanista da Renascença.
Em cada uma destas realizações histórias do ideal disciplinar nos deparamos com questionamentos, por vezes violentos, entre os defensores, que esperavam da sua implementação a ultrapassagem e a consequente libertação das diferentes formas de coação, e os críticos destes inventos, que auguravam com a sua implementação todo o tipo de malefícios éticos, estéticos, sociais, económicos e políticos. Tal com a invenção da escrita, também a invenção da imprensa desencadeou elogios entusiastas e condenações acesas que deram lugar a autos da fé e acusações de bruxaria. O mesmo se passa ainda hoje com a implementação dos dispositivos eletrônicos. A generalização do modelo disciplinar nas sociedades ocidentais do dispositivo da escrita alfabética ficou sobretudo a dever-se, em primeiro lugar, à imprensa de caracteres móveis que, a partir do século XV, se foi progressivamente impondo nas sociedades ocidentais, a ponto de no século XVIII a imprensa ter assumido um papel político de formação de um público letrado. A teoria dos sistemas viria, no século XX, a permitir a implementação dos dispositivos eletrônicos.
Podemos considerar o caso exemplar da relação da imprensa com a implementação do iluminismo, a partir do seu logo nas primeiras linhas do Discurso Preliminar que d'Alembert escreveu para a Enciclopédia:
"A Enciclopédia que apresentamos ao público é, como o seu título anuncia, a obra de uma sociedade pessoas letradas. Cremos poder assegurar, se não lhe pertencêssemos, que são todos suficientemente conhecidos ou dignos de o serem." (d'Alembert 1986: 75)

A relação da escrita alfabética com o regime disciplinar da vigilância nas sociedades ocidentais compreende-se ainda melhor se tivermos em conta que a competência da escrita está fisiologicamente associada à percepção do espaço e da visibilidade, uma vez que se trata de domínios da experiência que dependem, no cérebro humano, do funcionamento das mesmas áreas cerebrais, as área de Brocca e de Wernicke, situadas ambas no hemisfério esquerdo do cérebro e ligadas pelo corpo caloso ao hemisfério direito, responsável pela coordenação da percepção espacial e auditiva, como Mc Luhan recordava. (McLuhan & Powers, 1989: 48-56).
A relação dos dispositivos cibernéticos com a escrita é particularmente evidente se repararmos que, ao longo da história das sociedades ocidentais, deram origem aos quatro momentos de implementação do ideal iluminista, a que correspondem outras tantas modalidades de texto: o Organon de Aristóteles, na Grécia Antiga, a Summa Teológica, na Idade Média, a Enciclopédia no século XVIII e a Internet, a partir da segunda metade do século XX. O que caracteriza estes empreendimentos é o ideal de reunir num corpo textual o conjunto dos saberes organizados de maneira algorítmica em verbetes que remetem uns para os outros, sob a forma de uma organização hipertextual.
A questão da atualidade do regime disciplinar do modelo panóptico da vigilância
Enquanto autores, como Gilles Deleuze (1986; 1990/2003), Mark Poster (1990), John Fiske (1999) ou Thomas Mathiesen (1997), interpretam o regime de vigilância proporcionado pelos dispositivos cibernéticos atuais à luz do modelo disciplinar do panóptico, outros autores, como Anthony Giddens (1995), David Lyon (2001), Jean Baudrillard (1977; 1981), William Boggard (2006) ou Sean Hier (2004), consideram que os atuais dispositivos cibernéticos já não podem ser interpretados à luz do modelo arquitectónico do panóptico. A relação que acabo de estabelecer do modelo do panóptico com a interiorização do dispositivo da escrita alfabética nas sociedades ocidentais permite agora compreender melhor o alcance da controvérsia que divide estes autores, na sequência da leitura que fazem da atualidade do modelo arquitectónico do panóptico que Michel Foucault associava ao paradigma disciplinar das instituições modernas.
Para os autores que encaram a vigilância das redes cibernéticas como a continuação do modelo do panóptico, a vigilância atual revelaria hoje o regime de controlo dos comportamentos que lhe está associado, ao passo que para os autores que consideram as redes cibernéticas como ruptura para com o modelo do panóptico, teríamos entrado no regime dos simulacros, do híper real, do fim do social, do fim da história ou da pós modernidade. Para estes últimos autores, a vigilância teria deixado de ser real, tornando-se simulacral, orbital, representação sem qualquer correspondência com o mundo real, tal como os valores económicos se teriam convertido em mero jogo especulativo, no tabuleiro do xadrez bolsista, sem qualquer correspondência com a economia real, orbital, para utilizarmos uma comparação feita por Jean Baudrillard. São estes os autores que estão na origem de uma corrente muito seguida por alguns estudiosos da comunicação e que se auto designam pós modernos. Para estes autores, a vigilância converteu-se em puro espetáculo de aparências construídas pelos dispositivos cibernéticos que circulam em ambientes virtuais criados por estes dispositivos.
A meu ver, Foucault não teve uma clara evidência da clivagem que acabo de fazer entre os que sustentam que o modelo panóptico continua atual e os pós modernos que acham que o panóptico se esfumou com a performatividade cibernética, embora com o anúncio da morte do homem que tinha defendido, já em 1966, nas Palavras e as Coisas, pareça ter argumentado em favor da posição dos pós modernos. É certo que, em 1975, quando Foucault publicou Vigiar e Punir, estava já em fase avançada a instalação da cobertura global do nosso planeta com os satélites geoestacionários, mas não encontramos em Vigiar e Punir qualquer referência a eventuais alterações no paradigma arquitectónico do panóptico decorrentes da globalização dos dispositivos cibernéticos.
Estas alterações seriam encaradas, nos anos 1990, por Gilles Deleuze como o advento do regime de controlo nas sociedades ocidentais. A este propósito podemos considerar que as sociedades ocidentais já tinham procedido a sucessivos ensaios deste regime, com a chegada ao poder, na Alemanha do regime nazi, com as diferentes formas de fascismo, em Itália e na Espanha, com o regime autoritário de partido único em Portugal e com o estalinismo do regime soviético. George Orwell, já em 1949, nos dava uma versão ficcionada destas diferentes experiências preparatórias do regime do controlo. Na sua célebre novela 1984, Orwell associava claramente este regime ao modelo do panóptico, com o olhar omnipresente do Big Brother através da televisão, do telescreen, programada pelo Ministro da Verdade e o controlo dos cidadãos pela Polícia do Pensamento. Podemos de fato considerar as diferentes formas de totalitarismo, que foram surgindo nos países ocidentais, a partir do fim do século XIX, como ensaios gerais ou de formas espetaculares do regime de controlo. Deste ponto de vista, é este regime de controlo generalizado que parece ter acabado por se instalar, a partir do fim dos anos 70 do século passado. Uma das diferenças da vigilância eletrônica em relação às formas de totalitarismo ensaiadas nas décadas anteriores é o fato de o controlo se ter tornado mais eficaz, uma vez que o seu funcionamento se tornou imperceptível e passou a contar com a cooperação dos próprios vigiados. Podemos dizer que o regime de controlo do Big Brother da novela de Orwell acabou por ser tecnicamente ultrapassada pela realidade que vivemos hoje, uma vez que os dispositivos cibernéticos permitem a sua naturalização, economizando deste modo a intervenção explícita da Polícia do Pensamento.
Foi Gilles Deleuze quem, num texto de 1990, associou esta passagem do regime da vigilância para o regime do controlo à transformação do modelo disciplinar pelo modelo da comunicação e pela globalização dos dispositivos electrónicos informáticos (Deleuze 1990/2003: 229-247). No entanto, esta visão aparentemente catastrofista, parece esquecer que os seres humanos não são fantoches, mas seres racionais que continuam a seguir caminhos sempre inesperados na apropriação e na utilização dos recursos de que dispõem.
Creio que temos agora os principais elementos que nos permitem compreender o antagonismo que referi entre os estudos que entendem a vigilância atual como continuação do paradigma disciplinar do modelo arquitectónico do panóptico e os estudos que consideram a vigilância atual dos dispositivos cibernéticos deixou de seguir esse paradigma.
Este antagonismo decorre, a meu ver, por um lado, da polissemia do termo vigilância e da consequente ambivalência da sua experiência, por outro lado, das diferentes maneiras de entender o papel dos dispositivos midiáticos nos comportamentos de vigilância.
1. A natureza polissémica do termo vigilância e a natureza ambivalente da sua experiência
O termo vigilância designa uma grande diversidade de referentes, alguns deles antagónicos entre si, e este antagonismo de referentes está associado à natureza ambivalente da sua experiência.
A utilização dos dispositivos cibernéticos liberta as pessoas das exigências e dos condicionamentos inerentes ao monitoramento mútuo e recíproco das interações que ocorrem em situações de interação face a face. Mas, se assegura condições de segurança perante a possível irrupção da violência e do controlo das pessoas umas sobre as outras, cria também dependências imperceptíveis e imprevisíveis que redundam em coações potencialmente totalizantes provenientes da intervenção de estranhos, isto é, de pessoas que não partilham o nosso mundo e que escapam à nossa possibilidade de monitoramento. É esta natureza ambivalente da vigilância que explica o fato de, por um lado, assegurarem as condições, tanto de segurança e de libertação das coações inerentes ao monitoramento mútuo e recíproco, como de pretexto para a instauração de regimes disciplinares de controlo.
A instalação de dispositivos eletrônicos de controlo e a utilização das bases de dados com o registo dos emails, dos cookies dos computadores pessoais e da utilização pessoal dos cartões de memória eletrônica por parte das agências militares e policiais, na sequência do ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque, em 11 de Setembro de 2001, assinalam, a meu ver, o momento simbólico da tomada de consciência desta experiência ambivalente da vigilância. A imposição dos dispositivos eletrônicos de controlo a partir desta data passou a assegurar condições de segurança e prevenção, mas, por outro lado, criou as condições para o seu alargamento indiscriminado a muitos outros domínios da experiência, desde a economia, a gestão do espaço coletivo, da justiça, da administração pública e mesmo do mundo das relações interpessoais. Mais do que reféns indefesos das diferentes modalidades de terrorismo, ficámos também todos reféns de nós próprios ou, se preferirmos, dos dispositivos que criámos para nos defendermos.
2. A perversidade da face lúdica e voyeurista da visibilidade eletrônica
Mas o regime de vigilância é de natureza ambivalente ainda pelo fato de, por um lado, comportar uma notável face lúdica, derivada da sua componente voyeurista, de incentivar ou de estimular o desejo de visibilidade, de ver e de ser visto e de, por outro lado, ser aproveitado para alimentar bases de dados que instrumentalizam esta face lúdica para finalidades de rastreamento ou de tracking, quer por parte de agentes de marketing quer por parte de tarefas policiais. Recordemos, a propósito que o registo de cookies dos computadores pessoais por parte dos responsáveis dos sites visitados para depois venderem estes registos quer às empresas quer ao FBI e a outros serviços de inteligência dos Estados representa hoje um dos negócios mais lucrativos do mundo, a julgar pela revelação das personalidades que passaram a ocupar lugares de topo no ranking das fortunas mundiais.
A natureza ambivalente da vigilância tem, por conseguinte, a ver com a antinomia dos objetivos visados. A vigilância serve, por um lado, para o desempenho de tarefas pessoais de prevenção de situações de perigo, permitindo, uma mais fácil e rápida vigilância, por exemplo, dos filhos menores pelos pais, dos doentes nos cuidados intensivos por parte dos serviços de saúde, da circulação por parte dos agentes responsáveis pelo controlo do tráfico ou, em caso de acidente, pelos serviços de socorro e de emergência, mas, por outro lado, é utilizada para preparar e programar ações criminosas, atos de terrorismo e de violência contra pessoas inocentes, assim como acesso a informações com vista à extorsão de contas bancárias ou à devassa da vida privada.
3. O antagonismo das diferentes modalidades de vigilância dos dispositivos cibernéticos
O fato de a vigilância se prestar tanto a utilizações lúdicas e voyeuristas como a facilitar o desempenho de tarefas de prevenção e de monitoramento de situações de perigo fazem com que se preste também a formas intrusivas e abusivas da vida privada dos cidadãos. É esta associação entre finalidades opostas que torna possível formas autoritárias de dominação e de poder, fazendo a economia das formas violentas dos regimes autoritários. Neste sentido, podemos dizer que asseguram o ideal do panóptico sem a necessidade da imposição coerciva da disciplina, uma vez que contam com a própria cumplicidade e com a complacência dos próprios vigiados.
É esta a razão invocada por alguns autores para considerarem que os atuais dispositivos cibernéticos não substituíram o paradigma disciplinar da vigilância do panóptico, mas asseguraram a sua disseminação e interiorização. Os dispositivos eletrônicos de controlo do sistema prisional têm vindo a generalizar as prisões domiciliares; o ensino à distância e a tele escola estão já hoje amplamente implementados, projetando o funcionamento do modelo disciplinar do campo escolar para fora dos espaços arquitectónicos de controlo, o tele trabalho projeta o sistema produtivo para fora dos espaços de controlo das empresas e do campo da produção, a tele medicina está já a derrubar os muros dos espaços de visibilidade e de controlo do campo da saúde. Vivemos, por conseguinte, hoje uma prática da vigilância que parece fazer a economia disciplinar do panóptico proposto, no século XVIII por Jeremy Bentham e estudado por Michel Foucault no trabalho publicado em 1975.
Mas os autores que pensam que os dispositivos cibernéticos levaram ao abandono do modelo do panóptico não se limitam a sublinhar a disseminação dos espaços de vigilância. Salientam igualmente a reversão da relação entre vigilante e vigiados, forjando um novo termo para designar estes dispositivos, o termo sinopticon, termo forjado a partir do grego opticon e do prefixo syn (ao mesmo tempo). O modelo de vigilância proporcionado pelos atuais dispositivos eletrônicos faz, de fato, com que todos possam vigiar todos, deste modo tornando problemática a distinção entre publicidade e privacidade.
Como os atuais dispositivos de vigilância, em vez de instituírem a distinção entre um pequeno número de vigilantes e muitos vigiados, fazem com que cada vigiado se torne também vigilante, estes autores pensam que contribuem para criação de condições de processos generalizados de apoderamento. A utilização da internet para a criação e para a mobilização de movimentos sociais não enquadrados pelos poderes instituídos, a publicitação da vida privada das celebridades assim como das contradições e da corrupção de detentores de cargos políticos são alguns dos exemplos que parecem justificar esta posição, uma vez que parecem indicar a reversão dos lugares de vigilância proporcionado pelas novas formas de visibilidade.
A instituição da justiça utiliza frequentemente estes dispositivos técnicos de vigilância. Todos temos bem presente o papel das escutas telefónicas, do acesso aos emails, ao registo das deslocações através do monitoramento das portagens nos autoestradas, da utilização de cartões de crédito, das conversas e da navegação pela internet, tanto por parte da acusação, como por parte da defesa, nos processos judiciários em casos de acusação de pedofilia de personalidades influentes ou em casos de corrupção, lavagem de dinheiro ou de burla de políticos. O fato de estes registos serem dotados de autonomia em relação à observação direta dos acontecimentos registados permite a simulação, com a consequente possibilidade de falsificações dificilmente detetáveis.
Não deixa de ser irónico que os dispositivos atuais de vigilância, que na origem pretendiam servir o objetivo de disciplinarização dos vigiados, se convertam em dispositivos que servem para o desmascaramento dos vigilantes. Não é certamente por acaso que em muitos países de democracias mais antigas é por vezes difícil encontrar pessoas que estejam dispostas a assumir funções políticas de relevo, por receio de verem a sua vida privada devassada.
A vigilância pode, de fato, apresentar uma multiplicidade quase caleidoscópica de modalidades. Habitualmente os autores que estudam os fenómenos de vigilância tendem a referir com este termo os serviços de espionagem visando a detecção de comportamentos potencialmente indesejáveis ou perigosos, a utilização de localizadores e de cartões eletrônicos. Mas podemos também referir as formas de exibicionismo e de voyeurismo, de que se alimentam em particular as redes sociais.
Para entendermos adequadamente estes fenómenos não podemos, no entanto, esquecer que a vigilância tem muitos aspetos comuns com as constantes formas de monitoramento que as pessoas fazem mútua e reciprocamente dos comportamentos umas das outras, de modo a escolherem e a adaptarem os comportamentos apropriados nas interações face a face que estabelecem entre si.
Entre esses pontos comuns da vigilância com os fenómenos de monitoramento inerente à vida social o mais importante é o fato de obedecerem à mesma lógica. Pretendi mostrar que a característica fundamental desta lógica é a sua natureza ambivalente, isto é, o fato de as pessoas envolvidas nos processos de vigilância, tal como nos processos de monitoramento mútuo e recíproco dos comportamentos, estarem confrontadas, por um lado, com o imperativo de tomarem decisões entre, pelo menos, duas escolhas opostas e, por outro lado, com o fato de cada decisão ter que ser tomada como se, por um lado, não fosse o resultado de uma decisão livre, mas uma obrigação e, por outro lado, não fosse uma obrigação, mas o resultado de uma decisão livre. Este paradoxo que encontramos em todas as relações sociais, em particular nos processos de monitoramento dos comportamentos das pessoas envolvidas nas interações sociais, encontra-se evidentemente também nos fenómenos de vigilância. É à violação desta lógica que assistimos quando descobrimos que fomos objeto de vigilância, isto é, de um monitoramento que não é nem consentido nem mútuo e recíproco e que, deste modo não obedece ao imperativo de resultar de uma decisão que, embora obrigatória, se apresenta como livremente tomada.
Considerações finais
Estamos agora em condições de entender a relação do dispositivo disciplinar da vigilância com a escrita alfabética. Esta relação tem a ver com o fato de os dispositivos cibernéticos permitirem a autonomização e o alargamento ao domínio do monitoramento dos comportamentos da autonomia que a escrita realiza no domínio da voz. Penso ser por isso mais aceitável considerar que nem o modelo arquitectónico do panóptico nem os novos dispositivos electrónicos alteram fundamentalmente a lógica disciplinar da escrita, não fazendo por isso sentido dizer que estes dispositivos configuram sociedades pós modernas. Pelo contrário, o que estes dispositivos fazem é explorar as potencialidades que são inerentes ao dispositivo da escrita e que desde sempre o caracterizam. Ao autonomizar o discurso do seu autor de modo a fazê-lo circular para além do momento e do lugar da sua enunciação, o discurso escrito deixa de ser controlado pelo seu autor; é esta autonomia que os dispositivos electrónicos alargam hoje ao conjunto dos domínios da experiência fazendo com que as pessoas deixam de controlar os efeitos dos seus comportamentos.
Gostaria ainda de referir que a escrita instaura o ponto de vista que constitui e impõe um ponto de fuga da perspectiva a partir da qual se organiza a nossa percepção da visibilidade do mundo. De certo modo, o mundo deixa de ser visto a partir dos lugares movediços da nossa experiência subjetiva, para passar a ser visto a partir de um centro invisível a que confiamos a tarefa de constituição de um princípio objetivo de visibilidade universal; objetivo no sentido fotográfico do termo. É a interiorização deste princípio resultante do funcionamento do dispositivo panóptico, que se alimenta do dispositivo da escrita alfabética e que é reciclado nos atuais dispositivos electrónicos, que corresponde ao regime disciplinar da vigilância. Os dispositivos electrónicos, apesar de parecerem destinar a cada um, ao mesmo tempo, o lugar de vigiado e o lugar de vigilante, constituem, tal como a escrita, um ambiente sujeito a uma perspectiva de visibilidade de objetivação disciplinar da percepção. É por isso que, ao contrário dos pós modernos, que vêm nestes dispositivos uma ruptura em relação ao regime disciplinar da visibilidade característica da experiência moderna, continuo a pensar que estes dispositivos não fazem mais do que explorar potencialidades do regime inaugurado com a invenção da escrita alfabética.
Para quem duvidar desta relação do regime disciplinar do panóptico com a escrita basta ter presente que a escrita é, em primeiro lugar, dispositivo de visibilidade da palavra. Com a imposição da escrita nas sociedades letradas do Ocidente foi a relação acústica à linguagem que acabou por ficar até certo ponto subordinada à relação visual ao discurso. Esta relação visual ao discurso não foi de maneira nenhuma substituída pelos recentes dispositivos electrónicos. Pelo contrário, eles contribuíram ainda mais para a imposição do regime de visibilidade da escrita. E o que é afinal o software se não uma forma de escrita que partilha com escrita alfabética idêntica estrutura digital?
Permitam ainda que sublinhe que a observação da maneira como as pessoas interagem com os dispositivos cibernéticos parece corroborar esta minha posição (Staples, W. 2000). Embora sejam relativamente recentes os trabalhos empíricos sobre a interação que as pessoas estabelecem entre si no quadro dos ambientes criados por estes dispositivos parecem mostrar que as pessoas não se iludem quanto ao seu poder controlador, uma vez que, ao mesmo tempo que utilizam estes ambientes, negociam constantemente entre si processos e modalidades de autonomia.
A terminar esta minha intervenção permitam que vos anuncie, como um compromisso, que gostaria de poder dedicar à observação destes processos de negociação que as pessoas estabelecem entre si quando utilizam os dispositivos electrónicos os meus próximos trabalhos. A razão deste projeto tem a ver com o fato de continuar a pensar que é das pessoas envolvidas na utilização destes dispositivos, e não os estudiosos da comunicação, que dependerá a resposta à maior parte das questões levantadas neste colóquio.


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