As práticas do sensível na cidade de São Paulo. Paulista aberta: uma possibilidade?

May 25, 2017 | Autor: Nathalia Boanova | Categoria: Semiotics, Urban Studies, Sociosemiotics, Greimas, São Paulo (Brazil)
Share Embed


Descrição do Produto

Nathalia Guimarães Boanova (COS - CPS - PUC-SP)

As práticas do sensível na cidade de São Paulo Paulista aberta: uma possibilidade?

1.

Introdução

A cidade de São Paulo e seus espaços são cenários de muitas das transformações das práticas cotidianas dos brasileiros. Mais do que coadjuvante, tantas vezes é ela própria, a cidade, sujeito ativo ou forte influenciador das mudanças que ocorrem paulatinamente no país. Não que outras cidades não sejam relevantes para esses processos de transformação, mas São Paulo, por sua importância econômica e centralidade midiática, possui uma visibilidade inegável que dá à luz diversas discussões pertinentes ao panorama brasileiro, ou ao menos, necessárias. Nessa esfera, a Avenida Paulista, que não por acaso carrega semanticamente consigo o nome da cidade, tem se estabelecido cada vez mais como palco central dos seus acontecimentos. Desde o final do século XIX quando foi projetada por engenheiros renomados e passou a abrigar os imponentes casarões e palacetes da alta sociedade paulistana, havia já notadamente uma intencionalidade que ali se constituísse um espaço de alta visibilidade e importância. A verticalidade da avenida – tanto em seu relevo quanto em sua orientação; a largura das vias e das calçadas; a escolha geográfica de sua localização; a altitude em que se encontra; são elementos constitutivos do plano de expressão que constroem esse efeito de sentido. Como coloca Oliveira1“A cidade, ela mesma, expõe-se para ser vista e, igualmente, o oposto, esconde-se para permanecer na invisibilidade. Os modos como essa 1

OLIVEIRA, A. C. de. Interação e sentido nas práticas de vida. PPGCOM – ESPM, Comunicação mídia e consumo. Ano 11, vol. 11, n. 31, p. 179-198, São Paulo, agosto de 2014, p. 186

visibilidade é apreendida ou acobertada são então altamente significantes”. Não há dúvidas que a Paulista propositalmente se faz ver desde então. Essa mesma visibilidade colabora para adensar a discussão ao redor de uma questão cada vez mais relevante para os moradores de grandes cidades e, é claro, de São Paulo: a reapropriação do espaço público. Com a transformação sofrida pela ideia de modernização e desenvolvimento da cidade ao longo dos anos, a ideia de um enunciado no qual os espaços privados eram vendidos como a solução para as insatisfações com a cidade – dos perigos das ruas a ausência de opções de lazer satisfatórias – tornou-se saída aparentemente fácil. Condomínios, shopping centers, estádios2 se afirmaram como supostas saídas para escapar das mazelas que a cidade sofria e suprir a falta que a ausência do espaço público criava. Estabelecia-se assim aos poucos, pequenas e pontuais bolhas de vida na cidade, isoladas do espaço público, herméticas e “seguras” onde era possível estar e sobretudo, consumir. Sobre os shoppings, em especial, uma das construções mais pungentes:

[...] esses grandes centros comerciais fizeram-se cada vez mais objetos de valor em uma forma de vida urbana pós-moderna que assume o consumo como cultura e parte do entretenimento dos cidadãos em suas horas livres (momento pelo qual eles anseiam durante a semana de trabalho, como um passeio no shopping ao domingo) e em um contexto de carência de variadas ofertas culturais e de entretenimento, fossem elas proporcionadas pelo poder público ou até mesmo privado, gratuitas ou a um preço acessível e que atendessem a população de áreas citadinas próximas e também as mais distantes do centro urbano. 3

Após anos de desvalorização e rejeição do espaço público, e da constante reiteração desses espaços como locais de abandono e “de passagem”, além do estabelecimento de mais espaços privados, como os numerosos Shopping Centers e condomínios residenciais4que substituem os espaços públicos e tentam substituir suas funções, São Paulo vive hoje, ao que parece, um processo de mudança desse cenário. Setores da população têm se organizado em movimentos autônomos diversos sob a bandeira da retomada do espaço público. Com isso, 2

Veja-se, em particular, outros trabalhos que abordam os temas supracitados desenvolvidos pelo Centro de Pesquisas Sociossemióticas. 3 LOPES, Jenara Miranda et al. “Rolêzinhos”: hipervisibilidade midiática e uma reescritura do espaço públicoprivado dos Shopping Centers de São Paulo. IN OLIVEIRA, Ana Claudia de (org.) Do sensível ao inteligível. Duas décadas de construção do sentido. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014, p. 824 4 CALDEIRA, T. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34 / EDUSP, 2000.



cada vez mais outras vozes, empresariais e governamentais, têm revisto seus discursos e se ajustado a essa demanda crescente. Nesse contexto, surge justamente na Paulista uma proposta de ressignificação daquele espaço a partir do fechamento da avenida para veículos aos domingos. A medida, conforme veremos mais à frente (inserir crase), tem se firmado como opção de lazer para o paulistano aos domingos e exposto uma demanda pungente por tempos e espaços de escapatórias. Nesse sentido cabe retomar a teoria desenvolvida por Algirdas Julien Greimas em Da imperfeição, que nos coloca o desafio de pensar na apreensão das qualidades sensíveis do mundo e nas possibilidades de vivenciar experiências estéticas no cotidiano. A partir do desenvolvimento de uma teoria que amplia a percepção dos semioticistas para as qualidades estésicas do mundo em que estão inseridos e propõe que analisemos os textos ao nosso redor também com nossos corpos – e todos os seus sentidos – Greimas possibilita que olhemos para narrativas que extrapolam o mero encontro de sujeitos com seus objetos de valor, mas que estabelecem entre esses dois actantes uma ligação muito mais profunda. Pensar a Paulista Fechada, como foi denominada a ação, seria talvez uma possibilidade de explorar tal perspectiva. Em que medida essa proibição, ou essa permissão, e as práticas5 ali estabelecidas instauram uma reescritura semântica daquele espaço? Podem medidas como essa favorecer vivências que se assemelhem às fraturas propostas por Greimas? São as questões que nortearão a presente discussão. A fundamentação teórico-metodológica será assim pautada pela teoria do próprio autor bem como pelos preceitos da etnossemiótica 6 de Francesco Marsciani e da sociossemiótica de Eric Landowski. 5

Veja-se em OLIVEIRA, Ana Claudia de. Interação e sentido nas práticas de vida. Revista comunicação mídia e consumo. p.179-198. Ano 11, vol. 11, n. 31. Mai/Ago 2014 a definição de prática: “um fazer cotidiano que caracteriza ações que se repetem, mas não de modo redundante que esvazia o sentido. Ao contrário, essas podem ser práticas de um indivíduo, de grupo social, ou, em maior escala, da população da cidade. A repetição de uma ação, de uma sequência delas dá-se no eixo sintagmático em intervalos temporais e manifesta um modo de presença que é definido pela constância acional na cotidianidade. Os traços recorrentes mostram o que permanece na dinâmica transformacional e esses promovem a identificação da prática”. 6

Veja-se em MARSCIANI, Francesco. Introdução à etnossemiótica. São Paulo: Centro de Pesquisas Sociossemióticas que define como objetivo da análise etnossemiótica explicar o significado interno das práticas em si mesmas, cabe aqui, portanto, observar essas novas práticas instauradas há pouco na avenida paulista com o intuito de entender seu significado intrínseco.

2. A Paulista aberta: práticas e interações 2.1 Contextualização Ao pensarmos nas escapatórias greimasianas e na proposta do autor em entrecortar a vida com eventos “estéticos” a partir de desvios do funcional, cabe discutir a Avenida Paulista nesse momento particular. No trecho do livro em que introduz as “escapatórias”, Greimas7 explora as possibilidades de semantizar a vida, que extrapolam os limites do texto escrito, e nos colocam a refletir sobre os encontros estéticos de nosso cotidiano. O semioticista se debruça principalmente sobre a possibilidade de ressemantização dos objetos “gastos” de nosso cotidiano, a partir da injeção de uma carga estética – poderia-se dizer também estésica? – nos mesmos. Pensando primeiramente na narrativa a partir do objeto que nos propomos a analisar, a Paulista estabeleceu ao longo dos anos – desde os casarões dos barões do café de então aos centros financeiros e culturais de hoje – uma isotopia de poder e visibilidade. Em seus quase três quilômetros encontra-se uma enorme concentração de centros culturais, escritórios, consulados e comércios diversos. Mais do que isso, a avenida é tida no imaginário popular como “cartão postal” da cidade de São Paulo, composta por edifícios emblemáticos como o Museu de Arte de São Paulo e o prédio da Fundação da Indústria do Estado de São Paulo – FIESP. Ano após ano, a via se reconstitui e se reinventa – demolindo antigos casarões para construção de shoppings e estacionamentos, reduzindo o espaço dos carros para a implementação de ciclovias – e homologa assim, a partir de seu plano de expressão, valores paulistanos, e talvez até brasileiros, de esquecimento do passado e euforização do que é aparentemente novo, ou moderno. Na gestão de Fernando Haddad, desde outubro de 2015 a Prefeitura de São Paulo estabeleceu, após audiências públicas, que aos domingos a Paulista passaria a ficar fechada para veículos das 9h às 17h. A medida foi comemorada por alguns, severamente criticada por outros. O próprio Ministério Público entrou com um Termo de Ajustamento de Conduta na tentativa de impedir o fechamento da avenida para os veículos. Claro que a aceitação ou não da nova determinação foi profundamente influenciada pelo discurso midiático fortemente

7

GREIMAS, A. J. Da Imperfeição. Pref. e Trad. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker, 2002, p. 85

presente na cobertura do fato desde sua inauguração. Como coloca Oliveira8 sobre a forma de interação dos sujeitos com a cidade “As ações são programadas pelo que ‘está na Globo’ foi coberto pelo jornal, pela revista, uma celebridade usou, enfim, há uma estratégia de sedução que leva à adesão do público ao sugerido na matéria noticiosa.” Ou seja, não se pode pensar nas dinâmicas ali postas sem considerar o efeito manipulatório das mídias as promovendo ou denegrindo. A visibilidade da Avenida Paulista na cidade também colaborou para o adensamento de tais discussões. No entanto, acima dos entraves políticos e dos grupos de interesse envolvidos na aceitação desse projeto, busca-se aqui compreender quais são as vivências que ocorrem atualmente aos domingos na avenida em um momento no qual o paulistano parece já ter se habituado um pouco mais à mudança e se pode observar práticas que se estabelecem com certa regularidade no local, talvez não mais apenas como resultado de uma divulgação de massa ou pela euforização do “novo9”.

2.2 A Paulista Aberta Primeiramente é interessante analisar semanticamente a escolha da palavra “aberta” para a ação. Teoricamente a avenida já é por definição um espaço público, ou seja, estaria então “aberta” para todos – transeuntes, motoristas, trabalhadores, etc. Abrir a Paulista nesse contexto é, portanto, fechá-la para os veículos – carros, motos, ônibus – os únicos sujeitos excluídos aqui dessa narrativa, e abri-la para aqueles que até então tinham seus espaços de trânsito muito bem delimitados pelas calçadas e faixas de pedestre. O estabelecimento de um espaço onde não há a presença dos veículos motorizados transforma o arranjo estético da Avenida ao qual estamos habituados durante a semana. De repente tem-se ali um vasto espaço vazio que a priori, ainda que plasmado no espaço público, servia em boa parte do tempo apenas aos pequenos espaços individuais ou coletivos dos carros e ônibus. A materialidade de asfalto, ainda que termicamente não seja ideal para se estar em dias de sol pelo acúmulo de calor, é também um espaço livre de prescrições quando deixa de ser apenas suporte para os veículos: plano, liso, sólido. Ali, pode-se quase tudo, 8

Op. Cit, 2014, p.189 Sobre o conceito de “novo” numa visão mais mercadológica veja-se o trabalho de João Ciacco “A inovação em discursos publicitários – Comunicação, Semiótica e Marketing” 9

ainda que apenas por algumas horas. Talvez até a própria limitação dessa temporalidade sirva a intensificar as vivências que ocorrem ali, tudo deve ser explorado ao seu limite, já que a hora de terminar é sempre restrita e inflexível. A Paulista Aberta é também aberta, assim, a uma infinidade de atividades que vão surgindo, em sua maioria, por iniciativa dos próprios frequentadores do espaço e extrapolam os limites de um território até então destinado a ser apenas um local de circulação e de trabalho. São momentos de vivências muito distintas, mas extremamente marcadas pela questão corporal e pelo elemento estésico. Em uma avenida na qual o uso é primordialmente estabelecido a partir de sua dimensão funcional, a construção de vivências estéticas e até míticas10. Para a observação dessas práticas foram realizadas visitas ao local e repetidas pesquisas na plataforma de fotografia Instagram por meio da hashtag “#Paulistaaberta”. O uso dessa fonte de informação em complementariedade se justifica por ser uma forma de observar como os sujeitos frequentadores da Paulista aos domingos têm se feito ver nas redes sociais bem como para ter a dimensão da variedade das práticas em um período mais amplo. O que consta aqui é um pequeno inventário de algumas dessas observações, agrupadas a partir de seus efeitos de sentido.

2.2.1 Opinião e pertencimento Como coloca Landowski,11 a relação entre público e privado é “uma relação de pressuposição recíproca – um que vê, o outro que é visto – e entre os quais circula o próprio objeto da comunicação, no caso a imagem que um dos sujeitos proporciona de si mesmo”. Observaremos aqui como os actantes da narrativa usam esse espaço público como adjuvante na construção do simulacro de si mesmos.

10

Georges Dumézil trabalha sobre as três dimensões da cultura, conceito reaproveitado por Greimas, em Da imperfeição. 11 LANDOWSKI, Eric. A sociedade Refletida: ensaios de sociossemiótica. São Paulo: Educ/Pontes, 1992, p. 89.

Figura 1 –Eu apoio a Paulista Aberta

Jovem posa com cartaz “Eu apoio a PAULISTA ABERTA” Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

Na publicação acima é possível observar o imbricamento das vozes de diversos Enunciadores: o fotógrafo que decide enquadrar a foto de tal forma e publicá-la em sua conta no Instagram, o jovem que posa para a foto com um sorriso no rosto e a organização Minha Sampa, cujo logo em vermelho está na mão do fotografado. Ainda assim o discurso parece se uniformizar e euforizar o objeto paulista. Mais do que apoiar a Paulista Aberta (em letras maiúsculas, como que gritando essa “desobstrução”) o que se cria é um efeito de sentido de pertencimento. Coberto pelo corpo esportista da foto sob a qual se esconde, o sujeito é mais um, parte de um grande grupo que apoia e faz parte dessa ação, em um tempo e espaço determinados. O sujeito, enquanto potência de sentido, realiza-se ali, no espaço público de pertencimento. O mesmo acontece nas fotos a seguir, ainda que não “camuflados” sob o disfarce do “esportista padrão”, os narradores das cenas a seguir reiteram a importância de estar ali naquela avenida e mostrar-se nela. Isso também é reiterado pelo uso da hashtag #Paulistaaberta que permite que as fotos sejam agrupadas e encontradas com facilidade na

rede, ou seja, estabelece-se um jogo de observador-observado, do querer-ver e querer-ser visto, como coloca Landowski. Fotos 2 e 3 – Selfies





Jovens de óculos escuros fazem selfies com a Avenida Paulista no fundo Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

2.2.2 Nostalgia e ludicidade Como postula Greimas, a busca por momentos onde o estésico encontra o estético seja talvez um dos caminhos para ressemantizar a vida. Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço12, debate também como os excessos da vida contemporânea gera insatisfações profundas nos sujeitos que se veem vivendo uma vida vazia de sentido: “Hoje, vivemos num mundo muito pobre de interrupções, pobre de entremeios e tempos intermédios”. Nas atividades aqui observadas nota-se a busca por esses intermédios, espaço onde é possível retomar e propor momentos de descontração, memória e afetividade.

12

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015, p. 53

Foto 4 – Bolas de Sabão

Senhor faz bola de sabão na Avenida Paulista Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

Foto 5 – Tricô

Jovem tricota sentada na faixa de ônibus na Avenida Paulista Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

Foto 6 – Corrida de saco

Crianças brincam de corrida de saco na avenida Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

As fotos apresentadas possuem em comum a retomada de práticas comuns a outros tempos, já rarefeitas no cotidiano da vida das grandes cidades: o tricô (Foto 5), as corridas de saco (Foto 6), o fazer das bolhas de sabão (Foto 4). Observou-se também grupos realizando piqueniques, jogando amarelinha, girando bambolês, pulando corda, fazendo rodas de ciranda, empinando pipas.

Se o uso, transformando os gestos sensatos em insignificância, comporta, apesar de tudo, certos efeitos liberadores, a usura, tomando seu tempo, ataca os momentos da vida que o homem desejaria consagrar a outra coisa – outra coisa a que ele chama “vida” – e põe-se a corroê-los. Pois embelezar a vida procurando “saídas” não é por acaso reconhecer que este lugar de onde se sai “não é a vida”, e criar para ele um alhures imaginário nutrido de espera e esperança?13

A busca desse alhures imaginário retratado por Greimas está presente nas manifestações constatadas ali, quando adultos e crianças abandonam suas práticas voltadas apenas para o desempenho e se dão o espaço e o tempo de sentir com o corpo sensível, de 13 Op. Cit., 2002, p. 81

interagir de uma forma distinta. A dimensão lúdica, tal qual a dimensão mitólogica retomada por Greimas, é componente que incorpora valor à cultura e traz sentido àqueles que a vivenciam. Curiosamente, ainda que haja outros espaços na cidade onde atividades como essas poderiam ser desenvolvidas, é precisamente na Avenida Paulista onde se observa a maior diversidade de possibilidades e de retomada de objetos de valor de outrora.

2.2.3 Lazer e meios de transporte não usuais Outras formas de lazer foram também observadas na Avenida. Grupos dançando, cantando, peças de teatro ao ar livre, blocos de carnaval fora de época, todos têm em comum um componente estésico forte – cores, sons, ritmos, cheiros. A forte presença desses elementos propiciam o contágio dos sujeitos pelos objetos – ou pelas práticas – a partir dos encontros que se dão na Paulista.

Nos enunciados da cidade, além destes tipos de enunciados, a ação do acidente estético e o contágio sensibilizador estésico atuam. As experiências sensibilizadoras, em maior ou menor grau, advêm de encontros entre arquitetura, urbanização e o próprio sujeito habitante em ação. Superam, pois, o deslumbre de uma edificação de uma ponte, de um prédio que produzem contemplações fusionais e vão também além das estetizações como as mediáticas que intencionalmente criam a estetização circundante. Ao contrário, na confluência de encontros entre corpos vivos que fazem sentido, o sujeito se sensibiliza.14

Essas formas de interação com a cidade e com o outro facilitam as quebras necessárias às rotinas dessemantizadas. Como Han também coloca, “A dança, por exemplo, ou balançarse, representa um movimento totalmente distinto. Só o homem pode dançar. [...] é um luxo que foge totalmente do princípio do desempenho.”15 Fugir do princípio do desempenho é

14Op. Cit, 2014, p. 191 15

Op Cit. 2015, p. 35

procurar saídas para ressemantizar os fazeres de nossa existência – “ressemantizar a vida trocando ‘os signos por gestos’”16

Foto 7 – Churrasco

Churrasco na avenida, em frente a FIESP, cercado por pessoas a pé, de cadeira de rodas e bicicletas Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

16

Op. Cit. 2002, p. 84



Foto 8 – Esportes radicais

Sujeito faz slackline no vão da praça do ciclista Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

Ainda que nesse curto espaço de tempo aos domingos a avenida deixe de ser uma via de transporte sob rodas “oficial”, observa-se também a multiplicação de meios de transporte nesses momentos, seja para o deslocamento de fato entre os pontos da cidade, seja para o lazer dos frequentadores do local. Foram observadas pessoas usando: bicicletas, triciclos, skates (Foto 9), monocicletas, cadeiras de roda, patinetes e trenós. Estar fora de um carro ou de um ônibus significa também estar na cidade de outra forma, ter o tempo para olhá-la com mais cuidado, ter um corpo presente no espaço descoberto e apto a olhá-la, tocá-la, cheirá-la, percebê-la. São sujeitos postos em enunciados de transformação, saídos dos enunciados de estado.

Foto 9– Skate feminino.

Criança andando de skate na Avenida Paulista Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

Foto 10 – Música sob rodas

Garota toca violão e canta enquanto é transportada por uma bicicleta Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

3. A cooptação do discurso por outros destinadores

A popularização da medida instaurada na Avenida Paulista faz com que o interesse de outros atores não envolvidos nessa narrativa a priori surja e comece a se inserir naquele espaço. Nada mais natural ao pensarmos em como toda sua extensão se transforma durante aquelas horas em um longo palco vertical, não há, todavia, coxias – todos querem ser vistos, seja caminhando com seus cães, seja beijando o seu parceiro (Foto 10), seja andando de bicicleta. Tal como uma peça de teatro há horário para início e fim: no bater das 17h fechamse as cortinas, recolhem-se os adereços e fantasias e a vida volta à rotina do vai e vir dos carros e ônibus, ao cotidiano dessemantizado.

A Avenida Paulista demonstra uma rotina programada até nos momentos de lazer e tem uma tendência, em termos semióticos, a um regime de programação manifestada através dos momentos em que tem alguma relação com o trabalho ou o transporte, ou seja, com o tempo cronometrado (quanto mais se programa a presença estésica, torna-se mais difícil o sentir).17

Foto 10

Jovens se beijam deitados na guia da avenida Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

17

BABONI, R. Corpos da Paulista: Avenida e passantes. Por uma etnossemiótica dos corpos. In: OLIVEIRA, A. C. (org.). Do sensível ao inteligível: duas décadas de construção do sentido. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014, p. 646.



Nesse grande espetáculo atores que inicialmente tinham pouco ou nenhum interesse na medida, começam a tornar-se também voz ativa no discurso pró-paulista aberta. Esse é por exemplo o caso da FIESP, cujo prédio plasmado da avenida parecia no início da mudança apenas tatear seus desdobramentos e agora não só participa ativamente dos domingos abertos, como aproveita a ocasião para seduzir os transeuntes a reproduzirem seu discurso. A campanha contra o aumento de impostos no país “quem paga o pato” é figurativizada pela simpática imagem de um gigante pato de borracha (Foto 11), reproduzido e distribuído em balões de gás para quem por ali passe em dias de avenida aberta. Também nessas ocasiões a instituição tem promovido ações culturais abertas no vão do prédio aos domingos, atraindo ainda mais público para si.

Foto 11

Pato da campanha da FIESP em meio a Avenida Paulista Fonte: Acesso em janeiro de 2016.

Não se pode esquecer dos destinadores presentificados nas bicicletas que cruzam a avenida. Pôde-se observar ali bicicletas “próprias” e bicicletas “emprestadas”. No segundo caso, predominante nas visitas realizadas, vê-se sempre o símbolo dos bancos Itaú ou do

Bradesco bem como as cores de sua identidade visual em destaque sob os ciclistas, inserindo naquele espaço interesses muito distintos daqueles supostamente estruturadores da Paulista Aberta.

4. Considerações finais

Mediante o levantamento e análise de algumas das práticas encontradas no domingo da Avenida Paulista foi possível compreender como a cidade se encontra em um momento de busca de locais onde seja possível vivenciar uma quebra no tempo e espaço, o que Greimas estabelece como condições para as fraturas no cotidiano. A irrupção de eventos extraordinários no entanto, depende também da predisposição dos sujeitos a vivenciar o inesperado:

A situação de ânimo em que o sujeito tocado se encontra é posta em relação tanto com a sua disponibilidade efetiva, para sorver, com os seus sentidos, as impulsões significantes das orientações do sentido de um arranjo significante, quanto do próprio arranjo com as suas condições de sensibilização do corpo que as sente e que pode estar em um estado de dormência ou automatismo no seu fazer processual do sentido, ou em um estado de disponibilidade e abertura. A reunião dessas circunstâncias distintas promove os estados de apreensão em que o arrebatamento maior ou menor pode advir para o sujeito e, em qualquer uma de suas manifestações, o acontecimento move o sujeito a sentir com maior ou menor intensidade.18

Os paulistanos parecem estar envolvidos nessa busca por possibilidades de escapatórias e ressemantização dos espaços. Curioso observar que essa busca muitas vezes vem com uma tentativa de retomada do passado – nos jogos de rua, na retomada das relações pessoais no espaço público. Isso se opõe semanticamente à modernidade das tecnologias fortemente presentes ali: os celulares, as selfies e a virtualidade das relações, e a própria avenida que figurativiza valores de inovação e apagamento do passado, conforme 18OLIVEIRA,

A. C. Estesia e experiência do sentido. UNESP: CASA – Cadernos de semiótica aplicada, vol.8, N. 2, São Paulo, dezembro de 2010, p.5.



previamente discutido. A oposição antigo vs novo, ou talvez nostalgia vs jovialidade enunciam os valores desses muitos destinadores presentes ali, cujos interesses e discursos ainda tentam se ajustar às novas dinâmicas de vida na cidade. Como Oliveira mais uma vez coloca: “A cidade torna-se sujeito pelos seus atos que a definem, tanto quanto a sua população”19. Muito além das selfies, estar na paulista, corpo presente que sente com todos os sentidos e vê transformar seus estados de ânimo e de alma, é viver a cidade, é ser visto – alí e na euforização das redes sociais. Esses sujeitos, destinadores de si, parecem circular por entre os muitos discursos e enunciados de fazer. A força do estar junto parece talvez uma saída, ainda que provisória, à lógica da programação das grandes cidades. Não se pode, todavia, deixar de perceber a força que existe no sentido da comercialização e transformação desse discurso em discursos particulares de atores específicos e cuidar para que essa busca seja sempre feita com o cuidado de evitar a “iteração das esperas” e a monotonia. Concebe-se, portanto, que a cidade e suas características, aqui particularmente – a rua – são parte ativa que determina como se estruturam as interações entre os sujeitos. Interações estas que se desdobram posteriormente nas práticas de vida desses sujeitos habitantes dos espaços da cidade. Como complementa Lefebvre20: “A cidade escrita e prescrita, isto quer dizer que ela significa: ela ordena, ela estipula. O quê?”. A dinâmica de interação entre pessoas e rua é reciproca, ou seja, um influencia o outro mutuamente em suas construções. A maneira que cada um desses sujeitos se constitui proporciona possibilidades diferentes de interagir. Estar na rua é assim, ocupar um espaço de extrema importância na cidade, contudo, as novas eleições e a mudança de gestão deixam dúvidas sobre a continuidade e permissão para permanência nesses locais.

19

Op. Cit, 2014, p. 192 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001, p. 54

20



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.