As relações internacionais na fronteira norte: novi orbis pars meridionalis.
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As relações internacionais na fronteira norte: novi orbis pars meridionalis1. Felipe Kern Moreira∗ I – Introdução: As implicações estratégicas da entrada da República Bolivariana da Venezuela no Mercosul parecem ter intensificado a atenção às fronteiras setentrionais da América do Sul. Ocorre que a estruturação do Mercosul Amazônico – Caribenho, ou Mercosul Continental, é apenas um dos processos relevantes para as relações internacionais na região. O presente artigo pretende sistematizar em termos de discurso científico alguns dos fenômenos levados a efeito na fronteira norte da América do Sul os quais se entende significativos para o campo de estudo próprio das relações internacionais. Metodologicamente pode-se dividir este texto em dois momentos: o primeiro privilegia as relações fronteiriças em termos de segurança regional e integração e constitui-se em narrativas e análises de conjuntura. O segundo momento trata do direito internacional dos povos indígenas e da potencialidade da contribuição dos estudos étnicos para os discursos teóricos em relações internacionais. Propõe-se que o raciocínio do texto possa ser um gradiente que parte do cotidiano das relações fronteiriças, perpassa os processos de integração regional e a universalidade do direito internacional para por fim chegar ao debate teórico. Desta forma não só atinge-se parte dos complexos fenômenos das relações internacionais na fronteira norte como também se propõe que estes dados possam ter conseqüências para a própria sistematização científica. O título deste trabalho faz menção ao espanto dos cartógrafos em relação à América do Sul à época do Tratado de Madri. Até então a América era entendida a 1
Este texto só se tornou possível a partir da atuação e intercâmbio entre pesquisadores no âmbito do Núcleo Amazônico de Pesquisa em Relações Internacionais – NAPRI na Universidade Federal de Roraima - UFRR. As atividades do diretório de pesquisa do ‘Grupo de Fronteiras’, também na UFRR, no qual desenvolvo o projeto “Povos indígenas e relações internacionais” também possibilitou a consolidação dos dados de pesquisa. Quero agradecer em particular ao etnólogo Alexandro Namen (UFRR) pela indicação de amparo bibliográfico ao longo da pesquisa. ∗ Felipe Kern Moreira é doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR. O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil.
partir do traçado de Tordesilhas o qual entrava pelo Pará e saía por Santa Catarina. A partir de então o domínio espanhol no novo mundo meridional definitivamente incluiria, pelo centro das terras, o maciço desde o Panamá até Cabo Horn. O título atribuído ao continente como um todo era Perúvia ao qual a citação latina efetivamente fizera referência2. Entende-se apropriado o uso da expressão, embora metafórico e estilístico, para a finalidade à qual este artigo se destina: sistematizar dados epistemológicos referentes à fronteira meridional da América do Sul. II – Venezuela: segurança e integração na fronteira norte da América do Sul. 2.1. A tríplice fronteira setentrional do Mercosul: militarização e segurança regional. A questão da militarização da Venezuela suscita inquietações. Por militarização entende-se, portanto, aqui, a intensificação da presença de tropas nas faixas de fronteira e o processo de modernização do aparato bélico. De fato existe uma ostensiva presença militar na fronteira da Venezuela e esse fato é bem perceptível para quem percorre o trecho de Pacaraima, no Brasil, até Santa Helena de Uairén na Venezuela. Agora isto possui pelo menos duas causas, com as quais não se pretende esgotar o assunto. Primeiro, deve-se ter sempre em mente que os movimentos republicanos na América hispânica solidificaram-se quase um século antes de movimentos semelhantes no Brasil. A literatura identifica que estes movimentos explicam em parte o distanciamento que o Brasil desenvolveu em relação aos países hispanoparlantes durante o século dezenove3. Ora, no caso específico da Venezuela Simón Bolívar é de fato o herói da pátria com expressivo apelo ao imaginário coletivo nacional; simbolismo este que só pode ser equiparado em termos de valores nacionais na América aos founding fathers nos EUA4. Estas particularidades que se referem aos aspectos da conformação histórica e simbólica venezuelana permitem que a defesa contra a ameaça externa e o imperialismo encontrem suporte na malha social e atinjam maior efetividade política do que em outros países integrantes do Mercosul. A segunda causa diz respeito à intensificação da presença militar nas fronteiras da Venezuela com a chegada de Hugo Chávez ao poder e isto se explica pelo fato de 2
A citação latina é: Peruvia, id est, novi orbis pars meridionalis. (CUNHA, s/d, 03) A este respeito: SANTOS, 2004 e DORATIOTO, 2002. 4 Acerca do que se denomina ‘imaginário coletivo’ e política externa: MEAD, 2001. 3
Chávez ser um militar de carreira, treinado para pensar e desenvolver políticas públicas de forma militar. Aqui surge uma questão interessante: o que na Venezuela é levado a efeito é a modernização e valorização das Forças Armadas o que não implicou, até agora, necessariamente, em corrida armamentista, conforme tem sido sugerido por alguns analistas5. Se a Venezuela investiu três bilhões de dólares em armas compradas da Rússia, isto é menos um alinhamento anti-hegemônico do que a possibilidade de acesso a um mercado restrito. Quem mais venderia armas a Chávez; os EUA? E afinal, qual é a posição dos militares brasileiros? Ora, além de reafirmarem as boas relações militares bilaterais, sugerem que a compra de armas implica em um tempo de treinamento considerável como no caso dos Sukoy6; ademais, a maior preocupação da Venezuela de Chávez é a Colômbia de Bush. Sob a ótica política, bem que os militares brasileiros gostariam que Lula aparelhasse suas forças singulares de forma congruente com o caráter dissuasório da política de defesa nacional7. Outra questão que suscita interesse é a da reivindicação do Essequibo ocidental, região estratégica compreendida entre a Venezuela e a República Cooperativista da Guiana. A destruição de duas dragas fluviais na Guiana pelo Exército venezuelano em novembro de 2007 foi somente mais um elemento nos recorrentes movimentos referentes à disputa territorial e até hoje não se sabe ao certo se, no momento em que foram pelos ares, as dragas remexiam o fundo do rio Cuyuní, que fica em território guianense, ou as areias do rio Wenamú, que divide os dois países8. De qualquer forma a reivindicação do Essequibo não é somente uma questão de movimento de tropas e de discurso político; relaciona-se com o direito internacional e com a recente Constituição venezuelana. A despeito do princípio constitucional venezuelano de respeito à justiça e
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Alguns exemplos: “Compra de submarinos por Chávez ameaça supremacia do Brasil, diz especialista”, disponível em http://noticias.uol.com.br/bbc/, em 28/06/2007. Ainda: “Cada vez se acumulan más evidencias y testimonios de que militares venezolanos les han vendido y hasta regalado armas a las Farc”, disponível em http://www.cambio.com.co/html/portada/articulos/177/, acessado em julho de 2007. 6 Informações colhidas na palestra “Forças Armadas: desafios e ameaças na Fronteira Norte” proferida pelo representante do Comando Militar da Amazônia durante o ‘III Seminário Internacional de Economia Amazônica e Desenvolvimento Sustentável de Roraima’ realizado na UFRR em 2007. 7 “Venezuela tem direito de se armar diz comandante da Marinha”, disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/07/070704_marinhaentrevistadb.shtml, acessado em 04 de julho de 2007. 8 “Em nome dos índios ou de Bolívar, Brasil corre o risco de diminuir”, disponível em http://www.opiniaoenoticia.com.br/, acessado em 25 de janeiro de 2008.
paz internacional (art. 1º), a Constituição é clara na não aceitação do Laudo Arbitral de Paris relativo ao Essequibo ocidental o qual favoreceu a Inglaterra9. Pergunta-se: existe o risco de a Venezuela tentar ‘reaver’ o Essequibo pelas armas? Apesar de no mapa venezuelano esta região não pertencer à República Cooperativista da Guiana avalia-se que há pouca probabilidade de haver conflito armado. Normalmente, líderes estatais só fazem movimentos deste tipo amparados em expressiva legitimidade interna e a consulta acerca das reformas constitucionais em dezembro de 2007 veio reforçar a idéia de que este não é o caso da Venezuela. É relevante no tabuleiro estratégico internacional, que além de não contar com o apoio político e financeiro de seu colonizador, a capacidade bélica da Guiana é inexpressiva. Considerando então a pequena capacidade defensiva da Guiana, na hipótese de conflito, tanto países como Brasil e Argentina como as forças de paz da ONU e OEA ou mesmo os EUA teriam interesses na pacificação da região. Logo, a Venezuela não tem interesse em ir às vias de fato, pois o custo é maior com o conflito do que sem ele. Agora, reivindicar não custa nada e em certa medida até gera dividendos políticos. Assim, a eventual presença de tropas venezuelanas na faixa de fronteira do Essequibo é um ato de política externa com conseqüências políticas de baixa intensidade. Agora, se ocorresse um conflito na região do Essequibo quais as conseqüências para o Brasil? Chama à atenção que o estado federado mais ao norte do Brasil, Roraima, possui mais fronteiras externas do que com o próprio Brasil. Vale lembrar também que Roraima depende energeticamente da Venezuela (Usina de Guri) e na possibilidade de conflito é fato que as distribuições de energia são as primeiras a serem afetadas. O Brasil não importa nada de essencial da Guiana e da Venezuela (a não ser energia elétrica). Estes países, em especial a Guiana, são frágeis economicamente e dependem mais do Brasil do que o Brasil deles. Em termos de trânsito de pessoas haveria uma intensificação de refugiados e imigrantes o que já acontece efusivamente principalmente por parte de descendentes de indígenas na Guiana10 e imigrantes ilegais que aportam em
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“Artículo 10. El territorio y demás espacios geográficos de la República son los que correspondían a la Capitanía General de Venezuela antes de la transformación política iniciada el 19 de abril de 1810, con las modificaciones resultantes de los tratados y laudos arbitrales no viciados de nulidad”. 10 Tem sido verificada crescentemente a presença de indígenas guianenses nos cinturões de miséria e nos lixões de Boa Vista, dados estes que estão sendo sistematizados por pesquisadores da Universidade Federal de Roraima. Apesar das condições sub-humanas de sobrevivência percebe-se que muitos dos imigrantes vêem o Brasil como país próspero. A este respeito: BAINES, Stephen G.. A fronteira BrasilGuiana a partir de perspectivas dos índios Macuxi e Wapichana. In: ROCHA, Leandro Mendes (org.). Etnicidade e nação. Goiânia: Cânone Editorial, 2006. No movimento inverso, aumenta o número de empresários brasileiros em Georgetown.
Georgetown. Se por um lado falar sobre a possibilidade de conflito no Essequibo soe como as ‘questionae disputatae’ de ‘quantos anjos cabem na cabeça de uma agulha’, por outro, vale o exercício de composição de um cenário de crise que permita verificar o grau de interdependência regional e, consequentemente, o dimensionamento da necessidade e da disposição para integração. Ora, pondera-se se auto-suficiência e integração não seriam dois conceitos opostos em relações internacionais. Em longo prazo, no que diz respeito à Venezuela, talvez ao Brasil interessem também outras complementaridades que não só a energética, pois os processos de integração baseados prevalentemente em combustíveis fósseis estão sujeitos ao risco de terem o prazo de validade determinado pela disponibilidade das reservas. Assim, pensar num cenário de crise no Essequibo permite avaliar o nível de sensibilidade e vulnerabilidade na tríplice fronteira norte. A militarização das fronteiras e a questão do Essequibo dizem claramente respeito aos temas de segurança regional. Contudo, ressalta-se que na tríplice fronteira norte alguns outros temas também dizem respeito à segurança e defesa das fronteiras muito embora para abranger estes pontos de forma mais eficiente a análise devesse incluir no ‘complexo de segurança’ também o arco setentrional composto por Suriname, a região administrativa da Guiana Francesa e a Colômbia. Dentre estes temas destacamse os ilícitos transnacionais e a questão indígena o que permite a adoção da terminologia securitização11. Quanto ao primeiro, muito embora no plano psicosocial o mito de Eldorado tenha despertado no imaginário regional o fascínio da fortuna fácil; na prática, a falta de fiscalização nas faixas de fronteira somada à baixa densidade populacional e à extensão das áreas protegidas favorecem a prática de crimes transnacionais de toda ordem. As malas com dinheiro oriundo de atividades ilícitas que eram transportadas nos vôos do aeroporto internacional de Boa Vista até o esquema ser descoberto em 2007 e as denúncias recorrentes de garimpos ilegais em terras indígenas são alguns exemplos ilustrativos da complexidade da criminalidade transnacional na região. O segundo tema merece uma referência circunstancial para posteriormente, aqui, ser tratado com mais propriedade. Embora na literatura haja quem avalie que a invasão do espaço aéreo brasileiro pelos venezuelanos seria uma humilhação total12 isto aconteceu – e talvez continue a acontecer. Os índios das terras indígenas Ianomâmi 11 12
A respeito do conceito de securitização e de complexo de segurança: BUZAN et alii, 1998. BERTONHA, 2008.
denunciaram que militares venezuelanos têm invadido o espaço aéreo brasileiro e descido em algumas comunidades para contatar indígenas do lado brasileiro. Os índios ofereceram denúncia e prestaram informações ao Exército e à Polícia Federal. O assunto chegou ao Plenário do Senado Nacional, mas parece que não houve desdobramentos (conhecidos!) nos meios diplomáticos13. As referências aos garimpos ilegais e à porosidade fronteiriça permitem evidenciar a relevância das áreas protegidas para a política de defesa e segurança nacional. Este assunto merece ainda uma consideração particular. É descabido afirmar que os militares e polícia não podem entrar nas terras indígenas sem autorização da FUNAI e que isto seria um sucedâneo para os indígenas estarem expostos à criminalidade transnacional. O Decreto nr. 4.412 de 07 de outubro de 2002 é claro ao garantir a liberdade de trânsito e acessos, por todas as vias, de militares e política federal como também determina que a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional poderá (grifo nosso) solicitar manifestação da FUNAI acerca de eventuais impactos em relação às comunidades indígenas. Conclui-se que alguns impasses, por exemplo, quanto aos exercícios militares nas faixas de fronteira, são mais dissensos no campo político do que no normativo. Contudo, a possibilidade de fiscalização é somente parte da solução das questões de segurança afetas aos povos indígenas na fronteira norte. Além dos ilícitos transnacionais as lutas tribais intestinas e os conflitos com fazendeiros, com repercussões no Congresso Nacional e no STF, permitem localizar os conflitos no campo da violência estrutural e da segurança humana dos quais se ocupa a literatura sobre ‘second track diplomacy’14. A militarização é um tema que confere particularidade à fronteira norte no sistema de valores de política regional. Mas é lógico que existem muitos outros movimentos relevantes. A crítica visceral ao governo americano faz de Chávez o principal candidato a sucessor de Fidel Castro no além-mar muito embora seja verdade que o governo na Venezuela não se restrinja ao discurso; que o diga o acordo com o Irã para exportação do urânio da região da Guaiana. Além disso, a postura de Chávez em relação às FARC e à dinâmica democrática venezuelana são elementos que merecem o rigor do método. O que se pode concluir dos dados apresentados até então? Que a 13
A este respeito: Mozarildo denuncia invasão do espaço aéreo brasileiro, publicado no Jornal Folha de Boa Vista em 07/09/2007. 14 Os estudos sobre second track diplomacy começaram a partir da observação das guerras tribais no continente africano e o papel de atores não governamentais nos processos de pacificação. (cf. DAVIES; KAUFMAN, 2002). Insinua-se que exista portanto espaço para a aplicabilidade destes padrões de análise nos conflitos envolvendo povos indígenas.
militarização das fronteiras e a reivindicação do Essequibo não são os elementos mais decisivos na estruturação das relações fronteiriças na fronteira norte muito embora informem o cálculo estratégico. Já, o papel da Venezuela no processo de estruturação do Mercosul continental gradualmente assume características com conseqüências sistêmicas no espetro regional; tema que será tratado na seção seguinte. 2.2. A implicações estratégicas da conformação do Mercosul continental. Impressiona a formação da aliança estratégica continental que abrange desde a Terra do Fogo até Isla Marguerita; por outro lado, a complementaridade pretendida no Mercosul setentrional não deve basear-se prevalentemente em combustíveis fósseis conforme o já aduzido na seção anterior. Coincidência ou não a crise do gás entre a Bolívia e o Brasil, e as críticas de Chávez ao Congresso brasileiro coincidiram com a aproximação do Brasil com os EUA em torno do etanol15. A diversidade da matriz energética é um tema mundial de primeira ordem, mas não é seguro pensar que a entrada da Venezuela é a alternativa energética para o Mercosul. O que a Venezuela tem a oferecer além do petróleo, da potencialidade hidroelétrica e do chocolate Pirulin? Não muito em termos de bens e serviços assim como também não é mera free rider. A longevidade energética e a potencialização da convergência política latinoamericana são dividendos inegáveis. O prova o fato de que em função de quase setenta por cento do território de Roraima estar comprometido com áreas protegidas16 – e por isto impossibilitado de aproveitar seu próprio potencial hidroelétrico - faz com que o único estado brasileiro no hemisfério norte tenha que importar energia elétrica da Venezuela a alto custo. Logo, porque não quer desenvolver sua própria matriz
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O pronunciamento do presidente LULA na abertura da Assembléia Geral da ONU em 2007 enfatizou o interesse estratégico brasileiro na expansão do regime ambiental. Neste contexto inegavelmente está a idéia do álcool como alternativa para a continuidade do uso de combustíveis fósseis. Contudo, o interesse norte - americano no etanol não pode ser avaliado também como a alternativa aos combustíveis fósseis e sim como parte do esforço de ampliação das fontes energéticas. Se o etanol não é a alternativa ao petróleo muito menos deve o petróleo venezuelano – ou o gás boliviano - ser a alternativa energética latinoamericana. O fato dos EUA investirem em diversas outras fontes e tecnologias de matrizes energéticas confirma o compasso do desejo americano pela autonomia das fontes energéticas para a auto sustentabilidade. Sobre alguns destes pontos: Everyone seems to think that ethanol is a good way to make cars greener. Everyone is wrong. In: The Economist print edition. Publicado em 27 de setembro de 2007. 16 Utiliza-se o termo ‘áreas protegidas’ em referência às terras indígenas e às áreas de proteção ambiental.
hidroelétrica o Brasil importa energia elétrica; ou seja, a disposição para a dependência passa por uma decisão – questionável neste caso - de não se ser auto-suficiente17. Por outro lado, tanto o sistema de controle de câmbio na Venezuela como a resistência de Chávez ao livre comércio e a tentativa de propor a ALBA como modelo de aprimoramento do Mercosul não podem ser desconsiderados como elementos de tensão no avanço do bloco. Confere-se particular importância também à possibilidade do discurso anti-hegemônico aparecer com maior freqüência nas reuniões de cúpula e também à expansão dos investimentos e do mercado consumidor. Tomando-se por base os desafios da fronteira norte aos quais este artigo faz menção fatores como interdependência e complementaridade adquirem maior significação dentro do conjunto de interesses do bloco sulino, mas para que isto se traduza em dividendos reais tem que haver diálogo, convergência e, principalmente, institucionalidade. É verdade que a entrada da Venezuela no Mercosul pode aumentar as tensões internas no bloco. Quanto a isto, há alguns anos atrás se interpretava a falta de coesão no bloco como um impasse ao aprofundamento das políticas de integração. A experiência ensinou às chancelarias que a pluralidade de visões pode corroborar para a legitimação das decisões e reforça a necessidade de concertação política. Neste sentido, não é negativo que o Mercosul possa ser metaforicamente um ringue desde que vigorem e sejam respeitadas regras claras de disputa e de equacionamento de divergências. Considerando particularmente o fenômeno da securitização, o avanço das políticas de integração no Mercosul setentrional possibilita a posição em bloco quanto ao regime internacional dos povos indígenas, a intensificação da cooperação militar e a implementação de políticas conseqüentes de combate aos ilícitos transnacionais que favoreçam aos interesses das soberanias envolvidas18. Os processos de integração do Mercosul que se iniciaram no começo da década de noventa sinalizavam para a concretização de estratégias regionais que confrontassem o reordenamento do pós-guerra fria. A construção do bloco sulino era também a
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Há quem entenda que os principais sítios de instalação de hidroelétricas já foram aproveitados e que a saída seria a diversificação da matriz. (cf. COSTA, 2003, 175ss) 18 As posições em Bloco não são novidades no MERCOSUL, mas certamente merece destaque o papel das discussões 3 + 1 as quais culminaram com uma declaração à imprensa em 17 de dezembro de 2002 na sede da chancelaria argentina. Neste caso, Brasil, Paraguai e Argentina + EUA trabalharam em conjunto para avaliar atividades terroristas na Tríplice Fronteira. O raciocínio aqui é simples: a posição em bloco favorece os interesses regionais, possibilita a diminuição da vulnerabilidade aos interesses externos e é dotada de maior legitimidade na construção da hermenêutica jurídica e do sistema de crenças internacional. Enfatiza-se a possibilidade da posição em bloco na questão do regime internacional dos povos indígenas.
institucionalização de um sistema mútuo de sustentabilidade das democracias recém estruturadas após os períodos ditatoriais além de politicamente caracterizado pelas medidas de confiança mútua entre Brasil e Argentina. É nesta medida que Samuel Guimarães interpretava que o Mercosul era a aliança estratégica entre Argentina e Brasil na mesma medida em que a ALCA o seria entre EUA e Brasil; pois nestes países estava o centro virtuoso da disposição política e da capacidade produtiva19. Estes elementos permitem repensar o Mercosul a partir da entrada da Venezuela. Diante da diversidade de terminologias como amazônico - caribenho, amazônico-andino ou setentrional parece que o qualificativo continental é o que melhor se adequa ao projeto na forma em que está se consolidando. Mas o que seria o Mercosul continental? As comparações com a União Européia são inevitáveis. Primeiro porque em termos jurídicos e institucionais o Mercosul sempre teve o processo europeu como modelo. Pois bem, na conformação prática a disposição para a integração parece ser mais gradual na América do Sul e as causalidades desta inércia são sempre matéria controversa. Se a falta de coesão nas negociações intra bloco é o elemento que dificulta o avanço da integração em nível institucional; com a entrada da Venezuela de Chávez a tendência à diversificação dos interesses pode intensificar-se. A novidade aqui é que a entrada da Venezuela no bloco significa uma grande força cultural em termos de integração latino-americana e isto é de fato um fenômeno novo para quem pensava estrategicamente o bloco a partir da aliança entre Argentina e Brasil. Ainda, o bloco europeu caracteriza-se entre outros pela constituição da aliança franco-teutônica como centro gravitacional político-estratégico, a incorporação gradual de países que obtêm vantagens econômicas e sociais consideráveis e a participação pendular da Inglaterra. Entende-se que embora faça parte das regras do jogo político institucional tanto a rotatividade das presidências quanto o debate democrático no Parlamento Europeu; o conjunto de idéias acerca da integração européia e de uma aliança que ofereça uma paz mais duradoura no palco europeu é profundamente dependente da convergência entre as chancelarias de Berlim e Paris. O processo de construção da EU permite evidenciar as profundas mudanças estruturais e conjunturais do Mercosul. Estruturais porque a concretização do Mercosul continental exige dos atores políticos envolvidos projetos que consigam atender às dimensões platina, amazônica, andina e caribenha. Conjuntural porque os ideais de integração latino -
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GUIMARÃES, 2000.
americanos parecem ser forças profundas tanto no imaginário social quanto do estamento burocrático venezuelano. Se esta tese se confirmar a voz e a postura pró-ativa tendem a ser características da participação da República Bolivariana da Venezuela e com isto quem sabe a tendência à expansão mais acelerada e/ou mais abrangente do bloco. Esta primeira parte do artigo enfatizou que a República Bolivariana da Venezuela é elemento chave para a definição da cooperação e desenvolvimento na fronteira norte da América do Sul e, neste contexto, atribui-se importância decisiva para região, em termos de relações estatais, aos desdobramentos da expansão do Mercosul. Complementarmente, características próprias da fronteira norte conduzem à necessidades de pensar a região a partir de categorias mais amplas do que as relações entre unidades soberanas conforme o tratado até então. A este respeito, a formação do regime internacional dos povos indígenas possibilita não somente a ampliação das categorias de análise no contexto regional→universal, mas também oferece elementos para o aprimoramento do debate científico conforme o tratado a seguir. III – Os povos indígenas e a fronteira norte da América do Sul: direito internacional e contribuição teórica. Em trabalho anterior procurou-se propor agendas de pesquisa para as relações internacionais a partir de tópicos pontuais sobre a questão indígena20. Aqui, objetiva-se aprofundar o estudo acerca da temática indígena em relações internacionais sob duas perspectivas particulares: a dos povos indígenas frente ao direito internacional e a da contribuição teórica. Entende-se que a inserção do tema dos povos indígenas na agenda de pesquisa de relações internacionais pode vir a ser uma contribuição singular dos pesquisadores sul-americanos para a construção do conhecimento no campo: é o que se pode denominar de viés antropológico ou étnico dos discursos teóricos. Se os resultados desta agenda de pesquisa irão encontrar ressonância na construção coletiva do argumento científico é resposta facultada ao tempo. 20
A este respeito: “Povos Indígenas e relações internacionais: diálogo possível?” Anais do I Encontro da Associação Brasileira de Relações Internacionais - ABRI. Neste texto elabora-se a sistematização do debate acerca da relevância da temática dos povos indígenas para as relações internacionais segundo as seguintes categorias: i) a relevância estratégica das áreas protegidas; ii) a questão da identidade nacional dos povos indígenas; iii) o direito internacional dos povos indígenas; iv) a contribuição dos estudos das sociedades primitivas para o debate acerca dos fundamentos do Estado moderno, e; v) a apropriação da temática indígena no discurso oficial governamental em política externa.
A questão indígena desdobra-se em uma série de temas que podem ser relevantes em relações internacionais; em particular na fronteira norte destacam-se temas como identidade nacional e a formação do regime internacional dos povos indígenas. Neste sentido, se quanto aos ilícitos transnacionais existem algumas semelhanças entre as tríplices fronteiras do Mercosul, a questão indígena parece ser um dado particular – mas não exclusivo - do Mercosul setentrional21. Terras indígenas como as da etnia Macuxi na fronteira com a Guiana e Ianomâmi na fronteira com a Venezuela estendem-se contiguamente através das faixas de fronteira entre os três países e, consequentemente, criam situações atípicas quanto à identidade nacional. Assim, a homologação de terras indígenas favoreceu – principalmente no Brasil - um quadro complexo que inclui a percepção de ameaça da possibilidade de fragmentação nacional, a influência de interesses conflitantes com os valores constitucionais dos países que compõem a região e a diminuição do poder de vigilância estatal. Acentua-se o ‘principalmente no Brasil’ devido ao fato de o regime jurídico que tutela os Parques Nacionais na Venezuela ser mais favorável à atuação militar nas áreas protegidas. Na Guiana, por sua vez, não se dispõe de dados que confirmem se há debilidade do controle de fronteiras ou se esta atividade estatal é ofuscada por outros temas mais prementes na agenda nacional. A este respeito, recentemente o governo da Guiana celebrou um acordo com a Inglaterra para que este país gerencie as florestas guianenses; um eco da ‘Questão do Pirara’22. Em 2005 o grupo de trabalho da Amazônia, o GTAM, composto por membros das forças armadas, da polícia federal e da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) formulou um relatório no qual se apontava a instrumentalização dos regimes ambiental e indígena para atender a interesses de ‘grandes potências’ em relação à fronteira norte. A publicidade dos dados do relatório gerou constrangimentos na burocracia brasileira e em nota à imprensa a ABIN limitou-se a confirmar que o relatório serviria de subsídio ao sistema brasileiro de inteligência e que não se manifestaria sobre o teor das
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Utiliza-se os conceitos de tríplice fronteira setentrional e meridional embora a República Cooperativista da Guiana não pertença ao MERCOSUL. 22 “A "Questão do Pirara" surgiu ainda no século XIX, quando a Inglaterra fomentou uma disputa fronteiriça com o Brasil, alegando que os índios que viviam na região reclamavam a proteção inglesa. O Brasil cedeu, e retirou do Pirara suas representações civis e o destacamento militar, reconhecendo provisoriamente a neutralidade do território indígena. Em 1842, no entanto, a Inglaterra colocou marcos fronteiriços na região, usurpando terras brasileiras para sua colônia, a Guiana. Finalmente, em 1904, o governo brasileiro aceitou o laudo arbitral da Itália, cujo parecer foi favorável à Inglaterra. O resultado da "grilagem" praticada sob o pretexto da proteção aos índios foi a perda de 19.630 km² do território nacional. (SOUZA, 2008)
informações23. Não é à toa que há indisposição notória nos quadros do serviço público brasileiro para retirar os fazendeiros que ora ocupavam as terras indígenas. Membros da Polícia Federal, da ABIN e do Exército, além de parlamentares e de setores da mídia, não concordam com os regimes jurídicos aplicados às áreas protegidas nestas regiões estratégicas24. Recentemente somou-se a esse debate a visita do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos à Corte Constitucional brasileira (STF) no final de 2007 para verificar a posição do Brasil em relação à proteção dos direitos humanos dos povos indígenas e uma iniciativa parlamentar que quer reduzir de 150 para 50 km a largura da faixa de fronteira prevista constitucionalmente. O que está em jogo, portanto, é que a dinâmica do regime internacional dos povos indígenas começa a adquirir musculatura política, mas concorre com outros valores/disposições constitucionais como faixa de fronteira e defesa da soberania. A dinâmica da securitização da questão indígena no Brasil fica evidente quando não há consenso político sobre os exercícios militares nas faixas de fronteira compreendidas nas terras indígenas - apesar do esclarecimento já efetuado em 2.1. sobre a possibilidade de fiscalização - e mais ainda com o pedido do Conselho Indígena de Roraima (CIR) ao Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU e à Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos para adoção de medidas específicas para proteger a integridade das comunidades indígenas e o seu direito a terra devido à recentes embates entre índios e fazendeiros. Acrescente-se que embora o foco deste texto seja a fronteira norte, obviamente estes elementos podem ser percebidos em outros países não somente na América. Mas qual a relevância da região da tríplice fronteira setentrional sob o ponto de vista estratégico? A região é rica em petróleo, pedras preciosas e metais estratégicos além de ser o tamponamento da América do Sul. A quantidade de ouro, estanho, biômio, manganês, urânio, bauxita, petróleo e água na região compreendida entre o delta do Amazonas e do Orinoco potencializam a capacidade competitiva do bloco sulino. Esta relevância estratégica suscita inúmeros debates acerca da denominada internacionalização da Amazônia. Mas o que viria a ser a internacionalização já que
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Fonte: http://www.abin.gov.br/abin/index.jsp, publicado em 12/05/2005. O Diretor - Geral da ABIN e seu gerente em Roraima foram substituídos. O General Maynard Santa Rosa foi demitido do cargo de Secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa e declarou que “as Forças Armadas resistem em dar apoio à Polícia Federal para a retirada dos brasileiros". (Jornal O Globo, publicado em 04 de setembro de 2007). Inúmeros outros exemplos dos conflitos de interesse podem ser observados nas manchetes dos jornais Folha de Boa Vista e mesmo O Estado de São Paulo.
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parte da região internacionalizada já é25? A presença ou trânsito intenso de estrangeiros não significa dominação estrangeira. Londres, Nova York, Amsterdã ou Frankfurt possuem forte presença estrangeira, mas isto não é avaliado como um problema de dominação (muito embora existam divergentes opiniões neste sentido). A diferença é que a Amazônia é desabitada e a atividade estatal não possui dados de controle sobre a presença estrangeira26. Embora esta seja uma forma de dizer as coisas, o Brasil não enfrenta o problema da ameaça de dominação por outra nacionalidade ou grupo de países, mas não é absurdo antever que o Mercosul setentrional possa enfrentar iniciativas de secessão legitimadas no princípio da autodeterminação dos povos. Têm-se evidências de que há interesses transnacionais de que a região norte da Amazônia seja uma região fragmentada em áreas protegidas sob o sucedâneo dos regimes ambiental e indígena. A este respeito, congressistas americanos manifestaram oficialmente que a demarcação das terras do povo Ianomâmi era um ‘teste crítico para o comprometimento brasileiro na área ambiental e de direitos humanos’27. Isto foi em 1991 e em 2007 o mesmo teste crítico não valeu para a assinatura americana na Convenção da ONU para os direitos dos povos indígenas. Até aqui, deliberadamente, antes de tratar do tema do regime internacional dos povos indígenas deteve-se na dimensão fática e valorativa que o tema possui. Na dimensão estratégica ainda é interessante propor o cenário da possibilidade de secessão. Se uma nação indígena ‘Y’ declarasse sua independência isto significaria algum problema para um Estado nacional ‘X’? A integridade nacional é um valor constitucional tão legítimo no plano interno quanto o da autodeterminação dos povos o é no plano internacional. Isto explica em parte o porquê a percepção da possibilidade de secessão como ameaça seja mais intensa dentre as forças singulares, pois estas têm sentido dentro de um conjunto de valores onde a integridade territorial do Estado é tema de primeira grandeza. A razão teleológica precípua das FFAA é a defesa contra a ameaça externa e a garantia dos valores constitucionais. Estes elementos permitem uma diferenciação fundamental: a possibilidade de secessão não pode ser confundida com os interesses de potências mundiais na fronteira norte. Isto deve ser distinguido porque não raras vezes no contexto comunicativo a ótica 25
A este respeito: MOREIRA, Felipe. A Amazônia internacionalizada: considerações sobre a fronteira setentrional, disponível em http://meridiano47.info/2007/12/13/a-amazonia-internacionalizadaconsideracoes-sobre-a-fronteira-setentrional-por-felipe-kern-moreira/, acessado em dezembro de 2007. 26 A este respeito PROCÓPIO, 2007. 27 O Fac-símile do documento do Congresso americano consta em FREGAPANI, Gelio. Amazônia: a grande cobiça internacional. Brasília: Thesaurus, 2000, pp. 123-124.
conspiracionista é um mito familiar, verdadeiro tabu. Em outras palavras, ser contrário à gradual autonomia de determinadas áreas protegidas não é necessariamente uma postura nacionalista. O que está em jogo de qualquer maneira não é a criação de novos Estados na fronteira norte e muito menos a perda de regiões estratégicas ou a incidência de interesses hegemônicos, mas sim a apropriação de sistemas de crenças ou categorias que se pretendem universais, direitos humanos, serem transformadas pelos campos de poder em perspectivas de atores sociais e políticos28. Qual a possibilidade de palestinização da fronteira norte, ou seja, de intensificação dos atuais problemas mediante a tentativa de solução dos mesmos que inadvertidamente obedeça a um sistema de interesses e vantagens comparativas de atores sociais? Neste tópico ainda procura-se debater algumas questões da conformação do direito internacional em relação aos povos indígenas. A razão histórica que conduz à formação de possibilidades e constrangimentos do direito internacional oferece a moldura da sistematização da realidade internacional e consequentemente do debate científico. A questão indígena neste raciocínio apresenta determinadas características específicas que se dinamizam na forma de forças profundas no campo jurídico, dentre elas destacam-se o caráter voluntarista estatal do direito internacional público e a conformação histórica das idéias jurídicas. 3.1. A formação do regime internacional dos povos indígenas: possibilidades e constrangimentos jurídicos e estratégicos com particular atenção à fronteira norte. Em primeiro lugar interessa que na prática do direito internacional público ainda prevalece o caráter voluntarista positivista em detrimento do denominado jus gentium baseado em crenças, padrões ou valores universalmente aceitos. O embate entre essas idéias está na retaguarda do pragmatismo ou da institucionalização do direito internacional na transição do século XX para o XXI29. Entende-se que para chegar a conclusões menos imprecisas acerca da dinâmica do direito internacional algumas sistematizações podem ser úteis. Na dinâmica da relação entre regras internacionais e 28
A este respeito: RIBEIRO, 2003. “Para mim, os rumos do Direito Internacional em expansão e em um mundo em intensa transformação, neste início de século XXI, são claros, como expostos em minhas conclusões: primeiro, um retorno às origens históricas da disciplina, mais precisamente ao ideal da civitas máxima gentium; segundo, o distanciamento do jus inter gentes interestatal, com a superação definitiva do positivismo voluntarista, de tão triste memória; e terceiro, a construção de um novo jus gentium, neste início de século XXI, de um direito universal da humanidade. Caso isto não ocorra (dado que a insensatez humana parece não ter limites), não terei sido eu quem terá se equivocado...” (TRINDADE, 2002., Prefácio).
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comportamento de atores globais, procurando-se não incorrer em desmedida generalização, podem-se identificar três sistemas de idéias: (i) o voluntarista positivista; (ii) o pragmático ficcional, e; (iii) o universalista. A aproximação destas sistematizações remete à questão da legitimidade e da história das idéias conforme oportunamente será resgatado. Para o sistema voluntarista positivista o direto internacional possui a norma como a linha divisória entre o certo e o errado nas relações internacionais. Assim, é voluntarista porque depende do engajamento formal dos Estados. Neste domínio, por exemplo, o ataque preemptivo ao Iraque levado a efeito pela coalizão liderada pelos Estados Unidos da América constituiu uma ofensa à Carta de São Francisco. Assim, existência da norma por si já confere eficácia ao sistema o que explica parcialmente – mas não justifica - a debilidade na implementação de sanções em nível mundial. À corrente voluntarista positivista interessa a precisão normativa e necessita de instâncias de legitimação revestidas de formalismo tal capaz de conferir inequivocamente clareza à identificação da autoridade e do dispositivo. Por estas características a acepção voluntarista pode ser mais bem compreendida dentro de um sistema hierárquico e burocrático. No contexto acadêmico, a linguagem, a lógica interna do sistema conceitual e a hermenêutica fazem com que esta retórica restrinja-se quase que completamente ao campo jurídico. Para o sistema pragmático ficcional o direito é visto de forma diversa na linearidade do tempo. A natureza da norma é entendida menos no contexto da legitimidade e mais no da legitimação. Para este conjunto de idéias as normas nada mais são do que crenças compartilhadas ou instrumentos de legitimação de determinada escolha política. Logo, tem-se por claro que o pragmatismo que divide o mundo em bons e maus pode sofrer uma inversão do quadro segundo as contingências comunicativas de determinada época. Uma das demonstrações mais cabais da diferença entre os sistemas voluntarista e ficcionalista é a possibilidade de mudanças no regime e, neste contexto, a possibilidade de instrumentalização dos regimes. Na realidade os regimes internacionais possuem natureza dinâmica apesar de resultarem de normas estáticas que exigem/geram comportamentos específicos dos atores envolvidos. Ora, no pragmatismo ficcional as definições da norma são menos inequívocas que para o voluntarismo positivista. Um exemplo desta ótica é a aprovação, pelo Conselho de Segurança, da Resolução nr.1368 (2001) que reconhecia o ataque terrorista às Torres Gêmeas como um ato de agressão e que conferiu o nihil obstat para a atuação
norte – americana no Afeganistão. A Carta de São Francisco dispõe sobre a possibilidade de legítima defesa em caso de agressão armada (Artigo 51 da Carta das Nações Unidas). Neste caso, o CSNU assumiu uma dimensão que não lhe é comum: interpretou a Carta das Nações Unidas extensivamente – o abalroamento dos aviões como ataque armado - a fim de possibilitar o trato de questões inéditas na seara internacional. A terceira sistematização do direito internacional público é a universalista. Dentre tantas outras divisões possíveis relativas ao estado da arte dos grandes debates culturais do direito internacional entende-se que é apropriado o apartado desta última classificação. Em primeiro lugar há uma caracterização por diferenciação. Para os voluntaristas positivistas a legitimidade do direito dá-se mediante a existência de uma norma, ou seja, legitimidade normativa normalmente dentro de um sistema hierárquico de validação. Para os ficcionalistas há que se falar em legitimação pela decisão política. O universalismo, por sua vez, lida com os instrumentos do positivismo atrelados à um processo de legitimação baseado não em decisões ou procedimentos em si mas na busca e/ou fundamentação em valores morais universais. Um dos argumentos utilizados por este sistema retórico é que tratados normalmente requerem tempo para serem negociados, adotados e entrarem em vigor30. Outra diferença é que a sistematização universalista não propõe um fator de legitimidade imediato; ou seja, determinados direitos e deveres existem não porque tem amparo numa norma definida ou numa decisão política, mas num imperativo moral. Na terceira retórica há espaço para a avaliação da natureza moral do direito, ou seja, se uma norma, decisão ou jurisprudência é justa31. A lei define a justiça, o universalismo corresponde à existência de um conjunto de comportamentos morais exigíveis e a decisão é o desejo capaz de contestar a lei e refletir sobre os códigos morais; por isso, não há como tê-los apartados. Há muito que se escrever sobre os três sistemas de idéias, o que não constitui o foco neste artigo. É 30
“Most importantly, states' adherence to treaties rarely approaches universal participation. Domestic law usually requires complex formal acts before treaties are accepted as binding. In contrast, general international law may be established on the basis of less formal indications of consent or acquiescence. This makes worldwide law possible; it cannot be done through treaties alone”. (CHARNEY, 1993, 551) 31 Um exemplo deste tipo de aproximação é a possibilidade de aprecição de decisões em última instância no âmbito nacional – como é o caso das Cortes Constitucionais – em Cortes de Direitos Humanos. Mesmo que no âmbito da soberania dos países seja tomada uma decisão pela Suprema Corte tendo por base a norma constitucional não necessariamente esta decisão é justa, honesta e apropriada. Os ficcionalistas diriam que se trata de judicialização da política mas na realidade a apreciação de decisões constitucionais por tribunais desvela uma realidade mais profunda: a da legitimação pelos pressupostos éticos.
necessário acrescentar que não se tratam de diferentes ideologias, teorias ou escolas – muito embora se possam enquadrar cientistas e políticos nas mesmas – mas sim de classificações que permitem sistematizar fenômenos do direito internacional. Algumas conclusões, contudo são necessárias para as considerações seguintes. Primeira, existe expressivo consenso de que o principal desafio do direito internacional tanto do ponto de vista teórico como prático reside na questão da legitimidade a qual resolve boa parte das equações acerca da universalidade e da compulsoriedade. Segunda, os elementos histórico, político e cultural participam ativamente da dinâmica das normas internacionais, fator este que motiva a revisão de capítulos da dogmática jurídica32. Terceiro, o fato da adoção de um texto final de uma Convenção somente inicia a verdadeira natureza do direito que é dinâmica, ou seja, a caracterização dos regimes será matizada não somente pela norma (estática), mas pelo dinamismo de diversos atores em diferentes níveis de análise. Pergunta-se: a Declaração Internacional dos Povos indígenas diz respeito a qual destas retóricas e qual a relevância desta sistematização? A aprovação da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas em 13 de setembro de 2007 representa a adoção de um texto final após duas décadas de negociação. A Convenção passa agora à tour de force para angariar o máximo de assinaturas e principalmente tentar gerar comportamento estatal em larga escala. O texto foi ratificado por 143 votos a favor, 4 contra e 11 abstenções. Os votos contrários foram dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Logo, a Convenção possui os contornos da retórica voluntarista, mas a inclusão de direitos culturais e sociais na Convenção pode avançar no sentido da formação de um regime internacional com características mais amplas. O fato da Convenção da ONU adquirir força no âmbito dos direitos humanos evidencia vetores no sistema interpretativo e de crenças que encontraram ressonância no agregado institucional. As decisões e procedimentos ocupam maior espaço no sistema internacional de normas a partir da Convenção das Nações Unidas e a legitimidade pelo procedimento (decisões e compartilhamento de crenças pelos atores globais) podem elevar um sistema de direitos da marginalidade e obscurantismo ao patamar de norma jus cogens. Surge então o dilema: seriam os direitos fundamentais dos povos indígenas mais humanos do que os dos não indígenas? 32
O estudo de TEUBNER; FISHER-LESCANO, 2004. a respeito da fragmentação do direito internacional e da colisão de regimes possui elementos informativos a este respeito.
É fato que a partir de 1945 os direitos humanos adquirem gradual expressividade no direito internacional e a Declaração Universal de 10 de dezembro de 1948 é um marco desta construção. Ora, considerando que a própria criação do Estado de Israel nada mais é que uma demarcação e restituição territorial em virtude da ocupação histórica de determinada cultura, compreende-se que não somente os denominados direitos humanos, mas também o nascedouro e, portanto a natureza mesma do direito internacional após a segunda guerra mundial possui reflexo na justiça restituinte – para diferenciar da chamada justiça restaurativa do state building – em relação aos povos que padeceram de movimentos de dominação político-cultural33. Existem então duas grandes forças ideológicas referentes aos povos indígenas que são distintas no campo da abstração lógica: uma diz respeito aos direitos humanos e outra diz respeito à restituição pelos danos e perdas levados a efeito durante processos civilizatórios. A respeito dos direitos humanos é necessário lembrar que existe o entendimento atrelado à retórica universalista de que os direitos sociais, econômicos, culturais e políticos são indivisíveis, interdependentes e interrelacionados34. Este entendimento foi reafirmado nos Preâmbulos tanto da Convenção celebrada no âmbito da OIT em 1989 (entrada em vigor em 1991) quanto no texto da ONU de 2007. Isto explica a visita do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos ao Supremo Tribunal Federal conforme o mencionado no início desta seção. Doutrinariamente então as Convenções Internacionais acerca de direitos indígenas são tratados de direitos humanos. Por outro lado se o direito deve atuar de forma sistêmica e imparcial – e principalmente as normas jus cogens que pretendem ser universais – é difícil enfrentar a realidade de que os indígenas insistem em cada vez viver menos como seus antepassados e que cada vez reclamam mais seus direitos sem viver a identidade que lhes dá suporte35. Por outro 33
MOREIRA, 2007a. “Only the full recognition of all of these rights can guarantee the real existence of any one of them, since without the effective enjoyment of economic, social and cultural rights, civil and political rights are reduced to merely formal categories. Conversely, without the reality of civil and political rights, without effective liberty understood in its broadest sense, economic, social and cultural rights in turn lack any real significance. This idea of the necessary integrality, interdependence and indivisibility regarding the concept and the reality of the content of human rights that is, in a certain sense, implicit in the Charter of the United Nations, was compiled, expanded and systematized in the 1948 Universal Declaration of Human Rights, definitively reaffirmed in the Universal Covenants on Human Rights approved by the General Assembly in 1966, and in force since 1976, as well as in the Proclamation of Teheran of 1968, and the Resolution of the General Assembly, adopted on December 16, 1977, on the criteria and means for improving the effective enjoyment of fundamental rights and liberties.”(ESPIELL, 1986) 35 BARTOLOME, M. “Consciência étnica e autogestão indígena”. In: A Amazônia e a crise da modernização. Isolda Maciel da Silveira (org.). Belém: Museu Paraense Emílio Goldi, Edusp, 1994 apud PROCÓPIO, 2007, no capítulo pelas florestas e lavrados. A este respeito não se postula o isolacionismo das comunidades indígenas (o que constitui um grande debate na práxis antropológica e etnológica); ou 34
lado, os direitos humanos aplicados às minorias étnicas não devem depender de um atavismo cultural que lhes condene à perpetuação da reprodução identitária de hábitos e comportamentos societários pré-colombianos. A relação entre a manutenção das culturas tradicionais como um requisito para a identidade e autodeterminacão e a aplicabilidade do direito internacional dos povos indígenas é um ponto de encontro para a antropologia e o direito internacional. Refrear o processo dinâmico da cultura no seio das comunidades indígenas impondo-lhes os grilhões do atavismo e impedindo-lhes a naturalidade e inevitabilidade do progressivo processo civilizatório e do diálogo cultural parece ser a pedra de toque do sistema de direitos indígenas como um todo. Talvez Adolf Bastian referisse-se a isto quando afirmou que quando as sociedades primitivas se tornam conhecidas, estão condenadas36. Considerando a legitimação no âmbito do direito consuetudinário indígena37, a controversa utilização da violência nas guerras tribais e mesmo a indicação da literatura acerca da prática de antropofagia e eutanásia38; outro desafio também é colocado: na hipótese de abuso de direitos humanos no seio das próprias sociedades indígenas: prevalecerão os direitos políticos ou os direitos culturais? Neste patamar é interessante retomar o raciocínio estratégico o qual permite evidenciar no quanto estes temas estão entrelaçados. Se, é certo que Estados cumprem normas internacionais muito mais em função de outros Estados do que em função das normas em si39 é relevante pensar nas vantagens comparativas do respeito aos direitos culturais e humanos dos povos indígenas. Retoma-se o tema da possibilidade de fragmentação da região da fronteira norte com base no direito à autodeterminação dos povos. Considerando que EUA e Inglaterra não assinaram a Convenção com base nestes parâmetros (autodeterminação) fica comprometida a tese de que os direitos indígenas fazem parte da estratégia americana, inglesa e holandesa para a possível secessão das seja, quando se reproduz em narrativas esta realidade busca-se evidenciar que as áreas protegidas existem também para que o indígena viva sua cultura. 36 Bastian apud BOSKOVIC, 2000, 8. 37 Um exemplo trivial é o caso de adultério que em alguns sistemas consuetudinários indígenas é resolvido pelo líder da comunidade e há sistemas que admitem a pena de banimento. Existem também outros casos como o de poligamia aceita pelos índios Saramacan do Suriname que gerou inclusive um julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto ao pagamento de indenizações pelo Estado a todas as esposas e filhos embora o ordenamento jurídico do Suriname não admita a poligamia (Caso Aloeboetoe et alia). 38 Fregapani faz considerações sobre o infanticídio e o canibalismo dentre os Ianomami e os postulados do antropólogo inglês Robin Hanbury-Tenison. (FREGAPANI, 2000, 107) 39 “The surprising about international law is that nations ever obey its strictures our carry out its mandates. This observation is made not to register optimism that the half-empty glass is also half-full, but to draw attention to a pregnant phenomenon: that most states observe systemic rules much of the time in their relations with other states.” (FRANK, 1988, 1)
áreas protegidas em novas unidades soberanas; mas há que se registrar a dubiedade do comportamento destes Estados que possuem um histórico de empenho no aporte às áreas protegidas. É claro, no quintal dos outros. Na composição deste cenário conspiratório, de qualquer forma, a Inglaterra parece já ter suficiente influência na burocracia e nas matas da Guiana para precisar apoiar a formação de Estados nacionais étnicos. Os EUA por sua vez têm interesses estratégicos evidentes no Alaska que arrefece o apoio irrestrito aos movimentos de secessão étnicos na América. À esta análise alguns estrategistas responderiam, no sentido do fatídico relatório do GT Amazônia que não se trata de interesses de grandes potências estatais na fronteira norte da Amazônia mas sim de grupos em nível subnacional e transnacional que recebem ou não apoio governamental. A particularidade da fronteira norte em relação à formação do direito internacional dos povos indígenas é que apesar da universalidade do tema inegavelmente as fronteiras simbólicas da Amazônia encerram um rico e complexo conjunto de relações sociais atingidas pela tutela destes direitos conforme se argumentou até aqui. Dito isto, não estranha que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha sido o primeiro corpo judiciário internacional conferir o imprimatur à progressiva interpretação de uma vasta gama de direitos indígenas e princípios que os norteiam40. Assim, a forma como os países americanos respondem à estruturação do emergente regime internacional dos povos indígenas é decisiva para o delineamento da moldura destes direitos nos termos do sistema pragmático - ficcional. Situar os direitos indígenas constantes nas Convenções de 1989 (OIT) e 2007 (ONU) no conjunto as sistematização universalista será resultado da construção deste sistema e crenças e em certa medida do comportamento das Cortes Constitucionais na América Latina que deverão decidir acerca das eventuais antinomias constitucionais. Ora, se a Corte Interamericana apreciou diversos casos é sinal que situar estes direitos no campo dos direitos humanos encontra inércia no comportamento do judiciário. Para concluir o raciocínio que relaciona o corpo de direitos internacionais dos povos indígenas – o qual pode ser entendido como o tímido surgimento de um regime internacional de proteção de minorias étnicas – há que se referir a possibilidade de controle pelas comunidades indígenas de recursos naturais contidos nas áreas protegidas a qual envolve também outro tema menos debatido na América do Sul que é a
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PASQUALUTTI, 2006, 4.
possibilidade da propriedade coletiva ser privada. A este respeito um Estado pode autorizar a exploitação – por empresas nacionais ou estrangeiras - de recursos naturais em áreas que historicamente estiveram em posse de comunidades indígenas. Estas situações ocorreram recentemente no Panamá, em Belize e na Nicarágua41. Aqui se crê que fica evidente o conflito entre valores constitucionais e internacionais já que para algumas não poucas constituições no mundo o subsolo é um bem público federal. Não surpreende então que o artigo 15 da Convenção da OIT e o artigo 26 a 30 da Convenção da ONU disponham sobre o direito de participação no uso, administração e conservação dos recursos naturais. Digno de menção também é a disposição na Convenção da ONU que os exercícios militares nas áreas protegidas somente podem ser feitos com a concordância dos povos42. No sentido da conformação do regime a doutrina e a jurisprudência da Corte Interamericana de direitos humanos têm amparado estes entendimentos das Convenções Internacionais43. O fato da jurisprudência44 e doutrina45 reproduzirem que a natureza faz parte do mundo, da religião e da identidade cultural dos povos indígenas conduz à aproximações antropológicas. A prospecção do tema dos povos indígenas sob a ótica dos direitos humanos e da cultura, inevitavelmente, conduz a sistematização científica à profundidades que os padrões de nossa ciência iluminista e racionalista não quer ou não pode alcançar. Cuida-se do inquietante tema do perspectivismo que não deve ser confundido com o relativismo na mesma medida em que as cosmologias ‘multiculturalistas’ modernas contrastam com o pensamento ameríndio46. Na próxima
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PASQUALUCI, 2006, 305. Art. 28. (…) Military activities shall not take place in the lands and territories of indigenous peoples, unless otherwise freely agreed upon by the peoples concerned. 43 PASQUALUCI, 2006, 305-306. 44 [t]he culture of the members of the indigenous communities corresponds to a particular way of being, seeing, and acting in the world, as a result of their close relationship with their traditional territory and the resources found there, not only because those resources are their principal means of sustenance, but also because they constitute an integral element in their view of the world, religion and finally, their cultural identity. (Yakye Axa Indigenous Community, supra n. 12 at para. 167. See generally Manus, Sovereignty, Self-Determination, and Environment-Based Cultures: The Emerging Voice of Indigenous Peoples in International Law’, (2005) 23 Wisconsin International LawJournal 553, para. 135, apud PASQUALUCI, ibidem). 45 Indigenous peoples can only continue to live by their traditional values if they have control of the natural resources on their lands. (idem, ibidem) 46 Sobre estes temas sugere-se o Capítulo 7 – Perspectivismo e Multiculturalismo na América Indígena em CASTRO, 2002. Entende-se que o aprofundamento discursivo de conceitos como “qualidade perspectiva”, “relatividade perspectiva” e “multiculturalismo” dificultariam o foco deste trabalho. Por outro lado, evidentemente entende-se oportuna a menção a estas agendas de pesquisa as quais complementam os temas estudados. Temas tão diversos tratados até aqui como processo civilizatório, antropofagia (canibalismo), direitos culturais e humanos e recursos naturais relacionam-se com o binômio 42
secção faz-se uma aproximação do quanto as diferentes perspectivas dos discursos teóricos informados pela antropologia, etnologia e relações internacionais podem permitir a sofisticação das sistematizações científicas. 3.2. Etnicidade e relações internacionais: possibilidade de contribuição teórica. As relações internacionais na fronteira norte da América do Sul caracterizam-se pela presença de diversas terras indígenas. As implicações estratégicas da demarcação as áreas protegidas – não só em faixas de fronteira - são inúmeras: identidade nacional, cultura e poder, direito internacional, refugiados, apelo retórico em política externa, direito costumeiro, relevância estratégica das áreas protegidas, autodeterminação dos povos, princípio da não discriminação e a proteção constitucional e internacional das minorias, constituem algumas que demonstram maior relevância. Outro elemento relevante é que os povos indígenas participam de estruturas de poder nas relações internacionais em diversas outras partes do globo o que parece sugerir que a agenda antropológica dentro do campo acadêmico das relações internacionais pode oferecer capacidade compreensiva e explicativa em outros contextos regionais. Este subtítulo ocupa-se então de explorar caracterizações dos povos indígenas para posteriormente evidenciar a possibilidade de aprimoramento dos discursos teóricos em Relações Internacionais para lidar com este fenômeno. Contudo, a referência que este trabalho faz à potencialidade da contribuição do viés étnico-antropológico está longe da propensão narcisista à fundação de novas visões, escolas, teorias e metodologias ou mesmo do desprezo aos modelos racionalistas47. Para se ter uma idéia dos fenômenos que a segunda parte deste trabalho está fazendo referência, segundo dados de 1994, a América do Sul, de uma população total de 720.647.000 de habitantes, 36.224.933 eram indígenas, ou seja, 5,03 %. Hoje se estima que os 227 povos indígenas contemporâneos no Brasil somem 600 mil pessoas o
‘perspectivismo’ e ‘multiculturalismo’ numa perspectiva muito mais objetiva e pragmática do que os conceitos parecem sugerir. 47 “(...) as regras explícitas e implícitas de reprodução do poder em nosso meio, recompensam a “inovação”, a seqüência incessante de modismos e neologismos, de tal maneira que leva ao que denomino de furor fundacionalista, um tipo de propensão narcisista que deseja fazer crer que cada autor/intérprete está, na verdade, a fundar uma nova escola, uma nova visão, uma nova teoria, uma nova metodologia. Note-se que, esta última, a metodologia, foi relegada por uma crítica desconstrucionista de inspiração pós-tudo aos porões escuros do submundo positivista, esta última palavra feia e espantalho preferido há décadas no mundo das ciências sociais”. (RIBEIRO, 2003, 4). O texto refere-se justamente à contribuição da antropologia para a agenda de pesquisa que envolva direitos humanos e poder.
que significa 0,2 % da população (em 1994 era 1,16). Como os dados de 1994 eram de 254.453 pessoas avalia-se que a população indígena tem crescido com constância. Para enriquecer o debate, estima-se que existam no mundo hoje 350 milhões de pessoas consideradas indígenas48. Duas observações devem ser feitas a estes dados. A primeira é que o ser índio é o resultado da apropriação de uma identidade e não de um elemento puramente genético49 logo, este critério identitário gera discrepâncias nos censos. Ainda quanto a este primeiro ponto a literatura indica que há maior número de indígenas onde outrora se assentavam as grandes formações estatais ou civilizações pré-colombianas50. No Brasil, a população indígena era de 66.450 a 97.350 em 1957 (dados da equipe de Darcy Ribeiro) e em 2000 de 336.919 (dados do Instituto Sócio Ambiental - ISA)51. A segunda observação é que algumas das áreas homologadas são comparativamente extensas em relação ao número de habitantes; por exemplo, a reserva Ianomâmi embora do tamanho de Portugal ou do Estado de Santa Catarina, não comporta mais do que 10 mil pessoas. Conclui-se que existem populações expressivas em crescimento regular que povoam áreas sob particular tutela jurídica. Acrescenta-se outro elemento: diversas destas áreas possuem contiguamente o mesmo povo indígena do outro lado da fronteira internacional52; em síntese, etnias indígenas que povoam espaços geográficos segundo uma lógica fronteiriça e identitária nacional diversa da aplicada aos estados soberanos e fronteiriços53. 48
Fonte: Instituto Sócio Ambiental – ISA. Disponível em: http://www.socioambiental.org/pib/portugues/quonqua/qoqindex.shtm, acessado em janeiro de 2008. 49 “Tudo isso leva à conclusão óbvia de que não se podem definir grupos étnicos a partir de sua cultura embora a cultura entre de modo essencial na etnicidade (...) é índio quem se considera e é considerado como índio. Sartre já dizia o mesmo dos judeus”. (CUNHA, 1979) 50 “É o caso da Bolívia, Peru e Equador, onde se erguia o império inca; da Guatemala, Belize e México, onde se expandiu a civilização maia; e, neste último, também a confederação asteca. Digno de nota também é que a população indígena do Chile é quase quatro vezes maior que a do Brasil, sendo preponderantemente de mapuches, que constituem um ramo dos araucanos que resistiram ao avanço do império inca, depois ao dos colonizadores espanhóis, somente cedendo no último terço do século XIX às tropas chilenas. Mesmo a Argentina tem mais indígenas que o Brasil, devido não somente à presença dos mesmos mapuches, como também aos índios andinos do seu noroeste, que também fez parte do império inca.”(MELATTI, 2004) 51 Idem. 52 Além das fronteiras abertas dos Macuxis com a Guiana Inglesa e Ianomâmis com a Venezuela a literatura indica ainda (sem esgotar os dados) que “alguns dos grupos têm também representantes no outro lado da fronteira internacional. Segundo a lista do ISA, na Guiana Francesa, há 412 uaiampis e 800 uaianas; no Suriname, 376 tiriós; e na Guiana, 130 uaiuais.” (idem, 12) 53 Prefere o termo ‘etnias’ à ‘nações’ e ‘áreas protegidas’ à ‘terras indígenas’. Uma nação pode possuir diversas etnias como, por exemplo, a nação Ianomâmi possui pelo menos quatro etnias. Entende-se que são terminologias, classificações científicas discutíveis. A este respeito a China possui pelo menos 57 etnias (fora a mongol) mas que também genericamente podem ser denominadas nações. O termo ‘áreas protegidas’ pode incluir a sujeição a regime jurídico de dupla afetação como a preservação do meio
Duas questões preliminares devem ser abordadas a tempo neste tópico. A primeira é que se prefere a terminologia fenomenologia à realidade internacional. A segunda é que se adota o termo discursos teóricos em vez de teoria de relações internacionais. Indiscutivelmente estas questões são de fundamento apesar de refletirem escolhas metodológicas. Ao reconhecer que estas diferenciações residem no campo da abstração lógica entende-se que respondem de forma mais satisfatória à exigência de alteridade – e mesmo flexibilidade – metodológica que o tema dos povos indígenas apresenta aos discursos teóricos em relações internacionais. As diferenciações às quais se faz referência assumirão maior significação no campo do discurso científico na medida em que as idéias esboçadas neste tópico forem assimiladas. Reconhecer que não existe teoria em relações internacionais é assumir que inexiste discurso científico prevalente no que diz respeito à adequação entre discurso científico e fenomenologia das relações internacionais. Como não existe uma teoria que de forma mais eficiente do que as outras concorrentes compreenda e explique a fenomenologia das relações internacionais então o que existe são discursos teóricos. Esta constatação longe de evidenciar um problema é uma assunção particular a partir da observação dos movimentos intelectuais operados na dinâmica científica. Por fim, o debate acadêmico, principalmente nas ciências sociais, é marcado pela competição dentre os modelos que façam compreender, explicar ou mesmo predizer o comportamento dos objetos estudados. Esta dissonância entre os discursos científicos é causada por diferentes percepções da realidade. Se existe uma realidade dada; uma verdade cientifica única acerca de determinado foco de análise pesquisado em relações internacionais então a discrepância dos discursos teóricos que tentam compreende-la e explicá-la evidencia que pesquisadores estão atentos a diferentes fenômenos de uma mesma realidade. Eis aqui uma rápida diferenciação entre realidade e fenomenologia nos discursos científicos. Tem-se, portanto que a realidade internacional é algo distinto do que se denomina fenomenologia e diferentes correntes teóricas apresentam discursos referentes à percepções fenomênicas distintas54. O Estado nacional desempenha um viés analítico importante na consolidação do debate teórico em relações internacionais. Nesta medida é que as primeiras lições acerca de história ou teoria de relações internacionais - enquanto disciplinas – devem fazer ambiente além de ser um termo genérico adequado à análise em relações internacionais na medida em que, por exemplo, no Brasil denomina-se juridicamente terras indígenas mas em outros países a mesma tutela constitucional assumirá outras nomenclaturas. 54 Sobre estes aspectos teóricos alguma contribuição em MOREIRA, 2007d.
referência à Paz de Vestfália como um marco fundamental para a constituição do objeto de estudo. Para fins de sistematização do debate teórico, as relações internacionais coincidem com o aparecimento do Estado nacional apto a estabelecer relações diplomáticas. Para algumas correntes as relações internacionais estudam principalmente as relações entre Estados soberanos que passa a ser um dado relevante neste campo de estudo. É claro que as correntes teóricas vão aceitar em diferentes medidas a participação de outros atores. A fim de permitir a comunicabilidade da complexidade do discurso teórico; estudos acerca do comportamento estatal ainda no começo da década de sessenta propunham os níveis de análise. Concorda-se que o Estado nacional é o principal ator em relações internacionais sob uma perspectiva racionalista e, em certa medida, no período que sucedeu o século XV. Alguns diriam acertadamente que para a corrente (ou escola) realista o Estado é o principal ator em relações internacionais. Pergunta-se então o que é o Estado e em que medida este ator é real ou simbólico em relações internacionais? Para responder a esta pergunta é necessário reconhecer pelo menos três vieses explicativos que procuram identificar o surgimento do ator estatal nas relações internacionais: o político, o jurídico e o antropológico. O político é o que identifica o surgimento das relações internacionais a partir do surgimento do Stato florentino, ou seja, a partir do aparecimento da diplomacia e da raison d’Etát55. O segundo e o mais conhecido é o do Tratado de Westfália em 1648 que põe fim à Guerra dos Trinta anos. Sistematiza-se que o surgimento do sistema westfaliano caracteriza-se pela identificação que em determinado território existe um povo que obedece a determinado poder soberano. Segundo uma terceira corrente de matriz marxista o Estado moderno surge a partir do monopólio do comércio exterior e da defesa contra a ameaça externa pelo monarca56. Esta corrente refuta veementemente a teoria westfaliana argumentando que a idéia de unidade nacional na Europa é fluida tendo em vista que normalmente a família real e os funcionários da corte nem mesmo a língua do povo falavam. O fato de estas
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“Sendo príncipes, esses mecenas estavam especialmente interessados no governo e nas relações entre governantes (...) Para resumir a, a contribuição mais significativa da Itália do Renascimento para a evolução do sistema europeu de Estados foi a concentração territorial de poder independente, de fato, e em parte, ou no todo , ilegítimo, que era chamado o ‘stato’ de um governante.” (WATSON, 2004, 218 e 230) 56 WOLF, 2003. A este respeito consultar o Capítulo: Nação, Nacionalismo e Etnicidade.
perspectivas serem convenções teóricas refutáveis remete a questão do objeto de estudo das relações internacionais para outras possibilidades de análise57. Fred Halliday argumentara que o desenvolvimento, o passado e o futuro do estudo acadêmico das relações internacionais é parte do desenvolvimento das ciências sociais como um todo, reflexo dos dilemas mesmo da sociedade. Assim, as relações internacionais não lidam com objetos determinados e o que importa é no quanto as estruturas podem ou seriam continuadas e como estas mudanças e interações podem ser mais bem administradas. Para justificar sua existência as ciências sociais ensinadas nas universidades têm que corresponder ao objeto de estudo que existe efetivamente no mundo exterior (HALLIDAY, 1995, 734). Este é o elo de ligação entre o tema dos povos indígenas e o debate teórico em relações internacionais. Somente o viés antropológico de Teoria de Relações Internacionais conseguirá dar conta da realidade da transnacionalidade, ausência ou oscilação de identidade nacional e da realidade das comunidades e áreas protegidas na região da Amazônia setentrional. Mais do que isto; considerando a realidade simbólica e ficcional da figura do Estado – demonstrado a partir do argumento dos vieses político, jurídico e antropológico - os discursos teóricos tem que estar aptos a confrontar a reinvenção do mundo, ou seja, o que Halliday chamaria de ‘capacidade de administrar’ a mudança nos ou dos padrões prevalentes de estruturação do sistema internacional. A realidade das relações sociais na região setentrional da América do Sul chega mesmo a colocar em cheque a terminologia amplamente utilizada de ‘relações internacionais na fronteira norte’ enquanto prerrogativa geográfica dos espaços fronteiriços nacionais que refletem relações étnicas, culturais ou de poder. A ciência deve reconhecer que nesta região as fronteiras são fluidas e que o fenômeno da identidade nacional em imensos espaços geográficos é rarefeito. Na perspectiva dos povos indígenas resta mais evidente ao analista de relações internacionais que as fronteiras nacionais são uma criação simbólica e ficcional de matriz eminentemente européia e que mesmo na Europa hoje estes padrões de análise muitas vezes são
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(...) the academic study of international relations corresponds to something given, undeniable objective, in the ‘real’ world: relations between states. Yet, as with nations this appearance of solidity and correspondence with reality is deceptive. In the first place, the social sciences have not always existed, any more than nations have: they have come into existence over the past century or two, in response to changes and in particular to challenges, in modern society and I the world as a whole.” (HALLIDAY, 1995, 733)
fluidos58. Apesar da contextualidade da autonomia disciplinar das Relações Internacionais questiona-se no quanto o nacionalismo metodológico não limita o campo59. O final desta seção sugere uma metáfora. No começo do século XVII foi construído um muro para proteger a cidade de Manhattan dos índios. O muro logo perdeu a utilidade - acredita-se não ser necessário argumentar em torno das causalidades - e no lugar dele surgiu a mais famosa rua do centro financeiro americano. A história de Wall Street remete à substituição das comunidades pré-colombianas pelo projeto da modernidade. Três séculos depois se vivencia o arrefecimento da prevalência das relações internacionais nucleares e a complexa rede de relações sociais na era da globalização parece sugerir que um movimento de retorno ao que existe de concreto nas relações internacionais: as relações ecológicas entre o ser humano e o território. Estados, instituições, regras e decisões são opções coletivas, construções políticas; algumas revestidas de caráter simbólico, ficcional e valorativo. As relações internacionais na fronteira setentrional da América do Sul sugerem o desafio de incluir a dimensão étnica nos modelos de análise das relações inter – estatais. As teses antropológicas de matriz marxista que aduzem que Estados nacionais surgem a partir do monopólio econômico e de segurança parecem se confirmar em Wall Street; certo é que os EUA são construídos mais em cima de uma idéia de nação do que a partir de um conjunto de raças. A relação pendular entre o apogeu do sistema de Estados e o alijamento de grupos étnicos dos grandes temas mundiais é um foco de análise interessante para a compreensão e explicação de diversos fenômenos de primeira grandeza nas relações internacionais, dentre outros, os conflitos no Oriente Médio, as guerras tribais no Continente africano, a famigerada entrada da Turquia na EU e a separação da Mongólia do conjunto racial chinês. Na literatura antropológica há quem aduza no sentido da falibilidade da aplicação ou imposição política do modelo europeu
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A revisão da literatura permitiu perceber a anuência de autores europeus com esta idéia . Em particular sobre pluralidade étnica no Reino Unido no contexto da EU cf. BOSCOVIC, 2000. Também se encontram referências fartas sobre pluralidade étnica e identidade na Europa em: HOLY, Ladislav. The Little Czech and the Great Czech Nation. Cambridge: Cambridge University Press, 1996 e VACHUDOVA, Milada Anna. Europe undivided: democracy, Leverage and integration after comunism. Oxford: Oxford University Press, 2005; além das reflexões mais recentes de Slavoj Zizek. 59 Sobre nacionalismo metodológico consultar PEIRANO, 2003. O trabalho é uma contrinbuição singular apresentada na Conference on Methodological Nacionalism, London School of Economics, junho de 2002.
de Estado nação o que terá conseqüências para a própria sistematização do conhecimento do sistema internacional60. IV – Considerações Finais: O presente artigo pretende contribuir com a sistematização de alguns fenômenos levados a efeito na fronteira norte da América do Sul agrupando-os em quatro eixos distintos: (i) segurança e militarização na tríplice fronteira norte; (ii) a conformação do Mercosul Continental; (iii) possibilidades e constrangimentos da práxis do emergente regime dos povos indígenas, e; (iv) a contribuição teórica que o viés étnico pode prestar para a sistematização dos discursos científicos em relações internacionais. Este artigo procurou uma aproximação destes temas a partir da análise da perspectiva conjuntural que possibilitasse o avanço do diálogo teórico para que as idéias aqui contidas pudessem ir além das percepções instantâneas de determinado contexto político. Contudo, a impossibilidade de constante revisão que é uma das desvantagens da cristalização do texto publicado permite normalmente aos pesquisadores a autoindulgência quanto às limitações das análises procedidas das quais este artigo não possui imunidade. O papel da Venezuela no processo de integração do Mercosul bem como a temática indígena são temas decisivos na distribuição de capacidades de poder na estruturação regional da Amazônia setentrional e, particularmente, caracterizam as relações internacionais na fronteira norte da América do Sul. Somente o fato de a Venezuela ser o país latino americano com a maior diversidade, em termos de geografia física, da fronteira norte da América do Sul – o que significa abranger savanas, desertos, selva amazônica, litoral caribenho e cordilheira andina - aponta para a complexidade das forças profundas que atuam nesta região. A questão dos povos indígenas parece ser um capítulo à parte no debate teórico em relações internacionais; pelo menos em dois sentidos. Primeiro porque as questões da etnicidade operam em dinâmicas mais complexas do que a lógica e os pressupostos racionais - legais que legitimam o Estado – Nação. Povos indígenas escapam ao modelo 60
“Na Índia, Paquistão, Sri Lanka e Bangladesh, a tentativa de construir um Estado-nação baseado no modelo europeu ocidental claramente falhou; nessa região, as marcas da e experiência do Estado-nação são pálidas quando contrastadas com a escala e a intensidade dos festivais religiosos e étnicos. Comparando o caso sul asiático com a experiência européia, Tambiah conclui que o repertório cultural desta região não possui os fundamentos para a vida cívica do Estado-nação.”. (PEIRANO, 2003).
dos níveis de análise tão caros aos métodos científicos predominantemente aplicados em relações internacionais. O segundo sentido complementa o primeiro; povos indígenas – e num espectro mais abrangente os estudos sobre identidade e etnia - importam ao debate teórico na medida em que aprimoram os métodos de análise científica e possibilitam a compreensão e explicação das relações internacionais a partir de um espectro mais amplo e epistemologicamente satisfatório das relações de poder em nível regional e mundial. Na primeira parte da análise conclui-se que a militarização da fronteira da Venezuela não parece rumar para o risco de conflito efetivo na região da fronteira norte. Avalia-se também que a partir da percepção das FFAA no Brasil e da caracterização do movimento de tropas e do armamento comprado que a dinâmica da militarização não possui expressividade para ser qualificada de corrida armamentista. Há que se notar que a intensificação da presença e da atuação das Forças Armadas venezuelanas na faixa de fronteira não é um fenômeno restrito à região do Essequibo e envolve inclusive a fiscalização do descaminho de gasolina. No final da seção fazem-se referência aos ilícitos transnacionais e à questão indígena como exemplos de temas securitizados o que é resgatado nas seções seguintes. A segunda parte da análise concentra-se na formação de cenários em termos de vantagens e constrangimentos que envolvem a entrada na Venezuela no Mercosul. A longevidade energética, a continentalidade do bloco e a conseqüente expansão da quantidade de recursos e mercados são algumas das características importantes no contexto das possibilidades estratégicas. Em particular o ingresso da Venezuela implica em elementos inéditos no avanço do bloco dentre os quais se destaca a alteridade de idéias de integração que pode intensificar a expansão do bloco em torno da tradição política bolivariana. O terceiro fenômeno analisado diz respeito à estruturação do direito internacional dos povos indígenas. Ao reconhecer que o fenômeno não é restrito à fronteira norte argumenta-se que a relação entre o emergente regime internacional com outros temas como direitos humanos e o direito constitucional pode ser percebida com maior clareza nesta região o que favorece a coleta e sistematização dos dados. Argumenta-se também que embora o tema seja universal o direito internacional dos povos indígenas é um dos principais temas das relações internacionais da fronteira norte o que explica ter em conjunto nesta seção o discurso teórico e a práxis. O caso brasileiro interessa sobremaneira ao debate político mundial. O Brasil, a despeito da recorrência
do comportamento do Judiciário em reafirmar a prevalência da norma nacional em detrimento da internacional e de pontuais reafirmações da soberania na política internacional, tem participado ativamente, no campo diplomático, dos denominados grandes temas da agenda global: meio ambiente e direitos humanos. Quando transferese o debate para as questões indígenas estas inquietações assumem contornos bem definidos: os direitos nas faixas de fronteira e a humanização dos direitos indígenas. O último fenômeno analisado faz referência à possível contribuição que o viés étnico pode prestar para a sistematização teórica em Relações Internacionais. Foca-se na conformação histórica da região enquanto área de intenso trânsito inter-nacional e principalmente da presença de diversas etnias indígenas e a relação destas com a questão da nacionalidade. Assumindo-se que a análise procedida pelos discursos teóricos em relações internacionais foca-se prevalentemente no comportamento estatal, a estruturação social da região parece apontar para a necessidade da utilização de espectros teóricos mais amplos. O fator etnicidade na fronteira norte da América do Sul evidencia que o sistema de Estados nacionais possui uma dimensão simbólica e que a identidade nacional, símbolos pátrios e fronteiras do Estado-Nação são resultados de processos de estruturação de crenças, de elementos ficcionais simbólicos que incidem de forma mais acentuada em certas regiões com elementos culturais civilizatórios característicos. Em outras palavras, o reconhecimento da relevância do fator etnicidade nas fronteiras setentrionais permite verificar com maior facilidade a construção cultural civilizatória do sistema de Estados pós-westfaliano. As relações internacionais na fronteira norte da América do Sul abarcam vetores expressivos da política internacional latino - americana. Qual a relevância efetiva destes temas é uma pergunta oportuna. A observação dos fenômenos evidencia o que existe de concreto nas relações internacionais: a relação ecológica sociedade-natureza segundo estruturações de poder. Se matrizes discursivas tanto em política internacional quanto na produção acadêmica adotam sistemas classificatórios que implicam na taxonomia de povos, culturas e regiões, então nenhum rótulo, classificação ou nomenclatura é inocente ou gratuita. Qual o lugar efetivo da fronteira norte na política internacional, regional e nacional? A resposta a esta pergunta pode ser uma constatação tanto política quanto científica, mas por que não também o resultado da apropriação de métodos que inadvertidamente promovem a indiferença em relação a relações de poder capazes de decidir o jogo no tabuleiro mundial.
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