As representações do imperador Constantino na estatuária e na epigrafia romanas Constantine as represented in statues and Latin inscriptions

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As representações do imperador Constantino na estatuária e na epigrafia romanas Constantine as represented in statues and Latin inscriptions Pedro Paulo A. Funari * Universidade Estadual de Campinas

Jefferson Ramalho ** Doutorando em História Cultural Universidade Estadual de Campinas

Resumo

Abstract

O artigo começa considerando Constantino como uma figura chave na antiguidade tardia e para a posteridade. Em seguida, volta-se para a estatuária e epigrafia latina como evidências importantes, às vezes negligenciadas, a respeito do imperador romano. O artigo trata de algumas estátuas colossais e inscrições latinas provenientes da cidade de Roma, para concluir que o uso da evidência material e da tradição literária permite um melhor conhecimento do tema.

The paper starts by considering Constantine as a key figure in late antique history and beyond. It then turns to statuary and Latin epigraphy studies as important, sometimes neglected, evidence on the Roman emperor. The paper deals then with colossal statues and some Latin inscriptions from Rome itself, concluding by stressing how the use of material and literary evidence may improve our understanding of the subject.

Palavras-chave: Constantino; Estatuária romana; Keywords: Constantine; Roman statues; Latin Epigrafia Latina. epigraphy.

● Enviado em: 02/05/2016 ● Aprovado em: 22/06/2016

* **

Professor Titular do Departamento de História da Unicamp, bolsista de produtividade do CNPq. Doutorando em História Cultural (UNICAMP), mestre em Ciências da Religião (PUC-SP), licenciado em História (UNIFAI) e bacharel em Teologia (MACKENZIE). E-mail: [email protected]

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Introdução

Constantino pode ser considerado, a justo título, um personagem da maior relevância para o curso da História. Paul Veyne1, em estudo de referência, ressaltou que nada havia de racional, predestinado ou inevitável na decisão do imperador romano do quarto século d.C. de permitir o culto cristão, em 313 d.C., e de favorecer e patrocinar a Igreja, mais adiante. O estudioso do passado sempre será tentado por uma visão teleológica da trajetória que, com o benefício de saber o que aconteceu, acaba por considerar que não havia outras possibilidades e, até mesmo, que havia uma direção providencial2. No caso de Constantino e do triunfo de uma igreja a serviço do poder, esse foi o discurso que já estava no pai fundador da historiografia

eclesiástica,

Eusébio

de

Cesarea3.

Para

a

tradição

historiográfica

providencialista cristã, a intervenção da providência divina explicaria as escolhas do imperador romano. Para as perspectivas oriundas, de alguma maneira, do ceticismo iluminista, as ações de Constantino derivariam de uma suposta consciência histórica do imperador, que pensava contar com uma poderosa instituição ascendente, a Igreja, que permitiria reconstruir as bases do poder e que lançaria as bases para o milênio e meio seguinte. Em outras palavras, esta seria uma explicação providencialista sem Deus, para permitir entender, também a posteriori, o poder da Igreja Cristã até o assalto iluminista do século XVIII. No seu momento, as escolhas de Constantino não foram nem premonitórias, nem menos ainda óbvias, ou mesmo claras. Quando o imperador permitiu o culto cristão (313 d.C.), os seus adeptos eram pouco numerosos e, quando da sua morte, em 337 d.C., continuavam a ser poucos. Mesmo décadas depois, ainda eram minoritários. Nada podia haver de óbvio ou premonitório, mas tampouco houve clareza, este o argumento deste capítulo. O predomínio da perspectiva centrada na tradição literária, em especial em Eusébio, ocultou a relevância das evidências materiais oriundas da pesquisa arqueológica. Aqui, apresentaremos de forma inicial e parcial, dois tipos de artefatos: a estatuária e as inscrições. O que emerge de um exame da materialidade ligada ao imperador é um quadro bem menos claro e susceptível de ser interpretado de um ponto de vista teleológico.

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VEYNE, P. Quant notre monde est devenu Chrétien. Paris, Albin Michel, 2007. RAMALHO, J; FUNARI, P.P.A; CARLAN, C. Constantino e o triunfo do cristianismo na Antiguidade Tardia. São Paulo: Fonte Editorial, 2016. RAMALHO, J. Eusébio e Constantino: o início de uma igreja imperialista. São Paulo: Fonte Editorial, 2013.

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1. A estatuária romana e a epigrafia latina - contexto e abordagem teórica

A tradição literária e os documentos escritos constituem, desde o início da historiografia moderna, no século XIX, o cerne da fonte de informação para o estudioso do passado4. A escrita, em geral, e aquela que se consolida pela tradição, em particular, formaram a disciplina histórica como aquela que está em busca da narrativa escrita. Por isso mesmo, a História científica, saída do Iluminismo, privilegiou o que os atores históricos e, ainda mais, os historiadores do passado relataram e quiseram passar para a posteridade. Não por acaso, a infâmia de imperadores como Calígula e Nero foi ecoada e alargada pela historiografia moderna à luz do que inimigos declarados desses príncipes escreveram, como no caso paradigmático do historiador Tácito, cuja narrativa, mais do que veraz, foi tomada como convincente5. Esta perspectiva predominou até o início do século XX, quando, cada vez mais, surgiram outras preocupações e abordagens. Em primeiro lugar, a historiografia passou a interagir com disciplinas como a Filosofia, a Sociologia, a Arqueologia, a Geografia e a Antropologia, que traziam novos instrumentos teóricos para a História. Esta foi a condição sine qua non para que os historiadores se voltassem para a ampliação substancial das suas fontes. As teorias advindas das outras ciências humanas e sociais fundavam-se, entre outros, na consideração do mundo material (Arqueologia, Geografia) e das representações por parte das próprias pessoas sobre o mundo e a sociedade (Filosofia, Sociologia, Antropologia). A historiografia começou a incorporar, de forma explícita e decisiva, tanto as fontes materiais, como as representações dos próprios atores históricos. Neste contexto, pode chegar-se a duas fontes materiais que foram essenciais nessa perspectiva que se difundiu desde o início do século XX: a epigrafia e a estatuária. O estudo das inscrições e das estátuas é, de fato, muito anterior, pois, desde a própria antiguidade, havia interesse em coletar, preservar e mesmo estudar estátuas, como atesta, entre outros, o livro segundo das Verrinas, de Cícero, dedicado a elas (de signis). Os romanos colecionavam, estudavam, reproduziam estátuas da época grega clássica e helenística e criavam estátuas próprias. Faziam-no em uma variedade de suportes, tanto em pedra, como em metal, mas chegaram até nós, em grande parte, sobretudo as líticas, pela melhor preservação. Mesmo neste caso, contudo, a pintura e o acabamento esvaneceram. As estátuas sem pintura serviram, séculos depois, no Renascimento, de inspiração para os artistas da época e ficaram, em certo sentido, como modelo pelos séculos seguintes. O antiquariato representou essa 4 5

FUNARI, P. P. A; SILVA, G. J. Teoria da História. São Paulo: Brasiliense, 2008. FUNARI, P.P.A; GARRAFONI. A Historiografia Latina. Campinas: Ed. da Unicamp, 2016.

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busca do antigo que resultaria no desenvolvimento da História da Arte e da Arqueologia, preocupadas com estilos artísticos. Dessa época já provém a busca por formas de penteado para datar estátuas e outras técnicas que viriam a caracterizar uma abordagem fundada numa espécie de exegese material, que se coadunava bem com o florescimento da exegese stricto sensu. O estudo das estátuas, portanto, chegou ao início da Arqueologia, desde meados do século XVIII e início do XIX, com sólida tradição e as escavações arqueológicas multiplicaram de maneira exponencial e o número de estátuas publicadas e estudadas, de todas as regiões do império e de todas as épocas, chegou aos milhares. Hoje, séculos depois, o estudo da estatuária antiga, e romana em particular, adquire contornos muito sólidos. Uma questão central no estudo da estatuária concerne a passagem do período do Principado (31 a.C. – 235 d.C.) àquele da Antiguidade Tardia. De fato, este último termo é uma novidade das últimas décadas, pois, antes disso, as divisões predominantes eram Alto Império (séculos I e II d.C.) e Baixo Império (séculos III e IV d.C.) ou mesmo Principado (até 192 d.C.) e Dominado (daí até o final do império no Ocidente, em 476 d.C.). Antiguidade Tardia tem sido um termo usado para caracterizar as transformações que ocorreram no Mediterrâneo a partir do século III e até o avanço do Islã, nos séculos VII e VIII6. Do ponto de vista das representações artísticas, incluindo-se aí as estátuas, há uma mudança, com um distanciamento dos preceitos gregos clássicos fundados na proporcionalidade e na simetria. Houve grande discussão sobre quando essas mudanças teriam ocorrido, quais os seus motivos e características. Para alguns, como Bianchi Bandinelli, o distanciamento dos padrões helênicos deu-se na península itálica como resultado da chegada de grupos subalternos à afluência e ao poder. De fato, houve clara ascensão social de homens novos, cavaleiros e libertos, como atestam, entre outros, personagens literários como Trimalcião, no Satíricon, mas também e principalmente a epigrafia. Em certo sentido, toda a historiografia imperial, de matriz senatorial, como Tácito, reage a essa chegada de grupos com menos tradição de acesso à cultura grega e helenística. O final do século II d.C. vê a chegada ao poder imperial de pessoas de origem provincial periférica, fato que se generaliza e se multiplica no século seguinte, com imperadores provenientes de regiões longínquas e de extração social baixa. Portanto, a tese de uma origem social do abandono dos padrões da simetria e da proporcionalidade gregas pode ser relacionada a essas mudanças sociais e políticas. Há, ainda, outras explicações, que vão do abandono gradativo e crescente do helenismo à perda de conhecimento técnico. Há diversas evidências de um distanciamento crescente da 6

FUNARI, P.P.A; CARLAN, C. U. A Antiguidade Tardia e o fim do Império Romano. São Paulo: Fonte Editorial, 2016.

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língua falada da escrita, tanto em grego como em latim. Em Pompeia, ao momento da destruição da cidade em 79 d.C., a perda de declinações está evidente, assim como a mudança da própria estrutura do idioma, com o predomínio da ordem direta das línguas neolatinas7. Já começavam a surgir representações artísticas que se distanciavam da simetria e da proporcionalidade. Na parte oriental do império, de língua grega, o idioma comum, koiné, bem atestado, entre outros, no Novo Testamento, também estava baseado em frases curtas e coordenadas, enquanto na erudição difundia-se o aticismo, inspirado no grego clássico do século V a.C. A separação das palavras, sinal de alfabetização mais ampla, começava, no século III d.C., a ser substituída pela scriptio continua que só era entendida por escribas profissionais. Portanto, tudo isso permite entender um crescente distanciamento entre os poucos que dominavam e apreciavam os ideais da proporcionalidade e da simetria, e as maiorias e novas elites periféricas. Como quer que seja, o resultado é que as estátuas do período tardio são pouco atentas à simetria e proporcionalidade e, ao contrário, estátuas gigantescas, consideradas de maior apelo popular imediato, se generalizaram, ainda que Nero, um imperador muito bem quisto pelos mais humildes, tenha já, muito antes, mandado construir uma sua estátua nesses moldes, o colosso de Nero, entre 64 e 68 d.C., com mais de trinta metros de altura. As inscrições também constituem um tipo de evidência que atraiu a atenção, em particular a partir do Renascimento com os antiquários, que colecionavam em primeiro lugar as epígrafes monumentais. Em seguida, com o surgimento da moderna ciência arqueológica, no século XIX, uma das primeiras tarefas foi publicar e catalogar as inscrições gregas e latinas em corpora, como atestam as Inscriptiones Graecae e o Corpus Inscriptionum Latinarum. Desde meados do século XIX até hoje foram publicadas centenas de milhares dessas inscrições. São informações diretas e únicas sobre a Antiguidade. Com o passar do tempo, foi possível verificar que houve um ápice desse hábito epigráfico no período do Principado, que teria correspondido com o auge da alfabetização no mundo pré-industrial. A partir do século III há uma diminuição gradativa e crescente nas evidências epigráficas e há ainda, como já mencionamos, um distanciamento entre o idioma falado e aquele registrado, mesmo nas inscrições. O século IV d.C., segundo essas evidências, teria testemunhado um decréscimo considerável de pessoas aptas a ler e a escrever e as inscrições, por isso mesmo, diminuíram em número e variaram muito quanto ao respeito à norma culta do latim e do grego. Algumas delas penderam para a língua falada, enquanto a maioria mostra um grau de artificialidade e 7

FUNARI, P. P. A. Aspectos de la cultura popular romana a partir de Pompeya: arte, erotismo y sensibilidad en el mundo romano. Barcelona: Editorial Académica Española, 2012. v. 133.

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rebuscamento que torna difícil saber o quanto chegavam às pessoas comuns. O mais provável é que os poucos letrados traduzissem para o vernáculo grego e latino. Estas as circunstâncias das estátuas e inscrições que trataremos neste artigo.

2. As representações de Constantino na estatuária e na epigrafia romanas do século IV

Da mesma maneira que os escritores construíam seus discursos, tornando-os instrumentos de propagação de uma opinião específica, tanto de caráter político como religioso, por meio da tradição literária, sobre a qual em um breve exercício comparativo trataremos de maneira mais direta no último tópico, as fontes materiais também tinham suas funções ideológicas. “As estátuas dos imperadores romanos, por exemplo, nos induzem a aceitar a importância desses personagens para a história. Esses artefatos reforçam uma ideologia dominante”8. E se formos tratar de objetos arqueológicos que se encontram em museus, como é o caso das estátuas de Constantino que observaremos, haverá uma conotação ideológica até na forma como tais materiais são expostos. Também é de suma importância destacar o aspecto subjetivo que há na essência dessas representações de um imperador romano. Da mesma forma que há autores por trás das produções literárias que o descreveram, cada qual ao seu modo, como são os casos do já mencionado bispo e escritor Eusébio, do retórico cristão Lactâncio ou ainda do jurista pagão Zósimo, por trás das representações artísticas também existem pessoas que tinham como objetivo primordial expressarem seus sentimentos, opiniões e ideologias9. No presente artigo, optamos por tratar apenas de duas estátuas de Constantino que estão expostas em Roma e que são datadas do próprio século IV e de três inscrições em latim que lhe foram dedicadas. Não que consideremos tais fontes como sendo mais importantes do que outras que também representaram Constantino em seu próprio tempo. Nossa escolha tem a ver, sobretudo, com os problemas e particularidades que essas estátuas e inscrições apresentam, sobretudo, quando comparadas com as informações predominantes na tradição literária da própria Antiguidade Tardia. Dialogando com historiadores e arqueólogos que já trataram de investigar com cuidado tanto as estátuas como as inscrições latinas que mencionaremos a seguir, perceberemos que, mesmo após 312, ano citado com frequência como o da adesão à religião

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FUNARI, P. P. A. Arqueologia. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2014, p. 34. FUNARI, P. P. A. Antiguidade Clássica: a História e a Cultura a partir dos documentos. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 22.

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dos cristãos por parte de Constantino, essas fontes materiais não fizeram a mínima referência à nova crença religiosa do imperador. O curioso dessas estátuas e inscrições tem a ver tanto com a ausência de referências explícitas ao cristianismo como com certa utilização de expressões que seriam aceitas tanto por pagãos como por adeptos dessa religião ainda em processo de legalização. Primeiro, então, verificaremos as duas estátuas para, na sequência, observarmos o que nos tem a dizer as referidas inscrições latinas.

2.1. Estátuas colossais de Constantino

As duas estátuas que chamaram nossa atenção para a presente abordagem são as que se encontram expostas nos conhecidos Musei Capitolini, em Roma. O curioso, a princípio, é que ambas são estátuas colossais do mesmo imperador e que não estão completas, mas fragmentadas. No caso dos fragmentos da estátua de mármore exposta no pátio do Museo del Palazzo dei Conservatori é possível elucidar mais hipóteses e conclusões, pois além de possuir maior número de fragmentos, essa estátua, mesmo incompleta, já foi analisada e interpretada por diferentes estudiosos que chegaram até mesmo a sugerir e ilustrar uma reconstituição de sua forma original. Quanto à estátua em bronze exposta em outro espaço conhecido como Esedra di Marco Aurelio há poucos fragmentos, possibilitando assim poucas conclusões. No entanto, já é possível, a partir da observação dessas peças e, sobretudo, de um diálogo com estudiosos que já as exploraram anteriormente, pensar nos problemas e particularidades que tal estátua apresenta. Para pensarmos acerca da estátua colossal de mármore, dialogaremos com os estudiosos Jonathan Bardill10 e Hartwin Brandt11. Ambos trataram das especificidades dos seus fragmentos, desde as dimensões à materialidade, explorando os significados possíveis de sua construção no século IV e comparando-a com aquela mencionada por Eusébio (263-339), escritor cristão e biógrafo de Constantino, em suas obras História Eclesiástica e De Vita Constantini. A primeira questão importante a ser considerada tem a ver com o fato de que a estátua colossal feita em mármore ficava na Basílica de Maxêncio, em Roma, segurando em sua mão direita algum símbolo imperial correspondente à vitória de Constantino e seu exército na Batalha da Ponte Mílvia, em outubro de 312. Ao todo, são dez fragmentos feitos de mármore

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BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. BRANDT, H. Constantino. Barcelona: Herder Editorial, 2007.

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branco proveniente de Carrara, na Toscana, e da ilha grega de Paros 12. A hipótese de que ela foi mantida por longo tempo na Basílica de Maxêncio tem a ver com fato de que foi ali, em 1486, que alguns desses fragmentos começaram a ser encontrados e encaminhados de imediato ao Palazzo dei Conservatori por ordem do papa Inocêncio VIII13. A basílica era um edifício com finalidades políticas e comerciais. Apesar das dúvidas apresentadas por Brandt acerca dessas datas14, afirma-se que ela foi construída no Fórum Romano a partir de 306, por Maxêncio, o qual, após ser derrotado na referida batalha em 312, perderia o poder da capital para Constantino, que concluiria a construção do edifício em 313. Entre as dez partes da estátua, destaca-se a cabeça com 1,74m do queixo à coroa, mas com 2,60m ao todo, do tronco à coroa. Essas dimensões possibilitam-nos estimar que toda a estátua em seu tamanho original pudesse medir cerca de sete a oito vezes a mais que a estatura natural de uma pessoa15. Diante disso, é considerável a possibilidade de que a estátua tenha sido construída para ficar sentada abaixo de uma das abóbadas da basílica e sustentada por uma grande plataforma de aproximadamente 6m de largura que lhe servia de base. Se assim for, a altura total da estátua sobre a base mediria cerca de 15m, já que a mão direita segurava um objeto – provavelmente um cetro – que mediria cerca de 3m a mais que a própria estátua16. Um detalhe curioso encontra-se na parte de trás da cabeça. Ela não é completa, mas concluída de maneira abrupta logo após as orelhas, dando a ideia de que ela se encontrava apoiada na parede da basílica. Com isso, essa imagem de Constantino diferencia-se, por exemplo, da sua cabeça completa, em mármore, também colossal, exposta no The Metropolitan Museum of Art, em Nova York, medindo 0,95m. Apesar da semelhança, a cabeça da estátua de Roma é nitidamente uma parte de uma grande estátua enquanto que a cabeça colossal que se encontra em Nova Iorque, também datada do século IV, ao que tudo indica fora feita originalmente para ser um grande busto. A posição da estátua e, em particular, das pernas, que conquanto não tenham sido encontradas por inteiro entre os fragmentos, pode ser deduzida a partir dos pés que permanecem intactos. O pé direito posicionado de forma fixa ao chão e o pé esquerdo com o calcanhar levantado como que se atraindo para trás dão a impressão de que a estátua fora

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BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 203. POHLSANDER, H. A. The Emperor Constantine. 2. ed. London: Routledge, 2004, p. 86. BRANDT, H. Constantino…, p. 45. POHLSANDER, H. A. The Emperor Constantine…, p. 86. BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 203.

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feita sentada sobre um trono, possibilitando, a partir de todos os fragmentos que resistiram ao tempo, que ela seja reconstituída por inteiro. Algumas características dessa representação de Constantino, tais como o rosto barbeado, o queixo com covas e o nariz aquilino e afiado, são próprias das estátuas desde Constâncio Cloro, seu pai. O propósito, por exemplo, do nariz e do queixo pontudos era o de legitimar a sua dinastia. Os olhos também são bem característicos, pois foram esculpidos em formato grande e profundo, dando a impressão de que o imperador está olhando para o céu. Este olhar fixo para o alto poderá simbolizar a ideia de inspiração divina; contudo, o mais provável é que represente a noção de divindade do próprio imperador, tal como já ocorria em algumas moedas, nas quais ele é representado usando um diadema e com a cabeça inclinada olhando para o alto17. Entre os dez fragmentos, portanto, estão: a cabeça colossal, os dois pés, os dois joelhos, o antebraço direito com o cotovelo, a canela esquerda, o pedaço de uma coluna e, por fim, duas mãos direitas18. Eis um problema que a estátua traz consigo: por que duas mãos direitas? As duas mãos fizeram parte da estátua? Qual delas é a original? Por que houve uma troca? Uma das mãos tem 1,61m de altura, terminando no início do polegar e contém um furo para possível fixação ou encaixe de alguma peça que não resistiu ao tempo. É provável que neste furo passasse um longo cetro que a estátua segurava. O antebraço direito com cotovelo que resistiu ao tempo demonstra que na estátua ele encontrava-se levantado projetando-se de maneira horizontal a partir do ombro19. Da mesma forma que a cabeça, a parte de trás do antebraço direito encontra-se cortada para que pudesse ficar encostada na abside da basílica. A outra mão direita chega a ser quase idêntica, pois é similar em tamanho, estilo e técnica20. Também compõe os fragmentos da estátua colossal de Constantino, todavia é um pouco maior que a primeira, medindo 1,66m de altura. Descoberta próximo ao Capitólio em 1744, essa mão terá sido a original da estátua ou então será aquela que terá substituído a primeira. Ambas possuem datação aproximada e, de qualquer maneira, uma delas teria sido substituída pela outra. Outra hipótese acerca dessa segunda mão direita prefere entendê-la como sendo parte de outra estátua, já que a espessura do seu punho é incompatível ao antebraço direito encontrado na basílica, a menos que na ocasião da substituição, outro braço ainda não encontrado também tenha sido feito para ser adicionado à estátua21.

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BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 204. POHLSANDER, H. A. The Emperor Constantine…, pp. 85-89. BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 206. BRANDT, H. Constantino…, p. 45. BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 209.

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A troca da mão direita ou mesmo de todo o braço pode ser pensada a partir de um paralelismo com a citação de Eusébio acerca de uma estátua já existente de Constantino que teria recebido um sinal cristão – possivelmente a cruz – logo após sua vitória sobre Maxêncio na Batalha da Ponte Mílvia. Outra perspectiva preferirá situar essa substituição da mão direita no mesmo período em que os olhos foram refeitos com o intuito de representar o imperador olhando para o céu e o diadema foi adicionado para celebrar a sua vitória sobre Licínio, em 32422. Parece indiscutível que essa estátua passara por modificações, mas também parece incerto que tais mudanças tenham obrigatoriamente a ver com a adesão de Constantino à religião dos cristãos. Outra estátua colossal de Constantino acerca da qual queremos abordar é aquela feita em bronze dourado e que também está exibida nos Musei Capitolini, em Roma. Embora também esteja exposta em fragmentos, diferencia-se da anterior por haver apenas quatro peças, as quais, inclusive, podem não pertencer à mesma estátua. Este é o primeiro problema em torno dessa fonte. Provenientes de área próxima à Basílica lateranense, os fragmentos foram removidos para a região do Capitólio por ordem do papa Sisto IV, no ano 1471. Os fragmentos existentes dessa estátua em bronze são: uma cabeça, um pé direito com os dedos quebrados, exceto o polegar, e a mão esquerda com o dedo indicador e o dedo médio quebrados, além de um globo adicionado a uma ponta de ferro que, ao que tudo indica, era segurada por essa mão esquerda. Vale ressaltar que essa peça que representa a mão esquerda chega a ter ainda todo o pulso com pequenas danificações, medindo ao todo 150 cm, segundo informam-nos os Musei Capitolini. Embora não possamos ter certeza absoluta de que são fragmentos de uma mesma estátua, Gian Luca Gregori tem argumentado que a proveniência do mesmo contexto e a compatibilidade das dimensões são informações que fortalecem a hipótese de que sejam peças de uma mesma estátua colossal de um imperador em pé, medindo entre 10 e 12m de altura, sem excluir a possibilidade de que a cabeça faça parte de outra estátua em posição sentada23. De acordo com os Musei Capitolini só a cabeça mede 1,77m e a datação possível situa-se entre 330 e 337. Representando Constantino com um rosto barbeado, expressivo e carnudo, a estátua destaca os longos cabelos penteados de forma ordenada sobre a nuca e, na frente,

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BRANDT, H. Constantino…, p. 46. GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”. In: Barbera, Mariarosaria (org.) Costantino 313 d.C. Milano: Electa, 2013, p. 86.

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forma uma franja em cachos de orelha a orelha. Detalhes da expressão do rosto levam-nos a pensar que se trata de uma representação de um Constantino já maduro, pois há rugas em volta dos grandes olhos e nas laterais da boca e do nariz aquilino, semelhante nesse aspecto ao nariz da estátua colossal em mármore. As sobrancelhas grossas também parecem evidenciar a maturidade física do imperador. Outro problema que existe em torno dessa estátua tem a ver com o fato de que por algum tempo houve diferentes interpretações acerca de quem ela estaria representando. Como não se sabe em que local essa estátua foi originalmente exposta24, a hipótese de que ela tenha se referido a Constantino nem sempre foi unânime. Já se defendeu que essa estátua fosse uma imagem de Nero, de Domiciano, de Constâncio I, pai de Constantino, ou até de seu filho Constâncio II. Porém, é sua semelhança tanto com a estátua colossal de mármore comentada acima como com os anversos de moedas cunhadas entre 330 e 337, o argumento mais favorável da opinião de que essa estátua colossal de bronze esteja mesmo representando Constantino25. Outra representação imagética paralela a essa de bronze exposta nos Musei Capitolini é uma estátua de Constantino também feita em bronze, encimada por uma coroa radiada, segurando um globo com a mão esquerda e um cetro com a mão direita, que se encontrava exposta sobre a Coluna de Constantino, construída e consagrada no ano 330 no Fórum de Constantino, em Constantinopla, com uma altura original maior que 35m, que é a medida atual26. Para Bardill, os fragmentos colossais de bronze que estão em Roma, representando Constantino após 330 ou então o seu filho Constâncio II, podem dar uma impressão da aparência da estátua que estava sobre a coluna de pórfiro, em Constantinopla27. De qualquer forma, sugeriu-se que a estátua em bronze dourado que se encontra em Roma tenha sido, em certo momento, adornada não com um diadema de joias, como nas imagens de Constantino em moedas dos anos 330, mas com raios angulares que saíam de sua cabeça. Se na cabeça dessa estátua havia originalmente tais raios e se de fato sua mão esquerda segurava um globo, ela não só tinha aparência semelhante à estátua perdida que ficava sobre a coluna de pórfiro em Constantinopla28, como também, com a mesma finalidade,

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BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 35. GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 86. ODAHL, C. M. Constantine and the Christian Empire. London: Routledge, 2004, p. 214. BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 34. BARNES, T. Constantine: Dynasty, Religion and Power in the Later Roman Empire. Oxford: Wiley Blackwell, 2014, pp. 23-26.

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associava o imperador Constantino ao deus Sol Invictus29, cerca de vinte anos após a sua adesão à religião dos cristãos.

2.2. Inscrições latinas dedicadas a Constantino

Para percebermos a ausência de categorias cristãs em vestígios materiais relacionados a Constantino, podemos recorrer também às epígrafes que eram registradas em bases de estátuas erigidas já a partir de 312, ano no qual o imperador teria supostamente aderido de forma pessoal à religião dos cristãos. Não que inscrições que legitimem a propagação do cristianismo sejam inexistentes; ao contrário, elas existem e têm sido amplamente exploradas e estudadas30. Contudo, interessa-nos pensar a partir de inscrições que, apesar de suas datações, não têm em seus registros qualquer menção à nova religião pessoal do imperador. Perspectivas favoráveis à conversão de Constantino dirão que, assim como pode ser percebido por meio da análise de moedas posteriores à conversão relatada por escritores como Lactâncio e Eusébio, a ausência de símbolos e palavras de caráter cristão demonstra nada mais que a tolerância e a benevolência do imperador em não impor sua religião pessoal, usando-se do poder para fazê-lo. Todavia, preferimos pensar na referida omissão como parte da estratégia política de Constantino em legitimar o seu poder perante o Senado e a sociedade31. Tal estratégia pode ser observada não apenas na eventual omissão de símbolos cristãos, mas também na permanência de símbolos pagãos em moedas, relevos, inscrições e estátuas32. No presente artigo trataremos também dos resultados obtidos pelo estudioso Gian Luca Gregori após suas análises em inscrições honoríficas esculpidas em duas bases de estátuas e em uma placa de mármore fixada ao parapeito de uma ponte reconstruída por ordem imperial. Embora Gregori tenha analisado inscrições dedicadas a Maximiano, Maxêncio, Constantino e até a Helena, mãe de Constantino, optamos por estudar apenas três inscrições concernentes a Constantino. A primeira inscrição sobre a qual trataremos é uma base de estátua entre as investigadas por Gregori, e encontra-se localizada próximo à Cúria do Fórum Romano, em 29

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31

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LENSKI, N. E. The Cambridge Companion to the Age of Constantine. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 77. COOLEY, A. E. The Cambridge Manual of Latin Epigraphy. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, pp. 228-250. CARLAN, C. U. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação. São Paulo: Annablume, 2013, pp. 127-170. BARNES, T. Constantine: Dynasty, Religion and Power in the Later Roman Empire…, pp. 16-26.

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Roma. Feita em mármore branco, mede 124 cm de altura (4,2 pés romanos), 70 cm de largura (2,3 pés) e 58 cm de espessura. As letras esculpidas no mármore medem entre 3 e 5,5 cm de altura (entre 1,6 e 3,0 dígitos romanos). Apesar da bela decoração em moldura, o canto superior direito encontra-se danificado. Sobre a face superior é possível identificar o recuo no qual a estátua era encaixada à base33. Com datação situada entre outubro de 312 e setembro de 324, essa base omite o título Maximus Augustus a Constantino, o que implicaria numa datação mais recuada. Com isso, a peça poderia ser datada em, no máximo, até 315. Mas, outras expressões presentes na inscrição sugerem que uma data mais próxima de seu triunfo sobre Licínio seja mais provável. A inscrição foi esculpida sobre um texto anterior e que fora apagado para que a mesma peça fosse aproveitada, pois ainda há vestígios da dedicação mais antiga, cuja data seria cerca de setenta a oitenta anos antes. O texto latino traz os seguintes dizeres: Domino nostro / Constantino Pio / Felici Inuicto / Et beatissimo / Semper Augusto / Filio diui Pii / Constanti Augusti / Appius Primianus / V(ir) p(erfectissimus) Rat(ionalis) / Summ(arum) priuat(arum) numini m(aiestati)q(ue) / Eius dicatus

Nossa tradução ficou da seguinte maneira: Ao nosso senhor Constantino, pio, bafejado pela Sorte, invicto, abençoado, sempre Augusto, filho do divo Pio Constâncio Augusto, Ápio Primiano, varão perfeitíssimo, responsável administrativo pelo patrimônio imperial, devoto ao númen e à majestade dele, .

Parece-nos claro, após a tradução da inscrição e a análise de Gregori que seguimos, que essa homenagem foi feita a Constantino por um alto funcionário imperial. Tratava-se de uma estátua erigida próximo à sede dos encontros senatoriais, cujo simbolismo para Roma tinha significativa importância. Aparecem na inscrição títulos que já eram comuns na identificação dos soberanos romanos da Antiguidade Tardia. Enquanto os epítetos Pius, Felix e Beatissimus demonstram a noção de reino providencial, o título Imperator Caesar é substituído por Dominus Noster, ou seja, Senhor Nosso. Simultaneamente, Constantino tem a legitimação de seu poder confirmada a partir da memória de seu pai Constâncio Cloro. Isso se evidencia tanto na expressão Semper Augustus, que o reconhece como Augusto do Ocidente como quando se

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GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 77.

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diz Filio diui Pii Constanti Augusti, associando-o à divindade (Diuus) reconhecida em seu pai logo após morte deste em 30634. Foi apenas quatro anos depois que Constantino adotou para si o epíteto Inuictus que o reconhecia perante seu cunhado Maxêncio, sobre quem triunfaria em 312. Esse reconhecimento, que tinha como objetivo essencial a sua legitimidade política permaneceu até 324, quando venceu seu outro cunhado Licínio. A partir de então, o título Inuictus foi substituído por Victor. Constantino expandiu seu domínio por todo o Oriente grego e a incorporação do epíteto Victor nos títulos imperiais após seu triunfo demonstram seus objetivos de defender todo o Império, restabelecendo o modelo monárquico e legitimando-se como vencedor perene35. Resta saber quem é Appius Primianus. Trata-se de um possível gestor de pequena grandeza, em termos hierárquicos, pelas receitas imperiais de um local específico do Ocidente, sob o domínio de Constantino. Essa interpretação confirma-se quando Appius Primianus identifica a si próprio como V(ir) p(erfectissimus) Rat(ionalis) / Summ(arum) priuat(arum), ou seja, varão sobremaneira perfeito e responsável administrativo pelo patrimônio imperial. A segunda inscrição é uma placa com o ângulo inferior direito danificado. É grande a possibilidade de que seja uma peça que foi fixada ao parapeito de uma ponte restaurada por ordem de Constantino. Apesar da superfície bastante gasta, é possível identificar o que diz a inscrição:

Diuina singularisque clementia / Dominorum nostrorum / Constantini maximi uictoris / Semper Augusti / Et et Constantini nobb / Caess. Interruptum iter pontis signini / Operis refectione restitui sua / Pecunia iusserunt / Curante pubblice Q(uinto) Ceionio Caecina / Vero u(iro) c(larissimo) curatore aluei Tib(eris) et cloacarum / S(acrae) u(rbis) d(euoto) n(umini) ma(iestati)q(ue) eorum

Nossa tradução para essa inscrição ficou do seguinte modo:

A divina e singular clemência dos nossos senhores Constantino Máximo, vencedor, sempre Augusto, e Crispo e Constantino nobilíssimos Césares, ordenaram restaurar com seus próprios recursos, por meio da reconstrução do piso em opus signinum, o caminho interrompido da ponte. Sob a responsabilidade pública de Quinto Ceiônio Cecina Vero, curador do canal do Tibre e das cloacas da cidade santa, devoto ao númen e à majestade deles.

34 35

GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 77. BRANDT, H. Constantino…, pp. 101-109.

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Um dos objetivos dessa inscrição é tornar pública, de maneira simbólica, a generosidade imperial ao restaurar a estrada sobre a ponte. Essa dedicação epigráfica, feita em um mármore cinzento e medindo 148,5 cm de altura (um passo romano ou cinco pés), entre 85 e 94 cm de largura e entre 18,5 e 22 cm de espessura, encontra-se no jardim frontal do Museu Arqueológico de Óstia e não seria a única peça relacionada a obras de restauração ou mesmo de construção que foram promovidas pelo imperador. O tamanho das letras dessa inscrição varia, pois mede entre 4,3 e 7 cm de altura (entre 2,3 e 3,8 dígitos)36. Nos dizeres são mencionados Crispo e Constantino II, filhos de Constantino. No caso de Crispo, seu nome será apagado em algum momento, pois será morto em 326 a mando de seu pai37. Ambos tinham sido, em 317, promovidos por Constantino à condição de Césares e a suposta utilização de recursos próprios na restauração mencionada faz com que eles, ao lado do pai, recebam a homenagem como forma de reconhecimento por parte de quem a dedicou. A propósito, o responsável por essa inscrição, Quinto Ceiônio Cecina Vero, neto ou sobrinho de um cônsul chamado Caeionius Rufius Volusianus, que fora chefe pretoriano de Maxêncio até, ao mudar de lado em 312, tornar-se membro do comitê imperial de Constantino38, era o curador do leito do rio Tibre, função destinada a ex-cônsules desde o ano 15 d.C. O imperador Trajano, cerca de cento e cinquenta anos mais tarde, ampliaria essa função pública, incluindo o trabalho de responsabilidade pelos canais de esgoto de Roma 39. De acordo com Gregori, a datação dessa segunda inscrição que observamos tem sido situada entre 18 de setembro de 324, logo após a vitória de Constantino sobre Licínio, e 8 de dezembro daquele mesmo ano, quando Constantino II recebera a promoção à categoria de César. Há que salientar que Crispo e Constantino II eram filhos de mães diferentes. Enquanto Crispo era filho de Minervina, primeira esposa de Constantino, Constantino II era, com mais quatro irmãos, filho de Fausta, irmã de Maxêncio, e que será morta a mando de seu esposo em 32640. A terceira e última inscrição que observaremos, daquelas analisadas por Gregori, tratase de uma base de estátua feita em mármore branco, como a primeira que verificamos. Esta também situada no Fórum Romano, próximo à Fonte de Juturna, mede 87 cm de altura (3 pés), 48,5 cm de largura (1,6 pés) e 43,5 cm de espessura, com as letras esculpidas variando entre 3,5 e 5,5 cm de altura (entre 1,8 e 3,0 dígitos). Gregori, fundamentando-se em 36 37 38

39 40

GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 77. BRANDT, H. Constantino…, p. 100. MARTINDALE, J. R. “Prosopography of the Later Roman Empire” Addlenda et Corrigenda to Volume I, In: Historia, 29, 1980, p. 495. GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., pp. 77-78. BRANDT, H. Constantino…, pp. 98-101.

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informação registrada no lado esquerdo da base de mármore, afirma que a data precisa dessa inscrição é 1º de março de 328, o que temos confirmado após nossa tradução do texto latino. Existe uma pequena mutilação no ângulo superior direito da peça, sua face superior possui os comuns recuos de encaixe para a fixação de uma estátua e seu painel epigráfico foi delimitado por uma moldura que se encontra em ótimo estado de conservação41. Gregori informa-nos que essa base de mármore foi transportada já no início do século IV de uma área próxima ao pórtico de Minucius, onde encontrava-se desde o Alto Império, para uma área do Fórum Romano, próximo à fonte Juturna que, portanto, não terá sido seu local de origem. O texto em latim da inscrição diz o seguinte:

Optimo et uenerabili / D(omino) n(ostro) Fl(auio) Constantino / Máximo uictori Pio / Semper Aug(usto) / Fl(auius) Maesius Egnatius / Lollianus u(ir) c(larissimus) curator / Aquar(um) et Minic(iae) / D(euotus) n(umini) m(aiestati)q(eu) e(ius) / Dedicata cum statione / A Fl(auio) Lolliano c(larissimo) u(iro) cur(atore) / Kal(endis) Martis / Ianuarino et Iusto conss(ulibus)

Nossa tradução para essa última inscrição ficou do seguinte modo:

Ao ótimo e venerável senhor nosso Flávio Constantino, máximo, vencedor, pio, sempre Augusto, Flávio Mésio Egnácio Lolliano, varão claríssimo, curador dos aquedutos e da Minícia, devoto ao númen e à majestade dele, . A estátua foi dedicada junto com a estação, por Flávio Loliano, claríssimo varão, curador; nas calendas de março, sendo cônsules Januarino e Justo (primeiro de março de 328 d.C.).

De acordo com a análise de Gregori, essa dedicação foi dirigida em favor de Constantino, exaltando-o como figura pública, o que pode ser percebido no reconhecimento explícito da inscrição que faz referência a ele ao iniciar-se com a expressão Optimo et uenerabili. É provável, inclusive, que esse reconhecimento faça alusão à figura do imperador Trajano que fora, em seu próprio tempo, reconhecido como o Optimus Princeps por excelência42. Quem dedicou essa homenagem a Constantino foi um senador chamado Flavius Maesius Egnatius Lollianus, membro da aristocracia e da administração urbana de Roma, curador do Tibre e de diversas obras públicas, inclusive aquedutos43, e também responsável 41 42 43

GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 78. GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 78. CAMERON, A. The Last Pagans of Rome. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 159.

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por outras inscrições anteriores. Apesar de pagão, o escritor cristão Firmico Materno o homenagearia em uma de suas obras, reconhecendo a importância dos seus trabalhos de urbanização e o próprio Constantino o nomearia governante da região de Campania, ao sul de Roma, superintendente da diocese do Oriente (comes Orientis), membro da alta hierarquia do comitê imperial ou corte dos Flávios (comes Flavialis) e, por fim, procônsul da África44. Nota-se que a carreira bem sucedida de Flavius Maesius Egnatius Lollianus valeu bem mais que uma inscrição. Além disso, chama-nos a atenção o fato de que a sua identidade pagã não representou o mínimo impedimento para que crescesse como homem de confiança do Império. Mesmo após a morte de Constantino, tornou-se prefeito urbano sob o governo de Constante I, em 342. Em 355, quando o Império já se encontrava sob domínio de Constâncio II, tornou-se cônsul e, na sequência, prefeito pretoriano da região da Ilíria, morrendo no ano seguinte45.

3. Encontros e desencontros com a tradição literária

Para pensarmos em uma brevíssima leitura comparativa entre o que observamos nas fontes materiais comentadas acima e aquilo que se encontra registrado nas fontes literárias já do início do século IV que se encarregaram de apresentar Constantino, optamos por dar atenção maior apenas às questões que as aproximam, seja quando convergem ou quando divergem naquilo que informam. Uma questão que, por exemplo, pode ser levantada tem a ver com a possibilidade de que a estátua colossal de mármore que se encontra exposta nos Musei Capitolini seja a mesma mencionada por Eusébio em sua História Eclesiástica. No nono capítulo do nono livro, do parágrafo nono ao décimo primeiro (H.E. IX. 9.9-11), Eusébio diz as seguintes palavras:

9. Estas e muitas outras coisas parecidas com estas cantou Constantino com suas obras ao Deus supremo, causa de sua vitória, e entrou em triunfo em Roma, enquanto todos em massa, com suas crianças e suas mulheres, os senadores e altos dignitários, e todo o povo romano, recebiam-no com os olhos brilhantes, de todo coração, como a um libertador, salvador e benfeitor, em meio a vivas e a uma alegria insaciável. 10. Mas ele, que possuía a piedade para com Deus como algo inato, sem perturbar-se o mínimo com as aclamações nem envaidecer-se com os louvores, muito consciente de que a ajuda provinha de Deus, ordena imediatamente que na mão de sua própria estátua se coloque o troféu da 44 45

GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 78. KENNEY, E. J. The Cambridge History of Classical Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 88.

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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 10 – Junho/2016 paixão salvadora, e ao ver que lha erigiam no lugar mais público de Roma sustentando em sua mão direita o signo salvador, ordena-lhes que gravem esta inscrição em língua latina com suas próprias palavras: 11. "Com este símbolo salvador, que é a verdadeira prova do valor, salvei e livrei vossa cidade do jugo do tirano; mais ainda, livrei-a e a restituí ao senado e ao povo romanos em seu antigo renome e esplendor."46

Este texto, que foi originalmente escrito em língua grega, e que tem paralelismo em outro registro atribuído a Eusébio na obra De Vita Constantini (V.C. I.39-40)47, deixa claro que após vencer Maxêncio, Constantino foi recebido em Roma com aplausos pelo Senado e pelo povo romano. Contudo, como reação a essa recepção que o exaltava e o reconhecida como libertador, salvador e benfeitor, o próprio imperador determinou que fosse colocada na mão de sua estátua o símbolo que o levara àquele triunfo. Assim, o que Eusébio parece considerar uma atitude modesta, pois estaria o imperador com esse gesto reconhecendo que sua vitória veio de Deus, acaba por exaltar ainda mais a sua personalidade e legitimar o seu poder perante o povo e o Senado48. Há vários problemas em torno dessa tentativa de relacionar a estátua mencionada por Eusébio e os fragmentos em mármore da estátua colossal de Constantino que se encontra nos Musei Capitolini. O primeiro problema é muito simples: havia alguma estátua de Constantino, já que Roma era um território do Império que, até aquele momento, esteve sob o domínio de seu adversário Maxêncio? Além de não parecer improvável que a estátua mencionada por Eusébio já existisse, mais provável ainda parece que esteve, até aquele momento, representando outra figura, até mesmo outro imperador. Se esta hipótese fizer sentido, terá passado por várias adaptações e não apenas por uma simples adição do símbolo citado pelo bispo e escritor cristão. O troféu que Eusébio cita possivelmente era uma cruz, símbolo caro para os cristãos, e não ainda o famoso lábaro constantiniano representado pelas letras gregas X (khi) e P (rô), entrelaçadas, que segundo ele próprio fora visto por Constantino antes da Batalha da Ponte Mílvia (V.C. I. 28-32). Parece-nos insuficiente a informação “lugar mais público de Roma” para que afirmemos que Eusébio esteja referindo-se à Basílica de Maxêncio. O próprio local em que será inaugurado em 315, sob ordem do Senado, o Arco de Constantino49, próximo ao Coliseu, era tão frequentado quanto a basílica. Estaria o imperador, nas palavras de Eusébio, 46

47 48 49

EUSÉBIO DE CESAREIA. História eclesiástica. Tradução: Wolfgang Fischer. São Paulo: Fonte Editorial, 2002. EUSEBIO DI CESAREA. Vita di Costantino. Traduzione: Laura Franco. Milano: BUR Rizzoli, 2009. BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, pp. 207, 215. STEPHENSON, P. Constantine: unconquered emperor, christian victor. London: Quercus, 2009, pp. 151158.

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referindo-se, então, a qual local como sendo o mais estratégico para que sua estátua fosse exibida? De qualquer maneira, aquela estátua mencionada por Eusébio já existia e não tinha qualquer elemento cristão a compondo. Se se tratava da mesma estátua colossal de mármore que observamos em tópico anterior, é algo a ser explorado. Há elementos que podem favorecer esta hipótese. Por exemplo, a existência de duas mãos direitas entre os fragmentos fortalece a hipótese de que uma delas, perfurada de cima a baixo, tenha sido substituída por outra com um furo apenas em cima. A primeira mão, portanto, terá sido usada na estátua original segurando um longo cetro ou uma espécie de lança, enquanto a segunda fora adicionada para ser exibida segurando outro objeto. Se convergir com o registro eusebiano, terá sido o tal troféu da salvação, ou seja, uma cruz e, posteriormente, o lábaro constantiniano. O fato é que não há cetro, cruz ou qualquer outro objeto entre os fragmentos encontrados50. Não estamos afirmando ou negando que a estátua colossal de mármore seja a mesma mencionada por Eusébio. Se, porém, houver a mínima relação entre ambas, podemos concluir com Bardill51 que já existia uma estátua colossal pré-constantiniana, representando um imperador sentado, e que uma vez apropriada por Constantino, passou por restaurações logo após sua vitória sobre Maxêncio para, desde então, representá-lo. Tais mudanças, além da substituição da mão direita – e também de todo o braço, conforme já observado acima – inseriram o destacado queixo, o rosto barbeado e o nariz aquilino, sinalizando a sua dinastia. E, mais tarde, após o triunfo sobre Licínio, outra mudança estética terá sido feita, esculpindo os olhos de modo a estarem olhando para o céu, além das adaptações nas laterais da cabeça para coroá-la com um diadema. Outro aspecto a ser colocado acerca da estátua colossal, o que também serve para a estátua de bronze que observamos, tem a ver com o seu caráter de representação divina. Uma estátua como essas, ou seja, em tamanho colossal, costumava não apenas simbolizar a transmissão do poder de uma divindade ao imperador a ela filiado, mas pretendia legitimar a sua própria condição divina. Se Constantino, mesmo tornando-se cristão, era tolerante para com o politeísmo conforme Eusébio insiste, e isso parece tornar-se público na promulgação do edito de Milão em 313, ele próprio não se sentiria incomodado se suas estátuas fossem veneradas pelo povo romano. Sua estátua colossal, portanto, não apenas o posicionava a um

50 51

ODAHL, C. M. Constantine and the Christian Empire…, pp. 95-97. BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 211.

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status superior aos homens, mas o representava de maneira pública, como nos tempos de Otávio Augusto, como um ser divino52. Chama-nos a atenção o fato de que todos os fragmentos sugerem que, ao menos em parte, o corpo de Constantino fora representado como estando nu. Um furo na perna direita que consta entre os fragmentos reforça a hipótese de que um manto feito de bronze pudesse servir para cobrir boa parte da estátua. De qualquer modo, desse detalhe podemos concluir, entre outras coisas, que há uma relação entre essa forma de representação não apenas com aquelas de políticos romanos anteriores a Constantino, como Júlio César, sobretudo pelo uso do manto, mas também com as representações de divindades sentadas, em especial, Júpiter53. Segundo Sarah Bassett a posição sentada e com o corpo semi-vestido do imperador tem a finalidade de parecer-se com as antigas estátuas de culto, que também eram colossais. É o caso da estátua de Zeus, em Olímpia, e a estátua de Júpiter, no templo capitolino de Roma 54. Assim, como tem interpretado Bardill, “ainda que nenhuma inscrição tenha afirmado explicitamente que o imperador era um deus, Constantino adquiriu um grau de divindade por causa de sua postura e do seu traje, que imitavam aqueles da Suprema Divindade”55. Augusto, por exemplo, ao utilizar-se da mesma pose, não estava igualando-se a Júpiter, mas afirmando por meio da imagem que era nomeado, filiado e protegido por este deus. Tal paradigma de legitimação era comum nas cunhagens monetárias. Trajano, por exemplo, foi representado em algumas moedas do seu governo, tendo sobre a cabeça os raios vindos de Júpiter, e em tamanho menor que a divindade. O que se queria transmitir com essa representação era que a divindade protegia aquele a quem nomeara como vice-rei na terra. Esse discurso de legitimação do poder imperial a partir da filiação divina estava presente não apenas nas moedas e estátuas, mas também nas produções literárias. Escritores como Horácio, Ovídio e Plínio são exemplos de intelectuais que, a partir de seus textos, reproduziam a convicção de que os imperadores eram uma espécie de vice-governantes na terra, protegidos pelos deuses aos quais estivessem filiados56. Não vemos diferença entre os argumentos usados por esses escritores pagãos ao legitimarem as filiações divinas de imperadores como Augusto e Trajano e os argumentos de Eusébio quando este elabora seus discursos panegíricos em favor de Constantino, reconhecendo-o como escolhido pela divindade – neste caso, o Deus cristão – para governar o 52 53 54

55 56

ZANKER, P. Augusto y el poder de las imágenes. Madrid: Alianza Editorial, 1992, pp. 355-372. BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, pp. 212-214. BASSETT, S. The Urban Image of Late Antique Constantinople. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 239. BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 215. FEARS, J. R. The Cult of Jupiter and Roman Imperial Ideology. ANRW II, 17, 1, 1981, pp. 56-66.

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Império (H.E. VIII. 13.14). Bardill segue esta mesma interpretação ao afirmar que “as imagens entronizadas e parcialmente nuas de Augusto e Constantino expressaram seus papéis como figuras paternas e governantes do mundo, eleitos pela Suprema Divindade para governarem como seus vice-reis na terra”57. A questão, para nós, é que nem os fragmentos da estátua colossal de mármore, muito menos os poucos fragmentos da estátua colossal de bronze, trazem consigo informações mínimas que possam garantir que uma delas seja aquela mencionada por Eusébio, além de que não há a mínima presença de símbolos ou referências à religião cristã. Mais do que isso, se pensarmos a partir das observações acima, o que as estátuas colossais de Constantino parecem explicitar é que são representações bastante próximas da arte predominante no contexto politeísta greco-romano58, tanto como proposta quanto em relação ao estilo. Sobre as inscrições relativas a Constantino que, de forma breve, observamos acima, seguimos a proposta de Gregori que, de um modo criterioso, reconheceu a importância que elas têm para que se ampliem os horizontes interpretativos na direção de outras matrizes documentais, como fontes literárias, jurídicas, numismáticas e arqueológicas. Assim, será possível delinear a história dos trinta anos de governo constantiniano, pensando-os a partir de uma divisão em etapas59. Tal observação em etapas possibilitará a identificação de suas estratégias de propaganda, que visavam construir uma imagem admirável do imperador, marcada, sobretudo, por rompimentos políticos, socioeconômicos e religiosos com a Tetrarquia iniciada por Diocleciano. Os títulos e epítetos, quase sempre no superlativo, atribuídos a Constantino nas inscrições a ele dedicadas ao longo de trinta anos e, em particular, após seu triunfo sobre Maxêncio no ano 312, podem demonstrar-nos certa evolução da construção dessa imagem heroica. De Pius Nobilissimus Caesar, em 307, a Maximus Victor ac Triumphator semper Augustus, em 337, Constantino teve sua própria imagem estrategicamente construída, de modo que esses títulos que ele próprio se atribuía eram usados como propaganda imperial, com o objetivo de legitimar seu poder e suas vitórias. Em uma das etapas, segundo a divisão sugerida por Gregori, podemos observar, por exemplo, a substituição do epíteto Inuictus, usado desde 310, por Victor, a partir de 324, após a vitória sobre Licínio. O epíteto Victor, segundo Gregori, não tinha conotações religiosas60.

57 58

59 60

BARDILL, J. Constantine, Divine Emperor of the Christian Golden Age…, p. 214. WOODFORD, S. Introdução à História da arte da Universidade de Cambridge: Grécia e Roma. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, pp. 83-87. GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 74. GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 74.

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Por mais que Eusébio insista em uma causa providencialista das vitórias do imperador que, segundo ele, era um eleito de Deus e, além disso, por mais que o Arco do Triunfo, inaugurado em 315 pelo Senado, atribua a vitória sobre a Ponte Mílvia à ação providencial de uma divindade, nem sempre os títulos que Constantino deu a si próprio eram religiosos. Por outro lado, será seu filho Constâncio II que, após a morte do pai em 337, promoverá em uma cerimônia com apoio do Senado a sua consagração à condição divina. Como observa Gregori, o primeiro imperador cristão recebia após sua morte, por mais contraditório que pareça, o título pagão de Divus, que o identificaria desde então em algumas inscrições imperiais como Divus Augustus Constantinus61. O uso frequente e destacado do superlativo nessas expressões de elogios ao imperador, por vezes comuns não apenas em inscrições, mas em todo e qualquer discurso encomiástico e panegírico daquele período – podemos ver isso, por exemplo, nos elogios de Eusébio – caracteriza não apenas as intenções do próprio imperador em promover-se perante a sociedade, sendo reconhecido como uma espécie de príncipe providencial, defensor do povo, detentor de qualidades espirituais, predestinado ao poder e superior em bondade e competência, se comparado aos seus antecessores. Mais do que isso, as epígrafes, que o elogiavam, mas também reconheciam suas vitórias bélicas sobre os tiranos e inimigos externos ao Império, além de exaltarem seus trabalhos de pacificação e reconstrução da segurança ao povo, explicitavam a gratidão de membros da corte e do Senado, entre prefeitos, curadores, tesoureiros e funcionários de um modo geral. Muitos deles eram pagãos e em suas dedicações tornavam evidentes não apenas a gratidão que tinham por suas carreiras profissionais bem sucedidas, mas, sobretudo, a devoção que dedicavam e declaravam ao seu soberano. O imperador cristão, sem importar-se, era reconhecido por muitos como uma divindade entre aquela população romana ainda predominantemente pagã.

Conclusão

Há dois aspectos a serem ressaltados, a partir da nossa argumentação, neste momento. Em primeiro lugar, há um aspecto metodológico que transcende o tema abordado e que se refere à questão epistemológica de fundo sobre como podemos conhecer o mundo, em geral, e o passado, em particular. Por tradição secular, tem havido particular atenção às narrativas escritas, às formas de representação do passado que procuram dar sentido consciente e

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GREGORI, Gian Luca. “Costantino nell’epigrafia di Roma”..., p. 74.

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explícito sobre a sociedade e seu passado. Segundo alguns estudiosos, essas narrativas seriam tão fortes que formariam, quase que de forma inexorável, nossa compreensão. Isto tem o seu grão de verdade, pois o ser humano é narrativo e tudo acaba por formar parte de redes de significado tornados explícitos, em particular nas sociedades históricas, a partir de discursos escritos. Mas, além disso, como procuramos mostrar com um estudo de caso, o mundo material fornece narrativas não literárias que se diferenciam das literárias e que também dão indícios, às vezes até mesmo contraditórios, em relação à tradição textual. Há, pois, uma questão metodológica de fundo: as evidências materiais são independentes das literárias e podem ser muito úteis no estudo de temas históricos e sociais. No caso específico, foi possível constatar a diferença entre a narrativa a posteriori, interessada, da historiografia cristã e a materialidade produzida à época de Constantino. Para a literatura cristã, a partir de Eusébio, Constantino foi movido pela providência divina e isso desde seu contato místico com a revelação cristã. Estátuas e epígrafes mostram um quadro mais matizado e complexo, com uma utilização continuada da semântica imperial secular e não cristã. Como alertou Paul Veyne, isso não é de espantar, tendo em vista o reduzido percentual de cristãos à época, mas mostra um pragmatismo do imperador que liberou o culto cristão, nem sempre perceptível em Eusébio e na historiografia providencialista cristã. Ambos os aspectos, o metodológico e o empírico, juntam-se se considerarmos como a História se faz na interface entre os modelos interpretativos e as evidências disponíveis. Estaremos satisfeitos se o leitor sair com mais dúvidas do que certezas, na esteira de Kierkegaard 62: de omnibus dubitandum, coloquemos tudo em questão.

Agradecimentos

Agradecemos a Cláudio Umpierre Carlan, Renata Senna Garraffoni e Glaydson José da Silva. Mencionamos o apoio institucional do CNP, CAPES, FAPESP e da Unicamp. A responsabilidade pelas ideias restringe-se aos autores.

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KIERKEGAARD, N. É preciso duvidar de tudo. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (1843).

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