As representações nacionais e a população residente em territórios litigiosos: o caso do Contestado franco-brasileiro. Uma reflexão teórica sobre as áreas de fronteira.

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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT

As representações nacionais e a população residente em territórios litigiosos: o caso do Contestado franco-brasileiro. Uma reflexão teórica sobre as áreas de fronteira. Carlo Romani1

Retorno ao distante ano de 2001, quando fui pela primeira vez ao norte do país, ao Pará, Amapá, ao Oiapoque e à Guiana Francesa, fazer a pesquisa de doutorado que me levou, literalmente, às fronteiras do país e a atravessá-las. Para um paulista descendente de italianos, ter podido encontrar, conhecer e aprofundar-se no contato com o modo de vida e com os costumes da Amazônia, foi de fundamental importância para a compreensão sobre a história e as realidades brasileiras. Entendo que qualquer historiador que pretenda ser um interprete da realidade nacional deve ter e manter contato com aquelas realidades que erroneamente são chamadas de regionais pelos centros hegemônicos irradiadores do poder centrados no sudeste. Pois, é justamente nesses lugares designados como espaços periféricos, para onde foi empurrada a fronteira civilizacional, onde mais podemos entrar e adentrar na alma profunda brasileira. Então, para mim, que naquela época fui ao encontro de dados que me pudessem ajudar no entendimento sobre a deportação e o confinamento de prisioneiros da revolta de 1924 em São Paulo, para Clevelândia, na fronteira do Oiapoque (ROMANI, 2011), deparar-me com essa realidade fascinante de uma brasilidade ainda desconhecida foi fundamental para que eu deslocasse o objeto de pesquisa em direção ao estudo da fronteira do Oiapoque em si, o lugar onde, como escrevem os locais, não sem razão invertendo aquela ordem hegemônica, começa o Brasil (ROMANI, 2013). Foi assim que me tornei um pesquisador sobre/de fronteiras, não por escolha, mas por encontro, pelo encontro com a alteridade, uma alteridade que à medida que fui compreendendo como se constituía, mais percebia que, no caso brasileiro, tratava-se efetivamente de sua centralidade histórica. Trata-se daquilo que por mais que o Brasil moderno busque se afastar está nele enraizado, entranhado na condição da brasilidade e por isso mesmo, trata-se da herança que nos diferencia das outras realidades nacionais.

E é a partir da definição do significado de fronteira que proponho começar esta reflexão. Qual é a sentido do termo fronteira? Vamos ver o que os dicionários têm a nos dizer: 1 Professor Adjunto da Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UniRio. Doutor em História Cultural pelo IFCH/Unicamp. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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Nos nacionais, “Aurélio” e “Houaiss”, a fronteira é extremidade de um país, confim, limite, raia, extremadura. Em sentido figurado adquire a ideia de extremo, de fim; no Etimológico da Língua portuguesa, a palavra remonta ao século XIII, fronteira viria do latim frons, o que está na frente. O “Robert”, francês, diz: frontiére limite de un territoire, separant deux états, somente quando usado na forma abstrata passa a ideia de limite, separação, divisão. O “Oxford”, mais preciso, diferencia a border como lado que divide territórios, Estados, de borderland, como região indeterminada e zona fronteiriça, espaço intermediário; Portanto, etimologicamente, a ideia de fronteira esteve diretamente associada ao front, à frente de guerra de um poder soberano contra outro. Na origem romana do termo, o fronte, a fronteira em movimento da expansão territorial sobre o espaço considerado vazio, pois ocupado pelo outro, um outro incivil, bárbaro. Na modernidade, na época de constituição das nações modernas, a noção de fronteira adquiriu a ideia de limite do Estado nacional, ou do domínio soberano sobre um território, um limite marcado no mapa, uma linha imaginária traçada sobre o território. A historiografia europeia contemporânea à construção dos modernos Estados nacionais do XVIII e XIX concebeu a fronteira como fronteira política, a fronteira que demarca o limite político, da soberania nacional. Portanto, os estudos de fronteira que ganharam corpo durante o século XIX tiveram como objetivo obter uma prova histórica do pertencimento de determinado território àquela comunidade nacional, seja sua manutenção por direito anterior de conquista, seja sua libertação nacional, relacionada à identidade étnico-linguística de sua população. Na idade moderna, na América, com as fronteiras móveis dos conquistadores e/ou colonizadores sobre as terras ameríndias, a coisa mudou de figura, pois havia e há uma evidente relação assimétrica de força na situação de alteridade imposta pelo conquistador ao conquistado. O conquistador ignora qualquer valor de civilidade nos povos ameríndios. Os povos indígenas são populações a serem conquistadas e submetidas como súditas do reino conquistador, no caso latino-americano, simplesmente dizimadas e empurradas para os confins do oeste da América do Norte, ou, na América do Sul, para os espaços interiores vazios da floresta, dos chamados sertões, e para o extremo sul da Patagônia. Em algumas regiões, tanto da América do Norte quanto na do Sul, os vazios demográficos eram enormes se comparados aos europeus, ainda mais se considerarmos que na elaboração dos mapas de cada Estado conquistador, as terras desabitadas ou ignotas, ignoravam deliberadamente qualquer direito territorial às populações ameríndias. As linhas definidas imaginariamente pelos tratados construíram delimitações fundadas em meridianos, ignoraram Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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as linhas divisórias naturais do relevo, as efetivas ocupações de povoamento existentes. Grande parte do território brasileiro se encontrava disponível para a conquista sob esse princípio da fronteira “desabitada”, em expansão, por isso o reclamo nas disputas com espanhóis, do direito luso definido pela posse sobre o território. Os estudos mais atuais de Jeremy Adelman e Stephen Aron (1999), que renovaram a produção historiográfica sobre as fronteiras americanas (trabalharam tanto a hispânica na América do Norte quanto a platina da América do Sul), apontam para a existência de borderlands, desses amplos espaços fronteiriços, não coincidentes com os da fronteira política projetada, até por que a border era apenas um espaço imaginário que somente alcançou sua definição na metade final do século XIX, (vejam os casos norte-americanos com o México e a América espanhola ao sul, ou com o Canadá britânico ao norte) e as últimas pendências externas brasileiras definidas somente no início do XX, com a França, Inglaterra, Peru. Esse espaços fronteiriços se moviam conforme o avanço do movimento colonizador em direção aos espaços vazios (vazios em termos, na verdade vazios institucionais, pois, como vimos, eram espaços habitados por povos não reconhecidos como nacionais) ou sobre outro Estado/reino/império. As populações indígenas continuavam praticamente invisíveis, como se fossem resquícios de formas de vida fora do tempo histórico, portanto, não historiáveis. Somente adquiriam visibilidade com o conflito, a guerra. Mesmo nesses trabalhos de Adelman e Aron que procuraram renovar o mito da fronteira americana em movimento, mito criado por Frederick Turner e constantemente revisitado (TURNER & FARAGHER, 1999), percebe-se a continuidade dessa história processual da conquista e da ocupação pelo colonizador, sem levar muito em conta as dinâmicas locais, os impactos na vida dos indígenas e suas resistências. Desde Turner, no fim do século XIX, a historiografia americana sobre a expansão para o oeste passou a trabalhar o tema da fronteira diferentemente da abordagem usada pela historiografia europeia, criando um novo significado, a ideia da fronteira em permanente movimento. Além disso, a historiografia norte-americana com Turner passou a associar esse movimento contínuo com a formação do caráter nacional, também em contínua transformação, por conta dos deslocamentos internos e da imigração para o país, principalmente de povos europeus vindos em grande quantidade até a primeira metade do XX. Essa concepção historiográfica, guardadas as particularidades para as terras abaixo do Rio Grande, também se fez presente no mundo latino-americano, a ideia de uma fronteira civilizacional em contínuo movimento ou em expansão, a conquista dos sertões no Brasil, ou da pampa argentina, a marcha para o oeste que adentra o século XX em direção à fronteira da Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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Amazônia. No mundo anglo-saxão, uma nova ideia de identidade nacional, em permanente construção, forjou-se também nessa ressignificação da ideia de fronteira. Se a contínua migração externa para os EUA nos séculos XIX e XX mudou o caráter da nação e do povo americano, ela não foi capaz de fazer com que sua historiografia reconhecesse a alteridade do elemento nativo como componente dessa nacionalidade. Isso também se fez presente como fenômeno em todo o cone sul americano, onde o movimento migratório europeu entre os fins do XIX e inícios do XX provocou uma profunda transformação no componente étnico da população originada ainda na colônia e no início das formações nacionais independentes. Porém, a maior parte da colonização europeia na América Latina não foi capaz de erradicar ou confinar o caráter ameríndio de sua população. Pelo contrário, para conseguir a conquista, foi necessária a promoção de uma contínua hibridação cultural entre as duas componentes étnicas da época inicial da conquista, sem falarmos aqui da enorme presença étnica africana como componente imigrante trazida forçada a complexificar os fenômenos de hibridação. Mais recentemente, os estudos contemporâneos norte-americanos também passaram a observar os fluxos de movimento internos de latino-americanos para os EUA, ou de populações provindas de regiões diferentes da Europa. Essa demanda trouxe a questão do trânsito cultural promovido por populações culturalmente muito diferentes da americana, e a historiografia norte-americana teve que enfrentar, numa escala muito maior que a anterior, o problema do hibridismo cultural. Na historiografia latino-americana, mesmo sem a utilização do termo hibridismo, a ideia de mestiçagem, de contato interétnico, foi sendo sucessivamente associada à de troca intercultural. A questão da mestiçagem racial e cultural sempre esteve presente nos estudos sobre a formação dos caráteres nacionais dos países latino-americanos. Esse problema é algo que se apresentou quase como uma componente estrutural desde sua formação, no caso brasileiro, por exemplo, desde a historiografia da segunda metade do século XIX, das interpretações de Capistrano de Abreu, de Oliveira Vianna, Sílvio Romero, até pelo menos a grande obra sociológica de Gilberto Freyre. Nos Estados Unidos, essa nova percepção da realidade sócio-espacial sobre o território, inexistente ou minúscula nos meios acadêmicos até o período pós II Guerra, levou também a um novo deslocamento nos estudos sobre a fronteira, na chamada geração pós-1970/80, principalmente sobre os estudos da fronteira oeste. Uma fronteira vista agora não mais como uma linha em permanente movimento, mas como um espaço de conquista incompleto, Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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apontando para as resistências dos povos indígenas, em seus aspectos culturais, mas significativamente para a marginalização imposta a essas populações, inclusive a dos antigos pueblos mexicanos. Historiadores como Patricia Limerick (1987), ajudaram a trazer a história do oeste norte-americano para o debate identitário contemporâneo, na forma da resistência promovida pelas populações conquistadas, muito mais numa perspectiva de conflito do que na de assimilação à identidade nacional hegemonicamente construída. O novo mundo americano nos coloca de frente a esse problema do que vem a ser a identidade nacional, uma identidade sempre em movimento, como na América do Norte, estruturalmente híbrida como na Latina, portanto, em ambos os casos, uma construção identitária diferente daquela que se constituiu na modernidade europeia. Mas isso, que nunca fora um problema para a historiografia europeia, com a descolonização dos países imperialistas no pós-45 também passou a ser. Stuart Hall (1992) enfrenta essa questão identitária contemporânea não como algo dado, mas como um fenômeno construído e relacional, em função de situações e necessidades diferentes. Por essa fluidez que a identidade assume ela seria híbrida a identidade (cultural) na pós-modernidade. Não por acaso, Hall fala justamente do lugar do imigrante caribenho jamaicano na metrópole, o do outro que veio em direção ao um e não é mais nem Um nem Outro. Assim, também na Europa, lugar de origem da ideia de nação e nacionalismo, os estudos históricos clássicos sobre fronteiras fundados nas lógicas de identificação do povo com o território, da identidade como algo dado historicamente a priori, sofreram forte mutação desde o pós Segunda Guerra, veja-se Benedict Anderson (2008) e as comunidades imaginadas e tradições inventadas, por exemplo. O fim dos impérios coloniais e a recepção contínua, principalmente na França e Inglaterra, de populações provenientes dos antigos territórios colonizados, deslocou ainda mais o significado do termo fronteira como uma palavra de uso semanticamente político para um uso cultural. Assim, os estudos sobre fronteira além das tradicionais áreas da história política e diplomática, passaram a ser destaque nas áreas da antropologia e da história cultural. A fronteira híbrida passa a ser entendida como um espaço relacional, de troca, de encontro e confronto das alteridades. Para o filósofo franco-espanhol Amadeo Lopez, a fronteira é o “lugar de separação e de união, a fronteira tem essa característica de introduzir entre o Mesmo e o Outro essa zona ambígua - zona fronteiriça - ao mesmo tempo para fora e para dentro nas relações com o outro e consigo mesmo.” (LOPEZ, 1993: 8). No mundo francófono, essa retematização da ideia da fronteira (de geopolítica a cultural) proveio justamente de pesquisadores ligados ao mundo colonial europeu. Lopez, por exemplo, Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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é um estudioso da literatura do mundo hispano-americano. Mas, as reflexões que mais criticaram o antigo modelo identitário e também questionaram e relativizaram as possibilidades de uma efetiva hibridação entre culturas, provieram do antigo mundo colonial francês. Com o pensamento mais conflitivo surge o sociólogo Abdelmalek Sayad, argelino estudioso dos fenômenos migratórios e de suas implicações na França. Ao analisar a situação colonial, e também a pós-colonial como herança dessa, nos oferece elementos para enunciar o problema da inequalidade do contato na alteridade e da quase impossibilidade dessa hibridação: Os mundos do colonizador e do colonizado não se interpenetram. Os dominantes e os dominados vivem no mesmo espaço, uns acanto aos outros, coexistem, mas não coabitam. Para que os dominantes obtenham aquilo que esperam de sua dominação, devem enfrentar o problema do conhecimento do mundo que dominam, e isso coloca o problema da ciência que o dominante constrói sobre os dominados. (SAYAD, 1999).

Nesta visão, apesar da construção de novas formas de identidade relacional, a necessidade da adaptação seria um movimento do “dominado” em relação ao dominante. E aqui a questão da dominação já não é mais percebida da forma marxista ortodoxa como um problema preponderantemente econômico, mas como algo muito mais relativo às formas da produção da cultura que hierarquizam e legitimam a dominação, portanto como um exercício de poder. Por isso ele nos coloca como central o problema da ciência, ou das relações entre a ciência e o poder. A ciência como uma construção do conhecimento que no mundo moderno tem o poder de se apresentar como a verdade a ser seguida, porque hierarquicamente superior. Essa questão fundamental sobre a construção do saber como forma de poder foi trazida inicialmente por Michel Foucault (1979), quando de sua entrevista para Heródote, inclusive para o estudo sobre os usos e os fins do exercício da geografia e da cartografia para a demarcação de limites, para o avanço da fronteira em favor do domínio de um determinado Estado. A questão do conhecimento sobre o outro também foi abordada por Edward Said (1990), outro árabe nascido sob o domínio inglês na Palestina, ao desconstruir o saber do orientalista e do orientalismo, o campo específico de conhecimento construído pelo ocidental, pelo expert em Oriente. Desconstruindo o discurso do orientalismo, Said evidencia a construção projetada do que o ocidente esperava do oriente, ao mesmo tempo em que buscava criar e incutir essa identidade no oriental, o que de certa forma conseguiu fazer com significativa parcela das elites coloniais. O problema da ciência, da construção do conhecimento que se impõe como dominante, é um problema que continua absolutamente em aberto, eu diria até, que muito mais assimétrico no Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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presente, uma vez que assistimos à colonização científica das últimas áreas do conhecimento como é o caso da História. A História e a Filosofia, que muito resistiram à padronização do campo científico até décadas atrás, sucumbem desde o fim do século passado a uma colonização promovida pelo conjunto de valores estabelecidos pela ciência dominante, as agências de fomento, as modalidades dos projetos, a aplicação mercadológica da pesquisa, em grande parte estranhos à História, apesar deste ter sempre sido o alicerce da construção da identidade nacional. A Ciência com c maiúsculo das áreas duras que controla e coloniza o campo das demais áreas, tem como objetivo a reprodução continua e ampliada do mercado capitalista mundial, portanto saberes constituídos no âmbito de culturas dominadas são hierarquizados inferiormente, quando não lançados quase à categoria de um tipo de saber folclórico, cujo interesse acaba quando a indústria consegue se apropriar dele. O conhecimento fitoterápico indígena vale até o momento em que a indústria consegue a sintetização das substâncias. A partir desse momento a ciência se apropria daquele conhecimento, aplica-o a outra funcionalidade e desqualifica/confina o saber tradicional. Nestes casos, para os estudos das formas culturais muito dissonantes em relação ao que se espera como modo de vida integrado ao mercado mundial do capitalismo contemporâneo, acho pertinente tanto a utilização da ideia de heterotopia de Foucault (2001), como os espaços outros, as relações espaciais que se originam entre as pessoas e que, de algum modo, escapam às formas de sujeição estabelecidas pelo poder, recriando outras possibilidades de vivência que não as oferecidas ou desejadas pela hierarquia dominante. Assim como sua variação presente na conceituação da nomadologia feita por Gilles Deleuze (1997), filósofo a quem recorri na análise das populações habitantes da fronteira contestada no Oiapoque. O nômade é aquele que não se sedentariza, aquele que não reduziu o conquistado à categoria de escravo ou dominado. São nômades aquelas populações cujo modo de vida não se instituiu na forma acabada do Estado. Esse modo de compreender a organização da vida social remete-nos a grande parte das sociedades ameríndias, e pode ser encontrada nos estudos feitos por Pierre Clastres (1978) na década de 1970, nas sociedades Tupi que ele denominou “contra o Estado”. Ao contrário, a ideia de civilização, que foi confundida com a do avanço do Estado, digere, assimila, hibridiza o que lhe interesse e isola todas as diferenças, mas o faz sempre em direção ao sentido que se institui como poder dominante, seja pela coerção imposta, seja pela produção hegemônica sobre si mesma. A formação do caráter nacional latino-americano com o surgimento das elites criollas mostra, de certa forma, um pouco de como isso levou à Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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construção da (im)provável identidade no meio da alteridade. Esse movimento civilizatório uniformizante que produziu a desterritorialização dos mais fracos, também levou à sua reterritorialização contínua em outras áreas, sempre periféricas, seja produzindo novos confinamentos externos pelo avanço da fronteira civilizacional, seja criando confinamentos internos nas periferias das grandes cidades, ou em áreas rurais, nos casos das chamadas populações tradicionais (quilombolas, ribeirinhos, indígenas, caiçaras, praianos) que produzem e reproduzem o espaço hibrido ou o heterotópico, dependendo dos casos e do ponto de vista. Voltando especificamente à questão da fronteira, além dos tradicionais estudos históricos sobre a fronteira como um fenômeno geopolítico, que persistem até hoje em dia, principalmente na área das Relações Internacionais, mas que também são recorrentes na História, Geografia e Ciências Políticas, como foi apropriada pela literatura de ciências humanas o tema da fronteira no Brasil no século passado? A expansão da fronteira brasileira para o oeste, a partir do litoral atlântico, seguiu de certa forma a lógica de movimento da “civilização”, portanto, os estudos sobre essa movimentação aproximaram-se da perspectiva de Turner (na História com Sérgio Buarque e mesmo em Caio Prado; na Geografia com Pierre Mobeig, por exemplo). Contudo, como diferenciou Darcy Ribeiro (1995), embora ocorresse nesse movimento a formação ao poucos de um caráter nacional brasileiro, sua materialização distanciou-se das hipóteses do autor norte-americano. A construção do nacional, embora fora romantizada pela História desde o século XIX e por parte da Antropologia no início do século passado através de um olhar, digamos, integracionista, tanto racial quanto cultural, constituiu-se muito mais pelo confronto entre alteridades e portanto, foi marcada, antes de tudo, pelo conflito social. Diferentemente de Turner, a fronteira de Ribeiro tem dois lados, dois tempos, não somente uma humanidade que se expande uniformizando a diferença. Penso que quando chegamos ao estudo das fronteiras amazônicas (sejam internas como exteriores) nestes falsos vazios demográficos, onde esse confronto de alteridades foi mais forte, violento, persistente e perdura até hoje em dia, a interpretação para a fronteira trazida por José de Souza Martins ainda tem muita validade e nos obriga a refletir sobre o problema da violência contida no confronto entre os diferentes, a enfrentá-lo, ao invés de apenas mascará-lo, ou no limite reduzi-lo, como fizeram muitos historiadores da Amazônia no século passado, ao avanço do estrangeiro, ou à cobiça imperialista, menosprezando a opressão praticada pelos próprios nacionais e pelos poderes locais. Para Martins, a fronteira é, simultaneamente, lugar da alteridade e expressão da contemporaneidade dos tempos Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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históricos. (MARTINS, 1996). Nesta perspectiva, o tema da fronteira no Brasil, alem de poder ser apropriado pela ótica da fronteira nacional em construção, pela expansão territorial em direção às linhas imaginárias divisórias criadas pelos Estados nacionais, deve ser pensado como o espaço de contato e confronto entre alteridades, tanto dentro do Estado nacional como nos espaços fronteiriços exteriores. Aquilo que no caso europeu somente pode ser problematizado a partir do ingresso dos povos colonizados na metrópole, seja desde muito antes no mundo ibérico, mas principalmente no pós-guerra nos países imperialistas, na América Latina, no Brasil, e aqui particularmente falamos da Amazônia, trata-se da própria condição histórica da nação, do lugar, dado e trazido no processo da conquista que ainda continua. Por isso ganharam muita relevância recentemente, para a renovação da produção histórica no Brasil, os estudos sobre a fronteira que a deslocam do fenômeno político, primeiro para o social e em seguida para o cultural. A fronteira é o lugar em que os diferentes se encontram e a Amazônia, pelo seu espaço desafiador para a ocupação e vivência da civilização moderna, é justamente, talvez, o último grande espaço de conflito. O último avanço da civilização desenvolvimentista desde a ditadura de 64 até o presente impede-nos absolutamente de pensar a Amazônia como um lugar que pudesse ficar à margem dessa expansão da acumulação capitalista. Essa impossibilidade, mascarada pelo politicamente correto de diversos discursos eco-sustentáveis, portanto, levou o choque entre as diferenças aos últimos redutos de confinamento dos nômades. Mas, se até este momento falamos muito do problema imposto pelo confronto entre as diferentes civilizações no âmbito da apropriação do território, uma lógica territorial diferente que remete à tensão entre o nomadismo e a sedentarização trazida pelo Estado, ainda pouco tocamos neste especto econômico que envolveu e envolve os conflitos. Neste ponto, a luta pela apropriação da terra, de uma terra hipoteticamente ainda vaga, ganha um contorno especial. Ainda citando Souza Martins, o que caracteriza e define a fronteira no Brasil é a situação de permanente conflito social: Diz ele: Na minha interpretação, nesse conflito, a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso o que faz dela uma realidade singular. À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas, o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo da História. (MARTINS, 1996: 27)

O que significa estar situado diversamente no tempo da História? Significa, primeiro poder pensar uma História não teleológica, na qual esse suposto progresso científico-tecnológico não determine pela sua capacidade de acúmulo material, uma hierarquia entre as civilizações. Tarefa inglória a do relativismo histórico, porque a ciência moderna é essencialmente evolutiva e acumulativa. E segundo, reconhecidas nas diferenças dos grupos as diferentes temporalidades, gerar uma História produtora de um conhecimento capaz de valorizar socialmente as diferenças e ser capaz de enfrentar a batalha da divulgação científica e midiática com esse fim, que penso é o que estamos tentando fazer nesta comunicação. O encontro entre as diferenças que provoca a descoberta e o desencontro, na modernidade adquiriu também esse sentido de confrontação entre uma lógica econômica de posse e de produção para o sustento versus uma lógica capitalista que é voltada para a acumulação ilimitada. Esta lógica dominante, hegemônica, é por definição uma forma que implica na exclusão de todas as outras. O avanço da frente de expansão agrícola trabalhada por Martins, mostra o avanço inexorável dessa dinâmica que inclui e segrega camponeses, hierarquiza pessoas pela capacidade de acumulação de bens e não permite a existência de espaços tido por ela como vazios, pois não intensamente explorados. Se essa fronteira da diferença aparece ainda geográfica e antropologicamente muito visível na Amazônia, nem por isso ela é prerrogativa da selva. Essa fronteira encontra-se por todo o lado, nas construções linguísticas que separa dicotomicamente centro x periferia, asfalto x favela, modernos x tradicionais, civilizados x selvagens, assume componentes étnicos reducionistas em branco x negro ou x índio. Uma fronteira de diferenças complexas, que se por um lado foram e são hibridamente construídas, com identidades múltiplas e funcionais, dependendo da situação de interesse em que se encontram os sujeitos, por outro assumem os espaços de modo heterotópico, diferenças que ocupam os mesmos espaços, que vivem simultaneamente, mas que somente aparentemente interagem. Um diálogo surdo-mudo, imposto geralmente pelo dominante sobre o dominado, que carrega consigo a marca do ressentimento. Um ressentimento que de tempos em tempos explode, se tona expressão pontual de violência se torna tema a ser apropriado pela grande mídia, corporativa. Uma notícia a ser martelada até a chegada da próxima, um tipo de comunicação oficial que ignora ou quer ignorar a violência latente cotidiana que carateriza a situação de conflito entre as diferenças, entre os diferentes tempos históricos. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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Gostaria de contribuir com minha construção da história, de todas as fronteiras com que me deparo, de poder amplificar a voz dos menos empoderados nos confrontos das alteridades, das gentes que vivem e fazem com seu trabalho e seu fazer cotidiano as diferenças que constituem a diversidade da vida no planeta, portanto fazer da história não mero estudo sistemático e rigoroso sobre o passado, mas o meio de valorização das diferentes experiências projetando-as para o futuro. Reconhecer as fronteiras é também um convite a transpô-las e superá-las. É pensar e lutar por um mundo, ou pelo menos por um país, que contemple o encontro das alteridades, sejam elas frutos de tempos históricos diferentes, seja ela como resultado da apropriação desigual da vida de umas por outras. Escrever a história sobre essas múltiplas fronteiras, é fazer de nosso trabalho um meio de luta para, respeitadas as diferenças, empoderar as alteridades mais fracas no confronto com as outras.

Referências: ADELMAN Jeremy e ARON Stephen. From borderlands to borders: empires, nation-states, and the peoples in between in North American. The American Historical Review, Washington (DC), v. 104, n. 3, p. 814-841, jun. 1999. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. In: A Sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978, p. 132-152. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1227 - Tratado de Nomadologia: A máquina de guerra. In: Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, v. 5. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 11-110. FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: Ditos e escritos. São Paulo: Forense, 2001, p. 411422. ____________. Sobre a Geografia. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 153-165. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora, 1992. LIMERICK, Patricia Nelson. The legacy of Conquest: the unbroken past of American West. New York: W. W. Norton & Company, 1987. LÓPEZ, Amadeo. Présentation. La Notion de Frontiére., América, Cahiers du CRICALL, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, n. 13 (Frontiéres Culturelles en Amerique Latine), p. 7-20, 1993. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira. Retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo 8 (1), p. 25-70, mai. 1996. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ROMANI, Carlo. Aqui começa o Brasil! Histórias das gentes e dos poderes na fronteira do Oiapoque. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013. ___________. Clevelândia, Oiapoque: cartografias e heterotopias na década de 1920. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 6 n. 3, p. 501-524, set.dez. 2011. SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. SAYAD, Abdelmalek. La double absence. Des illusions de l'émigré aux souffrances de l'immigré. Paris: Seuil, 1999. TURNER, Frederick W. e FARAGHER, John M. Rereading Frederick Jackson Turner: "The significance of the frontier in American History" and other essays. New Haven: Yale University Press, 1999.

Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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