AS RESEX E RDS E A POLÍTICA NACIONAL DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS - INTERFACES COM A ETNOBIOLOGIA E ETNOECOLOGIA

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Fernandes-Pinto, E. 2008. Resumo expandido apresentado no VII Simpósio Nacional de Etnobiologia e Etnoecologia (VII SBEE), Belém/Pará, dezembro de 2008.

AS RESEX E RDS E A POLÍTICA NACIONAL DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS - INTERFACES COM A ETNOBIOLOGIA E ETNOECOLOGIA Érika Fernandes-Pinto Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – Diretoria de Unidades de Conservação de Uso Sustentável e Populações Tradicionais (DIUSP/ICMBio) [email protected] INTRODUÇÃO As Reservas Extrativistas (RESEX) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) são unidades de conservação genuinamente brasileiras e, dentre as demais categorias previstas no SNUC - Sistema Brasileiro de Unidades de Conservação da Natureza, apresentam uma série de particularidades e diferenciais. Como características gerais, estas duas categorias representam áreas de domínio público com uso concedido a populações tradicionais e extrativistas, geridas por um Conselho Deliberativo e que permitem o uso sustentável dos recursos naturais e a implementação de estruturas voltadas para a melhoria da qualidade de vida das comunidades. Nos Planos de Manejo das unidades são definidas as normas de uso, o zoneamento das áreas e os programas de sustentabilidade ambiental e socioeconômica, entre outros aspectos. Nestas categorias também é permitido a visitação pública e a realização de pesquisas científicas. A criação destas unidades é motivada por demanda de populações tradicionais e seus objetivos vão além da conservação da biodiversidade e do próprio uso sustentável. Envolvem o reconhecimento das comunidades tradicionais, de seus territórios e da importância do conhecimento e das práticas locais para a conservação ambiental. As RESEX e RDS representam também a busca por um modelo diferenciado de desenvolvimento, de economia, de inclusão social e melhoria de qualidade de vida das populações locais, além da valorização do patrimônio cultural desses grupos. Estas categorias são consideradas inovadoras nos sistemas de áreas protegidas em geral, por explicitarem o caráter intrínseco da relação entre interesse social e ecológico. É o conhecimento que estas populações detém a respeito dos ecossistemas, com os quais desenvolveram práticas ao longo do tempo, que as qualifica para exercerem as finalidades estabelecidas pelo poder público no decreto de criação das áreas e que as habilita para a concessão do direito real de uso. A etnobiologia e a etnoecologia constituem um campo de pesquisa com grande potencial de contribuição para os processos de criação e gestão das RESEX e RDS, assim como estas categorias de unidades de conservação são espaços privilegiados para se investigar aspectos da relação entre natureza e sociedade. Entretanto, apesar das muitas interfaces possíveis, ainda são poucos os estudos de caráter etnocientífico nestas unidades, bem como a incorporação do conhecimento tradicional nos instrumentos de gestão destas categorias.

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Fernandes-Pinto, E. 2008. Resumo expandido apresentado no VII Simpósio Nacional de Etnobiologia e Etnoecologia (VII SBEE), Belém/Pará, dezembro de 2008.

OBJETIVOS E METODOLOGIA Este trabalho objetiva fornecer subsídios para uma análise das categorias de unidade de conservação Reserva Extrativista e Reserva de Desenvolvimento Sustentável e da Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais frente às interfaces possíveis com a Etnobiologia e Etnoecologia. Baseia-se na análise de informações referentes à criação de RESEX e RDS Federais disponíveis no IBAMA e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), avaliação de documentos e de políticas públicas instituídas ou em construção, entrevistas com lideranças comunitárias e gestores das unidades de conservação, bem como na experiência da autora. RESULTADOS E DISCUSSÃO 1. AS RESERVAS EXTRATIVISTAS – RESEX As Reservas Extrativistas (RESEX) foram propostas como resultado de lutas de movimentos sociais de extrativistas da Amazônia - principalmente de seringueiros nas décadas de 70 e 80 pelo direito à terra e um modelo de desenvolvimento compatível com a conservação e uso sustentável das florestas. Nascem do confronto pacífico (“empates”) contra as frentes de expansão incentivadas pelo governo, interessadas em ocupar os “vazios territoriais” e ampliar as “fronteiras agrícolas” na Amazônia. Neste processo, Chico Mendes passou de líder à símbolo da luta pela reapropriação da natureza, pela afirmação da cultura e pela construção de um modelo próprio de sustentabilidade. Estas áreas – que têm por objetivos principais “proteger os meios de vida e a cultura de populações extrativistas e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais” – foram inicialmente regulamentadas pelo Decreto Nº. 98.897 de 1990. Em 2000, a Lei Federal Nº. 9.985 reconheceu a categoria Reserva Extrativista como parte do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) no grupo das unidades de uso sustentável, sendo definidas como “área utilizada por populações extrativistas tradicionais cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte” (Artigo 18). As primeiras RESEX foram criadas no ano de 1990 nos estados do Acre (RESEX Alto Juruá e RESEX Chico Mendes), Amapá (RESEX Rio Cajari) e Rondônia (RESEX Rio Ouro Preto). A partir de então, o modelo expandiu-se da Amazônia para outros biomas e outros tipos de ecossistemas brasileiros. Apenas dois anos depois da instituição das primeiras RESEX florestais Amazônicas, foram criadas a primeira unidade costeiro-marinha (RESEX de Pirajubaé no Estado de Santa Catarina) e quatro unidades voltadas para o extrativismo nas Matas de Babaçu (RESEX Ciriáco, Mata Grande e Quilombo do Frechal no Estado do Maranhão e Extremo Norte do Tocantins, no Estado do Tocantins). Em 2006 a proposta expandiu-se também para o cerrado propriamente dito, com a criação de duas unidades no Estado de Goiás – RESEX Recanto das Araras do Terra Ronca e RESEX Lago do Cedro. Atualmente o número de RESEX federais oficialmente criadas totaliza 56 unidades de conservação, distribuídas em 17 estados brasileiros. O total de área abrangida soma mais de 11 milhões de hectares e estas unidades beneficiam diretamente mais de 65 mil famílias.

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2. AS RESERVAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL - RDS No processo de proposição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) - que se iniciou em 1995 e foi concluído com a instituição da Lei Federal 9.985 em 2000 – duas novas categorias de unidades de conservação de uso sustentável foram propostas - Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Ecológico-Cultural. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável baseou-se no modelo de uma unidade de conservação estadual do Estado do Amazonas, instituída em 1992 a partir da recategorização de uma unidade de Proteção Integral - a Estação Ecológica do Mamirauá, que passou a RDS Mamirauá. Já a Reserva Ecológica-Cultural foi uma categoria proposta pelo NUPAUB/USP com base em modelos de gestão de áreas comunitárias por populações caiçaras, com o objetivo de abranger outros grupos de populações tradicionais que não tem o extrativismo como base principal da sua subsistência, mas que tem integração com um território específico e práticas que garantem a conservação dos recursos naturais. Ao longo da consolidação do SNUC, as duas propostas foram fundidas, mantendo-se o nome Reserva de Desenvolvimento Sustentável com a definição proposta para a categoria Reserva Ecológica-Cultural, sendo consideradas como “área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica (Artigo 20). Atualmente existe apenas uma RDS Federal criada – a RDS Itatupã-Baquiá, no Estado do Pará. Algumas unidades desta categoria foram criadas no âmbito estadual e novas propostas de criação estão em elaboração na esfera federal. As diferenças entre RESEX e RDS estão relacionadas a três aspectos principais: histórico de proposição das categorias, normas legais previstas no SNUC e processo de institucionalização das mesmas nos órgãos ambientais do governo federal e dos estaduais. 3. INSTRUMENTOS DE CRIAÇÃO E GESTÃO Desde a criação das primeiras RESEX – em 1990 - até os dias atuais, houve mudanças significativas nas formas como as comunidades tradicionais se organizam e se apropriam dos seus territórios, na visibilidade política e inserção social adquirida por estes grupos, nas políticas públicas e nos procedimentos administrativos de criação e gestão destas áreas. Estes fatores, somados às singularidades das categorias, representaram e ainda representam grandes desafios para a implementação destas áreas, que exigem constantes adaptações e a elaboração de novas ferramentas administrativas. Na sua luta por justiça sócio-ambiental e um modelo de desenvolvimento condizente com suas especificidades culturais, estas comunidades atuam muitas vezes no centro dos principais conflitos sócio-ambientais brasileiros. No contexto de disputa territorial e pelos recursos naturais que se agrava a cada dia no país, as RESEX são uma das poucas alternativas que comunidades tradicionais têm encontrado como forma de resistência contra a completa desestruturação de seus modos de vida e dos ambientes naturais dos quais dependem (FERNANDES-PINTO et.al., 2007).

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O fortalecimento destas categorias de unidade de conservação e sua crescente difusão e divulgação, somados ao reconhecimento das populações tradicionais, de seu importante papel na conservação ambiental e o acirramento de conflitos socioambientais no país levaram à intensificação das demandas por criação de RESEX e RDS em todas as regiões do País, somando atualmente cerca de 130 processos em estudo. As particularidades dos processos de gestão destas categorias demandam o estabelecimento de procedimentos e instrumentos de gestão que buscassem garantir a participação qualificada da população local, o fortalecimento da organização comunitária, o reconhecimento da importância dos saberes e sistemas de gestão tradicionais dos espaços e dos recursos naturais e o uso de metodologias que permitam gerar uma integração dos conhecimentos tradicionais com os técnico-científicos. A Lei Federal Nº. 9985 de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), contemplou as RESEX e RDS nas categorias de uso sustentável e impôs algumas mudanças na forma de gestão destas áreas. Ao mesmo tempo que o SNUC encerrou a discussão sobre a legitimidade das RESEX como categoria de Unidades de Conservação, desconsiderou suas especificidades e instrumentos de gestão construídos até então. Estas mudanças trouxeram um grande desafio normativo e de gestão e iniciou-se um processo de construção coletiva de novas regulamentações para esta categoria, na tentativa de adequar a lógica original de gestão e protagonismo das comunidades locais às exigências do SNUC. Estas regulamentações inicialmente construídas com os gestores de RESEX e RDS de todo o país e foram consolidadas com lideranças comunitárias de todas as unidades de conservação destas categorias reunidas em um grande encontro em Brasília1. Foram formalizadas em setembro de 2007 através de Instruções Normativas que regulamentam procedimentos de criação de RESEX e RDS, formação do Conselho Deliberativo e elaboração de Planos de Manejo Participativos2. 4) O RECONHECIMENTOS DAS POPULAÇÕES TRADICIONAIS O Brasil está passando por significantes processos de reconhecimento das populações tradicionais do país. Além dos direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988 para povos indígenas e comunidades quilombolas, esforços estão sendo implementados para garantir direitos a outros tipos de populações tradicionais. Em 2004 foi formada a Comissão Nacional para o Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Inicialmente composta por representações de instituições governamentais, esta comissão identificou pelo menos 30 grupos organizados de populações tradicionais, em adição às 220 etnias indígenas.

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O Primeiro Encontro Nacional de Lideranças Comunitárias das RESEX e RDS foi realizado pela Diretoria de Desenvolvimento Socioambiental (DISAM) e pelo Centro Nacional de Populações Tradicionais (CNPT) do IBAMA em Brasília, no período em dezembro de 2006 e envolveu 140 comunitários de 52 unidades destas categorias criadas até então.

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Estas Instruções Normativas encontram-se disponíveis no sitio eletrônico do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, endereço www.icmbio.gov.br. Posteriormente, no ano de 2008, uma quarta Instrução Normativa foi publicada normatizando procedimentos para autorização de pesquisa em RESEX e RDS quando estas envolvem acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado.

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São seringueiros, castanheiros, ribeirinhos e agroextrativistas da Amazônia, mas também quebradeiras de coco-babaçu, pantaneiros, catingueiros, sertanejos, geraizeiros, vazanteiros, chapadeiros, Pomeranos, Romanis, Faxinalenses, Comunidades de Fundo de Pasto, caiçaras, comunidades de terreiros, remanescentes de quilombos e uma grande variedade de grupos de pescadores e mariqueiras3. A composição da comissão foi ampliada em 2006 para incluir representações destes grupos e foi elaborada a Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), oficializada através do Decreto Federal Nº. 6.040 de fevereiro de 2007. Vários fatores contribuíram para deflagrar um processo nacional de dar voz e face a grupos de pessoas e comunidades chamados de “tradicionais”, caracterizados por uma grande invisibilidade histórica. Estes grupos sociais, apesar de novos para a sociedade urbana brasileira, sempre estiveram presentes e ressurgem em uma luta que não é por terra, mas por um território e que não é apenas por acesso a recursos naturais, mas por uma forma particular de se apropriar e interagir com os ecossistemas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Um grande desafio a ser enfrentado nos próximos anos nas unidades de conservação que envolvem populações tradicionais, refere-se à sustentabilidade dessa categoria de Unidade de Conservação – ambiental, social, econômica e cultural. Embora no contexto atual a importância das comunidades tradicionais para a conservação ambiental e para manutenção de serviços ambientais já tenha reconhecimento, ainda é frágil a aplicação de recursos financeiros que apóiem as cadeias produtivas extrativistas. Há necessidade de se buscar alternativas que viabilizem a permanência das famílias extrativistas nas reservas, com melhoria de qualidade de vida, mantendo suas práticas tradicionais e conservando a biodiversidade local. Outras políticas públicas também objetivam trazem benefícios e oportunidades para as comunidades tradicionais – por exemplo, o Programa Nacional de Reforma Agrária, que reconhece as populações relacionadas com Unidades de Conservação de Uso Sustentável como beneficiárias para acesso a créditos; a Política de Garantia de Preços Mínimos, que no ano de 2008 começou a incorporar produtos extrativistas; o Plano Nacional Cadeias Produtivas da Sociobiodiversidade, que está sendo finalizado. Todo este contexto traz novas oportunidades para o campo da Etnobiologia e a Etnoecologia, o que também implica em inúmeros desafios. O diálogo de saberes deve se dar em várias esferas na busca de construção de um país que valorize sua riqueza biológica e sociocultural.

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Pesquisas recentes indicam a existência de um contingente de mais de 4,5 milhões de pessoas consideradas parte de grupos definidos como povos ou comunidades tradicionais (ALMEIDA, 2006), ocupando pelo menos 25% do território brasileiro.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, A.W.B. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização, movimentos sociais e uso comum. No prelo, 2006. 20 p. FERNANDES-PINTO, E.; CORDEIRO, A. Z. & BARBOSA, S. Criação de Reservas Extrativistas e sua importância estratégica frente aos conflitos socioambientais brasileiros. 2007, III Simpósio de Áreas Protegidas e Inclusão Social. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC. Brasília: MMA/SBF, 2000. 56 p. PORTO-GONÇALVES, C.W. Geografando: nos varadouros do mundo. Brasília: Ed. IBAMA, 2003. 591 p. SIQUEIRA, D. & FERNANDES-PINTO, E. Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Reservas Extrativistas. 2007, XIII Congresso Brasileiro de Sociologia.

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