As sutilezas metafísicas do negacionismo climático: como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Marxismo, Ecologia, Mudanças Climáticas, Aquecimento global, Esquerda
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[-] Sumário # 9 EDITORIAL

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ENTREVISTA CRISE MUNDIAL E LIMITES DO CAPITAL Com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle

9

ARTIGOS ENTRE RUÍNA E DESESPERO Negação e constituição do sujeito em Robert Kurz e Slavoj Žižek Cláudio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga

24

O EXÉRCITO NAS RUAS Da Operação Rio à ocupação do Complexo do Alemão. Notas para uma reconstituição da exceção urbana Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho

60

CIDADE OLÍMPICA Sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro Marcos Barreira

75

A TODO VAPOR RUMO À CATÁSTROFE? O capital e a dinâmica do aquecimento global Daniel Cunha

109

AS SUTILEZAS METAFÍSICAS DO NEGACIONISMO CLIMÁTICO Como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista Daniel Cunha

134

LUKÁCS – A ONTOLOGIA DA MISÉRIA E A MISÉRIA DA ONTOLOGIA Cláudio R. Duarte

155

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O DINHEIRO DO ESPÍRITO E O DEUS DAS MERCADORIAS A abstracção real segundo Sohn-Rethel Nuno Miguel Cardoso Machado

187

TESES SOBRE A COMUNA DE PARIS Guy Debord, Attila Kotànyi e Raoul Vaneigem

225

CRÍTICA SOCIAL OU NIILISMO? O “trabalho do negativo”: de Hegel e Leopardi até o presente Anselm Jappe

230

TERÃO OS SITUACIONISTAS SIDO A ÚLTIMA VANGUARDA? Anselm Jappe

247

EXTRATOS DE POLLOCK ou, Pintura e trabalho abstrato Cláudio R. Duarte

261

TÍMIDA SIM, MAS UM TANTINHO DESRECALCADA Ainda um exercício em torno da matéria de Naves e de Guignard Eraldo Santos

288

RODRIGO NAVES E AS DIFICULDADES DA FORMAÇÃO Naves, Guignard, Machado e a crítica das formas modernas Cláudio R. Duarte

298

ADESÃO E DESBUNDE Os êxtases sórdidos de um Brecht às avessas Raphael F. Alvarenga e Natasha B. Palmeira

319

IDEOLOGIA, COMUNICAÇÃO E VISUALIDADE O sistema artístico detectado Marcelo Mari

336

OS DEVOTOS DO SANTO ANÔNIMO Sobre “as visitas que hoje estamos” Cláudio R. Duarte

342

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TRÊS FRAGMENTOS “a hora certa”, “a lição” e “com espírito” Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

351

EXPEDIENTE

366

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As sutilezas metafísicas do negacionismo climático Como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista

Daniel Cunha O negacionismo climático – o questionamento da validade da teoria do aquecimento global – está geralmente associado a ideologias ultraconservadoras nos Estados Unidos e à defesa dos interesses corporativos das companhias petrolíferas. No Brasil, no entanto, a novidade é que surgem formas de negacionimo climático que criticam a teoria do aquecimento global utilizando os conceitos da teoria crítica, nos casos mais refinados, ou do nacionalismo terceiro-mundista, nos casos mais rústicos.1 Aqui faremos a crítica da tese de doutorado de Daniela Onça, que pretende usar a sofisticação da teoria crítica para demonstrar a invalidade da teoria do aquecimento global, que seria, segundo ela, uma ideologia de legitimação do capitalismo tardio.2 Não pretendemos fazer uma crítica detalhada desta obra – falta-nos espaço aqui, e há muitas outras obras que fazem a crítica científica detalhada dos argumentos negacionistas em publicações especializadas e populares – mas expor as falhas nas grandes linhas de seu argumento. Não abordaremos aqui a questão do financiamento de muitos destes “céticos” por corporações petrolíferas e a desonestidade intelectual de muitos dos negacionistas, que já estão documentados na literatura 3 (e não estamos afirmando que se trata disto do caso de Onça). Tampouco consideramos que a ciência climática atual

Seus textos são reunidos na página www.fakeclimate.com (acesso em novembro/2012). ONÇA, D. (2011), “Quando o sol brilha, eles fogem para a sombra...”: a ideologia do aquecimento global. Tese de doutorado, FFLCH/USP, São Paulo. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8135/tde-01062011-104754/pt-br.php (acesso em dezembro/2012). A partir daqui as referências a esta obra serão identificadas no corpo do texto como “Onça”, seguido pelo número da página, como em (Onça 150). 3 Sobre isto, ver FOUCART, S. (2010) Le populisme climatique: Claude Allègre et Cie, enquête sur les ennemis de la science, Paris: Denoël e ORESKES, N. & CONWAY, E. (2010) Merchants of doubt, New York: Bloomsbury. Sobre o climate gate, uma as maiores mistificações de massa já produziadas pela indústria cultural, ver o livro de um dos cientistas envolvidos: MANN, M. E. (2012) The hockey stick and the climate wars: dispatches from the frontlines, New York: Columbia University Press. 134 1

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seja à prova decríticas (o que seria anticientífico) ou que os processos políticos relacionados não envolvam distorções ou ideologizações. O objetivo aqui é fazer uma crítica imanente da tese de Onça. Evidentemente, estamos de acordo com os pressupostos da teoria crítica e do materialismo utilizados por Onça, e consideramos desnecessário discutir isto aqui. Assim, compartilhamos com Onça a crítica à chamada “ecologia profunda” e suas variantes mais ou menos místicas – teoria de “Gaia”, etc. – que consideram que a natureza é um organismo vivo mais ou menos consciente, tendendo teleologicamente a um equilíbrio ou harmonia idealizados – o que no limite é uma forma de animismo. Este é o terreno comum no qual se travará a crítica aqui desenvolvida. A volumosa tese de Onça discorre por mais de quinhentas páginas ao longo de três eixos de argumentação principais: 1) que a natureza está em constante transformação, que não existe um estado de equilíbrio “harmonioso” natural imutável e que, portanto, não há razão para temermos ou nos contrapormos a estas mudanças; 2) que a teoria do aquecimento global é científica e empíricamente falsa; e 3) que o aquecimento global antropogênico é uma ideologia de legitimação do capitalismo tardio. Desenvolveremos aqui a crítica de cada um destes eixos. Natureza, mudanças e limiares Para identificar as raízes histórico-sociais da crença na imutabilidade da natureza, diz Onça que ao longo de toda a história do ocidente, verificamos que um dos temas dominantes em filosofia da natureza é a crença de que o universo, o sistema solar e a Terra são perfeitos demais para terem acontecido por mero acaso (...) Tanto a tradição greco-romana quanto a judaico-cristã imaginam uma ordem na natureza ditada pela divindade e encontram prova disso na notável adequação da Terra como habitat de suas espécies (Onça 49).

Após discorrer sobre o desenvolvimento histórico da teologia, filosofia e ciência ocidentais, conclui Onça: as ideias sobre a perfeição da natureza e a interferência humana sobre ela (...) nunca desapareceram por completo da nossa ciência, deixando no ar um resquício de um ideal de que a natureza imperturbada funciona perfeitamente. (...) A hipótese do aquecimento global é um caso emblemático da persistência desses pressupostos metafísicos ilusórios sobre a estabilidade e a perfeição da natureza na ciência moderna. (Onça 66-7)

Não há o que discordar quanto ao fato de que o clima da Terra, na escala de 135

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tempo geológica, apresentou grandes mudanças. Basta pensarmos nas eras glaciais disparadas pelos ciclos de Milankovitch ou na extinção dos dinossauros, provavelmente causada pela queda de um meteoro que causou mudanças no sistema climático. É cientificamente muito bem estabelecido em ecologia, porém, que a homeostase 4 é propriedade real de ecossistemas, em todas as escalas. Se efetivamente não se pode esperar resiliência5 infinita de ecossistemas dinâmicos, parece ser adequado descrever a história do sistema terrestre e seus subsistemas como a sucessão de diferentes estados homeostáticos, com transições mais ou menos catastróficas. O salto metafísico de Onça pode ser constatado na seguinte afirmação: Muitos eventos interpretados hoje como catástrofes climáticas são completamente naturais e comuns, e não há justificativa para fixarmos uma determinada configuração climática como “normal” ou “preferível”. (Onça 358, grifo nosso).

Aqui, Onça faz total abstração de que as civilizações humanas nasceram e se desenvolveram sob condições climáticas muito específicas, no período de dez mil anos conhecido como Holoceno (ver figura 1 a seguir): Durante o Holoceno, as mudanças ambientais ocorreram naturalmente, e a capacidade regulatória do planeta manteve as condições que permitiram o desenvolvimento humano. Temperaturas estabilizadas, disponibilidade de água doce e ciclos biogeoquímicos, todos permaneceram dentro de limites relativamente estreitos6.

Particularmente, estas condições específicas possibilitaram a estabilização dos níveis dos mares. Sabe-se que as primeiras civilizações floresceram em estuários férteis – Egito, Mesopotâmia, etc. – o que não seria viável sem esta estabilidade. Até hoje, a maior parte da população mundial vive em áreas costeiras. É verdade que hoje temos recursos técnicos para enfrentar situações adversas – vide os megadiques da Holanda –, mas essas técnicas são muito custosas e têm limites.

4

5 6

“Homeostase” é a propriedade de ecossistemas de regular o seu ambiente, através de mecanismos de regulação que emergem da relação entre os seus componentes, mantendo um estado de equilíbrio dinâmico. “Resiliência” é a propriedade de ecossistemas de recuperar o seu estado homeostático original após sofrer um distúrbio. ROCKSTROM ET AL. (2009), “A safe operating space for humanity”, Nature 461, September 2009, p. 472-475. 136

Temperatura antártica (Vostok)

Holoceno

Nível do mar (m)

CO2 (ppm)

o

T (anomalia C)

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Última era do gelo

Concentração de CO2

Nível do mar

Tempo (milhares de anos antes de 1750)

Figura 1: anomalia de temperatura, CO2 atmosférico e nível do mar nos 400 mil anos anteriores à Revolução Industrial (1750)7

A análise de Onça também ignora a dinâmica não-linear do sistema climático. Em sistemas dinâmicos não-lineares a ultrapassagem de certos limiares pode ser causa da brusca passagem do sistema do seu estado original para um estado alternativo bastante diferente.8 O sistema climático também pode estar sujeito a mudanças Define-se como “anomalia de temperatura” o desvio da temperatura média global em relação àquela do período de 1951 a 1980. Adaptado da página de Makiko Sato e James Hansen: http://www.columbia.edu/~mhs119/ (acesso em novembro/2012). 8 Este tipo de comportamento, que pode apresentar multiplicidade de estados estacionários e histerese – ou seja, a propriedade de ecossistemas de apresentar dois diferentes estados possíveis para as mesmas variáveis de estado, sendo o estado efetivo determinado pela sua história anterior –, já foi demonstrado em modelos e experimentalmente em ecossistemas como lagos rasos temperados. Os lagos rasos temperados mudam subitamente de estado (de límpido para turvo ou eutrofizado e vice-versa) com a variação da concentração de nutrientes. Há registro científico da manipulação intencional (biomanipulação) para forçar a transição do estado turvo para o estado límpido. Também a evolução das espécies parece seguir este comportamento dinâmico, como proposto por Niles Eldredge e Stephen Jay Gould em sua teoria do “equilíbrio pontuado”, baseando-se no fato de que a evolução das espécies, conforme os registros fósseis, parece ser caracterizado por longos períodos de estabilidade (homeostase) pontuados por súbitas explosões evolutivas. Sobre mudanças catastróficas em ecossistemas, ver SCHEFFER, M.; CARPENTER, S.; FOLEY, J. A.; FOLKE, C. & WALKER, B. (2001) “Catastrophic shifts in ecosystems”, Nature 413: 591-596. Sobre o caso específico dos lagos rasos temperados (modelo clássico de multiplicidade de estados estacionários) ver SCHEFFER, M.; HOSPER, S. H.; MEIJER, ML.; MOSS, B. & JEPPESEN, E. (1993) “Alternative equilibria in shallow lakes”, Tree 8 (8): 275-279. Sobre biomanipulação em lagos rasos, ver MEIJER, M-L.; DE BOOIS, I.; SCHEFFER, M.; PORTIELJE, R. & HOSPER, R. (1999) “Biomanipulation in shallow lakes in the Netherlands: an evaluation of 18 case studies”, Hydrobiologia 408/409: 13-30. Sobre equilíbrio pontuado, ver ELDREDGE, N.; GOULD, S. J (1972). “Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism”, In: Schopf, T. J. M. (ed.), Models in Paleobiology. San Francisco: Freeman, Cooper and Company, pp. 82-115. 137 7

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catastróficas, e há registros paleoclimáticos de mudanças súbitas (ao longo de décadas) na escala regional9. O melhor exemplo deste comportamento não-linear pode ser buscado em dados paleoclimáticos, nas transições entre períodos glaciais e interglaciais. Este fenômeno natural é causado primeiramente por pequenas variações na órbita terrestre (ciclos de Milankovitch). A partir disto, retroalimentações 10 positivas no sistema climático podem levá-lo a ultrapassar um certo limiar, no qual há a passagem de um estado glacial para um interglacial. Os dados sugerem que os estados intermediários não são estáveis, e o sistema climático tendeu a permanecer em um destes dois estados, com transições entre eles. É isto o que prevêem os modelos de tipo Budyko-Sellers, baseados no balanço energético da Terra e na mudança do albedo de sua superfície, que muda a sua refletividade: quando a frente de gelo polar atinge determinada latitude, a dinâmica interna do sistema é disparada e torna-se irreversível, e o planeta entra em uma era glacial; o processo também ocorre no sentido inverso11, disparado pela lenta acumulação de carbono atmosférico proveniente das erupções vulcânicas, combinada com a redução do intemperismo das rochas em condições glaciais, que remove carbono da atmosfera. No caso do aquecimento global antropogênico, existe a possibilidade de um aquecimento global irreversível (runaway climate change), no qual o aquecimento global, devido ao incremento dos gases estufa, potencializado pelas retroações positivas, acarreta a completa evaporação dos oceanos. Isto também é conhecido como “síndrome de Vênus”, já que são estas as condições naquele planeta. No caso do sistema climático

A modelagem e previsão destas mudanças catastróficas é sujeita a grandes incertezas devido ao elevado grau de não-linearidade, mas vários potenciais limiares (tipping points) são estudados, inclusive em dados paleoclimáticos. Para uma boa revisão sobre a possibilidade de mudanças climáticas bruscas, ver ALLEY, R. B.; MAROTZKE, J.; NORDHAUS, W. D.; OVERPECK, J. T.; PETEET, D. M.; PIELKE JR., R. A.; PIERREHUMBERT, R. T.; RHINES, P. B.; STOCKER, T. F.; TALLEY, L. D. & WALLACE, J. M (2003) “Abrupt climate change”, Science 299: 2005-2010. 10 “Retroação” ou “retroalimenção” (feedback) no sistema climático é o fenômeno que é disparado pelo aquecimento global que incrementa o aumento da temperatura global (retroação positiva) ou o amortece (retroalimentação negativa). Um exemplo de retroação positiva é o derretimento das calotas polares, que substituem superfície clara por superfície escura (que absorve mais calor) e assim catalisa o aquecimento. Uma retroação negativa é a “bomba de solubilidade”, ou seja, o fato de que mais carbono é solubilizado nos oceanos à medida que sua concentração na atmosfera aumenta (princípio de Le Chatelier; este processo, no entanto, causa a acidificação dos oceanos, com outros problemas derivados). 11 Ver BUDYKO, M. I. (1969) “The effect of solar radiation variations on the climate of the Earth”, Tellus 21: 5, p. 611-619; SELLERS, W. D. (1969) “A global climatic model based on the energy balance of the Earth-atmosphere system”, Journal of Applied Meteorology 8, June 1969, p. 392-400. Para uma explanação didática, ver a página Snowballearth: http://snowballearth.org/ (acesso em novembro/2012). 138 9

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terrestre, a maior parte dos cientistas, ao menos por ora, descarta esta hipótese 12. Entretanto, cientistas mais pessimistas, como James Hansen, consideram que a combustão de todas as reservas de carvão e petróleo não-convencional ocasionaria uma “síndrome de Vênus” na Terra.13 Evidentemente, um planeta sob estas condições é absolutamente inóspito a qualquer forma de civilização humana, ou mesmo às formas de vida que conhecemos. Além disso, a dinâmica dos fluxos de matéria e energia do planeta implica que a escala de tempo e o progresso temporal das mudanças climáticas sejam muito distintas daquelas a que estão acostumadas as instituições humanas. O aquecimento global provocado pela emissão antropogênica de carbono à atmosfera é irreversível na escala de tempo de pelo menos mil anos, mesmo que se interrompa completamente a emissão de gases estufa para a atmosfera.14 Esse comportamento dinâmico do sistema climático se deve a fenômenos físicos que têm os seus próprios tempos: o dióxido de carbono tende a ser absorvido pelos oceanos, reduzindo assim a tendência de aquecimento, mas isto é compensado pela diminuição da taxa de troca térmica com o oceano, de forma que os efeitos se cancelam, mantendo a temperatura constante.15 Esta “inércia” do oceano, favorecida pela sua enorme massa, implica que parte do aquecimento devido às emissões passadas ainda está “armazenada no tubo”, vindo a realizar-se nas próximas décadas. Devido a este comportamento dinâmico peculiar, é importante desde já controlar os teores de carbono na atmosfera e suas emissões. Com base em dados paleoclimáticos, já foi proposto um limite de segurança de 350 ppm de CO2 atmosférico, valor este que já foi ultrapassado.16

Cfe. IPCC, Thirty-first session of the IPCC: Bali 26-29 October 2009, disponível em http://www.ipcc.ch/meetings/session31/inf3.pdf (acesso em novembro/2012). 13 HANSEN, James (2009) Storms of my grandchildren, New York: Bloomsbury, cap. 10. 14 Cf. SOLOMON, S.; PLATTNER, G. K.; KNUTTI, R. e FRIEDLIENGSTEIN, P (2009), “Irreversible climate change due to carbon dioxide emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (6), p. 1704-1709. 15 Devido ao fato de que a dinâmica de ambos os processos – absorção de dióxido de carbono e de calor pelos oceanos – são limitados pelo mesmo processo físico, a mistura das águas oceânicas profundas. 16 A cessação das emissões pode fazer este valor recuar, se ocorrer antes que se atinja um limiar ou ponto de não-retorno. Cf. HANSEN ET AL (2008) “Target atmospheric CO2: where should humanity aim?”, Open Atmospheric Science Journal 2: 217-231. Outros consideram que 350 ppm é um valor especulativo. Cf. NATIONAL RESEARCH COUNCIL (2011), Climate Stabilization Targets: emissions, concentrations and impacts over decades to millenia, Washington: The National Academies Press, p. 230. A nosso ver, Hansen et al. não procuraram estabelecer um valor exato para um nível perigoso de CO2 atmosférico, mas, a partir dos dados disponíveis, indicar um valor de precaução a ser considerado nas decisões políticas, o que é obviamente necessário. Os próprios afirmam: “Sugerimos um objetivo 139 12

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Adiciona-se a isto o fato de que nunca houve um aumento tão brusco da concentração de carbono atmosférico quanto após a Revolução Industrial. A taxa de aumento do teor de carbono atmosférico dos últimos anos tem sido de cerca de 2 ppm/ano. O acúmulo natural de carbono na atmosfera, quando temporariamente ocorre, pode chegar a 0,00001 ppm/ano.17 No maior evento atípico de aquecimento global natural conhecido – provavelmente disparado pelo movimento das placas tectônicas, amplificado por retroalimentações –, o máximo térmico do paleocenoeoceno (PETM) ocorrido há 55 milhões de anos, a quantidade de carbono emitido para a atmosfera coincidentemente corresponde ao volume das reservas de combustíveis fósseis atuais. Porém, as emissões se alongaram por cerca de 20 mil anos, e não na escala de décadas, como é a tendência no capitalismo do século XXI. No PETM houve extinção de algumas formas de vida marinha e adaptação das demais 18. Mas as consequências de uma adição de carbono muito mais súbita são provavelmente catastróficas. Além da velocidade da mudança climática ser crucial para a adaptação dos seres vivos e ecossistemas19 (incluindo a agricultura), o aquecimento rápido deve anular o efeito das retroações negativas lentas que tendem a amortecer o seu efeito em escalas de tempo maiores, como o intemperismo das rochas que reduz o carbono atmosférico na escala de milhões de anos – mas é desprezível na escala de décadas ou séculos, como é o caso atual. Portanto, ao afirmar que não existe “configuração climática preferível” no planeta, sem analisar as condições materiais concretas que possibilitam a vida humana e o desenvolvimento da civilização, e ao não levar em consideração a dinâmica peculiar dos processos do sistema climático, Onça recai na mais pura metafísica, como se o homem não dependesse, para o seu metabolismo com a natureza, de um “espaço de

inicial de reduzir o CO2 atmosférico para 350 ppm, com o alvo a ser ajustado à medida que o entendimento científico e as evidências empíricas dos efeitos climáticos se acumularem”. 17 Cf. HANSEN ET AL (2008), op. cit. 18 Cf. CUI, Y. ET AL (2011) “Slow realease of fossil carbon during the Paleocene-Eocene Thermal Maximum”, Nature Geoscience 4 July 2011: 481-485. Para uma exposição em linguagem mais popular, ver KUMP, L. R. (2011) “The last great global warming”, Scientific American, July 2011, p. 57-61. 19 Com o aquecimento global, as espécies animais e vegetais precisam migrar em direção aos pólos ou maiores altitudes, devido ao deslocamento das zonas climáticas. Isto pode ser causa de extinção de espécies e colapso de ecossistemas, por exemplo, quando há barreiras para a migração (naturais, como oceanos, ou artificiais, como cidades), ou quando a mudança é brusca demais. Adaptações evolutivas também demandam tempo. 140

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operação seguro”20 das condições ambientais globais, e como se a sociedade pudesse dispor dos tempos e ritmos para as necessárias mudanças sociais, econômicas e tecnológicas como em qualquer outro tipo de decisão social. Fora daquela faixa de condições materiais, as condições de desenvolvimento e mesmo de existência humanas podem ser colocadas em xeque; para que se possa mantê-las dentro de um intervalo seguro, é preciso agir a tempo. O negacionismo como ideologia e fundamentalismo Em sua cruzada contra a teoria do aquecimento global, Onça expõe uma grande coleção de argumentos e contra-teorias disponíveis na literatura. Uma das fraquezas de sua tese é que os argumentos mais diversos, por vezes mutuamente excludentes – por exemplo, teorias alternativas para explicar o aquecimento global e teorias que negam a ocorrência do aquecimento – são apresentados lado a lado, sem que seja feito um balanço crítico. Aqui não buscaremos rebater detalhadamente cada um dos argumentos, cuja refutação está disponível na literatura científica e de divulgação científica 21, mas escolheremos o mais emblemático. Trata-se da teoria da retroação negativa causada pelas nuvens levada a cabo por Richard Lindzen, o mais conceituado dos cientistas que discordam da teoria do aquecimento global22. Os cientistas climáticos sérios aceitam certos fatos básicos sobre o aquecimento global: que a concentração de carbono na atmosfera está aumentando continuamente, como mostrado pela curva de Keeling (ver figura 2); que este carbono atmosférico causa efeito estufa, devido às propriedades de gases como dióxido de carbono, metano e vapor d’água, que tornam a atmosfera mais opaca à radiação infravermelha (calor); que há ROCKSTROM ET AL., “A safe operating space for humanity”, op. cit. Ver, por exemplo, FOUCART, S. (2010), op. cit., e o blog Real Climate, mantido por cientistas do clima – www.realclimate.org (acessado em novembro/2012). 22 Lindzen é professor de meteorologia no MIT e possui em seu currículo algumas contribuições relevantes para a ciência climática. Além disso, o estilo do seu texto é elegante e atraente, remetendo a um estilo de ciência mais “romântica” e menos matematizada, o que não é muito comum em publicações altamente técnicas como são os artigos científicos sobre climatologia. Nos últimos tempos, porém, Lindzen parece estar se especializando em argumentos e exposições falaciosas. Ver por exemplo a forma falaciosa como apresentou dados de outro grupo de cientistas – “Misrepresentation from Lindzen”: http://www.realclimate.org/index.php/archives/2012/03/misrepresentation-from-lindzen/ – ou como selecionou dados de forma conveniente para “provar” suas teorias – “Lindzen and Choi unravelled”: http://www.realclimate.org/index.php/archives/2010/01/lindzen-and-choi-unraveled/ (acessados em dezembro/2012). 141 20 21

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uma medida de sensibilidade climática ao carbono, geralmente considerada como o aumento da temperatura média da superfície terrestre resultante de uma duplicação instantânea da concentração de carbono na atmosfera23; e que o sistema climático apresenta retroalimentações (feedbacks) positivas e negativas, que amplificam e/ou amortecem esta sensibilidade climática.

Fig. 2: evolução histórica do teor de carbono atmosférico (média anual) 24

A retroalimentação global do sistema climático é o resultado da composição de vários

processos

individuais

que

podem

ser

positivos

ou

negativos.

Uma

retroalimentação global positiva implica que o aquecimento dispara processos que, globalmente,

tendem

a

amplificar

o

aquecimento,

enquanto

que

uma

retroalimentaçãoglobal negativa significa que o aquecimento dispara processos que tendem a amortecê-lo. Os modelos climáticos atualmente utilizados possuem retroalimentação global positiva, devido à contribuição de processos como o aumento da concentração de vapor d’água na atmosfera25.

Ou seja, incluindo apenas as retroalimentações rápidas. O estudo clássico de Jules Charney de 1979 determinou este valor como 3oC +/- 1,5. De lá para cá este valor se manteve basicamente inalterado para a imensa maioria dos cientistas climáticos, variando apenas o nível de incerteza. Para se ter uma ideia do que isto significa, a grande maioria dos cientistas climáticos considera que um aumento da temperatura média global maior do que 2 oC é perigoso, e que um aumento de 6 oC é absolutamente catastrófico. Ver o estudo de Charney: AD HOC STUDY GROUP ON CARBON DIOXIDE AND CLIMATE(1979) Carbon dioxide and climate: a scientific assessment, Washington: National Academy of Sciences. Disponível em www.nap.edu (acessado em novembro/2012). 24 Fonte dos dados: NOAA, ftp://ftp.cmdl.noaa.gov/ccg/co2/trends/co2_annmean_mlo.txt (acesso em dezembro/2012). 25 Com o aumento da temperatura média, mais água evapora, e o ar passa a ter maior capacidade de “armazenar” vapor d’água (aumento da concentração de saturação). 142 23

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Negacionistas climáticos inteligentes como Lindzen percebem que a possibilidade de refutação da teoria do aquecimento global está em descrever retroalimentações negativas ignoradas pelos modelos climáticos. Uma retroalimentação negativa global com magnitude suficiente funcionaria como um “amortecedor” do efeito do aumento da concentração de carbono na atmosfera. O que Lindzen procurou mostrar ao longo dos últimos vinte anos é que o vapor d’água, sabidamente um poderoso gás estufa e que, portanto, é considerado como uma retroalimentação positiva nos modelos climáticos, na verdade comporta-se de forma a regular a temperatura terrestre – ou seja, que o vapor d’água funciona como uma retroalimentação negativa: “As notáveis propriedades termodinâmicas da água quase com certeza levam à sua atuação como o termostato da natureza”26 (grifo nosso). Lindzen propôs então um mecanismo para este “termostato da natureza”: segundo ele, ainda que o aquecimento aumente o teor de vapor d’água próximo à superfície, ele também estaria associado a uma maior convecção em nuvens de tipo cumulus, o que acarretaria a diminuição da umidade na alta troposfera, já que o ar esfria quando sobe e o vapor d’água condensa e precipita. Porém, o próprio Lindzen reconheceu que esta teoria tinha problemas.27 Mais tarde, elaborou outra elegante teoria, baseada em imagens de satélite que mostram a distribuição horizontal das nuvens em altas altitudes. Tais imagens mostram que há uma distribuição espacial heterogênea da umidade na alta atmosfera, com transições bruscas entre zonas de alta e baixa umidade. Como o vapor d’água é um potente gás estufa, as regiões de alta umidade tendem a intensificar o efeito estufa, aprisionando o calor, enquanto as áreas de baixa umidade tendem a permitir o resfriamento terrestre. A teoria de Lindzen é que a cobertura espacial de nuvens cirrus na alta atmosfera, normalizada em relação à cobertura de nuvens cumulus inferiores, se conforma de forma a compensar a elevação da temperatura da superfície dos mares. À medida que a superfície do oceano se aquecesse, as nuvens se configurariam de tal forma a deixar mais espaços sem umidade (e vice-versa), exercendo

LINDZEN, R. S. (1990) “Some coolness concerning global warming”, Journal of the American Meteorological Society 71 (3), p. 288-299. Disponível em http://wwweaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012). 27 O mecanismo apresentava um “problema significativo”, já que os perfis de umidade observados empiricamente eram diferentes dos propostos no modelo. Ver LINDZEN, R. S. (1993) “On the scientific basis for global warming scenarios”, Environmental Pollution 83: 125-134. Disponível em http://wwweaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012). 143 26

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uma retroalimentação negativa que compensaria o efeito do aumento de concentração do carbono atmosférico: a região nebulosa-úmida parece agir como uma íris adaptativa de infravermelho, que abre e fecha as regiões livres de nuvens altas, que permitem o resfriamento de forma mais efetiva, de maneira a resistir a mudanças na temperatura superficial tropical 28 (grifo nosso)

Esta teoria é conhecida como “efeito íris”.29 Trata-se sem dúvida de uma teoria científica extremamente elegante, que atesta a inteligência incomum de seu autor. De fato, pode-se dizer que esta teoria é elegante demais. Afinal, por que a Terra como tal seria dotada de um mecanismo – um termostato, ou de uma íris – para amortecer um efeito inédito na história natural, a emissão massiva e repentina de carbono oriundo da combustão de combustíveis fósseis? Começa aqui a assomar a face mística de Lindzen: seus modelos de termostato terrestre implicam um planeta que funciona como um organismo vivo consciente, que regula sua própria temperatura e, assim, permite que mudemos a composição da atmosfera ao nosso bel-prazer sem causar distúrbios no sistema climático. É pertinente aqui fazer uma análise comparativa com a clássica teoria de Gaia elaborada por James Lovelock e Linn Margulis. Segundo a teoria, a biosfera atua de forma a moldar o ambiente, tornando-o favorável à vida. De fato, como mostram os autores da teoria, a composição da atmosfera terrestre seria completamente diferente se não fosse a presença dos organismos vivos30 – os ciclos biogeoquímicos têm ativa contribuição da biosfera –, de forma que não apenas o ambiente influencia os organismos vivos, mas também os organismos vivos influenciam o ambiente. Para Lovelock, isto implica a homeostase ativa, ou seja, o controle das condições ambientais

LINDZEN, R. S.; CHOU, M.-D. e HOU, A. Y. “Does the Earth have an adaptive infrared iris?” Bulletin of the American Meteorological Society 82 (3), p. 417-432. Disponível em http://wwweaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012). 29 Impressiona a falta de rigor com que as teorias de Lindzen são analisadas por Onça. A teoria do termostato das nuvens cumulus e do “efeito íris” são diferentes, mas são apresentadas por Onça como se fossem a mesma coisa (Onça 276-277). Como já destacado, o próprio Lindzen reconheceu que havia problemas com a sua teoria do termostato baseada na convecção das nuvens cumulus. Ver LINDZEN (1993), op. cit. 30 Não haveria, por exemplo, a presença constante simultânea de substâncias reduzidas como metano e oxidantes fortes como oxigênio; a forma preponderante do nitrogênio seria o nitrato dissolvido, etc., ou seja, a atmosfera terrestre não está em equilíbrio termodinâmico, podendo ser mantida neste estado apenas pela ação dos organismos vivos. Cf. LOVELOCK, J. E. & MARGULIS, L. (1974) “Atmospheric 144 28

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planetárias pelos seres vivos. Para ilustrar o seu conceito, Lovelock e Watson elaboraram um modelo matemático, o “mundo das margaridas” (daisyworld)31. Neste mundo simplificado, plano e sem atmosfera, os seres vivos se resumiriam a margaridas pretas e brancas, que teriam uma temperatura ótima de crescimento idêntica32. As margaridas brancas refletem mais radiação solar do que as pretas, que a absorvem mais. Assim, as margaridas brancas tendem a resfriar o planeta, enquanto as pretas tendem a esquentá-lo. Mostra-se então que quando ocorre variação da radiação solar há uma subsequente mudança na proporção de margaridas pretas e brancas – pois as pretas estão mais adaptadas à radiação solar menor, já que absorvem mais energia, enquanto as brancas à radiação solar mais intensa, já que a refletem mais – de forma que a temperatura deste mundo imaginário é mantida constante, como se fosse equipado de um termostato. Esta seria uma ilustração da maneira pela qual os organismos vivos tendem a controlar as condições ambientais do seu ambiente, sem violar os princípios darwinianos.33 No sistema climático real, sabe-se que, na escala de tempo de centenas de milhares de anos, o aumento da temperatura provoca o aumento da taxa de intemperismo de silicatos da crosta terrestre, o que remove carbono da atmosfera, funcionando como retroação negativa34. Lovelock propôs para a sua Gaia que as bactérias intensificariam esse processo, já que a sua atividade influi na concentração de dióxido de carbono no solo35. A proposição de uma retroação negativa para controlar a temperatura do planeta não é novidade, portanto. Ocorre que a teoria da retroação negativa de Lindzen é uma combinação extremada da retroação geológica com a Gaia de Lovelock: se em Gaia, na sua melhor versão, a homeostase emerge como resultado da homeostasis by and for the biosphere: the Gaia hypotehsis”, Tellus XXVI: 1-2. Disponível em http://www.jameslovelock.org/page34.html (acessado em novembro/2012). 31 LOVELOCK, J. E. e WATSON, A. J. (1983) “Biological homeostasis of the global environment: the parable of Daisyworld”, Tellus 35B: 284-289. Disponível em http://www.jameslovelock.org/ (acessado em novembo/2012). 32 Ou seja, a velocidade de crescimento máxima se dá a uma temperatura específica, e decresce à medida que a temperatura se afasta deste valor, para mais ou para menos, até eventualmente tender a zero. 33 Outros autores, entretanto, mostram que nem toda seleção natural é homeostática, ou seja, ao contrário do “mundo das margaridas”, elas podem instabilizar o ecossistema. 34 Ver WALKER, J. C. G.; HAYS, P. B e KASTING, J. F. (1981) “A negative feedback mechanism for the long term stabilization of Earth`s surface temperature”, Journal of Geophysical Research 86 (10): 97769782. 35 LOVELOCK, J. E. (1982) “The regulation of carbon dioxide and climate: Gaia or geochemistry”, Planetary Space Science 30 (8): 795-802. Disponível em www.jameslovelock.org (acessado em novembro/2012). 145

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interação cega dos seres vivos36 (de forma análoga ao equilíbrio de preços como resultado da “mão invisível” do mercado), e pode ser perturbada pela ação de forças suficientemente fortes 37 , em Lindzen é o próprio planeta inorgânico que se autorregula, não na escala de tempo geológica (como no intemperismo de rochas), mas como uma retroalimentação rápida, capaz de compensar a súbita emissão antropogênica de carbono. Estamos próximos aqui de uma espécie de animismo, de um “mundo das margaridas” sem as margaridas, com resiliência tendendo ao infinito. Porém, homeostase e resiliência são propriedades emergentes, que resultam da interação entre os diferentes componentes de um ecossistema em sua evolução natural. Imaginar uma regulação homeostática para processos significativos de magnitude desconhecida na história natural de um sistema dinâmico, que mantenha este sistema no mesmo estado de equilíbrio, sem mudanças de estado ou estados transientes, é apostar na metafísica.38 É isto que faz a teoria do “efeito íris” de Lindzen: aposta na existência de um sistema de regulação natural para a súbita adição de grande quantidade de carbono na atmosfera a uma taxa inédita na história planetária – ou seja, um sistema com resiliência metafísica, que não se caracteriza como uma propriedade emergente de um sistema natural, mas como a mais pura teleologia. Um entendimento materialista da resiliência, porém, implica necessariamente a possibilidade de que o estado homeostático de um sistema possa ser rompido. Pode-se argumentar, porém, que o “termostato” e o “efeito íris” são apenas metáforas, e que não há nenhum sentido metafísico nas expressões utilizadas por Lindzen, assim como se usa o termo para o caso da retroação negativa do intemperismo de rochas combinado com as emissões de carbono das erupções vulcânicas. No entanto, o próprio Lindzen descreve o controle da temperatura atmosférica como “uma ideia de

Versões “fortes” da teoria de Gaia afirmam que os seres vivos controlam a Terra de forma ativa, inclusive no sentido a “otimizar” o ambiente, de forma que o planeta como um todo poderia ser considerado um ser vivo. Aqui Gaia definitivamente deixa de ser uma metáfora eventualmente útil e adentra o terreno do misticismo. 37 Como é o caso do aquecimento global antropogênico ou mesmo o “mundo das margaridas”, onde a ultrapassagem de limiares máximos e mínimos de radiação resulta na morte de ambas as variedades de flores. Ver LOVELOCK, J. E & WATSON, A. J. (1983), op. cit. 38 De fato, Odum e Barrett propõe que o termo “homeostase” seja utilizado apenas até a escala do indivíduo, onde há um setpoint geneticamente definido – como, por exemplo, na regulação da temperatura corporal dos mamíferos. Para escalas maiores, eles propõe o termo “homeorrese”, para indicar que se trata de um equilíbrio muito mais contingente e instável. Cf. ODUM, E. P. & BARRETT, G. W. (2004) Fundamentals of ecology, 5th edition, Thomson Brooks/Cole. 146 36

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natureza teológica ou filosófica”39. E é o próprio Lindzen que afirma: “O efeito estufa é tão poderoso que a Terra sabiamente encontra maneiras mais eficientes de resfriar a sua superfície”40 (grifo nosso). Vejamos agora o que diz Lindzen em testemunho no parlamento britânico: Temos trabalhado nisso [a retroalimentação negativa causada pela distribuição espacial das nuvens] desde então, e isto se parece muito com uma retroalimentação negativa que seria forte o suficiente para amortecer todas as retroalimentações positivas no modelo. É uma área de pesquisa, mas é politicamente incorreto nestes dias falar do mundo, ou da Terra, como sendo de alguma forma projetada [engineered]. Se algum de vocês tem formação em engenharia (...), você nunca constrói nada com retroalimentações positivas, a não ser que queira amplificar algo. Você constrói tudo de forma que as retroalimentações o mantenham em equilíbrio.41 (grifos nossos)

Lindzen está aqui claramente utilizando o argumento do design inteligente, ou seja, está afirmando que a Terra deve ser dotada de um mecanismo de retroalimentação negativa que regula a temperatura do planeta, mesmo para fenômenos de dimensões inéditas na história natural, porque foi projetada, e o projeto não poderia ser defeituoso, não poderia estar sujeito a distúrbios previsíveis a um projetista onisciente, que um projeto deveria prever estes distúrbios de antemão e precaver-se contra eles: a Terra é sábia. Um argumento que mergulha nas águas turvas do criacionismo e do misticismo. De fato, tal argumento é, mais do que politicamente, cientificamente equivocado. Ele atenta contra aquilo que Jacques Monod chamou de “postulado da objetividade”: A pedra angular do método científico é o postulado da objetividade da Natureza. Isto é, a recusa sistemática em considerar como capaz de conduzir a um conhecimento “verdadeiro” toda interpretação dos fenômenos dada em termos de causas finais, ou melhor, de “projeto”.42

Esta postura não-científica ou anti-científica é escancarada sem pudores por Roy Spencer, outro negacionista climático que defende ardorosamente a hipótese da Cf. KERR, R. A. (1989) “Greenhouse skeptic out in the cold”, Science 246, December 1989, p. 1118. LINDZEN, R. S. (1990) “A skeptic speaks out”, EPA Journal 16, p. 45-47. Kerr (1989), op. cit., p. 119, relata: “Em outra de suas asserções filosóficas, Lindzen acredita que as retroalimentações negativas (...) dominam todas as retroalimentações de aquecimento, ou positivas. Em escalas de tempo de poucos séculos ou menos, ele diz, até mesmo a mais forte perturbação, de qualquer origem, não iria levar o sistema climático relativamente insensível a um estado distintamente mais quente”. 41 Disponível em http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200506/ldselect/ldeconaf/12/5012508.htm (acessado em novembro/2012). 42 MONOD, J. (1971/1989), O acaso e a necessidade, 4a. ed., Petrópolis: Vozes, p. 32. 147 39

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retroalimentação negativa do vapor d’água43. Ele firmou uma declaração evangélica sobre o aquecimento global. Alguns termos da declaração: Acreditamos que a Terra e os seus ecossistemas – criados pelo projeto inteligente e infinito poder de Deus e sustentados pela Sua divina providência – são robustos, resilientes, autorreguladores e autocorretivos, admiravelmente adequados ao desenvolvimento humano, e demonstram a Sua glória. O sistema climático da Terra não é exceção. (...) Negamos que a Terra e seus ecossistemas sejam produtos frágeis e instáveis do acaso, e particularmente que o sistema climático da Terra seja vulnerável a alteração perigosa por causa de minúsculas alterações na química atmosférica [sic].44

E eis aqui, expresso sem pudores, o paradigma ideológico de Lindzen, Spencer e outros obstinados caçadores de retroalimentações negativas no sistema climático terrestre. Ao que parece, Onça, que dedicou tantas páginas em sua tese para (corretamente) criticar a noção mística de uma natureza em equilíbrio eterno e idealizado, não foi suficientemente crítica para perceber que o paradigma subjacente ao negacionismo climático de suas referências é um tosco fundamentalismo criacionista. Tanto Lindzen quanto Spencer são referências-chave para Onça, e são sistematicamente citados, nunca com viés crítico, mas para apoiar o seu argumento. Quando ironiza vertentes místicas da ecologia – “A natureza, em prefeito equilíbrio na ausência de intervenções humanas, possui um termostato maravilhosamente regulado para os propósitos humanos, basta não interferirmos. A atmosfera imperturbada regula a temperatura ideal do planeta, especificamente designada para manter o conforto térmico dos seres humanos. Afinal de contas, foi para os seres humanos que este planeta foi criado...” (Onça 68) – a autora não percebe que está sendo mais mística do que os místicos, já que o modelo que utiliza como referência prevê que mesmo a atmosfera perturbada regula a temperatura do planeta. É irônico que ela tenha gasto várias páginas em sua tese para criticar o uso de modelos climáticos 45, e acaba por utilizar Spencer e Lindzen citam-se mutuamente em seus artigos sobre aquecimento global. CORNWALL ALLIANCE (s. d.), An evangelical declaration on global warming, Disponível em http://www.cornwallalliance.org/articles/read/an-evangelical-declaration-on-global-warming/ (acessado em novembro/2012). 45 Onça critica o uso irrefletido de modelos, como se eles não tivessem limitações e pudessem substituir o mundo real, o que é um truísmo. De fato, modelos matemáticos não são perfeitos e não descrevem todos os possíveis processos envolvidos no sistema estudado, e isso nem é desejável. Diz-se no meio que a modelagem é a arte da simplificação, de modo que a identificação dos processos-chave de um sistema permitem compreender a dinâmica do todo, desprezando-se os processos que apenas tornariam as simulações mais lentas, custosas e de difícil compreensão. De qualquer forma, todo modelo deve sempre ser utilizado criticamente, e validado com dados empíricos. Os modelos climáticos apresentam 148 43

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como referência um modelo altamente idealizado e especulativo, crivado de teleologia, que foi várias vezes refutado empírica e metodologicamente.46 A declaração evangélica não se preocupa em disfarçar os motivos mais mundanos de suas preocupações teológicas. Na mesma declaração, lê-se: Negamos que combustíveis alternativos e renováveis possam, com tecnologia presente ou de curto prazo, substituir os combustíveis fósseis e nucleares, seja na sua totalidade ou de parte significativa, para fornecer a energia abundante e barata necessária para sustentar economias prósperas ou superar a pobreza.

Faltou apenas afirmar que o petróleo foi uma dádiva divina predestinada ao desenvolvimento do capitalismo – e ao enriquecimento dos capitalistas. De fato, os argumentos de Onça analisados até aqui poderiam ser tiros vindos da direita – e de fato o são: autores como Richard Lindzen e Luc Ferry 47, usados por Onça, são referências conservadoras cativas. Ao final, o que se tem é uma apologia da flexibilização das relações com a natureza – tal qual a flexibilização dos direitos trabalhistas – para que a acumulação de capital fique desimpedida. Como argumenta Naomi Klein: os deniers não decidiram que a mudança climática é uma conspiração de esquerda ao descobrir algum conluio socialista. Eles chegaram a essa conclusão considerando seriamente o que seria necessário para reduzir as emissões globais tão drástica e rapidamente quanto a ciência exige (...). Eles não estão errados.48

Mas Onça faz um enxerto em sua teoria para torcê-la em direção à esquerda, como veremos agora.

imperfeições (como a magnitude do efeito dos aerossóis e o comportamento das nuvens), mas estão em constante aperfeiçoamento; tampouco são as únicas ferramentas para a análise da mudança climática, já que também se pode extrair informações do clima passado (dados paleoclimáticos). O que se estranha é que modelos são utilizados em praticamente todos os processos produtivos e econômicos da atualidade, e Onça parece querer dispensá-los justamente no caso onde eles são mais necessários, tanto pela gravidade e dinâmica peculiar da questão, onde se fazem necessários projeções e cenários, quanto pelo fato de que não se pode conduzir experimentos controlados com o planeta. 46 Dessler, por exemplo, partindo do mesmo tipo de dados que Lindzen, chega ao resultado de que a retroalimentação das nuvens é provavelmente positiva, com uma pequena probabilidade de que seja negativa, mas com magnitude baixa, não suficiente para amortecer o efeito das emissões antropogênicas. Ver DESSLER, A. E. (2010) “A determination of the cloud feedback from climate variations over the past decade”, Science 330, December 2010, 1523-1527. 47 Ferry faz uma crítica da “ecologia profunda” do ponto de vista liberal, com as graves limitações subjacentes, mostrando as tendências regressivas, em alguns casos tendentes ao fascismo, de algumas ideologias ecologistas. Ver FERRY, L. (1992/2002) Le nouvel ordre ecologique: l’arbre, l’animal e l’homme, Paris: LGF. 48 KLEIN, N. (2011) “Capitalism vs. the climate” , The nation, November 28th 2011, disponível em http://www.thenation.com/article/164497/capitalism-vs-climate (acessado em novembro/2012). 149

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Quando o marxismo tradicional se une à direita Qual seria a razão da teoria do aquecimento global ser de tal forma difundida e aceita socialmente, já que, segundo Onça, ela é científica e filosoficamente falsa? Sobretudo, ela teria função ideológica para justificar um novo ciclo de acumulação: A Climatologia aparece hoje como uma importante força produtiva do capitalismo tardio. Com a hipótese do aquecimento global, atual mãe de todos os medos ambientais, ela se posiciona na linha de frente do desenvolvimento de novas tecnologias e do controle dos interesses sociais, atuando em prol do saneamento de empresas por parte do Estado e assim, consolidando-o em seu papel de grande gerenciador da economia. (Onça 411)

Assim, O IPCC é o órgão responsável por compilar a pesquisa climática produzida de acordo com os interesses de governos e empresas e idealizar as estratégias de mitigação da mudança climática, sempre atreladas ao desenvolvimento de novas tecnologias e fontes de energia e aos mecanismos de desenvolvimento limpo, tão interessantes a governos e empresas nos dias atuais. (Onça 409)

Isto estaria inserido no contexto mais geral do Estado intervencionista: O Estado capitalista moderno interfere diretamente na economia, manipula as crises, protege os produtos nacionais através do controle das importações e das exportações, incentiva e dinamiza a economia com investimentos em infra-estrutura e saneamento de empresas. Da mesma forma, o Estado interfere no mercado da força de trabalho, combate o desemprego, reforça as políticas sociais de saúde e educação e procura controlar a mão-de-obra excedente. Ou seja, o Estado capitalista moderno se converte no Welfare State, o Estado de Bem-Estar que desativa a luta de classes e minimiza os conflitos entre operários e industriais em nome do bem-estar coletivo. (Onça 404).

Primeiramente, é preciso observar que a ciência da mudança climática se desenvolve desde o século XIX. Fourier descreveu primeiramente a física do chamado “efeito estufa” em 1824 e 1827; Tyndall descreveu suas pesquisas sobre os gases traço que aprisionam calor na atmosfera em 1861; Arrhenius investigou o efeito do aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera em 1896; Callendar, Revelle & Suess e Bolin & Eriksson voltaram a investigar a questão em 1938, 1957 e 1958, respectivamente; e Keeling começou a medir a concentração de carbono atmosférico em

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Mauna Loa em 1958.49 Teriam todos estes cientistas previsto as necessidades do capitalismo do século XXI, e formulado suas teorias com o fim de satisfazê-las? Parece ridículo considerá-lo. Onça, em todo caso, sempre pode alegar que a compilação do IPCC é ideológica. De qualquer forma, a autora permanece presa ao paradigma do primado da política de Friedrich Pollock.50 A verdade histórica deste paradigma estava ligado ao período do capitalismo fordista nos países do centro, quando, de fato, o Estado assumiu a função explícita de garantidor do bem-estar social e indutor do desenvolvimento econômico, onde o pólo político até certo ponto se sobrepôs ao pólo econômico na estrutura polar dualista do sistema social moderno. Porém,

Fourier foi o primeiro a tentar determinar a temperatura da superfície terrestre a partir de um modelo físico (balanço energético), e nisso considerou o efeito da atmosfera (o chamado “efeito estufa”). Arrhenius chegou a um valor supreendentemente preciso para a época da sensibilidade climática à duplicação da concentração de carbono atmosférico, mas não considerou as emissões de carbono de seu tempo perigosas para o clima, pois considerou que elas aumentariam linearmente (tivesse Arrhenius conhecido Marx, talvez fizesse uma projeção exponencial). Callendar chegou a conclusão semelhante à de Arrhenius, também assumindo progressão linear das emissões, mas já admite a influência humana no clima por emissões de carbono (ainda que pudesse ser positiva): “Poucos entre os que estão familiarizados com as trocas de calor naturais da atmosfera que contribuem para forjar o clima e o tempo estariam preparados para admitir que as atividades humanas poderiam ter influência sobre fenômenos de tão grande escala. (...) Espero mostrar que esta influência não apenas é possível, mas que está realmente acontecendo no presente”. Revelle & Suess descartaram a possibilidade de aquecimento global antropogênico devido à suposição de uma absorção de carbono pelos oceanos muito mais rápida do que o que ocorre na realidade, mas admitem: “Nas próximas décadas a taxa de combustão de combustíveis fósseis continuará a crescer, se as exigências de combustível e energia de nossa civilização industrial global continuarem a crescer exponencialmente (...) Portanto, a humanidade está agora levando a cabo um experimento geofísico em grande escala, de um tipo que não poderia ter ocorrido no passado e nem ser reproduzido no futuro”. Finalmente, Bolin & Eriksson, levando em consideração química do “tampão” do oceano, que desacelera a absorção de carbono atmosférico, e a aceleração das emissões de carbono, concluíram que as emissões poderiam ser perigosas: “As implicações em relação ao equilíbrio radiativo da Terra (...) podem ser consideráveis”. Ver FOURIER, J.-B. J. (1827) “On the temperatures of the terrestrial sphere and interplanetary space”, Mémoires de l’Académie Royale des Sciences 7: 569-604; TYNDALL, J. (1861) “On the absorption and radiation of heat by gases and vapours, and on the physical connexion of radiation, absorption, and conduction”, Philosophical Magazine 4 (22): 169-194, 273-285; ARRHENIUS, S. (1896) “On the influence of carbonic acid in the air upon the temperature of the ground”, The London, Edinburg and Dublin Philosophical Magazine and Journal of Science 5th Series, Vol. 41, no. 251; CALLENDAR, G. S. (1938) “The artificial production of carbon dioxide and its influence on climate”, Quarterly Journal of the Royal Meteorological Society 64: 223-240; REVELLE, R. & SUESS, H. E. (1957) “Carbon dioxide exchange between atmosphere and ocean and the question of an increase of atmospheric CO2 during the past decades”, Tellus 9: 18-27; BOLIN, B. & ERIKSSON, E. (1958) “Changes in the carbon dioxide content of the atmosphere and sea due to fossil fuel combustion”, In: The Atmosphere and the sea in motion: scientific contributions to the Rossby Memorial Volume (ed. B. Bolin), New York: Rockfeller Institute Press, p. 130-142; KEELING, C. D. (1960) “The concentration and isotopic abundances of carbon dioxide in the atmosphere” Tellus XII (2): 200-203. 50 Pollock é citado explicitamente como referência de sua análise (Onça 400-ss.). 151 49

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embora os dois pólos do ‘campo’ não possam existir somente para si e pressuponham sempre o pólo contrário, eles não são hierarquicamente iguais. Muito pelo contrário, há um sobrepeso estrutural do pólo econômico, que, por um lado, pode parecer superado (aufgehoben) temporariamente em benefício do pólo estatal-político, mas que, por outro lado, sempre se restabelece novamente. (...) A evidência desse predomínio do mercado pode ser demonstrada com base num fato fundamental: o Estado não possui nenhum meio primário de regulação, mas depende do meio do mercado, isto é, do dinheiro. Entretanto, o meio ‘poder’ atribuído ao Estado e, teoricamente, na maioria das vezes, identificado com o dinheiro não possui nenhum grau hierárquico primário, apenas um grau secundário, pois todas as medidas do Estado precisam ser financiadas 51.

A Terceira Revolução Industrial, portanto, esfacelou a estabilidade do welfare state: o capitalismo baseado em exércitos de trabalho fordista se desfez com a microeletrônica e a automação. A utilização de conceitos pollockianos do capitalismo de welfare state para teorizar o capitalismo de crise do século XXI constitui flagrante incompreensão da dinâmica do sistema. No capitalismo pós-fordista, o primado da política desfaz-se no ar: pela primeira vez na História, a velocidade de racionalização eliminadora de trabalho supera a expansão dos mercados. A produtividade aumenta com rapidez cada vez maior, ao passo que a expansão do modo de produção, considerada na sua totalidade, chegou ao fim. Por isso, a esperança por um novo surto de acumulação é bastante ingênua. (...) Quanto mais fraca se tornar a acumulação real, tanto menos o crédito estatal será financiável, e, quanto menos o Estado puder ser financiado, tanto maiores se tornarão as suas tarefas em virtude da crise estrutural da acumulação. É nesse círculo vicioso que a própria modernidade produtora de mercadorias se aprisionou (...) Com efeito, só existe, a rigor, um único “regime de regulação” e “acumulacão”, que é simultaneamente o primeiro e o último, a saber, o modelo fordista52.

Assim, no capitalismo de crise, o Estado do welfare state foi há muito substituído abertamente pelo Estado policial do regime de exceção permanente, administrador de crises53. Mas o anacronismo histórico de ancorar a teoria do aquecimento global como suposta ideologia estatal para uma nova fase de acumulação capitalista pressupõe o velho primado da política, o Estado como ente independente de suas próprias fontes de financiamento. Pois se sabe que a quase totalidade do financiamento do Estado provém de

estruturas

e

corporações

carbono-intensivas.

O

Estado

como

indutor

KURZ, R. (1997) “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, In: KURZ, R. Os últimos combates, Petrópolis: Vozes, p. 91-115. 52 Ibid., p. 113-114. 53 Ver DUARTE, C. R. (2012) “O capitalismo como estado de exceção permanente”, Sinal de Menos 8: 5171. Disponível em www.sinaldemenos.org (acessado em novembro/2012). 152 51

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desenvolvimento de tecnologias de baixo carbono, portanto, pressupõe uma concepção metafísica do Estado como deus ex-machina, que nega a sua própria base de sustentação. O marxismo tradicional de corte pollockiano de Onça também transparece em sua crítica exclusiva do modo de distribuição capitalista, relegando ao esquecimento o modo de produção54: “a pobreza e a miséria não são provocadas pelo aquecimento global, mas sim pela concentração de renda” (Onça 448); “Como este capitalismo e este Estado tão alinhados podem hoje, com este nível de riqueza e de tecnologia à disposição, justificar a continuidade e o agravamento da miséria global? É simples: negando que ele seja o resultado da concentração de renda, da ação de uns poucos conglomerados industriais, da falta de vontade política, e escolhendo a dedo um novo culpado paratudo: o aquecimento global” (Onça 449). De fato, o aquecimento global não é o responsável por todas misérias do mundo, e pode ser utilizado ideologicamente em favor do capital, como argumenta Onça55. Mas não se pode confundir uma possível instrumentalização da teoria do aquecimento global pela direita com a validade científica da própria teoria56. Ao apontar como causa daquelas misérias a mera desigualdade de distribuição da riqueza, e não a própria forma assumida pela riqueza – como valor abstrato que se sobrepõe ao valor de uso sensível, social e ecológico, como forma-mercadoria –, forma da riqueza esta que tem como consequência lógica a contínua produção social de proletarizados, precarizados e não-rentáveis, de um lado, e de poluição e tecnologias Para uma crítica do marxismo tradicional, ver POSTONE, M. (1993/2003) Time, Labor, and Social Domination: a reinterpretation of Marx’s critical theory, Cambridge: Cambridge University Press; KURZ, R. (1991/2004) O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial, São Paulo: Paz e Terra. 55 “A ciência climática constitui hoje uma mitologia” (Onça 427); “a Climatologia trabalha pela continuidade e agravamento da apropriação privada da riqueza socialmente gerada e das tradicionais estruturas de dominação social, eximindo o Estado da responsabilidade de suas ações” (Onça 411); “Esta é a função da ideologia do aquecimento global: a perpetuação da exclusão social travestida de comprometimento com as gerações futuras” (Onça 462). 56 De outra parte, o movimento pela “justiça climática” é ignorado. Ele parte da constatação de que a maior parte das emissões de carbono foi originada nos países ricos, mas, segundo as projeções científicas, os mais prejudicados pelo aquecimento global seriam os países pobres – incluindo o Brasil, que teria áreas costeiras inundadas e poderia perder a floresta amazônica. Exige-se, portanto, compensação. Sobre o movimento por “justiça climática”, ver KLEIN, N. (2009) Climate rage, disponível em http://www.naomiklein.org/articles/2009/11/climate-rage (acessado em novembro/2012). Uma das iniciativas mais notórias neste sentido é a do Equador, que demanda ser compensado pelos países ricos para que não explore o petróleo de Yasuní, onde há um floresta tropical, evitando as emissões de carbono e a destruição da floresta. Ver http://www.sosyasuni.org/ (acessado em novembro/2012). 153 54

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destrutivas, de outro, Onça permanece em um nível deficitário de crítica do capitalismo. Ao assumir acriticamente os pressupostos da modernização capitalista implícitos na esquerda tradicional, Onça se vê obrigada a negar os seus limites ecológicos, da mesma forma que a direita conservadora. Se os limites ecológicos do planeta denunciam a destrutividade da valorização do valor e a necessidade de superação das categorias fundamentais do capitalismo (mercadoria, valor, trabalho abstrato), então estes limites é que não devem existir, pois nada pode se contrapor à metafísica do “progresso” e do “desenvolvimento” compartilhada pela esquerda tradicional e pela direita. Ambas se unem quando seus pressupostos comuns são ameaçados 57. Naomi Klein propõe inverter a lógica dos deniers conservadores: se você perguntar aos membros do Instituto Heartland, a mudança climática faz com que algum tipo de revolução esquerdista seja inevitável, e é precisamente por isso que eles estão tão determinados a negar a sua realidade. Talvez devêssemos prestar mais atenção às suas teorias – eles podem ter entendido algo que a esquerda ainda não captou 58.

Porém, isso não pode se tratar de uma mera distribuição de renda – que, mantida a sociabilização capitalista, talvez decretasse definitivamente a catástrofe ecológica global – mas de mudar a forma da riqueza e de sua materialização técnica correspondente (a transição solar). Como a esquerda tradicional ontologiza o valor e o trabalho abstrato, não surpreende que rejeite ideologicamente tudo aquilo que os ameace, como o aquecimento global.

(Setembro/2012-Janeiro/2013)

Esta identidade categorial de esquerda e direita também pode se manifestar como o outro lado da moeda da teoria de Onça, ou seja, quando se reconhece a crise ecológica e se propõe, a partir de ponto de vista de esquerda, um novo ciclo de acumulação baseado em tecnologias ecológicas – um New Deal verde. Ver SCHWARTZMAN, D. (2011) “Green New Deal: an ecosocialist perspective”, Capitalism, nature, socialism 22 (3): 49-56. 58 KLEIN, N. (2011), op. cit. 57

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