As teorias do trágico no presente: os vencidos da história e a poética dos pequenos gestos: as tragédias de Michel Laub

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As teorias do trágico no presente: os vencidos da história e a poética dos pequenos gestos: as tragédias de Michel Laub Felicio Dias Bolsista de Iniciação Científica da UERJ/ FAPERJ

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar criticamente a obra Música anterior (2001), primeiro romance de Michel Laub. Trata-se de compreender como os personagens de Laub são representativos de sujeitos vencidos da história (Benjamin, 2012) e integram a ideia de uma poética dos pequenos gestos dentro da perspectiva das tragédias do contemporâneo. Junto às reflexões por um viés histórico e não reducionista de Walter Benjamin (2011) e Terry Eagleton (2013), traremos questões sobre tragédia e história na prosa brasileira contemporânea. A narrativa de Laub intensifica os pequenos conflitos de personagens irreconhecíveis e párias para a história cujas pequenas ações são tensionadas nas confluências dos diversos fatores que corroboram na crise do sujeito no presente. Palavras-chave: História. Teoria. Tragédia. Michel Laub.

Introdução Ao nos debruçarmos sob a poética do autor Gaúcho Michel Laub, perceberemos um modelo narrativo que se vale das obsessões, das lembranças, do fardo da culpa, dos pequenos atos e outros elementos recorrentes em suas tramas, delineando, assim, personagens psicologicamente

complexos.

Neste

viés,

Laub

esboça

(in)voluntariamente

sua

ficcionalização do trauma, que vai desde as recordações de Auschwitz, em Diário da queda (2010), ao trágico da vida e do homem comum, em Música anterior (2001), até a percepção de que há um trágico sem heroísmo, sem épica, configurando-se nas minúcias do cotidiano. Esses pequenos atos do presente trarão consequências futuras ao se desdobrarem e serem retomados, evocando, então, um certo fardo da consciência observado nas ações excessivas de seus personagens. É neste ponto que estabelecemos um de nossos primeiros campos preliminares para adentramos na poética de Laub; a condição de um narrador que parte de um presente para um passado em busca de um motivo originário a fim de justificar seus atos, o que aqui nos permite esboçar o termo (ou, ainda, uma teoria) da qual chamamos de “poética dos pequenos gestos”. Ainda, é possível dizer que, mesmo em uma poética composta por sete obras ao todo,

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Laub lança mão de uma estrutura narrativa que nos permite traçar a hipótese de um único sujeito que procede todas as suas seis obras romanescas: o sujeito dos pequenos gestos. No entanto, para melhor nos situarmos, é possível destacar outras obras de expressão na literatura contemporânea universal que também dialogam com a ideia de pequenos atos, ou pequenos gestos, que exultam num conflito irreconciliável, são elas: O sentido de um fim (2011), de Julian Barnes, Os cus de Judas (2010), de António Lobo Antunes, Amuleto, de Roberto Bolaño (2006), Sábado (2013), de Ian McEwan, e O filho da mãe (2009), de Bernardo Carvalho. As referentes obras são narrativas representativas de um panorama histórico que põe em xeque a totalidade do sentido histórico pela visão de personagens à margem da historiografia tradicional. Ainda, a guerra, o trauma, a condição humana e a desintegração do relato histórico no cotidiano corroboram no ponto fulcral para nossa hipótese: a trágica experiência de se narrar as tragédias da história [entende-se aqui como história das passagens catastróficas da historiografia tradicional e da história do próprio sujeito banal – a história dos vencidos]. Tais obras vão requerer a compreensão do diálogo da ficção atual com a tradição teórica e literária construída pelo pensamento filosófico, cujas bases se assentam na atual discussão em torno do trágico, da história, do sujeito e seu espaço no mundo. No entanto, é em Michel Laub, especificamente em seu primeiro romance, Música anterior, que essas questões são levadas ao extremo. Dessa forma, a obra de Laub nos servirá como motor principal para nossa discussão acerca dos vencidos da história e suas pequenas ações.

As ressignificações da tragédia Para Walter Benjamin (2013), não só a arte, mas também a história devem ser tomadas como ponto de partida para a compreensão mais ampla e profunda do trágico, tanto no entendimento das ações quanto das relações de tempo histórico. Assim como para Paul Ricoeur (2010) a narrativa se revela como questão importante para a constituição do sujeito, para Benjamin, a narração e a história fazem parte da constituição do ser. A literatura, como forma de descontinuidade temporal, não advoga um corte arbitrário da história, mas (re) codifica a representação alegórica do mundo com vista às ressignificações da experiência. Assim, ao passo que a história toma sua forma pela escrita, os processos que norteiam as zonas fronteiriças entre ficção e o real nos conduzem aos postulados sobre o drama barroco, no qual, para Benjamin (2011, p. 189) “a fisionomia alegórica da história natural, que o drama barroco coloca em cena está realmente presente sobre a forma de ruína”. Na mesma

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linha do pensamento de Benjamin, a construção do processo histórico em que o sujeito de Laub se insere também se baseia na descontinuidade, na catástrofe e na ruína. Ou seja, a discussão que se trava diz respeito à constituição da experiência atrelada à descontinuidade histórica e à transitoriedade na formação dos processos narrativos. A história do sujeito é, então, retomada sob a forma de ruína que se constitui em um processo de inevitável declínio, e que o leva a olhar melancolicamente a história e seu tempo – um tempo trágico não sobre a história dos vencedores, mas agora sobre a dos vencidos (BENJAMIN, 2012). Trata-se de uma ideia do trágico pela história de pequenos feitos, sem grandes atos heroicos ou redentores. É essa forma de compreensão histórica do sujeito que norteia a ficção contemporânea: o trágico como desajuste do ser em face de seu tempo histórico e dos relampejos do passado, cujos efeitos se dão a partir da queda de um mundo de segurança e felicidade, ainda que suposto e idealizado, concomitantemente interior e exterior. Entendemos as personagens de Michel Laub sob a perspectiva de sujeitos vencidos, cuja história falida e banal se entrecruza às tragédias e às barbáries dos grandes eventos históricos explorados e espetacularizados pela historiografia tradicional. Os aspectos do trágico que consideramos aprofundam e alargam as visões teóricas que se enraízam na crítica social, na sociologia, nas práticas culturais, na crítica política e nas humanidades como um todo. De certa forma, as redes do pensamento filosófico que prendem o sujeito no mundo de hoje dialogam, diretamente, com questões secularizadas nos dogmas da religião, liberdade, do autoritarismo, do fascismo, das tragédias dos povos e das nações e, principalmente, do posicionamento do ser frente às barbáries do mundo hodierno. Segundo Terry Eagleton, em Doce violência: a ideia do trágico (2013), para se pensar o trágico no século XX é necessário partir da compreensão de que a tragédia não está morta, mas sim transformada. Nesse sentido, as forças do trágico que habitam a tragédia, hoje, estão representadas na forma de uma reação à barbárie moderna e na necessidade de compreender o devir histórico, deslocando a raiz da complexidade do pensamento crítico para questões como a ciência, a democracia, o liberalismo, a arte, a história e o pensamento social. Com isso, as formas de representação da tragédia no século XX conferem novas significações ao impulso trágico, sobretudo pautado nas novas problemáticas das forças de poder, linguagem, história, produção e desejo. A questão mais importante exposta por Eagleton é como a tragédia é constantemente (re)lida e (re)ssignificada, sendo usada e apropriada de diferente formas, indicando caminhos não-diretos, caminhos questionáveis e irrespondíveis. Essas novas forças do trágico e da tragédia há muito tempo se perderam do palco e não são mais associadas à sua representação

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dramática, podendo ser agora associada às mais inusitadas formas de representação do sofrimento humano. Junto às ideias de Raymond Williams, Eagleton vai ao cerne da questão ao tentar destituir um discurso de poder elitista e conservador do uso do termo que se restringe às grandes tragédias representadas nos dramas clássicos, indo contra as teorias que advogam uma ideia de morte da tragédia quando pensada sobre a noção de modernidade, ou, mais além, de pós-modernidade. Essa tentativa de Eagleton de pensar um novo sentido do trágico e da representação artista da existência revela, principalmente, a tipologia romanesca como reduto da complexidade humana. Abandona-se as grandes peças, dramas e tragédias como referência primária e desloca-se o pensamento crítico para as relações do homem, da sociedade, da política, da história, do marxismo, da ontologia e das diversas possibilidades do trágico no romance. As noções do trágico e tragédia, então, distendem um critério rígido e se alastram pela noção de uma mutação da tragédia em um modernismo tardio. Com isso, sob os radicais pensamentos de Eagleton, sem negar a contribuição das teorias clássicas, avistamos um caminho para construirmos, neste trabalho, nosso pensamento sobre o trágico, partindo exatamente dos aspectos que são estranhos à tradição clássica e à crítica mais conservadora, e que, concomitantemente, ressignifica, ilumina, ruína e retorna o/ao passado. É partir dessas considerações que encontramos espaços para correlacionar a poética de Michel Laub com as possibilidades de um novo ideal do trágico, e, assim como Eagleton elegeu Thomas Mann como força motriz de suas questões, buscaremos essa mesma potencialidade na ficção contemporânea.

A história dos vencidos e pequenos gestos O que fica da história são justamente suas implicações no modo do sujeito de se organizar tanto no coletivo quanto em sua busca pessoal. Em A era dos extremos, de Eric Hobsbawm (1995), não se sabe muito bem do século seguinte e o que estaremos determinados a viver, porém residirá a certeza de que o panorama histórico, cultural, político e social que está se formando ao longo das eras terá sido moldado, prioritariamente, pelas extremas forças históricas do breve século XX. A era da catástrofe, estendida de 1914 até depois da Segunda Guerra Mundial, corroborou em significativas mudanças no modo de organização das sociedades, principalmente nas transformações sociais, deixando um legado de mudanças decisivas para as transformações do próprio homem e sua subjetividade. Para Hobsbawm, foram “(...) anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda s sociedade humana

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que qualquer outro período de brevidade comparável.” (1995, p.15). Tanto para Hobsbawm quanto para Benjamin o passado está estritamente seccionado no presente e essa questão se alastra como motor fundamental para as discussões que se lançam na contemporaneidade, seja sobre o estatuto do tempo histórico, seja sobre a constituição do sujeito que empreende a tentativa de compreender esse presente contínuo. Estendem-se essas considerações às radicais e revolucionárias concepções de história de Walter Benjamin. Conforme Sérgio Paulo Rouanet (2008), as teses sobre a história de Benjamin delineiam justamente aquilo que se encontra no contra fluxo das próprias noções de história dentro da teoria. Desde o Prólogo Epistemológico-crítico em A origem do drama trágico alemão (2012), Benjamin problematiza a ideia de representação ou apresentação da verdade e do conhecimento pelo conceito de tratado. Sob essa dimensão do pensamento, não haveria uma possibilidade de levar o conhecimento em si, mas sim de expor/apresentar a verdade – não a verdade absoluta, mas uma referência em relação à dimensão difusa de sujeito, objeto e conhecimento. A metodologia benjaminiana envereda por um caminho não direto, fragmentado, aberto e não reduzido, cujo papel central da filosofia é apontar, mas não definir, assim como Benjamin aponta a ideia de Alegoria, de Drama trágico alemão e de ruina, porém não as define dentro de um esquema de verdade totalizante. O valor dos fragmentos é decisivo e o pensamento não pode conferir à representação um caráter inacabado, assim como o próprio conhecimento filosófico não coincide com a verdade, mas sim com as ideias. Dito de outra forma, a ideia para Benjamin é muito maior que o “conceito”, e com isso o filósofo parte de uma teoria que não fecha conceitos, mas reside apenas na ideia. Nesse viés, para a melhor compreensão da visão Benjaminiana sobre a história, é necessário ter em mente a compreensão de que uma de suas questões mais caras: a alegoria. A noção de alegoria reside justamente na “ideia” e consiste na extinção da totalidade e, nesse caso, a representação da história na arte não poderia vir de um conceito, apenas da ideia, pois para o filósofo só a ideia poderia ser o caminho para a arte. Nesse caso, a alegoria e as próprias imagens ruinadas não seriam meras retóricas ilustrativas, mas sim “(...) expressão como linguagem, e também a escrita” (BENJAMIN, 173). As relações de história, linguagem e arte estão intrinsecamente interligadas pelas expressões imagéticas da alegoria e das ruínas, ou, mais especificamente, a história como fragmentos. Ou seja, o que Benjamin nos propõe no percurso de sua teoria é pensar filosoficamente junto às aproximações das noções de história da filosofia, língua e linguagem. É a partir dessa reflexão que podemos pensar a ideia de história como anti-linear e fora de uma categoria de historicismo. Nesse sentido, a história não pode ser vista como uma sucessão de eventos

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lineares e demarcados, pois o tempo da história aqui é um tempo não preenchido, sem validade histórica universal e, portanto, extingue-se a falsa aparência da totalidade. Assim, podemos fixar uma possibilidade da uma outra compreensão de história a partir do projeto teórico de Benjamin, percorrendo os caminhos das ruinas e dos fragmentos para chegarmos à uma noção de história fora da totalidade da historiografia burguesa. Para Rouanet, a atitude revolucionária de Benjamin consiste em conceber a história não somente pela concepção dos vencedores, mas sim dos vencidos: a história como uma sucessão de desastres e sem nenhuma ordem. Esse movimento de desarticulação da história desloca fundamentalmente a noção de fluxo continuo dos acontecimentos e a apresenta como fatos ruinados e truncados, dentro de uma rede de declínio: Essas teses sobre a história da filosofia estão contidas em anotações feitas por Benjamin em seu último ano de vida (1940) a fim de servir de base a uma espécie de introdução epistemológica a seu trabalho sobre As passagens de Paris, e deveria desempenhar nessa obra o mesmo papel desempenhado no livro sobre a tragédia barroca, pela introdução em que expõe sua versão da doutrina das ideias. É evidente a unidade teórica dos dois textos, escritos com quinze anos de intervalo: do platonismo historicizado desse último ao marxismo platonizante do primeiro, existe a preocupação central com a salvação do passado. A história, segundo essas teses, é a história do sofrimento humano, como no barroco, e não a história triunfalista da redenção estética, religiosa, ou política – uma história que só é significativa nos episódios de declínio (ROUANET, 2007, p. 24).

Nota-se, a partir do excerto supracitado, a história como uma acumulação de ruinas, de sujeitos pequenos e menores frente à redenção da historiografia burguesa. As teses de Benjamin se fazem justamente frente aos pequenos e grandes na mesma proporção: O cronista, que narra os acontecimentos em cadeia, sem distinção entre grandes e pequenos, faz jus à verdade, na medida em que nada do que uma vez aconteceu pode ser dado como perdido para a história. É verdade que só a humanidade redimida será dada a plenitude do seu passado. E isso quer dizer que só para a humanidade redimida o passado se tornará citável em cada um dos seus momentos (BENJAMIN, 2012, p. 10).

As redes de interseção entre história e sujeito são inerentes e irrefutáveis, uma vez que sem história não há identidade e nem sujeito. A ideia de história aqui é justamente aquela que aberta às lamentações de todos, no entanto, principalmente dos pequenos sujeitos no curso da vida. Nessa direção, ao se pensar na história do sujeito, assume-se que todo corpo possui uma história, assim como a rotina e a banalidade da vida se inserem dentro de um plano histórico que acompanha o sujeito e suas redes de relações interpessoais. Precisamos compreender essa concepção de história aqui como a rede de ações que acompanho o sujeito no decorrer de sua existência, não importando a busca por algo extraordinariamente fascinante no cotidiano,

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porém assumindo uma postura de reconhecer esses espaços ficcionais como dramas legítimos participativos de uma noção mais ampla de história. Terry Eagleton cunha que enquanto o drama trágico retira como matéria da vida alguns momentos genuínos de crise, “o romance é uma espécie de sociologia imaginativa que devolve tais momentos intensos e isolados ao fluxo e contrafluxo da história (...)” (2013, p. 253). Voltando-nos especificamente para a prosa de Michel Laub, em Música anterior, o juiz narrador é representativo de um sujeito em que seus caminhos se enveredam numa empreitada ordinária, cuja vida banal e incompleta se reduz a fatalidade da sociedade contemporânea. Contudo, mesmo dentro dessa epopeia da vida moderna, cujo vazio e frustração delegam as burocracias d avida do narrador, há uma encruzilhada subjetiva que amplifica todas as mínimas trivialidades e frustrações e apontam caminhos para um momento de crise e queda do sujeito laubiano: Quebrar um ovo é delicado. Eu costumava emporcalhar qualquer superfície escolhida para servir de anteparo à operação. A quina do fogão, por exemplo. Quando criança eu quebrava o ovo na quina, batia-o de leve na quina, em geral isso não surtia nenhum efeito, então eu batia um pouco mais forte, também sem efeito, então eu batia um pouco mais forte, também sem efeito, então eu me decidia e batia com bastante força, aí o ovo quebrava, mas quebrava como não deveria quebrar, em vez de rachar e permitir que a tenda deixasse escorrer para fora a clara e mais tarde a gema ele se despedaçava inteiro, e era um tal de gema e clara por cima do fogão, um tal de pano úmido para limpar a sujeira, um tal de pedaço de casca no chão e ovo jogado no lixo, um tal de desperdício e desespero e xingamento, até que aprendi como fazer. Naquele dia, preparando-me para jantar sozinho, minha mulher tomaria banho e encomendaria comida chinesa por telefone, ou então faria um sanduiche, ou então sairia para comer, minha mulher odeia omelete, eu nunca consegui fazê-la comer omelete, naquele dia eu quebrei o ovo com uma delicadeza digna de competição, se no mundo inteiro medisse a delicadeza no rompimento de uma casca de ovo eu certamente ganharia um prêmio (LAUB, 2001, p. 87-88).

Laub opera no limiar do que poderia ser considerado como uma vitória na medíocre existência do narrador juiz, como também poderia ser um fato isolado e de menor importância quando colocado numa perspectiva temporal e histórica, cujo fascínio pelo grandioso tem sua marca apenas nas rememorações dos grandes eventos. Nesse caso, quebrar um ovo toma proporções significativas na vida do narrador, em que um de seus poucos momentos de glória pode ser encontrado justamente no instante de se quebrar um ovo de forma primorosa. A ideia de uma história e tragédia dos pequenos gestos se esboça justamente nesses pequenos relampejos de epifania cuja compreensão da essência da vida ocorre exatamente no momento em que se depara que um dos seus grandes atos da vida é quebrar um ovo:

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Rompi as cascas dos quatros ovos e deixei escorrer os perspectivos conteúdos para dentro de um prato fundo. Acrescentei um pouco de leite e bati com uma colher. A mistura ficou com a densidade correta. Pus sal e uma pitada de pimenta-do-reino. Aqueci a manteiga numa frigideira e a enchi com ovos e leite. E bastante queijo. Mexi rapidamente, baixei o fogo, tampei a frigideira e deixe lá, cozinhando, pelo tempo certo (LAUB, 2001, p. 88).

Esse pequeno momento, controversamente prologando, aparece como um esboço de uma tentativa de epifania, em que o narrador percebe que a única coisa em que fez correta ao longo de toda a sua vida foi quebrar um ovo. Nos dois trechos destacados da narrativa é apresentada uma pequena epopeia do personagem na sua incursão de aprender a quebrar corretamente um ovo e fazer uma boa omelete. O narrador parece dar bastante atenção a esse fato e narrar com vivacidade, usando de construções linguísticas que ressaltem suas qualidades no momento de quebrar o ovo e produzir uma omelete – recurso esse que Laub não usa em nenhuma outra parte do livro para ressaltar algum valor positivo na caracterização do narrador juiz. Seguindo essa estrutura, amplificam-se os extremos de cada detalhe da ação desse narrador, se utilizando de orações longas e vírgulas em excessos que criam uma cadeia sequencial de muitas informações que pintam um quadro ilustrativo do grande-pequeno ato de quebrar o ovo, talvez o mais significativo positivamente na história da sua vida. Nesse sentido, as longas e intermináveis orações prolongam a ação do personagem, criando uma atmosfera de suspense e grandiosidade dentro da própria banalidade. Esses elementos e recursos usados por Laub resultam naquilo que estamos determinados a defender nesta monografia como “Poética dos pequenos gestos”. A ideia de poética dos pequenos gestos se insere nas tramas compreendidas como composições trágicas na ficção, ou, ainda nas teorias do trágico hoje. A narrativa de Laub intensifica os pequenos conflitos de personagens irreconhecíveis e párias para a história cujas pequenas ações são tensionadas nas confluências dos diversos fatores que corroboram na crise do sujeito no presente. O mesmo sujeito, produto das experiências temporais das catástrofes históricas emuladas na historiografia dos séculos XX e XXI, organiza seu relato em forma de uma epopeia vazia, na qual o próprio sujeito, sem uma real epopeia, narra e organiza a própria banalidade em forma de história. No entanto, diferentemente do sujeito histórico de Diário da queda ou de A maçã envenenada, o narrador-juiz de Música anterior não está preocupado nos agenciamentos dos traumas das catástrofes históricas (por exemplo, Auschwitz e o Genocídio de Ruanda) como epicentro dramático de sua própria vida. Nesse caso em específico, o narrador desloca as questões temporais dos desastres da história tradicional e se coloca como centro da narrativa e da investigação filosófica e humanista da relação do ser-no-mundo frente

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ao devir histórico e o desajuste do sujeito. O narrador de Laub recorre a um específico tipo de relato que amplifica esses pequenos atos a fim de tornar a sua própria queda trágica em um relato histórico – a história da sua vida, do seu corpo e sua existência. Ao entrevermos em Música anterior um primeiro romance de Michel Laub, já se apresentando de forma sólida e consistente, ainda que dentro das limitações de um primeiro romance, empreendemos um longo caminho que atravessa as teorias do trágico, a dualidade do sujeito, a liquefação dos nossos tempos, as ruinas da história e as concepções de desajuste do ser no ápice do idealismo alemão. Estabelecemos um amplo diálogo entre as diversas áreas dos saberes das humanidades a fim de criarmos condições para revistarmos o passado com os pés fincados no presente e ao mesmo tempo olhar o futuro pelo retrovisor.

Referências bibliográficas: ANTUNES, António Lobo. Os Cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

BARNES, Julian. The sense of an ending. United States of America: Vintage Books, 2011. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, vol. I. 8. São Paulo: Brasiliense, 2012. ______. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2012. ______. A origem do drama trágico alemão. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. BOLAÑO, Roberto. Amuleto. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. EAGLETON, Terry. Doce violência: a ideia do trágico. São Paulo: Editora Unesp, 2013. HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das letras, 1995. LAUB, Michel. Música anterior. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ______. (2000). Música anterior. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ______. (2011). Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ______. (2012). A maçã envenenada. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. MCEWAN, Ian. Sábado. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2008.

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