As teorias dos ciclos sistêmicos de acumulação e da estabilidade hegemônica: uma análise comparada

June 6, 2017 | Autor: M. Isaias Mendes | Categoria: International Relations, Globalization, International Business, International Political Economy
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS APLICADAS

MARCOS VINICIUS ISAIAS MENDES

AS TEORIAS DOS CICLOS SISTÊMICOS DE ACUMULAÇÃO E DA ESTABILIDADE HEGEMÔNICA: Uma Análise Comparada

Limeira 2013

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS APLICADAS

MARCOS VINICIUS ISAIAS MENDES

AS TEORIAS DOS CICLOS SISTÊMICOS DE ACUMULAÇÃO E DA ESTABILIDADE HEGEMÔNICA: Uma Análise Comparada

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Gestão de Comércio Internacional à Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Barros Mariutti Co-orientador: Prof. Dr. Cristiano Morini

Limeira 2013

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA PROF. DR. DANIEL JOSEPH HOGAN DA FACULDADE DE CIÊNCIAS APLICADAS

M522t

Mendes, Masrcos Vinícius Isaías As teorias dos ciclos sistêmicos de acumulação e da estabilidade hegemônica: uma análise comparada / Marcos Vinícius Isaias Mendes. - Limeira, SP: [s.n.], 2013. 49 f. Orientador: Eduardo Barros Mariutti Co-orientador: Cristiano Morini Monografia (Graduação) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Aplicadas 1. Capitalismo. 2. Hegemonia. 3. Estados Unidos. 4. História Econômica. I. Mariutti, Eduardo Barros. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Ciências Aplicadas. III. Título.

Título em inglês: Theories of systemic cycles of accumulation and hegemonic stability: a compared analysis. Keywords: - Capitalism; - Hegemony; - United States; - Economic History. Titulação: Bacharel em Gestão de Comércio Internacional. Banca Examinadora: Prof. Dr. Cristiano Morini Prof. Dr. Marcos José Barbieri Data da defesa: 03/07/2013.

FOLHA DE APROVAÇÃO

AGRADECIMENTOS Na preparação deste trabalho eu contei com a ajuda e o apoio de um número grande de pessoas. Contudo, desde que cheguei à Unicamp e ao longo de todo o meu processo de formação no curso, a quantidade de pessoas que me ajudaram foi bem maior, e seria um erro não lembrá-las. Portanto, nesta folha de Agradecimentos, citarei todos os que contribuíram para que eu chegasse nessa fase final do curso. Agradeço à minha família, especialmente à minha vó, Francisca, à minha mãe, Ivanir, e ao meu irmão, Felipe. Vocês me inspiraram e me fizeram mais forte para superar as dificuldades! Agradeço às minhas professoras dos Ensinos Fundamental e Médio, Alba, Luciene e Zina. Vocês me incentivaram e me ajudaram a chegar aqui! Agradeço aos meus amigos: Marcela, Manoela e Roberto, com quem convivi e aprendi muitos nos últimos anos. Agradeço ao Anderson e ao Alexander (Sander) pelas dicas e orientações indiretas neste trabalho. Agradeço à equipe com quem trabalhei no Centro de Computação, principalmente à Sueli e ao Fernando, que me ajudaram imensamente nos momentos mais corridos da graduação, e ao Bruno, pelas ideias e ajuda no início da preparação deste trabalho. Agradeço ainda aos meus colegas da Cosin, onde trabalho, por terem me ajudado sempre que precisei, nesses meses finais de graduação. Agradeço especialmente ao Rafael e à Renata. Agradeço também, e como não poderia deixar de ser, a todos os professores da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, que ministraram as disciplinas que cursei. Aprendi muito, e vocês foram essenciais para isso! Agradeço ainda às professoras Maria Eugênia e Stefany, da Universidad Santo Tomás, na Colômbia, que me ensinaram muito sobre Economia e Espanhol, nos meses em que vivi em Bucaramanga. Agradeço, por fim, ao meu orientador, Prof. Mariutti, e ao meu co-orientador, Prof Morini, pela orientação e apoio desde o início deste trabalho. Sem vocês eu não teria conseguido.

MENDES, Marcos Vinícius Isaias. As Teorias dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação e da Estabilidade Hegemônica: Uma Análise Comparada. 2013. 47f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Gestão de Comércio Internacional) – Faculdade de Ciências Aplicadas, Universidade Estadual de Campinas, Limeira, 2013.

RESUMO

O sistema capitalista vem se desenvolvendo ao longo dos séculos, e a maneira como os Estados se estruturaram na busca por poder foi um fator importante para esse desenvolvimento. Ao longo dos cinco últimos séculos quatro potências, uma após a outra, conseguiram se sobressair, construindo cadeias de produção e acumulação nunca vistas anteriormente. Tais potências ascenderam e, exceto a mais recente, foram substituídas seguindo um padrão histórico semelhante, constituído de uma fase de expansão produtiva seguida de uma fase de acumulação financeira e posterior declínio. A esse padrão recorrente de ascensão, declínio e substituição de potências o sociólogo italiano Giovanni Arrighi denominou Ciclos Sistêmicos de Acumulação. O ciclo sistêmico mais atual é o dos Estados Unidos e foi com base no poder hegemônico global dessa potência que, em meados da década de 1970, foi criada a Teoria da Estabilidade Hegemônica. Essa teoria analisa o papel de hegemons como os EUA no cenário global, e procura avaliar os impactos positivos e negativos de sua existência. Essa foi a primeira e mais relevante teoria desenvolvida dentro do recente campo de estudo da Economia Política Internacional. Neste trabalho é feita uma análise comparativa entre as duas teorias em questão, numa tentativa de entender quais os pontos em comum entre ambas, e de que maneira eles ajudam a explicar o funcionamento do Sistema Internacional.

Palavras-chave:

Capitalismo.

Hegemonia.

Estados

Unidos.

História

Econômica.

MENDES, Marcos Vinícius Isaias. The Theories of Systemic Cycles of Accumulation and of the Hegemonic Stability: A Compared Analysis. 2013. 47f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Gestão de Comércio Internacional) – Faculdade de Ciências Aplicadas, Universidade Estadual de Campinas, Limeira, 2013.

ABSTRACT

Capitalism has been developing for centuries. The way in which states structured themselves in order to be more powerful was an important factor in this development. In the last 500 years, four world powers stand out for their building of production and accumulation chains. These nations became more powerful, and except in the case of the last one, were replaced according to predictable historical pattern. This pattern consists of a phase of productive economic expansion, followed by a phase of financial accumulation and then finally decline. Italian sociologist Giovanni Arrighi coined the term Hegemonic Cycles of Accumulation to describe this phenomenon. The current cycle is headed by the United States because of its global hegemonic power and formed the basis for the Theory of Hegemonic Stability which was devised in the mid-1970's. The theory analyses the role of a hegemon, such as the United States, at a global level and attempts to evaluate its positive and negative impacts. This was the first and most notable theory developed within the field of International Political Economy. In this work a comparative analysis between these two theories is made, in a search of understand the links between them, and in which way they help us to explain how the International System works.

Keywords:

Capitalism.

Hegemony.

United

States.

Economic

History.

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................. 9 2. A TEORIA DOS CICLOS SISTÊMICOS DE ACUMULAÇÃO .......... 11 2.1. As Bases da Teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação ..................... 11 2.2. O Ciclo Genovês ....................................................................................... 17 2.3. O Ciclo Holandês ...................................................................................... 21 2.4. O Ciclo Britânico ...................................................................................... 24 2.5. O Ciclo Norte-Americano ......................................................................... 27 3. A TEORIA DA ESTABILIDADE HEGEMÔNICA ............................... 33 3.1. Império-Mundo versus Hegemonia .......................................................... 33 3.2. As Bases da Teoria da Estabilidade Hegemônica ..................................... 34 3.3. A Teoria da Estabilidade Hegemônica e o caso dos Estados Unidos ....... 36 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 43 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 48

9

1. INTRODUÇÃO O que seria o Capitalismo? Em que locais ele se desenvolveu destacadamente entre os séculos XV e XIX? Quais os principais atores que contribuíram para esse desenvolvimento? Essas são perguntas cruciais para a primeira parte deste trabalho, e busco respondê-las principalmente com base na obra O Longo Século XX, escrita pelo sociólogo italiano Giovanni Arrighi e publicada em 1994. Essa primeira parte do trabalho trata da teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação, desenvolvida por Arrighi, com base em obras de autores clássicos da Economia Histórica, como Fernand Braudel e Karl Marx. A análise aqui feita parte de uma descrição do que chamo ‘as bases da teoria’, na qual são abordados os pontos específicos do pensamento de Marx e de Braudel, utilizados por Arrighi na descrição de seus ciclos. É explicada a estrutura geral do ciclo sistêmico, suas principais características e as origens de seu desenvolvimento. Em seguida, é feita uma breve análise dos quatro ciclos sistêmicos que, de acordo com o autor, ocorreram ao longo dos últimos quinhentos anos: o Genovês, o Holandês, o Britânico e o NorteAmericano. E ao longo do século XX, que fatores contribuíram para o desenvolvimento do capitalismo? Como e por quê, ao longo desse século, os Estados Unidos alcançaram tanto poder em escala mundial? A segunda parte desse trabalho trata de analisar essas questões. A teoria aí estudada é a Teoria da Estabilidade Hegemônica, ou THE, que tem como principais autores Charles Kindleberger e Robert Gilpin. A obra em que baseio essa segunda parte é International Political Economy: an intelectual history, do economista político Benjamin Cohen. O capítulo 3, dedicado à THE, é iniciado com uma breve explicação dos conceitos de Império-Mundo e Hegemonia, principalmente usando os conceitos de Immanuel Wallerstein. Tal diferenciação de conceitos se faz necessária para o entendimento da teoria que se propõe a explicar. Em seguida, é realizada uma descrição das ‘bases’ dessa teoria, seção na qual se remonta ao surgimento da Economia Política Internacional, ou EPI, como campo de estudo, realizando-se um breve comparativo das escolas norte-americana e britânica da EPI. Cabe ressaltar que a Teoria da Estabilidade Hegemônica foi a primeira e mais importante teoria desenvolvida dentro desse campo de estudo. Por fim são aplicados os conceitos

10

estudados para o caso Estados Unidos, principalmente através de um descritivo histórico de como esse país alcançou e como administra a hegemonia global que atualmente detém. Por fim, no capítulo intitulado Considerações Finais é feito um breve comparativo de semelhanças e diferenças entre as duas teorias. Aqui, utilizarei principalmente conceitos de Economia e de Relações Internacionais para descrever as duas teorias do sistema capitalista de que trata este trabalho. A metodologia utilizada é a leitura de obras de grande relevância sobre ditas teorias, as quais são citadas ao longo do texto. Desse modo, a metodologia consiste de duas técnicas principais: estudo exploratório e pesquisa bibliográfica. O objetivo deste trabalho é, pois: realizar uma comparação entre as teorias dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação e da Estabilidade Hegemônica. Como objetivos específicos, tem-se: (a) descrever a primeira teoria, revisando os principais autores que a estudam; (b) descrever a segunda teoria, através da mesma metodologia; (c) aplicar os conceitos da segunda teoria ao caso dos Estados Unidos e (d) sumarizar as semelhanças e diferenças entre ambas. A justificativa é o fato de que a compreensão do desenvolvimento dos países hegemônicos ao longo da história pode ser útil para prever de alguma forma o surgimento atual ou futuro de novos países hegemônicos.

11

2. A TEORIA DOS CICLOS SISTÊMICOS DE ACUMULAÇÃO

2.1. As Bases da Teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação O estudo do sistema de produção capitalista apresenta várias vertentes ou escopos de análise, boa parte delas formuladas a partir da obra seminal de Karl Marx, O Capital. Alguns estudam esse sistema em seu aspecto mais econômico, analisando as trocas comerciais e seu entrelaçamento com as finanças, como é o caso de François Chesnais, com seu estudo sobre as empresas multinacionais, e John Dunning, teórico da internacionalização de empresas e do Investimento Direto Externo. Outros estudam-no sob o aspecto das classes sociais, divisão do trabalho e da riqueza e relações de dominação dos mais pobres pelos mais abastados, fato que ocorreria devido ao desenvolvimento natural do referido sistema. Há ainda os que vêem o Capitalismo através de sua ligação com a política, analisando as relações entre desenvolvimento econômico e os aspectos de regulação Intra-Estatais e/ou InterEstatais, geralmente recorrendo à História e à evolução do sistema no tempo. Dentre esses autores está Giovanni Arrighi, teórico que desenvolveu o conceito de ciclos hegemônicos, analisado neste trabalho. Em seu livro O Longo Século XX, Arrighi estuda o padrão de formação, comportamento e declínio do modo de produção capitalista em diversos tempos históricos. Para essa análise, ele desenvolve o conceito de Ciclos Sistêmicos de Acumulação, e adota como principais referências os conceitos de Capitalismo de Marx e a trilogia de livros do historiador francês Fernand Braudel, intitulada Civilização Material, Economia e Capitalismo. A principal base de discussão do autor, em relação aos padrões do sistema capitalista, são as fases produtivas e financeiras que, necessariamente, seguiriam o sistema em todas as suas fases históricas. A esse respeito Gonçalves constata que: Todos os ciclos são marcados por uma primeira fase, na qual há uma perspectiva de lucro comercial e industrial, culminando em uma ampliação da produção e do comercio e, portanto, estabilidade. Quando começa a retração dessa perspectiva, passa-se à fase financeira, que indicaria o momento do declínio do ciclo, marcado pela instabilidade. (GONÇALVES, 2009, p. 13)

12

Para sustentar a ideia de que as fases produtivas são seguidas das financeiras, num ciclo, para uma dada economia capitalista, ao final do qual uma outra economia emerge, Arrighi começa relembrando a famosa fórmula de Marx, DMD’. Segundo essa fórmula, o dinheiro D é utilizado na produção de uma mercadoria M, para a qual contribuem capital-trabalho e matérias-primas. Tal mercadoria, após vendida, por uma quantidade de dinheiro D’, maior que D, trará lucros extraordinários aos agentes capitalistas responsáveis pela produção. Esses lucros extraordinários seriam o que Marx chama de mais valia. Para Arrighi O capital dinheiro (D) significa liquidez, flexibilidade e liberdade de escolha. O capital-mercadoria (M) é o principal investido numa dada combinação de insumoproduto, visando ao lucro; portanto, significa concretude, rigidez e um estreitamento ou fechamento das opções. D’ representa a ampliação da liquidez, da flexibilidade e da liberdade de escolha. (ARRIGHI, 1996, p. 5)

Após isso, o autor argumenta que os capitalistas tendem a perseguir a liquidez e a sua liberdade de escolha, sempre angariando o maior lucro possível. De modo que, “quando os agentes capitalistas não têm expectativa de aumentar sua própria liberdade de escolha, ou quando essa expectativa é sistematicamente frustrada, o capital tende a retomar as suas formas mais flexíveis de investimento” (ARRIGHI, 1996, p. 5); acima de todas essas formas está a monetária, ou DD’. Desse modo, a fórmula reduzida DD’ se torna cada vez mais frequente em ambientes de maior instabilidade econômica e de maior risco aos agentes, como é, para Arrighi, o final dos ciclos de acumulação. Arrighi escreve, a esse respeito: (...) a fórmula geral do capitalismo apresentada por Marx (DMD’) pode ser interpretada como retratando não apenas a lógica dos investimentos capitalistas individuais, mas também um padrão reiterado do capitalismo histórico como sistema mundial. O aspecto central desse padrão é a alternância de épocas de expansão material (fases DM de acumulação de capital) com fases de nascimento e expansão financeiros (fases MD’). Nessas fases de expansão material, o capital monetário “coloca em movimento” uma massa crescente de produtos (que inclui a força de trabalho e dádivas da natureza, tudo isso transformado em mercadorias); nas fases de expansão financeira, uma massa crescente de capital monetário “liberta-se” de sua forma mercadoria, e a acumulação prossegue através de acordos financeiros (como na fórmula abreviada de Marx, DD’). Juntas, essas duas épocas, ou fases, constituem um completo ciclo sistêmico de acumulação (DMD’). (ARRIGHI, 1996, p. 6)

O estudo de Arrighi se presta, então, de maneira mais específica, a fazer uma análise dos sucessivos ciclos de acumulação, buscando identificar “os padrões de recorrência e evolução, que se reproduzem na atual fase de expansão financeira e reestruturação sistêmica” e “as anomalias dessa atual fase de expansão financeira, que podem levar a um rompimento com padrões anteriores de recorrência e evolução” (ARRIGHI, 1996, p.6). Aí o autor já deixa claro que, através do estudo dos diversos

13

ciclos, o seu objetivo maior é analisar o ciclo atual, contemporâneo, que segundo ele encontra-se em sua fase de expansão financeira (ou fase final). QUADRO 1: Características das fases produtiva de financeira dos ciclos sistêmicos de acumulação.

Fase Produtiva

 Fase inicial do ciclo de acumulação.  Perspectiva de lucros comerciais e industriais.  Movimentação de massa crescente de produtos.  Estabilidade sistêmica.  Fase DM de Marx.

Fase Financeira

 Fase final do ciclo de acumulação.  Acordos financeiros prevalecem sobre acordos comerciais.  Maior risco aos agentes.  Instabilidade sistêmica.  Fase DD’ de Marx. Fonte: Elaboração própria

A outra referência basilar utilizada por Arrighi é Braudel, com a sua divisão da Sociedade em três camadas. A primeira, uma camada inferior, por ele chamada de vida material, caracterizada como uma “economia extremamente elementar e basicamente auto-suficiente”. A segunda, a economia de mercado, com “muitas comunicações horizontais entre os diferentes mercados”. E a terceira, superior às outras, que abarca o que Braudel chama de antimercado, o verdadeiro “lar do capitalismo” e onde vigora a “lei da selva”. (BRAUDEL, 1982, p.21-2, 229-30 apud ARRIGHI, 1996, p.10). Assim, para Braudel, o Capitalismo é a camada superior da Sociedade. O capitalismo é visto por Braudel como a “camada superior não especializada da hierarquia do mundo do comercio”. Nela se fazem os lucros em “larga escala” e nela “os lucros não são grandes apenas porque a camada capitalista ‘monopolize’ as atividades econômicas mais lucrativas”. O capitalismo tem a flexibilidade como sua característica mais importante, porque assim o capitalista é capaz de “deslocar continuamente seus investimentos das atividades econômicas que estejam enfrentando uma redução dos lucros para as que não se encontrem nessa situação” (BRAUDEL, 1982, p. 22, 231, 228-30 apud ARRIGHI, 1996, p.8) É nesse contexto que Braudel defende a ideia da existência de expansões financeiras recorrentes na história econômica, como uma etapa na qual o capitalista

14

desloca recursos de uma atividade que enfrenta redução de lucros (Produção), para uma que apresenta maiores lucros (Finanças). Arrighi explica como se chagaria à fase de expansão financeira: As expansões financeiras são tomadas como sintomáticas de uma situação em que o investimento da moeda na expansão do comercio e da produção não mais atende, com tanta eficiência quanto as negociações puramente financeiras, ao objetivo de aumentar o fluxo monetário que vai para a camada capitalista. Nessa situação, o capital investido no comercio e na produção tende a retornar a sua forma monetária e a se acumular mais diretamente, como na fórmula marxista abreviada (DMD’). (ARRIGHI, 1996, p. 8)

É essa recorrência intermitente entre fases de expansão produtiva e fases de expansão financeira acompanhada de declínio que aproxima a teoria de Braudel da de Arrighi. Cabe ressaltar, entretanto, que Arrighi elabora mais o seu conceito de ciclos, colocando que nas fases DM, nas quais a expansão comercial e produtiva é mais evidente, os ciclos ocorrem de uma maneira mais contínua e previsível, com pouca instabilidade. Por conseguinte, nas fases MD’ ou de expansão financeira, as características principais são a elevada instabilidade do sistema, crescimento descontínuo e um “deslocamento” da economia capitalista mundial, através de “reestruturações e reorganizações radicais”. Quanto à ideia de ciclos e sua relação com o sistema capitalista e a formação dos Estados, ainda referenciando Braudel, Arrighi esclarece: Toda essa construção (a dos ciclos hegemônicos de acumulação) apoia-se na visão braudeliana, nada convencional, da existência de uma relação ligando a criação e a reprodução ampliada do capitalismo histórico, como sistema mundial, aos processos de formação de Estados, de um lado, e de mercados, do outro. A visão convencional das ciências sociais, do discurso político e dos meios de comunicação de massa, é que o poder do Estado é oposto a ambos. Braudel, ao contrário, encara a emergência e a expansão do capitalismo como absolutamente dependentes do poder estatal, constituindo-se esse sistema na antítese da economia de mercado. (cf. Wallerstein, 1991, cap.14-15). (ARRIGHI, 1996, p. 10)

Atentemos, pois, para a importância da citação acima. De acordo com a ideia de Braudel, defendida por Arrighi, o sistema interestatal foi imprescindível para a constituição e manutenção do sistema capitalista, de modo que os ciclos sistêmicos de acumulação devem ser considerados não apenas como modelos de surgimento e expansão desse sistema, mas também como uma maneira de analisar a importância dos Estados, ditando regras e padronizando o crescimento organizado do Capitalismo, pelo menos nas fases iniciais dos ciclos. Nesse contexto, Arrighi ilustra a inter-relação vital entre Estado e desenvolvimento capitalista, afirmando que a competição inter-estatal e as disputas

15

entre as forças econômicas capitalistas foram essenciais para a manutenção do “equilíbrio” do sistema. Para ele, foi a emergência de “blocos de organizações governamentais e empresariais que conduziram a economia capitalista mundial por suas sucessivas fases de expansão material.” (ARRIGHI, 1996, p. 12-13) Ainda nesse sentido, o autor argumenta que as grandes expansões materiais só ocorreram Quando um novo bloco dominante acumulou poder mundial suficiente para ficar em condições não apenas de contornar a competição inter-estatal, ou erguer-se acima dela, mas também de mantê-la sob controle, garantindo um mínimo de cooperação entre os Estados. (ARRIGHI, 1996, p. 13)

De acordo com Arrighi, ao longo dos últimos quinhentos anos, houve quatro blocos dotados de poder político para coordenar essa expansão material: Veneza, as Províncias Unidas (Holanda), Reino Unido e Estados Unidos. Esses países foram, segundo ele, “grandes potências das sucessivas épocas durante as quais seus grupos dominantes desempenharam, ao mesmo tempo, o papel de líderes dos processos de formação do Estado e de acumulação de capital.” (ARRIGHI, 1996, p. 14) Dentre essas potências “hegemônicas”, uma relação que se mantém é que cada sucessora, na sequência citada, abarca um “território mais vasto e uma maior variedade de recursos que os de seu predecessor”, bem como aumentam a sua “escala” e o alcance de suas “redes de poder e acumulação”, possibilitando que elas “se reorganizem e passem a manter o controle do sistema mundial em que operam”. (ARRIGHI, 1996, p.14) Antes de descrever e caracterizar cada ciclo, algumas definições sobre hegemonia, capitalismo e territorialismo são necessárias, pois, segundo Arrighi, o conhecimento delas é fundamental para o entendimento de toda a discussão que se dá em torno da origem e evolução dos ciclos. Resumidamente, hegemonia seria uma situação na qual certa potência mantém controle sobre uma região (que pode ser o mundo todo, caso em que ocorreria uma hegemonia mundial), não de maneira meramente autocrática ou visando benefícios apenas para si própria, mas buscando organizar tal região, através de padrões harmônicos de desenvolvimento, de maneira que haja um progresso geral. Capitalismo, conforme já discutido, seria um mecanismo de expansão visando aos lucros extraordinários, explorando a força do trabalho e progredindo no tempo através de expansões materiais (produtivas e comerciais) e financeiras. Territorialismo, por

16

fim, seria um mecanismo de expansão focado essencialmente no aumento dos domínios territoriais. De acordo com o conceito de hegemonia, observa-se que a expansão do poder do Estado, podendo culminar em uma hegemonia regional e depois mundial, está atrelada à necessidade de proteção dos cidadãos, quer seja proteção dos direitos de segurança, de exercer atividades que gerem lucro ou mesmo o simples direito de pertencer a um país politicamente autônomo, de possuir uma pátria. Quando o Estado não consegue suprir essa necessidade, ocorrem crises e revoluções sociais, ameaçando o status da potência dominante. É o que Arrighi chama de caos sistêmico, um dos elementos presentes na fase final dos ciclos. Especial atenção deve ser devotada para não se confundir o conceito de caos sistêmico, visto acima, com o de anarquia. Esta é definida como um sistema de governo em que coexistem unidades politicamente independentes e autônomas, os países, sendo que não existe um governo central a quem elas devam se reportar. É através da inter-relação entre os conceitos de caos sistêmico e de anarquia que Arrighi explica o surgimento do hegemon, isto é, o país que detém a hegemonia sobre determinada região. Para o autor, a hegemonia surge quando se está diante de uma situação de caos sistêmico, quando é necessária a ação de algum estabilizador para a manutenção da ordem e criação de um ambiente que possibilite o desenvolvimento regional. Entretanto, perceba-se que a existência de uma hegemonia não significa que os países ficarão sem autonomia política. Os países continuarão autônomos politicamente e, por esse motivo, mesmo com a hegemonia, continuará a vigorar anarquia no sistema interestatal. Assim, pode-se dizer que o hegemon é apenas um estabilizador do sistema mundial, e não um governante mundial.

FIGURA 1: Surgimento do hegemon segundo Giovanni Arrighi.

17

A figura 1 acima ilustra como se dá o processo de surgimento do hegemon, para Arrighi. Segundo ele, chega um momento em que a potência hegemônica entra em declínio pela existência de um caos sistêmico, quando o hegemon não mais consegue promover a estabilização econômica da região sob a qual detém hegemonia, ocasionando rebeliões e insatisfação popular dentro do território. Em contrapartida, a potência em ascensão possui recursos financeiros e influência, oriundos de sua fase de acumulação produtiva e de expansão territorial. Esta potência, com o apoio estatal, caminha na direção de substituir o atual hegemon em seu papel de estabilizador do sistema.

2.2. O Ciclo Genovês O primeiro dos ciclos está situado na história entre o final do século XIII e meados do século XVI, sendo o resultado de um processo anterior de “súbita intensificação da concorrência intercapitalista” (ARRIGHI, 1996, p. 90), que levou algumas cidades do norte italiano ao desenvolvimento de amplas e lucrativas cadeias comerciais e a um posterior processo de expansão financeira. Nessas cidades, observa-se que o desenvolvimento da primeira fase genérica dos ciclos de acumulação, a das redes de expansão material, deu-se de maneira cooperativa, com a presença marcante de quatro grandes cidades-Estado, cada uma dominando um nicho de mercado específico. Eram elas: Gênova, Milão, Florença e Veneza, que, segundo Arrighi, dividiam as cadeias comerciais do seguinte modo: Florença e Milão empenhavam-se, ambas, na manufatura e no comércio terrestre com o noroeste da Europa; mas, enquanto Florença se especializava no comércio de produtos têxteis, Milão especializava-se no de metais. Veneza e Gênova especializavam-se no comércio marítimo com o Oriente; mas, enquanto Veneza especializava-se nos negócios com o circuito sul-asiático, baseados no comércio de especiarias, Gênova especializava-se no circuito centro-asiático, baseado no comércio de seda. (ARRIGHI, 1996, p. 90)

Essa junção de vários centros autônomos, todos situados em uma mesma região, mas dominando esferas mercadológicas distintas, possibilitou um amplo conhecimento do mercado em que atuavam e a transferência de informações entre os centros, fato que contribuiu para a redução dos riscos e dos custos das operações comerciais. Entretanto, esse padrão de desenvolvimento cooperativo estava fadado a não durar, devido ao desenvolvimento natural da competição entre esses centros, quando algum deles se projetasse em um nível mais alto abrangência de mercados, alcançando status que ameaçasse os nichos dominados pelos outros.

18

E foi o que de fato ocorreu, como explica Arrighi: Mas tão logo surgiu uma desproporção expressiva e duradoura entre a massa de capital que buscava investimento no comércio, de um lado, e aquilo que era possível investir dessa maneira, sem precipitar uma redução drástica nos lucros do capital, de outro, a concorrência entre os centros transformou-se numa ‘briga entre irmãos hostis’(ARRIGHI, 1996, p. 92)

A partir daí, a luta capitalista pelo domínio de mercados começou a fazer parte da realidade dessas cidades, de modo que as guerras tornaram-se cada vez mais frequentes, bem como os altos gastos militares. Por não ser uma situação lucrativa e por não possibilitar o incremento dos mercados, essa não era uma situação desejada. De fato, uma vez que esses conflitos começaram a concorrer para gastos acima dos aceitáveis, houve um retorno do mecanismo de cooperação entre essas cidades, com o intuito de promover a retomada de uma situação pacífica, na qual houvesse lucros comuns. Tem-se, então, um princípio do desgaste da expansão material, à medida em que se acentua a expansão financeira. Nessa fase de declínio da expansão material, a expansão financeira alcançou relevância estratégica, e um de seus mais expressivos canais de investimento foi a “indústria cultural”, conforme demonstra Arrighi: Em parte, o consumo ostensivo de produtos culturais foi um resultado direto da conjuntura comercial adversa, que transformou os investimentos no patrocínio das artes numa forma mais útil ou até mais lucrativa de utilização do excedente de capital do que seu reinvestimento no comércio (Lopez, 1962, 1963). Em parte, ele foi um fenômeno impulsionado pela oferta, associado à invenção de identidades coletivas míticas como um meio de mobilização popular na guerra entre as cidadesEstado (cf. Baron, 1955). E, em parte, foi um resultado direto da luta pelo status, entre facções rivais de mercadores, mediante a qual “erigir construções magníficas tornou-se uma estratégia para distinguir algumas famílias de outras” (Burke, 1986, p. 228). (ARRIGHI, 1996, p.97)

Mas, entre todas as cidades-Estado italianas, uma se sobressaiu: Gênova. E esse é o motivo da denominação do ciclo. Na realidade, nessa cidade o processo de acumulação capitalista se deu de maneira mais flexível, baseado em empréstimos a alguns governos europeus (especialmente o Espanhol) e em outras atividades mais de cunho rentista que em investimentos comerciais propriamente ditos, como ocorreu nas outras cidades-Estado italianas. Arrighi descreve as diferenças entre a acumulação genovesa e a dessas outras cidades do seguinte modo: (...) o capitalismo genovês do século XV desenvolveu-se por um caminho que divergia radicalmente do de todas as outras grandes cidades-Estado italianas. Em graus diferentes e de diferentes maneiras, o capitalismo milanês, veneziano e florentino vinha-se desenvolvendo no sentido da gestão do Estado e de estratégias e estruturas cada vez mais ‘rígidas’ de acumulação de capital. O capitalismo genovês,

19

em contraste, moveu-se em direção à formação do mercado e a estratégias e estruturas de acumulação cada vez mais ‘flexíveis’. (ARRIGHI, 1996, p. 113)

Uma característica diferenciadora de Gênova foi a formação de uma aristocracia rural, como estratégia de obtenção de controle sobre o maior número possível de territórios e recursos demográficos, para um futuro aproveitamento dos recursos daí advindos. As outras cidades estavam voltadas para a formação de classes mercantis urbanas, interessadas na expansão das redes comerciais e não no aumento de seus territórios. Essa aristocracia rural genovesa “controlava os meios da violência e as fontes do arrendamento de terras das cidades circunvizinhas, continuando a participar dos processos governamentais e comerciais das cidades, se e quando isso convinha aos seus interesses” (ARRIGHI, 1996, p. 115) Outra característica de Gênova foi a busca por um padrão monetário de trocas, através da constituição de uma “moeda boa”, que facilitasse os pagamentos e garantisse certa estabilidade à sua economia. Foi através desses “instrumentos e técnicas monetários” que Gênova garantiu a competitividade e a liquidez de sua moeda, convertendo-a em forte meio de pagamento. Isso somente foi possível devido ao grande sucesso comercial dessa cidade, ocorrido entre os séculos XIII e XIV, que possibilitou enorme acumulação financeira por parte de suas empresas. Posteriormente, com o declínio dessas rotas comerciais, em parte causado pelo aumento da concorrência das outras cidades-Estado, Gênova passou a deter grandes reservas de capital circulante, levando-a a uma “crise de hiper-acumulação”. Uma solução encontrada pela aristocracia rural da cidade foi investir esse capital em propriedades e exércitos, pela ausência de altos riscos e pela real possibilidade de valorização e ganhos monetários futuros. Outro canal para os investimentos genoveses, e esse de especial relevância, surgiu em meados do século XIV, com a derrocada dos principais bancos espanhóis, impossibilitando-os de manter suas estruturas de financiamento aos governos ibéricos. Esse canal de investimentos abriu-se a Gênova em virtude de alguns fatores específicos, a saber: as bases comerciais mais produtivas que essa cidade possuía ficavam nessa península; essas bases possibilitariam a expansão de suas rotas comerciais para outros domínios, como o norte-africano e o Oriente, pelo Atlântico; a península ibérica possuía ainda potenciais sócios “produtores de proteção”, que eram os governantes territorialistas dos emergentes Portugal e Espanha. (ARRIGHI, 1996, p. 120-1).

20

Com respeito a esse início de relacionamento entre Gênova e as províncias ibéricas, mais especificamente com a Espanha, Kindleberger cita: O relacionamento de Gênova com a Espanha começou com a venda de navios para a Inglaterra e para Flandres, cessando com a rota de Barcelona, Sevilha, e Lisboa em Portugal. Os marinheiros e mercadores genoveses despertaram comercialmente a Espanha, bem como a Inglaterra e Flandres. Alguns fixaram-se em colônias portuguesas e em Lisboa, especialmente na Andaluzia, na Espanha, a província na qual Sevilha estava situada, onde eles casavam suas filhas com nobres catalães e estimulavam o comércio de vinho, atum, óleo de oliva e mercúrio. O Ouro da África Ocidental foi transferido de Lisboa e Sevilha para Gênova. Quando os marinheiros genoveses foram se esgotando, os navios genoveses foram aos poucos sendo substituídos pelos de Portugal, da Galícia e de Vizcaya, na costa norte da Espanha. Estes primeiros relacionamentos comerciais abriram caminho para as finanças na parte final do século XVI. (HEERS, 1964, p. 99-100 apud KINDLEBERGER, 1996, p. 61) (tradução própria)

Esse entrelaçamento entre a finança advinda dos banqueiros genoveses e a administração dos Estados ibéricos traz à discussão uma importante ideia, já adiantada no final do item anterior: o caráter dicotômico da expansão do capital, em parte proporcionada pelo impulso financeiro e empresarial comum nas classes burguesas e comercias (aqui representadas pelos banqueiros genoveses) e em parte proporcionado pelos Estados, em sua multiplicidade de sistemas jurídicos que, concorrendo uns com os outros, levam ao desenvolvimento natural do sistema. Segundo Arrighi: (...) a expansão material do primeiro ciclo sistêmico de acumulação (o genovês) foi promovida e organizada por um agente dicotômico, formado por um componente aristocrático territorialista (ibérico) – que se especializou no fornecimento de proteção e na busca de poder – e por um componente burguês capitalista (genovês), que se especializou na compra e venda de mercadorias e na busca de lucro. (ARRIGHI, 1996, p. 124)

Essa espécie de simbiose entre as finanças e o Estado proporcionou, como a relação mutualística supõe, benefícios para ambos os lados; a parte capitalista recebia proteção e possibilidade de aumentos de suas redes comerciais, através dos domínios possuídos pelo Estado, ao passo que este recebia o financiamento necessário às suas expansões territorialistas. Isso foi especialmente relevante no caso ibérico, uma vez que essa era a época das Grandes Navegações portuguesas e espanholas. A época de maior vigor desses financiamentos ocorreu entre os anos de 1557 e 1627, período que Braudel chama de “era dos genoveses”, na qual “o domínio foi exercido através da organização, controle e administração de um vínculo invisível entre a oferta de capital monetário no norte da Itália, mais abundante do que nunca, e os permanentes apertos financeiros da Espanha Imperial” (ARRIGHI, 1996, p. 128)

21

Mesmo com essa fase áurea, a dominação genovesa sobre as finanças globais chegou a um fim, por volta do final do século XVI, quando não foi mais possível manter o financiamento às potências imperialistas ibéricas. De acordo com Kindleberger, o declínio do ciclo genovês se deu graças a alguns fatores principais, que foram: (...) deterioração dos termos de troca, do comércio e da manufatura; a perda dos monopólios para a concorrência internacional de outras cidades-Estado; esgotamento da madeira; mudança do comércio para as trocas e para as finanças, bem como para o status rentista; presença de Estados territorialistas; consumismo conspícuo; prestígio dos serviços públicos. (KINDLEBERGER, 1996, p. 63) (tradução própria)

Passemos agora à análise do próximo ciclo, o Holandês.

2.3. O Ciclo Holandês O ciclo holandês, cuja fase inicial se confunde com a fase final do genovês, tem seu início em meados do século XVII. Em alguns aspectos pode-se considerá-lo uma verdadeira réplica do ciclo anterior, por conta de algumas características que não se modificaram. Pelo contrário, tais características intensificaram-se com a chegada da hegemonia das Províncias Unidas. Dentre essas características estão: a presença do capitalismo comercial como modelo básico de acumulação, a sua figuração como potência hegemônica regional, atingindo maiores proporções que a hegemonia das cidades italianas, além de iniciativas inovadoras na promoção da diplomacia, em vista de esse ser o meio básico de conquista de fornecedores e clientes para os bens comercializados. O começo da afirmação da Holanda como poderio comercial se deu em 1556, quando as potências ibéricas, em suas “grandes navegações” tentaram invadir a Holanda, para impor tributações. Esse país, entretanto, reverteu esse processo, através de seus “rebeldes” que “fizeram-se ao mar e desenvolveram habilidades extraordinárias, não só na evasão fiscal, mas em impor às finanças da Espanha uma espécie de ‘arrocho’ fiscal invertido, através da pirataria e da pilhagem”. Nessas lutas, a “fonte primordial da riqueza e do poder holandeses foi o controle do abastecimento de cereais e os suprimentos navais”, essenciais em vista do “esgotamento dos suprimentos concorrentes, provindos do Mediterrâneo”. (ARRIGHI, 1996, p. 135-6) Nesse sentido, Arrighi descreve da seguinte forma o mecanismo de “busca de lucros capitalistas” utilizado pelos holandeses:

22

(...) tudo que os negociantes holandeses tiveram que fazer para se tornar líderes do processo de acumulação de capital foi “deixar-se levar pelo vento que estivesse soprando e [aprender] a manobrar suas velas de modo a tirar proveito dele”. (ARRIGHI, 1996, p. 136)

A Holanda não seguiu, pois, um modelo de expansão completamente diferenciado do genovês. Ela seguiu os pontos já esboçados pelas cidades italianas, aproveitando-se dos mesmos modelos de negócios e de gestão do Estado que essas cidades inicialmente desenvolveram. Houve distinções entre os dois ciclos, porém, e, para Arrighi, “a grande diferença entre os holandeses e seus predecessores italianos foi a precocidade com que os negociantes holandeses transformaram-se numa classe rentista” (ARRIGHI, 1996, p. 138) Havia outras diferenças cruciais. Por exemplo, a Holanda possuía maior capacidade bélica, desenvolvida através do domínio de técnicas militares que remetiam aos modelos clássicos. Tinha também um modelo de gestão da guerra e do Estado mais eficiente que o de Veneza, além de fazer maiores investimentos em frotas de navios, o que facilitou as buscas por mais mercados e ocasionou a expansão dos caminhos marítimos do comercio. Uma outra distinção diz respeito aos interesses oligárquicos holandeses, que se chocavam mais com os interesses do governo (representado pelo papa e imperador, os poderosos defensores das pretensões imperialistas da Espanha, que ameaçavam a Holanda) do que ocorrera com Veneza (ameaçada mormente pelos estados do sul e do noroeste da Europa). Uma característica comum entre os dois ciclos foi que tanto genoveses quanto holandeses tinham um consumo de produtos culturais relativamente forte, principalmente por parte dos holandeses. Com relação à expansão e ao alcance do sistema comercial holandês, Arrighi afirma que ele foi impulsionado pela “combinação de três orientações políticas correlatas”. A primeira dessas orientações dizia respeito ao estabelecimento de Amsterdam como o “entreposto central do comércio europeu e do mundo”, através do que “a classe capitalista holandesa desenvolveu aptidões sem precedentes e sem paralelo para regular e lucrar com os desequilíbrios da economia mundial europeia.” (ARRIGHI, 1996, p. 141) A segunda orientação foi “a política de transformar Amsterdam não apenas no armazém central do comércio mundial, mas também no mercado central de moeda e capital da economia europeia” (ARRIGHI, 1996, p. 142). A esse respeito o autor

23

afirma que as bolsas de valores não foram uma invenção holandesa, já que de fato “elas haviam florescido em Gênova, nas feiras de Leipzig e em muitas cidades hanseáticas no século XV”. Entretanto, a particularidade de Amsterdam “foram o volume, a flexibilidade do mercado e a publicidade que ele recebeu, além da liberdade especulativa das transações” (BRAUDEL, 1982, p. 100-1 Apud ARRIGHI, 1996, p. 132). A terceira orientação “consistiu no lançamento de companhia de comércio e navegação de grande porte, credenciadas pelo governo holandês para exercer direitos exclusivos de comércio e soberania em imensos espaços comerciais ultramarinos”. (ARRIGHI, 1996, p. 143) Essas companhias: (...) eram, a um tempo, beneficiárias e instrumentos da contínua centralização do comércio e das altas finanças mundiais em Amsterdam: beneficiárias, porque essa centralização lhes garantia o acesso privilegiado a mercados lucrativos para a colocação de seus produtos e as fontes econômicas onde obter seus insumos, inclusive mercados ou fontes para se desfazer do capital excedente ou obtê-lo, dependendo de seu estágio de desenvolvimento e das oscilações de seu patrimônio. Mas elas também foram instrumentos poderosos de expansão global das redes comerciais e financeiras holandesas, sendo impossível exagerar, sob esse ponto de vista, seu papel na estratégia global de acumulação dos holandeses. (ARRIGHI, 1996, p. 143)

O final dessa expansão comercial, como de praxe nos ciclos, foi uma guinada da expansão financeira, através da troca do comércio de revenda pelos empréstimos lucrativos. O estopim dessa troca foi o surgimento do Mercantilismo, que acirrou as disputas pelas vias mundiais do comércio, forçando a Holanda a sair fora desse ciclo. Assim, “no fim do século XVII o sucesso do mercantilismo inglês e francês já impunha sérias restrições à capacidade do sistema de comércio mundial holandês de continuar a expandir sua escala e seu alcance”. (ARRIGHI, 1996, p. 145) Para Arrighi, essa fase final da expansão material, trocada pela financeira, em virtude do mercantilismo, é explicada nos seguintes termos: Não havia nada que os comerciantes holandeses pudessem fazer para conter, e muito menos reverter, essa onda sísmica de mercantilismo. Contê-la estava muito além de sua capacidade organizacional. Mas, o que estava além desta e que, a bem da verdade, era o curso de ação mais sensato que eles poderiam adotar nessas circunstâncias, era retirar-se do comércio e se concentrar nas altas finanças, a fim de tirar proveito da difusão do mercantilismo, em vez de sucumbir a ela. (ARRIGHI, 1996, p. 146)

Enquanto a Holanda retirava-se das cadeias “materiais” do capitalismo, uma nova potência surgia com força e com uma estratégia de cunho capitalistaterritorialista: a Grã-Bretanha. O próximo sub-capítulo descreve essa ascensão inglesa e os caminhos tomados por esse novo ciclo sistêmico.

24

2.4. O Ciclo Britânico A fase final do ciclo holandês foi marcada pelas guerras anglo-holandesas, nas quais a Inglaterra disputou o domínio local, através de uma tentativa de incorporar o estado holandês, bem como as cadeias comerciais que ele detinha. Entretanto, tais disputas não trouxeram ganhos para a potência inglesa, que, por esse motivo, juntamente com a França, se engajou numa estratégia diferente: incorporar somente as fontes da riqueza ao invés de incorporar o próprio estado holandês. Nesse contexto, França e Inglaterra passam a lutar pelo controle do Atlântico, numa tentativa de ultrapassar os que chegaram primeiro - portugueses, espanhóis e holandeses -, aprimorando e incrementando a escala do Mercantilismo, já iniciado por esses últimos. A escravatura teve uma importância grande nesse processo, tanto porque o comercio de escravos tornou-se uma atividade extremamente lucrativa quanto pelo aumento do fator de dominação, não mais restrita a alguns países da Europa, mas a todos os países provedores de escravos, presentes na África, Ásia e América. Assim, Arrighi afirma que há duas grandes distinções entre o ciclo britânico e os dois anteriores, uma primeira relacionada ao “imperialismo” e a outra ao “livrecambismo”. Com relação à primeira, o autor escreve: (...) na época em que declinou a expansão do comércio mundial de meados do século XIX, o poder britânico no sistema mundial como um todo estava em seu auge. Na Criméia, a Rússia czarista acabara de ser posta em seu lugar; na França, que havia participado da guerra da Criméia, fora colocada em seu lugar, logo depois, pela Prússia. O domínio britânico sobre o equilíbrio de poder europeu foi suplementado e complementado pela consolidação do império territorial da GrãBretanha na Índia, depois do chamado Grande Motim de 1857. (ARRIGHI, 1996, p. 169)

Com relação ao segundo fator de diferenciação, o mesmo autor complementa: Ao mesmo tempo, o regime britânico unilateral de livre comércio ligou o mundo inteiro à Grã-Bretanha. Esta se tornou o “mercado” mais conveniente e eficiente para obter meios de pagamento e de produção e para colocar produtos primários (...). Além disso, como em todos os ciclos sistêmicos de acumulação anteriores, a intensificação das pressões competitivas acarretada pela fase de expansão material associou-se, desde o início, a uma grande guinada do comércio e da produção para as finanças, por parte da classe capitalista britânica. (ARRIGHI, 1996, p. 169)

Em contrapartida, o autor julga o ciclo britânico em certo modo bastante parecido com o genovês, especialmente em termos das teias globais de finanças que, nos dois ciclos, sustentaram impérios capitalistas.

25

No ciclo britânico, portanto, o investimento não se dava apenas na expansão dos caminhos do comercio, mas no fortalecimento dos poderes político e financeiro da Inglaterra, na produção maciça de bens manufaturados e na imposição desses produtos aos demais países, inicialmente aos europeus. Tal imposição era reforçada pelo grande poder imperial inglês, conquistado graças a uma série de fatores que propiciavam à Inglaterra certas vantagens em relação às cidades italianas e às Províncias Unidas. Dentre essas vantagens a mais relevante era o fato de ser uma ilha, com ausência de vizinhos próximos e, por consequência, de lutas frequentes por expansão territorial. Isso proporcionou com que os outros Estados europeus, envolvidos em conflitos territoriais, deixassem margem para a expansão marítima inglesa.

Tal

expansão se deu de maneira relativamente rápida, em virtude de o processo expansionista ter-se iniciado anteriormente, pelas já citadas potências comerciais italiana e holandesa. Nesse contexto de conflitos entre os demais estados europeus, voltou a tomar força o fenômeno, já definido anteriormente, conhecido como caos sistêmico, marcado por guerras internas, pesados impostos, insatisfação popular, confluindo para uma ameaça de queda dos governantes estatais. Tal processo se intensifica não apenas na Europa, mas também nas colônias, marcadamente nos EUA, levando-os ao seu precoce processo de independência, que mais tarde influenciará os processos de emancipação de outras colônias, bem como contribuirá para a ascensão desse país como potência global. Diante desse caos, fazia-se necessário um novo padrão de governança interestatal, que nesse momento somente a Inglaterra poderia fornecer. Mesmo com a independência estadunidense, a Inglaterra continuava lucrando enormemente com os impostos cobrados da ex-colônia, bem como das demais, além dos lucros com as vendas de mercadorias manufaturadas, já que era praticamente a única fornecedora mundial. Em vista disso, Londres se tornou o principal centro financeiro mundial e a potência inglesa dominou de vez o que Braudel chama de “entidade metafísica controladora do mundo”: os mercados mundiais. Houve uma espécie de contrabalanço entre o controle dos mercados e o controle das finanças especulativas, ou haute finace, com o qual o país teve de lidar o tempo todo. A potência tornou-se responsável, então, por não permitir nem que a produção e as vendas deixassem de se expandir, e nem que os lucros especulativos, ou

26

DD’ de Marx, transformassem-se no principal fator de lucro, sobrepujando a produção. Esse controle foi feito não apenas internamente, mas também ao nível internacional, com a Inglaterra ‘fiscalizando’ os demais países europeus, a fim de manter o contrabalanço entre finanças e produção a um nível ótimo. Isso sem esquecer, é claro, do compromisso com a liberalização dos mercados e da manutenção crescente de clientes para seus produtos. Todo esse processo de sobrevalorização da finança frente à produção e ao comércio levou à Inglaterra a aceitar os processos e independência de suas colônias, e até a incentivá-lo. Isso devido ao incremento de mercados consumidores que esse processo representava. Assim, a potência que dominava grande parte do mundo no começo do século XX estava fadada a retrair seus domínios territoriais, como bem explica Hobsbawm: Embora houvesse um poderoso bloco de empedernido imperialismo na GrãBretanha, do qual Winston Churchill se fez porta voz, a opinião efetiva da classe dominante britânica após 1919 era de que em última análise seria inevitável alguma forma de autogoverno indiano semelhante ao “status de domínio”, e o futuro da GrãBretanha na Índia dependia de um acordo com a elite indiana, incluindo os nacionalistas. O fim do domínio unilateral britânico na índia a partir daí era apenas uma questão de tempo. Como a Índia era o núcleo de todo o império britânico, o futuro desse império como um todo, portanto, agora parecia incerto, a não ser na África e nas ilhas dispersas do Caribe e do Pacífico, onde o paternalismo ainda reinava inconteste. Nunca uma área tão grande do globo estivera sob controle britânico, formal ou informal, quanto entre as duas guerras, mas jamais os governantes da Grã-Bretanha haviam sentido tão pouca confiança na manutenção de sua supremacia imperial. Esse foi um dos grandes motivos pelos quais, quando a posição se tornou insustentável após a Segunda Guerra Mundial, os britânicos, em geral, não resistiram à descolonização. (HOBSBAWM, 1994, p. 209)

Por fim, Arrighi caracteriza o final do ciclo britânico como “semelhante” a todos os encerramentos dos outros ciclos sistêmicos anteriores, de modo que os capitais rentistas sobrepunham-se em valor aos reais produtos materiais que deveriam representar, assim como os investimentos de curto prazo multiplicavam-se no mundo inteiro, em especial em Londres. Tudo isso numa expansão financeira que basicamente diferenciava-se das anteriores em termos de volumes de capital. Sobre esse pensamento, o autor completa: Como nas fases de encerramento de todos os ciclos sistêmicos de acumulação anteriores, as nações iniciaram uma competição acirrada pelo capital circulante que fora retirado do comércio e começava a se tornar disponível sob a forma de crédito. A partir da década de 1880, os gastos militares das potências europeias começaram a aumentar exponencialmente – subindo o total da Grã-Bretanha, França, Alemanha, Rússia, Austro-Hungria e Itália de £132 milhões em 1880 para £205 milhões em 1900 e £397 milhões em 1914 (HOBSBAWM, 1987, p. 350 Apud ARRIGHI, 1996, P. 176)

Em seguida, aborda-se o ciclo norte-americano.

27

2.5. O Ciclo Norte-Americano Diferentemente do capitalismo britânico descrito anteriormente, o capitalismo norte-americano é chamado por Arrighi de “capitalismo de corporações”, devido à importância fundamental das organizações empresariais na preparação do terreno, em termos financeiros principalmente, para a subida do império americano. Antes de descrever essas corporações e a sua importância nesse ciclo, passaremos a uma sucinta análise histórica do processo de crescimento da importância global dos EUA. Conforme citado no item anterior, o processo de independência dos EUA, ocorrida no ano de 1776, foi o fato inicial que confluiu para a ascensão desse país como potência hegemônica mundial. Imediatamente após a independência, o país realizou um esforço grande para a expansão do mercado interno, através do estímulo à migração, que comporia tanto os produtores de bens agrícolas e industriais quanto os consumidores desses bens, todos engajados na exploração do novo território. Havia, portanto, uma lógica territorialista agindo em conjunto com uma capitalista, no sentindo de conformar um território grade e dinâmico, com agentes empreendedores e consumidores ao mesmo tempo. Com relação à importância desse mercado “grande e dinâmico”, formado por territórios e pessoas ávidas por consumir, Arrighi escreve: (...) o controle e a supressão da concorrência, num mercado grande e dinâmico, são mais problemáticos do que num mercado menor e menos dinâmico. Mas um mercado grande e dinâmico, dotado de toda complementação de recursos naturais necessária para satisfazer as necessidades do consumidor, oferece maiores oportunidades de superar a concorrência pela integração vertical do que um mercado menor, menos dinâmico e não tão bem dotado. (ARRIGHI, 1996, p. 301)

Esse processo de ocupação e desenvolvimento da nova nação se deu ao mesmo tempo em que a Inglaterra ia perdendo sua força como hegemon, processo para o qual contribuíram “a concorrência da Alemanha, o aumento da proteção tarifária e o fim do padrão-ouro” (ALMEIDA, 1996), bem como as duas guerras mundiais que ocorreriam mais à frente, que se constituíram no fator decisivo para a queda da hegemonia britânica. Com relação à 1ª Guerra Mundial, e sua importância no processo de ascensão da hegemonia norte-americana, Hobsbawm argumenta: (...) a Primeira Guerra Mundial foi o primeiro conjunto de acontecimentos que abalou seriamente a estrutura do colonialismo mundial, além de destruir dois impérios (o alemão e o otomano, cujas antigas possessões foram divididas entre os britânicos e os franceses), e derrubar temporariamente um terceiro, a Rússia (que

28

recuperou suas dependências asiáticas dentro de poucos anos). As tensões da guerra nas regiões dependentes, cujos recursos a Grã-Bretanha precisou mobilizar, geraram agitação. O impacto da revolução de Outubro e o colapso geral de velhos regimes, seguidos pela independência irlandesa de fato para os 26 condados do sul (1921), fizeram pela primeira vez os impérios parecerem mortais. (HOBSBAWM, 1994, pg. 208)

A fase entre guerras acabou com esse caos, ao contrário, apenas estimulou e aumentou a insatisfação popular, diante dos terrores da guerra recém-terminada, da insegurança e da possibilidade iminente de outra. Após 1929, essa insegurança apenas cresceu, devido à grave crise financeira ocorrida. Tudo isso contribuiu para a manutenção das tensões, que levaram o mundo à segunda grande guerra. Entretanto, importante ressalva deve ser feita com relação ao período anterior à 1ª Guerra, no sentido da situação em que a potência norte-americana encontrava-se em relação à britânica. Ocorre que, a esse tempo, a Grã-Bretanha era o maior credor dos EUA. Tal situação foi basicamente invertida ao final da guerra, conforme descreve Arrighi: No fim da guerra, portanto, os Estados Unidos haviam recomprado por uma pechincha alguns dos investimentos maciços que tinham construído a infraestrutura de sua própria economia doméstica no século XIX e, além disso, haviam acumulado imensos créditos. Ademais, nos primeiros anos do conflito, a Grã-Bretanha fizera empréstimos enormes a seus aliados mais pobres, sobretudo a Rússia, enquanto os Estados Unidos, ainda neutros, haviam tido plena liberdade para substituir com rapidez a Grã-Bretanha como principal investidor estrangeiro e intermediário financeiro da América Latina e em partes da Ásia. Terminada a guerra, esse processo tornara-se irreversível. A maior parte dos US$ 9 bilhões de créditos líquidos de guerra dos Estados Unidos era devida pela Grã-Bretanha e pela França, relativamente solventes; porém, mais de 75% dos créditos líquidos de guerra da GrãBretanha eram devidos pela falida (e revolucionária) Rússia, e tiveram que ser majoritariamente cancelados como incobráveis (ARRIGHI, 1986, p. 279).

Porém, não se deve confundir uma balança de pagamentos superavitária com controle financeiro mundial por parte dos EUA, já que, após a 1ª Guerra, segundo Arrighi: O controle de uma parcela substancial da liquidez mundial não dotou os Estados Unidos de capacidade de administrar o sistema monetário mundial. Em termos organizacionais, as instituições financeiras norte-americanas simplesmente não estavam à altura dessa tarefa. (ARRIGHI, 1996, p. 280)

E nesse cenário passou-se a buscar um retorno em termos monetários à situação pré-1914, com o apoio da maioria dos países ocidentais (inclusive dos EUA), à manutenção de Londres como centro financeiro mundial e à retomada da força do padrão ouro internacional. Esse esforço, porém, não foi suficiente, uma vez que o “pesadelo da auto-suficiência monetária dos países” levou esses países a buscarem estabilidade para suas moedas, isso através de medidas como “quotas de importação,

29

moratórias e acordos de suspensão, sistemas de liberação e tratados de comércio bilaterais, acordos de trocas, embargos sobre as exportações de capital e controle do comércio exterior.” (ARRIGHI, 1996, p. 282). Desse modo, a Inglaterra não conseguiu retornar aos padrões e gestão das finanças mundiais que tinha anteriormente, já que não tinha mais tanta liquidez e suas reservas em ouro não eram suficientes para lastrear o sistema monetário cada vez mais especulativo. Em vista dessa busca pela estabilização das moedas e levando em conta que a libra britânica estava cada vez mais desacreditada, os países passaram a constituir reservas na única moeda que naquele momento poderia fazer frente à libra: o dólar americano. À medida que as reservas em dólares foram crescendo em valor e em importância, também começaram o ocorrer “crescentes desequilíbrios estruturais dos pagamentos mundiais”, de modo que “os investimentos de capital que cruzavam as fronteiras estatais assumiram um caráter cada vez mais especulativo”. Passou-se, assim, a uma situação em que “uma alta ou uma baixa especulativas repentinas nos Estados Unidos resultariam numa suspensão dos empréstimos externos e no desmoronamento de toda a complexa estrutura em que se baseava o restabelecimento no comércio internacional” (ARRIGHI, 1996, p. 282) Assim, chegou-se à quebra de Wall Street e à depressão da economia norteamericana, quando a interrupção dos empréstimos e investimentos externos estadunidenses se consumou de vez. Nessa época, segundo Arrighi, “o protecionismo exacerbou-se furiosamente, a busca de moedas estáveis foi abandonada e o “capitalismo mundial retraiu-se nos iglus de suas economias de Estados nacionais e dos impérios que lhes estavam associados” (HOBSBAWM, 1991, p. 132 apud ARRIGHI, 1996, p. 283) A Segunda Guerra Mundial trouxe mais revolução popular e mais segregação entre países ocidentais e não ocidentais, ao passo que aos poucos transferiu o poder político das potências europeias para os Estados Unidos, grande financiador da guerra (desde a anterior) e estruturalmente menos abalado que as potências que se enfrentavam desde o início. Com respeito à fase final e aos resultados da 2ª Guerra, Arrighi cita Kennedy: (...) A cartada alemã pelo domínio da Europa estava desmoronando, o mesmo acontecendo com a do Japão no Extremo Oriente e no Pacífico. A Grã-Bretanha, apesar de Churchill, estava entrando em declínio. O mundo bipolarizado, tantas vezes previsto no século XIX e no início do século XX, enfim havia chegado; a ordem internacional, nas palavras de DePonte, mudou-se então “de um padrão para

30

outro”. Somente os Estados Unidos e a União Soviética tinham importância (...) e, entre os dois, a “superpotência” norte-americana era imensamente superior. (KENNEDY, 1987, p. 357 Apud ARRIGHI, 1996, p. 284)

Assim, estava posta a hegemonia norte-americana. Hegemonia que se deveu inicialmente ao fato de essa potência tomar as rédeas da governança global, restabelecendo o padrão de Westfália, através de uma política de estímulo à ajuda mútua entre as nações e à reconstrução do mundo, em especial da Europa, destruída pelas guerras. Foi com base nessa estratégia que foram fundados o FMI e o BIRD, que mais tarde se converteu no Banco Mundial. O objetivo dos EUA era colocar, ao menos no plano teórico, todas as nações do mundo, inclusive as não ocidentais e as não proprietárias, em pé de igualdade. Isso pode ser constatado pela fundação da ONU, um organismo com o fim de estabelecer mecanismos diplomáticos de ajuda mutua entre as nações, uma espécie de governança global. Entretanto, a estratégia norte-americana estava assim arranjada apenas na teoria, porque na realidade houve uma busca sem precedentes pelo controle das finanças e do poderio militar globais, de modo que os valores de igualdade e fraternidade entre as nações aos poucos foram substituídos por uma famigerada busca de poder. Na realidade, a desigualdade nunca deixou de existir, de modo que as instituições criadas em Bretton Woods e a ONU serviram apenas para mascarar uma falsa busca por igualdade ou para dar alguma esperança de melhores condições às nações mais pobres. Seu resultado, contudo, foi pouco efetivo. De acordo com Arrighi, esse sistema de governança global criado em Bretton Woods foi muito mais que um conjunto de acordos com o fim de estabilizar a paridade entre moedas nacionais através de “uma taxa de câmbio fixa entre o dólar norte-americano e o ouro”. Para ele, por baixo disso tudo houve “uma grande revolução no agente e no modo de ‘produzir’ o dinheiro mundial” (ARRIGHI, 1996, p. 287). Essa revolução está bem definida no excerto abaixo. Em todos os sistemas monetários mundiais anteriores – inclusive o britânico -, os circuitos e redes de altas finanças tinham sido firmemente controlados por banqueiros e financistas privados, que os organizavam e administravam para obter lucros. O dinheiro existente no mundo, portanto, era um subproduto de atividades com fins lucrativos. No sistema monetário mundial criado em Bretton Woods, em contraste, a “produção” do dinheiro mundial foi assumida por uma rede de organizações governamentais, primordialmente movidas por considerações de bemestar, segurança e poder – em princípio, o FMI e o Banco Mundial e, em prática, o Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos, agindo em concerto com os bancos centrais dos aliados mais íntimos e mais importantes do país. Assim, o dinheiro mundial tornou-se um subproduto das atividades de gestão do Estado. (ARRIGHI, 1996, p. 287; grifos meus)

31

Para Arrighi, um dos fatores primordiais da Hegemonia Norte-Americana foi a empresa capitalista moderna, surgida nos EUA, com algumas características já existentes desde o ciclo Holandês. Para o autor, a característica inovadora das empresas capitalistas do ciclo norte-americano foi a internalização dos custos de transação. De fato, enquanto os holandeses “levaram os processos de acumulação em escala mundial um passo adiante dos genoveses, ao internalizar os custos de proteção” e os britânicos, por sua vez, levaram esses custos “um passo além dos holandeses, ao internalizar os custos de produção”, os americanos, “ao internalizar os custos de transação” conseguiram elevar as empresas capitalistas a um padrão de atuação, lucratividade, escala de operações e territórios de abrangência nunca vistos antes. (ARRIGHI, 1996, p. 247) Esse novo padrão de empresas capitalistas, com atuação através de “economias de velocidade, e não de tamanho”, com padrão de gerenciamento encabeçado

por

executivos

altamente

bem

preparados,

“especializados

no

monitoramento e regulação dos mercados e dos processos de trabalho”, com processos de distribuição e produção verticalmente integrados, e com elevadas barreiras de entrada, representadas mais pelo “padrão de organização que pela tecnologia”, ganhou ‘vida própria’, nas palavras de Werner Sombart. (ARRIGHI, 1996, p. 247-51) Foi esse padrão de empresas, que mais à frente começaram a se internacionalizar, tornando-se conhecidas por empresas transnacionais, que deu a efetiva base econômico-financeira ao império global norte-americano, que crescia. Assim, empresas transnacionais adquirem personalidade cada vez mais global e em alguns casos sobrepõem seu poder ao das nações em que estão alocadas, além de muitas vezes possuírem mais recursos financeiros que estas. De acordo ainda com Arrighi, essas corporações globais foram quem efetivamente promoveu a “superação do capitalismo financeiro britânico”, porque, segundo ele: O agente principal e dominante dessa superação não foi o capitalismo financeiro como tal, em nenhuma de suas variantes, mas o capitalismo de corporações que emergiu nos Estados Unidos através da formação de empresas com diversas unidades, dotadas de integração vertical e administração burocrática. Uma vez que essas empresas se consolidaram no espaço econômico amplo, diversificado, autosuficiente, dinâmico e bem protegido que o Estado norte-americano abrangia, elas passaram a desfrutar de vantagens competitivas decisivas na economia mundial como um todo, tanto em relação ao capitalismo de mercado de estilo britânico quanto ao capitalismo de corporações de estilo alemão. (ARRIGHI, 1996, p. 303)

32

Ocorre, nessa fase mais atual do ciclo, a crescente instabilidade global, tanto em termos da sobrevalorização da finança, e com isso, da instabilidade, em detrimento da segurança dos investimentos lastreados. Há, assim, o crescimento exagerado da insegurança social e nacional, com ameaças terroristas frequentes, muitas vezes existentes apenas em pensamento, promovidas muitas vezes por conflitos religiosos, que por sua vez levam à necessidade, por precaução, do desenvolvimento de armas químicas, biológicas, dentre outras. A sociedade americana se torna, assim, um tanto paranoica com relação a essas novas ameaças, cada vez mais onipresentes. O professor Fiori expressa bem essa ideia no excerto seguinte, que conclui este subcapítulo: O novo inimigo dos Estados Unidos, portanto, já não seria mais uma nação ou aliança de Estados terroristas, nem mesmo uma rede terrorista internacional, seriam as próprias “vulnerabilidades” dos norte-americanos. Mas quais são essas vulnerabilidades? Quem as define? Em que campo se situam? O próprio Rumsfeld [Donald Rumsfeld, ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos] tenta esclarecer o problema ao defender (...) a construção de um sistema inexpugnável contra qualquer coisa que possa ameaçar os norte-americanos; contra o “desconhecido, o incerto, o inesperado”. Uma ameaça que pode vir do espaço e ser nuclear, mas também pode ser cibernética, biológica, química e pode estar no ar, na terra, na água, nos alimentos, enfim, em centenas de veículos ou lugares diferentes, porque é pouco provável que alguém queira rivalizar ou competir com os Estados Unidos numa guerra convencional. (FIORI, 2007, p. 127)

QUADRO 2: Características de cada ciclo de acumulação.

Ciclo Genovês

     

Final do século XIII e meados do século XVI. Principais cidades: Gênova, Milão, Florença e Veneza. Indústria cultural como canal de investimento. Empréstimos a governos europeus, especialmente ao Espanhol. Declínio de rotas comerciais e crise de hiper-acumulação. Aliança com governos ibéricos, em busca de proteção.

Ciclo Holandês

     

Início em meados do século XVII. Expansão marítima, pirataria e pilhagem, grande capacidade bélica. Classe rentista precoce. Interesses oligárquicos chocando-se com os governamentais. Amsterdam: entreposto central do comércio, mercado de moedas. Expansão limitada pelo Mercantilismo inglês e francês.

Ciclo Britânico

     

Ocorrência entre os séculos XVIII e XIX. Mercantilismo em grande escala. Imperialismo intra e extra europeu. Livre comércio e busca de competitividade internacional. Sem lutas de expansão territorial, foco na expansão marítima. Final: incentivo à descolonização, Londres como centro financeiro.

Ciclo NorteAmericano

Fonte: Elaboração Própria

     

Independência, territorialismo e empreendedorismo. Formação de mercado interno grande e dinâmico. 1ª e 2ª GM contribuem para ascensão produtiva e financeira. Instituições de Bretton Woods suportam a escalada imperial. Empresas transnacionais. Instabilidade, terrorismo e paranoia.

33

3. A TEORIA DA ESTABILIDADE HEGEMÔNICA Enquanto no capítulo anterior tratei do processo de ascensão e queda de algumas nações que detiveram a hegemonia mundial em certos períodos históricos, neste capítulo o foco será em caracterizar a situação denominada Hegemonia. Para tanto, será feita uma breve descrição da Teoria da Estabilidade Hegemônica, ou THE, como a chamarei de agora em diante. Em seguida, será aprofundado o caso da hegemonia dos Estados Unidos.

3.1. Império-Mundo versus Hegemonia De acordo com o Immanuel Wallerstein, há duas situações nas quais uma potência exerce dominância a nível internacional: Império-Mundo e Hegemonia. Segundo ele, um Império-Mundo seria: “uma estrutura na qual há uma única autoridade política para todo o sistema” (WALLERSTEIN, 2004a, p.57). Wallerstein acredita que nos últimos quinhentos anos houve três grandes tentativas de conformar um império global (a de Charles V no século XIV, a de Napoleão Bonaparte, no século XIX e a de Hitler em meados do século XX), nenhuma delas bem sucedida. Por outro lado, o mesmo autor observa que nos últimos cinco séculos houve três potências que se tornaram hegemônicas: as Províncias Unidas, em meados do século XVII, o Reino Unido, no século XIX e os Estados Unidos, a partir de meados do século XX. Segundo ele, (...) o que nos permite chamar essas potências de hegemônicas é o fato de que, por certo período de tempo, elas foram capazes de estabelecer as regras do jogo no sistema interestatal, de dominar a economia mundial (em termos de produção, comercio e finanças), conseguir seus objetivos políticos com um mínimo uso de força militar (...), e formular a linguagem cultural na qual se discutiu o mundo. (WALLERSTEIN, 2004, p.58) (tradução própria)

Segundo Wallerstein, nunca houve um Império-Mundo porque essa conformação não seria interessante para o sistema capitalista, uma vez que haveria um único sistema político em todo o mundo, tão forte que seria capaz de barrar a acumulação infinita de capital. Entretanto, existiram Hegemonias porque elas puderam ser úteis ao Capitalismo, uma vez que proporcionaram estabilização do ambiente político-econômico e as estruturas necessárias para a economia mundial prosperar. Dado que se tem claro o conceito de hegemonia, passemos à análise da THE.

34

3.2. As Bases da Teoria da Estabilidade Hegemônica Na realidade, o que suscitou a origem dessa teoria foi a necessidade de se entender a relação entre economia e política na atuação dos países. Para essa origem, os principais contribuintes foram acadêmicos norte-americanos e britânicos, que desenvolveram em paralelo as bases da THE. Para os cientistas políticos norte-americanos, o principal componente explicativo das relações entre países era o Poder, por algumas razões básicas. Primeiro porque, na Escola norte-americana, os cientistas políticos foram os primeiros a ‘tomar as rédeas’ do nascente campo de estudo da Economia Política Internacional, e para eles “parecia natural pensar primeiro sobre política e sobre o papel do Estado soberano” (COHEN, 2008, p.67). Segundo porque, após a 2ª Guerra Mundial, os Estados Unidos foram um claro exemplo de hegemonia global, tornando confortável para os acadêmicos norte-americanos considerarem a “hegemonia como um fator central de mudança” (COHEN, 2008, p.67), embora essa hegemonia já estivesse sendo questionada no momento da criação da THE. Opinião distinta tinha uma boa parte da Escola britânica de Economia Política Internacional, que considerou as premissas acima um tanto exageradas, alegando que o único interesse dos acadêmicos norte-americanos era dar visibilidade para seu próprio país. Oficialmente,

a

THE

foi

desenvolvida

pelo

economista

Charles

Kindleberger, juntamente com os cientistas políticos Robert Gilpin e Stephen Krasner, em meados da década de 70. Dentre estes, o primeiro a desenvolver ideias que mais tarde conformariam a teoria foi Kindleberger. No excerto de seu livro The World in Depression, 1929-1939, este autor deixa clara a lógica dessa teoria: Os sistemas econômico e monetário internacionais necessitam liderança, um país que seja preparado, consciente ou inconscientemente, sob um sistema de regras que ele próprio cria, para estabelecer padrões de conduta para os outros países; e buscar com que os outros o sigam, para assumir e desfazer parte dos encargos do sistema, e em particular fornecendo suporte nos períodos de adversidade, aceitando commodities redundantes, mantendo um fluxo de capital investido e descontando o seu papel (KINDLEBERGER, 1973, p.28 Apud COHEN, 2008, p.71) (tradução própria)

Neste livro, o autor explica que a crise de 1929 ocorreu porque faltou uma potência hegemônica para estabilizar o sistema internacional. De fato, como vimos no capítulo anterior, a Inglaterra exerceu o papel de hegemon global durante todo o século XIX, até princípio do século XX. Entretanto, após a 1ª Guerra, esse país deixou de

35

exercer esta função, por conta das perdas sofridas, tanto de poder quanto de influência (fim do imperialismo na Índia, endividamento de guerra, ascensão político-econômica dos EUA). Ao mesmo tempo, os Estados Unidos se recusavam a exercer o papel de hegemon, por razões políticas. Dessa forma, por não haver um agente estabilizador capaz de controlar o sistema internacional, a crise foi impossível de conter. De acordo com Benjamim Cohen (COHEN, 2008), há duas maneiras de se enxergar a THE: uma de cunho liberal, que destaca a estabilidade hegemônica como um fator promotor de bem estar global, e outra de cunho realista, que foca nos benefícios que o hegemon adquire ao exercer o controle do sistema internacional. A estabilidade hegemônica, na visão de Kingdleberger, seria um bem público, por apresentar duas características fundamentais: não-exclusividade e nãoconcorrência. Segundo Cohen, “não-exclusividade significa que outros podem ser beneficiados do bem, mesmo que não contribuam para a sua provisão” (COHEN, 2008, p.72), ao passo que a não-concorrência significa que “o uso do bem por alguém não diminui a quantidade disponível para os outros” (COHEN, 2008, p.72). Adicionalmente, Kindleberger defende a existência de três características mandatórias para a estabilidade: manutenção de um mercado aberto para importações, empréstimos acíclicos de longo-prazo e provisão de financiamento de curto-prazo em períodos de crise (COHEN, 2008, p.88). Segundo Cohen, Dado que essas (três) funções podem ser custosas, o hegemon pode ter de suportar uma desproporcional parcela de carga, especialmente se os outros países escolhem caminhar sozinhos. Mas, para Kindleberger, este é simplesmente o preço a ser pago pela responsabilidade da liderança. Sua versão da THE poderia então ser caracterizada como benevolente, um exercício benigno do poder. (COHEN, 2008, p.72)

Assim, Cohen define a visão de Kindleberger a respeito da THE como de cunho liberal. Há, entretanto, uma segunda visão para a THE, como referido anteriormente. Essa outra visão analisa a teoria sob uma perspectiva mais realista, buscando explicar que muitas das ações do hegemon são motivadas por interesses próprios. O poder econômico é visto como um meio, e não um fim. Um meio para o hegemon exercer o controle sob: fluxos de mercadorias, concessão de empréstimos, promoção de ações de segurança onde julgar necessário, execução de punições para aqueles países que desobedecerem aos seus comandos, dentre outros fins. Muitos desses interesses-fins são obtidos sem aprovação de outros atores internacionais. É

36

esse tipo de poder mais coercitivo que benevolente que caracteriza a atuação do hegemon, para os adeptos desse raciocínio. Para essa linha de visão, dois autores de cunho realista foram os principais contribuintes: Robert Gilpin e Stephen Krasner. Gilpin trabalhou encima das ideias de Kindleberger, considerando a premissa de que o mundo precisaria de um estabilizador para ser estabilizado. Entretanto, adicionou a ideia de mudança histórica à THE. Incluiu o debate sobre a natureza da transformação sistemática da economia mundial, para o qual “a mudança histórica foi dirigida (ao longo do tempo) pelo comportamento egoísta dos estados poderosos” (COHEN, 2008, p.73). Tal pensamento é ilustrado no seguinte excerto: Uma estrutura social (...) é criada para atender aos interesses de seus membros mais poderosos. Ao longo do tempo, entretanto, enquanto a distribuição de capacidades muda, novas potências buscarão alterar as regras do jogo de maneira a favorecer seus próprios interesses, e continuarão a fazer isso sempre que os benefícios da mudança excederem seu custo.(COHEN, 2008, p.73) (tradução própria)

Assim, o sistema mundial seria estável somente nos momentos em que não houvesse potências em ascensão, que visualizassem meios de adquirir vantagens sobre as potencias dominantes, mudando as regras do jogo em benefício próprio. Por outro lado, Krasner estudou as influências da hegemonia na configuração das estruturas de comércio internacional. Segundo ele, “há uma relação sistemática entre hegemonia e abertura no sistema de comércio internacional” (COHEN, 2008, p.74), e que essa abertura seria mais visível nos momentos iniciais da escalada da potência hegemônica na direção de exercer o controle mundial. A visão realista, e negativa, de Krasner, com relação à estabilidade hegemônica, é que a estrutura do comércio internacional é determinada pelo poder e interesses dos estados, que atuam para maximizar seus resultados individuais.

3.3. A Teoria da Estabilidade Hegemônica e o caso dos Estados Unidos Uma das premissas adotadas pela THE foi a de que a hegemonia dos Estados Unidos entrara em declínio a partir da década de 1970, com o fim do padrão ouro e o colapso do sistema de Bretton Woods. De acordo com Cohen, era lógico para os acadêmicos adotar essa premissa, dadas as condições pelas quais o país passava naquele momento histórico. Tais condições são descritas no excerto:

37

Naquela época, a evidência para o declínio da hegemonia (norte-americana) parecia óbvia. Em 1950, os Estados Unidos contavam por um expressivo um terço de toda a produção mundial de bens e serviços. Vinte e cinco anos depois, sua participação era de menos de um quarto. Na manufatura o declínio foi ainda mais íngreme, passando de quase metade do total mundial na metade do século para menos de um terço nos anos 1970s. Em geral, o crescimento econômico dos Estados Unidos nos anos 1950s e 1960s foi significativamente abaixo do crescimento da Europa continental e do Japão. A participação dos Estados Unidos no comércio mundial caiu de aproximadamente 33 por cento em 1948 para menos de 24 por cento, em meados dos anos 1970s. Em 1971, déficits persistentes na balança de pagamentos forçaram Washington a acabar com a conversibilidade do dólar em ouro, precipitando o colapso do sistema de Bretton Woods. (COHEN, 2008, p.75) (tradução própria)

O colapso do sistema de Bretton Woods foi fundamental para a perda de credibilidade dos acadêmicos na Hegemonia dos Estados Unidos, principalmente porque o valor do dólar e, por consequência, a liquidez desse país, foram de certa forma minados após esse evento. O modelo criado em Bretton Woods após a 2ª Guerra Mundial era baseado na força do dólar como motor de transações financeiras internacionais e, por consequência, como sustentáculo do crescimento econômico mundial. Duas das características fundamentais do acordo foram: a fixação das taxas de câmbio e a criação de um ‘lastro monetário’ do dólar em ouro. Assim, a emissão de dólares estava condicionada às reservas de ouro norte-americanas. Esse modelo vinha dando certo, até que, “após 1967, as coisas começaram a mudar com a desvalorização da libra, que vinha proporcionando alguma proteção ao dólar” (GILPIN, 1987, p. 135). Além disso, outros fatores contribuíram para a deterioração do modelo: “grande escala da Guerra do Vietnã e a consequente deterioração da balança de pagamentos norte-americana, (...) crescimento da inflação mundial, crescente instabilidade monetária, ataques especulativos ao dólar” (GILPIN, 1987, p.135). Todos esses fatores contribuíram para o desequilíbrio na balança de pagamentos dos EUA, para a emissão de dólares sem o respectivo lastro em ouro (para manutenção da liquidez e do crescimento econômico mundial, ambos completamente dependentes da moeda norte-americana) e, consequentemente, para a instabilidade no sistema financeiro. Ainda assim, o sistema Bretton Woods sobreviveu por mais alguns anos, graças a “uma firme fundamentação política” (GILPIN, 1987, p. 136), ocorrida entre os três principais motores da economia internacional na época: Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão. Os dois últimos concordaram em financiar os déficits na balança de pagamentos do primeiro, com a condição de que este permitisse àqueles “o

38

uso do sistema para promover sua própria prosperidade econômica, mesmo que isso acontecesse largamente às custas dos Estados Unidos” (GILPIN, 1987, p. 136). Com algum tempo de operação desse acordo, duas assimetrias básicas surgiram: Por um lado, o papel do dólar como principal moeda internacional proporcionou privilégios econômicos e políticos aos EUA, libertando o país de preocupações com sua balança de pagamentos na condução de sua política internacional e na administração de sua economia interna. Por outro lado, os EUA, em contraste com outras economias, não podiam desvalorizar o dólar com relação a outras moedas, com o intuito de melhorar sua posição comercial e de pagamentos. Era assumido que qualquer desvalorização do dólar para melhorar a posição competitiva dos EUA seria imediatamente seguida por desvalorizações paralelas da libra, do marco, e de outras moedas. (GILPIN, 1987, p.137) (tradução própria)

Inicialmente, tanto os EUA como a Europa Ocidental e o Japão souberam lidar com essas assimetrias, uma vez que os benefícios se contrabalanceavam. Entretanto, cada vez mais os EUA foram se aproveitando dessa situação de ‘livre criação de moeda’ para manter sua posição de hegemon global. O uso deliberado desse privilégio fez-se perceber através da “manutenção de tropas militares na Europa Ocidental e em vários locais em torno da periferia soviética e chinesa, do financiamento de ajudas internacionais e da Guerra do Vietnã, além da compra de empresas estrangeiras” (GILPIN, 1987, p.136-7). Todo esse processo culminaria mais adiante perda de confiabilidade no dólar e no aumento exagerado dos níveis inflacionários globais, levando à crescente desestabilização do sistema financeiro internacional. De fato, em 15 de Agosto de 1971 foi anunciada uma nova política econômica para os EUA, que acabaria de vez com o sistema criado em Bretton Woods. Os principais pontos da nova política são descritos no excerto: Primeiro, o Presidente suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro e, assim, colocou o sistema monetário global em um puro padrão dólar. Segundo, ele impôs uma sobretaxa às importações norte-americanas com o intuito de forçar os europeus e japoneses a revalorizar suas moedas em relação ao dólar. E terceiro, instituiu controle sobre preços e salários, como um meio de suspender a acelerada taxa de inflação norte-americana. (GILPIN, 1987, p.140) (tradução própria)

De acordo com Gilpin, o principal motivo para os EUA acabarem com o padrão ouro e com as taxas fixas de câmbio foi a preservação de sua autonomia política. O crescente poder da Europa Ocidental e do Japão, que possuíam enormes reservas em dólares, poderia diminuir a autonomia norte-americana em relação à autonomia dessas potências, e isso necessitava ser extinto, mesmo que às custas do fim do sistema de Bretton Woods. (GILPIN, 1987, p.140-1). A legalização das taxas de

39

câmbio flutuantes ocorreu de fato em 1976, na Conferência da Jamaica, acabando de vez com o sistema de Bretton Woods. Além do colapso de Bretoon Woods, há outros fatores que levaram os acadêmicos a acreditar que a hegemonia norte-americana está em extinção. Para Wallerstein, há quatro símbolos que ilustram que dita hegemonia está definitivamente sendo minada: a guerra do Vietnã, as revoluções de 1968, a queda do muro de Berlim em 1989 e os ataques terroristas de setembro de 2001 (WALLERSTEIN, 2004b, p.25). Wallerstein argumenta que a guerra do Vietnã é um símbolo tão poderoso porque “Washington foi suficientemente insensato para investir no combate todo o seu poderio militar – e, apesar disso, perder”. Ademais, “O conflito foi dispendioso e praticamente esgotou as reservas de ouro dos Estados Unidos, que eram abundantes desde 1945”. (WALLERSTEIN, 2004b, p.26). O autor explica que a guerra ocorreu numa fase em que a Europa Ocidental e o Japão estavam no auge de uma forte retomada econômica, de maneira que o conflito acabou com a superioridade econômica dos EUA a nível global. Com relação às revoluções de 1968, Wallerstein defende que dois fatores foram essenciais para o declínio do poder americano: (a) a crítica dos revolucionários com relação ao conluio Estados Unidos – União Soviética, para a ‘administração’ do mundo pós-segunda guerra e (b) o ataque dos revolucionários à ‘velha esquerda’, representada pelos “movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo, movimentos socialdemocratas na Europa Ocidental, e democratas no New Deal dos Estados Unidos” (WALLERSTEIN, 2004b, p.27), todos acusados de apoiarem o referido conluio americano-soviético e, por conseguinte, os interesses imperialistas dos Estados Unidos. Segundo o autor, tais pontos são importantes porque minaram a posição do liberalismo centrista como “única ideologia global legítima”. (WALLERSTEIN, 2004b, p.27). O terceiro símbolo de declínio é a queda do muro de Berlim, que nada mais foi do que um símbolo da queda definitiva do regime comunista como um todo. A União Soviética e seu império comunista no leste europeu caíram por conta da referida “desilusão popular com a velha esquerda, combinada com os esforços de Mikhail Gorbachev para salvar seu regime (...) através da liberalização interna” (WALLERSTEIN, 2004b, p.29) e do final dos acordos americano-soviéticos de divisão do mundo pós-segunda guerra. Segundo Wallerstein, o colapso do comunismo também significou o colapso do liberalismo, por “eliminar a única justificação

40

ideológica para a hegemonia dos Estados Unidos, uma justificação tacitamente sustentada pelo ostensivo opositor ideológico do liberalismo” (WALLERSTEIN, 2004b, p.29). Por fim, os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 são outro símbolo do fim da hegemonia americana. Entre a Guerra do Golfo (1990) e o 11 de setembro os EUA exerceram marcado papel diplomático nos Bálcãs e no Oriente Médio, entretanto não conseguiram pôr fim nos processos de etnificação e violência contra os direitos humanos que ocorriam nesses locais, “não por falta de vontade ou esforço, mas por falta de verdadeiro poder” (WALLERSTEIN, 2004b, p.30). Até que ocorreram os ataques de 11 de setembro, demonstrando que (a) as nações (ou boa parcela da população) do Oriente Médio não estavam satisfeitas com a atuação dos EUA na região e (b) a rede terrorista Al-Qaeda, mesmo não representando uma potência militar, foi capaz de promover um ataque de tal magnitude ao solo americano, representado uma falta de preparação das estruturas de proteção do país. Depois do referido ataque vieram as conhecidas intervenções dos EUA no Afeganistão e no Iraque, ambas como forma de contra-ataque do governo às tentativas árabes de enfraquecer a potência norte-americana. Wallerstein aponta que tais contraataques trouxeram grandes despesas militares ao país, num momento em que sua situação econômica não era das melhores. O autor conclui que o que estava ocorrendo era “mais velha história na vida das potências hegemônicas: a potência dominante concentra-se no aspecto militar; o candidato a sucessor concentra-se no aspecto econômico” (WALLERSTEIN, 2004b, p.35), referenciando o fato de que na época o Japão estava investindo fortemente em tecnologias de apoio ao progresso econômico, ao passo que os EUA mantinham um dispendioso apoio às tecnologias de desenvolvimento de armas. Contudo, há autores que não concordam com o posicionamento de Wallerstein, e afirmam que a hegemonia dos EUA está longe de seu fim. José Luis Fiori, Franklin Serrano e Maria da Conceição Tavares são alguns exemplos. Segundo Fiori, a hegemonia norte-americana ainda está longe do declínio, exemplificando algumas razões para acreditar nisso: (a) Todos os sinais indicadores de que a crise de 1970 representara o declínio dos EUA foram convertidos no seu contrário, de modo que o papel de grande ‘devedor’ da economia mundial foi fundamental para a potência americana alavancar essa mesma economia, nos 40 anos seguintes à crise;

41

(b) O fim do padrão ouro e adoção do padrão dólar-flexível “permitiu aos EUA exercerem um poder monetário e financeiro internacional sem precedente na história da economia e do ‘sistema mundial moderno’”; (c) A desregulação do mercado financeiro americano, inicialmente vista como um fator negativo, transformou-se na “mola mestra da globalização vitoriosa do capital financeiro norte-americano”; (d) A derrota na guerra do Vietnã foi benéfica para os interesses imperialistas dos EUA, uma vez que por conta dela foi formada uma aliança estratégica com a China, contribuindo vigorosamente para o fim da União Soviética e da Guerra Fria, além de influenciar na “estratégia tecnológico-militar que contribuiu para a vitória americana na Guerra do Golfo, em 1991”; (e) A crise hipotecária de 2008, mesmo tendo-se evoluído à categoria de crise financeira mundial, “não prejudicou a centralidade do dólar, dos títulos da dívida e da economia americana”; (f) O fracasso político no Iraque não diminuiu o poder militar dos EUA; (g) A alta capacidade de inovação tecnológica e de produção e controle da maioria da informação do mundo ainda prevalecem. (FIORI, 2008, p.17-9)

O autor finaliza a lista acima explicando que: As dificuldades políticas e econômicas dos Estados Unidos, no final da primeira década do século XXI, poderão se aprofundar, mas, do nosso ponto de vista, com certeza não se trata do fim do poder americano, muito menos da economia capitalista. (FIORI, 2008, p.19)

Franklin Serrano também defende que a hegemonia americana não está em crise, enfatizando que a “crise de 2008 nada teve de ver com o papel internacional do dólar, mas com as deficiências a na regulação dos mercados financeiros privados americanos” (SERRANO, 2008, p.164). Segundo ele, a despeito da crise financeira de 2008, Ainda restam, ao Estado e às classes proprietárias dos Estados Unidos, uma substancial capacidade de influir decisivamente, e com frequência até certo ponto controlar, os seguintes fatores estratégicos: a classe trabalhadora americana; a tecnologia de ponta mundial na área militar e civil; a moeda mundial; o preço internacional dos alimentos e o preço e o acesso às principais reservas de energias das quais o resto do mundo depende. (SERRANO, 2008, p.165)

Tavares utiliza dois fatos históricos já referidos neste trabalho para justificar a manutenção do poder dos EUA: a crise do petróleo de 1973 e o fim do padrão ouro e

42

adoção do padrão dólar flexível, com o fim do sistema de Bretton Woods. Segundo ela, as intervenções maciças da potência americana para a estabilização dos conflitos no oriente médio tinha duas funções: resolver a geopolítica da área e a geoeconomia do petróleo, em período em que as potências locais ameaçavam obter o controle global dessa commodity, tornando-se um risco para a economia norte-americana e global. Com respeito à instabilidade pela qual o dólar passava no período, a solução foi encontrada com a “diplomacia do dólar forte” do governo Reagan, seguida da utilização do iene japonês, país que possuía grandes reservas de moeda americana, como “moeda de ajuste” ao dólar flexível. De acordo com isso, para Tavares: “Nos dois "mercados flexíveis", o dólar e o petróleo, os EUA deixaram de arcar internamente com o ônus da desregulação, que caracterizou o período de transição 1973/85 e passaram a uma economia de comando, na qual a política norte-americana faz unilateralmente as intervenções preventivas ou corretivas, segundo a conjuntura. Sem regras gerais auto-aplicáveis e sem consideração pelas regras dos organismos internacionais que eles mesmos ajudaram a criar, os norte-americanos, com seu intervencionismo preventivo, expandiram como nunca o seu poder global.” (TAVARES, 2004)

43

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS No inicio deste trabalho, antes mesmo de se iniciar a escrevê-lo, numa fase de estruturação do que de fato seria estudado, havia uma ideia de se escrever sobre os Estados Unidos. Entretanto, ao longo da pesquisa por referências que tratassem da história e do papel político-econômico desse país, foi percebido que havia duas teorias que tratavam dele em perspectiva história, sob o âmbito das Relações Internacionais: a teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação e a da Estabilidade Hegemônica. Apesar de tais teorias terem um escopo de análise bem mais amplo que somente os EUA, elas tinham esse país como um dos pontos comuns de estudo e, por esse motivo, o escopo de trabalho sofreu uma mudança. Ao invés de trabalhar apenas os EUA, seria feita uma análise comparativa entre as duas teorias, e aquele país seria tratado sempre que pertinente, dentro da análise de cada teoria. Foi o que foi feito. Após o estudo das duas teorias em questão, chegou-se a duas conclusões principais: (a) ambas têm um escopo de estudo diferente, buscando explicar fenômenos distintos, embora sejam observados sob uma mesma óptica; (b) há pontos de conexão entre as teorias, que as tornam complementares no estudo do sistemamundo. Esses dois tópicos serão desenvolvidos nesse capítulo de considerações finais. Em primeiro lugar, será analisado o tópico (a). Ao longo deste trabalho percebeu-se que as duas teorias em estudo apresentam escopos bastante distintos, diferentemente do que se imaginava de início. Enquanto o estudo dos Ciclos Sistêmico de Acumulação tem por alvo o desenvolvimento do sistema capitalista ao longo do tempo, a teoria da Estabilidade Hegemônica estuda primariamente o papel da Economia e da Política nas relações entre os países. Nesse sentido, muito do que foi descrito na seção de ‘bases’ da primeira teoria não encontra o respectivo correspondente na seção ‘bases’ da segunda teoria. Por exemplo, a descrição das duas fases do ciclos de acumulação (a de acumulação produtiva e a financeira) é central para o entendimento da transição de um ciclo para outro. Entretanto, no estudo da estabilidade hegemônica não foi encontrada nenhuma descrição de fases da hegemonia de um país. Na realidade, como essa última teoria foi desenvolvida na década de 1970, na qual os EUA já detinham o título de hegemon global, a bibliografia encontrada tem grande foco nesse país, e não foi identificada uma preocupação na descrição de ‘fases’ de hegemonias já finalizadas.

44

Outro aspecto importante é a diferença de visão em relação a quem seria o principal beneficiário do hegemon, se ele próprio ou o se sistema internacional. Na descrição dos ciclos sistêmicos, Arrighi foca no papel benéfico do hegemon, na sua função de estabilizador do caos sistêmico, promotor do crescimento econômico e facilitador de relações comerciais e políticas entre países. Não há um esforço para descrever os pontos negativos da atuação do hegemon. Por outro lado, na THE há uma forte oposição de visão entre aqueles que analisam a hegemonia sob a óptica liberal, enfatizando a sua contribuição para o bem estar político-econômico do mundo e para a manutenção das boas relações entre as nações, e aqueles que a analisam sob a óptica realista, enfocando no interesse imperialista do hegemon e em seu papel de manipulador do sistema interestatal sempre em favor de seus interesses. Há ainda a questão do escopo primário de estudo de cada teoria. Como o interesse do estudo dos ciclos de acumulação é o capitalismo, uma boa parte da obra O Longo Século XX (Giovanni Arrighi), principal referência utilizada no capítulo 2 deste trabalho, é dedicada ao aspecto mais econômico dos ciclos: utilização do conceito marxista de mais valia para descrever a acumulação ‘infinita’ de capital; descrição dos principais produtos de comércio de cada potência hegemônica; enfoque no aspecto financeiro da economia e na importância das principais moedas como meios de troca e expansão global em termos de território e influência. Já no caso da estabilidade hegemônica, cujo foco é o estudo das relações entre países, há uma análise mais focada na Economia Política Internacional: estudo de interesses particulares dos países, em especial do hegemon, na definição de suas estratégias de ação no cenário internacional; estudos de guerras e seus desdobramentos políticos; desenvolvimento tecnológico, militar, educacional e econômico em geral na definição do papel que cada país desempenha no sistema internacional. Será analisado agora o tópico (b), sobre as principais semelhanças que se identificou entre as teorias. Para ambas as teorias é fundamental a existência de anarquia no sistema internacional para a existência do hegemon, já que este é apenas um estabilizador do sistema internacional, e não um governante global. Portanto, é essencial que haja uma multiplicidade de países autônomos politicamente para que o hegemon exerça sua ‘influência’ sobre eles, mas sem ‘controlá-los oficialmente’, como no regime de colonialismo. Obviamente esta é apenas uma premissa teórica, uma vez que se sabe que o controle sempre foi e ainda é exercido de forma indireta em muitos momentos.

45

Por exemplo, quando os EUA se utilizam do poder de seu cambio para promover desvalorizações ou valorizações em outras moedas internacionais. Ou quando exigem apoio militar de outro país para invadir determinada região, sob o pretexto de cortar relações comerciais com o tal país, se este não o apoiar. Foi identificada ainda outra semelhança, com respeito à visão das teorias aqui estudadas sobre a fase atual dos EUA. Para as duas, a hegemonia dos EUA está em declínio. De acordo com a divisão do ciclo sistêmico em fases de expansão produtiva, auge financeiro e declínio, para a teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação os EUA estão numa fase de expansão financeira, exatamente anterior ao declínio definitivo. Essa teoria também propõe que dita fase é marcada pela instabilidade sistêmica e pela sobrevalorização da finança em termos da produção, o que de fato vem ocorrendo nos EUA, corroborando a proposição de que sua hegemonia está prestes a declinar. A visão dos principais teóricos da Estabilidade Hegemônica é bastante semelhante. Wallerstein, por exemplo, defende que há quatro pontos que confirmam a fase final da hegemonia da águia americana: a guerra do Vietnã, as revoluções de 1968, a queda do muro de Berlim e os ataques de 11 de setembro. Além disso, para alguns desses teóricos, a derrubada dos acordos de Bretton Woods, principalmente o fim do padrão dólar fixo, foi outro acontecimento marcante para o princípio desse declínio. Cabe observar que essa visão não é uníssona, uma vez que existem autores que não concordam que a liderança global dos EUA está em sua fase final. Neste trabalho foram citados três autores que compartilham dessa visão: Fiori, Tavares e Serrano. Os três confirmam que o país vem passando por uma série de turbulências internas e no cenário político internacional desde a década de 1970, mas isso não chegou nem próximo de minar a sua influência, nem de ameaçar seu título de hegemon global. Essa comparação entre teorias está resumida na Tabela 1, a seguir. Nessa tabela foram criados oito indicadores de comparação, considerados relevantes para demonstrar as semelhanças e diferenças entre ambas. Nem todos os indicadores têm correspondentes nas duas teorias, é o caso do indicador presença de fases, que só tem sentido para a Teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação, que apresenta fases bem definidas para os ciclos, ao passo que não há referências sobre fases na teoria da Estabilidade Hegemônica.

46

TABELA 1: Comparação entre as duas teorias.

Principais autores

INDICADORES DE COMPARAÇÃO

Principais Obras

Foco de estudo Principais disciplinas relacionadas Presença de fases

TEORIA Teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação Teoria da Estabilidade Hegemônica Charles Kindleber, Robert Gilpin e Giovanni Arrighi, Fernand Braudel Stephen Krasner (a)International Economy and International Relations: a case of mutual neglect - Susan Strange, (a)O Longo Século XX - Arrighi, 1994; (b) 1970; (b) The World in Depression, Civilização Material, Economia e Capitalismo: 1929-1939 - Kindleberger, 1986; (c) séculos XV-XVIII - Braudel, 1979 The Political Economy of International Relations - Gilpin, 1987 Papel da Economia e da Política na Desenvolvimento do Sistema Capitalista ao relação entre os países. Foco na longo da história hegemonia dos EUA. Economia, Política, Relações História e Economia Internacionais Sim: Fases Produtiva e Financeira -

Principal beneficiário da potência hegemônica

O sistema capitalista internacional

Há autores que defendem que é o sistema internacional, e outros que afirmam ser o próprio hegemon.

Papel do Estado

Crucial para o desenvolvimento do capitalismo

Importante, mas não crucial. Há atores internacionais tão importantes quanto os Estados: ONU, World Bank, OMC

Opinião com relação ao declínio da hegemonia dos EUA

Concordância

Alguns autores concordam, outros discordam Fonte: Elaboração própria

Os outros sete indicadores apresentam correspondentes para ambas as teorias. Os indicadores principais autores e principais obras são bastante pontuais, e resumem as obras e pensadores mais relevantes para cada teoria, de acordo com a bibliografia estudada. O indicador principais disciplinas relacionadas foi preenchido com as disciplinas-base para cada teoria, de acordo com a bibliografia lida. Esses três indicadores são mais genéricos, pois tratam das teorias sob uma perspectiva geral, sem enfocar em pontos específicos de cada uma. Já os indicadores foco de estudo, principais beneficiários da potência hegemônica, papel do Estado e opinião com relação ao declínio da hegemonia dos EUA são específicos, comparando as teorias em pontos que exigem uma leitura mais detalhada para serem entendidos. Sumarizando, os objetivos geral e específicos do trabalho foram atingidos, de forma que foi feito o comparativo entre as duas teorias, e identificado que há pontos

47

de convergência e de divergência. Foram criados indicadores de comparação, através dos quais se fez uma análise mais pontual de semelhanças e diferenças entre as teorias.

48

BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, P R. A economia mundial em perspectiva histórica. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 39, n. 2, p. 136-151, 1996. ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Contraponto: Ed. UNESP, 1996. CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo, SP: Xamã, 1996. COHEN, B. International Political Economy: an intellectual history. New Jersey: Princeton University Press, 2008. DOUGHERTY, J; PFALTZGRAFF, R. L. Contending theories of international relations: a comprehensive survey. New York, N.Y.: Harper Collins, 1990. DUNNING, J. Multinational enterprise and the global economy. Workinghan: AddisonWesley, 1993. FIORI, J. L. O sistema interestatal capitalista no início do século XXI. In: O mito do colapso do poder americano. Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Ed. Record, 2008. _____. A paranóia como estratégia. In: O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo, SP: Boitempo, 2007. GILPIN, R. The political economy of international relations. Princeton: Princeton University Press, 1987. GONÇALVES, F. T. A relação entre política e economia nas teorias de Arrighi e Wallerstein. - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. _____. A relação entre competição interestatal e a produção do excedente: uma contribuição para a economia política internacional. 2009. 92f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. HOBSBAWM, E. A era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1994. KINDLEBERGER, C. World economic primacy; 1500 – 1990. Oxford: Oxford University Press, 1996. SERRANO, F. A economia americana, o padrão dólar flexível e a expansão mundial nos anos 2000. In: O mito do colapso do poder americano. Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Ed. Record, 2008.

49

TAVARES, M. C; FIORI, J.L. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1997. TAVARES, M. C. O poder americano depois de 1970. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 jun. 2004. WALLERSTEIN, I. M. World-systems analysis: an introduction. Durham: Duke University Press, 2004a. _____. O declínio do poder americano: os Estados Unidos em um mundo caótico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2004b.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.