Ascese na modernidade: o caráter transformador do livro absoluto

July 5, 2017 | Autor: Eduardo Losso | Categoria: Asceticism, German Romanticism, Poesia, Stephane Mallarme
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CLBERCULTURA EM TEMPOS DE DIVERSIDADEESTÉTICA, ENTRETENIMENTO E POLÍTICA

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O 2 0 1 3 Erick Felinto Projeto gráiico. d i a g r a m a ç ã o e publicação: Anadarco Editora & Comunicação Revisão: Janaina Mello Estúdio/produção: Av. Paulista, 6 2 0 , cj 1 2 0 5 São Paulo. S P - 0 1 3 1 0 - 1 0 0

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T. 1 1 2 7 3 7 - 5 3 1 7

Estoque: Caixa Postal 183 Guararema. SP - 0 8 9 0 0 - 0 0 0

vvvvw.anadarcoeditora.com.br / editorara anadarco.com.br Coordenação editorial da Coleção Comunicações e Culturas: Cíntia Sanmartin Fernandes (l ER J) Micael Herschmann (UFR]) Conselho científico da Coleção: Felipe Trotta (UFF) Franciscu Sedda (I niversitá di Roma. lor Vergata) George Yúdice i I niversidade de Miami) João Maia (UERJ) José Luiz Aidar Prado (Pt C-SP) Luís A. Albornoz (Universidade Carlos III de Madrid) Marialva Barbosa (UFRJ) MunLz Sodré (UFRJ) Ricardo Freitas (UERJ) Silvia H. Borelli (PUC-SP) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Cibercultura em Tempos de Diversidade - Estética. Entretenimento e Política Erick felinto (organizador) - Guararema, SP : Anadarco, 2013. H Coleção comunicações e cultura) 2/6p. : il Bibliografia. ISBN 9 7 8 - 8 5 - 6 0 1 37-49-7 1. Coleção C omunicações e Culturas - Cibercultura. 2. Mídia. 3. Redes. L Título. II. Série. COD: 3 0 2 . 2 0 9 8 1 5 3 Bibliotecária - Janaine A. Ferreira de Sá - CRB8/844 5 E PROIBIDA A REPRODUÇÃO Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida, sem a permissão por escrito do autor ou da editora.

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livraria da ana

Sumário

Apresentação

q5

Ascese na Modernidade: o caráter transformador do livro absoluto...

13

Eduardo Guerreiro

Brito

Losso

"Não existem notas demais" - a falácia da chamada "hiperdocumentação" do cotidiano

29

Fábio Fernandes da Silva Aproximações com o Conceito de Apropriação: uma associação com as imagens de celebridades no blog "Te Dou Um Dado?" Camila Cornutti Barbosa e Susan

41

Liesenberg

Música e mídia locativa: apropriação do lugar através de conexões musicais geolocalizadas

63

Diego Brotas

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Estéticas das redes: redes de visualização no capitalismo cognitivo

85

Ivana Bentes "Rise of Nightmares": horror e sinestesia nos games Alessandra

103

Maia

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Paratextos. programas de ação Tìiiago Falcão

1

e Dario

Mesquita

Cibereultura e Videojogos: as figurações maquínicas (e algorítmicas) do humano Luís Filipe Β. Teixeira

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1

Imersão em realidades ficcionais João Carlos Massarolo

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1 4-7

Mobilização nas redes sociais: a narrativídade do #1 5M e a democracia na cibercultura

193

Henrique Antoun e Fábio Malini O julgamento do Mensalão e as redes sociais de interpretação: pistas para uma hermenêutica da comunicação e cultura midiáüca compartilhada

213

Claudio Cardoso de Paiva A cobertura do G l sobre o conclave de 2 0 1 3 : tensões entre segredo e visibilidade em tempos de redes digitais

23 3

Fernanda Lima Lopes Do despertar tecnológico da consciência - breve arqueologia da internet como cérebro global Erick

251

Felinto

Sobre os autores

271

APRESENTAÇÃO

Os estudos de cibercultura vivem um momento especial no Brasi]. O rápido crescimento da área e a qualidade dos trabalhos que tem sido publicados dão testemunho do estado de maturidade que a pesquisa sobre as tecnologias digitais alcançou, não obstante sua relativa juventude. Ao mesmo tempo, contudo, a carência de boas traduções ou mesmo trabalhos nacionais de maior fôlego constitui um dado surpreendente. Especialmente se consideramos as estatísticas que continuamente têm situado o Brasil entre os países com maior tempo de navegação na internet ou participação efetiva em redes sociais como o Facebook e Twitter. Do ponto de vista teòrico, intriga nossa insistência em continuar lançando mão do termo cibercultura. Enquanto essa expressão - e certos enfoques teóricos ou metodológicos a ela associados - parece estar em franco declínio no resto do mundo, por aqui ela ainda funciona como balizadora de linhas de pesquisa ou grupos de trabalho em eventos acadêmicos. Talvez esse apego a termos ou conceitos solidamente institucionalizados indique, mesmo no horizonte de estudos supostamente ligados às últimas novidades tecnológicas, certo conservadorismo característico da pesquisa em comunicação no Brasil. Tende-se a olhar com desconfiança para tudo aquilo que parece excessivamente novo. experimental ou arriscado. A pouca atenção aqui dedicada a investigações de natureza exploratória ou autores que escapam às estruturas tradicionais do saber acadêmico, como McLuhan ou Vilém Flusser. é sintomática dessa indisposição para com o risco. Num país como o Brasil, onde tudo é relativamente novo (em relação à velha Europa, por exemplo), inclusive a própria instituição universitária, essa atitude causa estranheza. Nesse sentido, a cibercultura poderia, efetivamente, constit uir um espaço de experiências intelectuais menos formalizadas e mais abertas à inovação. Vale a pena observar que. no cenário internacional, os estudos sobre as novas mídias vem se caracterizando como domínio extremamente acolhedor para o intercâmbio entre saberes e a exploração de formas textuais e argumentativas que mantêm uma relação de certa tensão com o discurso acadêmico tradicional. Obras como Connected or What it Means to Live in the Network Society ( 2 0 0 3), do norte-americano Steven Sbavino, ou mesmo o estranhíssimo Vampyroteuthis Infernáis (1987). do já mencionado Vilém Flusser. são exemplares nesse sentido. Lentamente, parecem surgir sinais de que começamos a responder ao impacto dessa literatura internacional. A emergência de novos e singulares obje5

tos. bem como o uso de metodologias nào tradicionais em alguns artigos e publicações da área permitem arriscar que uma mudança importante está em curso. Mais significativo ainda e testemunhar uma gradativa abertura ao diálogo entre disciplinas e campos de referência - fundamental para se responder ao danoso "disciplinarismo" que durantes alguns anos vigorou fortemente em nosso meio, buscando isolar a comunicação em um território epistemológico pouco afeito à penetração de conceitos ou temas "alienígenas". Os trabalhos reunidos neste volume possuem a marca dessa forma de pensar que abraça a diferença e o risco. Se é verdade que a cibercultura alcançou o status de elemento definidor da própria existência contemporânea - de certo modo. nenhum problema ou questão parece lhe escapar - . então é apenas justo que a construamos como um domínio experimental de investigações sobre o presente. E por essa razão que se buscou o máximo de inclusividade. temática, disciplinar e discursiva, nesta coletânea. 0 diálogo entre literatura e comunicação, que foi tão profícuo até pelo menos o início dos anos 1 9 8 0 , é retomado, por exemplo, em um breve (mas denso e erudito) ensaio de Eduardo Losso sobre a questão do formato do livro. Para Losso. o primado da linguagem na literatura moderna é indicativo de uma ascese da escrita, um processo de secularização (estética) de valores religiosos. A contemporaneidade. argumenta ele. não abandonou o liv ro, mas antes o fez transbordar para espaços inclusive mais próximos da esfera da vida cotidiana. Losso enxerga o Facebook como "livro que funciona como mediador entre individuos e nos processos de constituição de suas interioridades. Cabe perguntar que espécie de interioridade será essa, expressa por uma escrita tecnològica e baseada no estabelecimento de vínculos virtuais. Talvez o fenòmeno da "hiperdocumentação", descrito por Fábio Fernandes em seu artigo, seja correlativo da emergência desses novos espaços de escrita de si. As condições tecnológicas da contemporaneidade determinaram uma necessidade de constante documentação da vida. da qual nada pode escapar, do mais grandioso ao mais banal. Complementando a profecia deFlusser segundo a qual agora os acontecimentos existem para serem filmados ou fotografados, Fernandes sugere uma importante e curiosa transformação: estaremos vivendo uma época onde a hierarquia entre o pequeno e o grande perdeu sua força? Será esta a época em que devemos, finalmente, começai- a levar a sério o insignificante? A julgar pelos processos de "instagramização" do cotidiano, a partir dos quais a imagem de um prato de comida e de um terrível desastre ecológico podem habitar um mesmo espaço virtual, seríamos tentados a responder afirmativamente. A 6

banalização das imagens de celebridades em blogs como "Te dou um Dado", analisada por Susan Uesenberg e Camila Cornutti em seu texto, parece corroborar essa tese. Aqui. os olimpia nos", os bonitos e famosos, se convertem em motivo de riso para uma cultura onde tudo parece ser traduzido em valor de entretenimento. Aproximando as práticas contemporâneas da apropriação e da remixagem de certos momentos da história da arte. Liesenberg e Cornutti demonstram que as fronteiras entre o popular e o erudito se esfumaçaram sensivelmente. Efetivamente, trata-se de apenas uma das muitas distinções tradicionais que aparentam ter se esfumaçado na contemporaneidade. Mesmo nossas relações com o espaço-tempo foram tão fortemente reconfiguradas pelas tecnologias digitais que a distinção entre os domínios do público e do privado, por exemplo, sofreu significativo abalo. Em seu trabalho sobre consumo de música e mídias locativas (como o celular). Diego Brotas propõe discutir também o tema da apropriação, mas agora, da noção de lugar. Graças a instrumentos de geolocalização. o espaço da cidade foi resignificado como um território de paisagens sonoras. Desse modo. um elemento-chave da cultura tecnológica, a informação, se estende aos ambientes urbanos, formando uma teia indissolúvel entre o material e o simbólico, por via de uma musicalizaçào da cidade. Isso significa, como sugere Ivana Bentes em seu ensaio sobre a estética das redes, que as interações eletrônicas se tornaram tão pervasivas que já não é possível falar numa separação radical entre o espaço físico e virtual. Nessa situação de extrema complexidade, os processos de mapeamento e visualização desempenham papel fundamental. Ivana discute a potencia estética das novas imagens digitais, que compõem um verdadeiro "ecossistema" no qual as fronteiras entre arte. política, pesquisa e ativismo se dissolvem. Isso sugere a emergência de uma sociedade em rede. policêntrica, indeterminada, sempre aberta a fluxos imagéticos que a reconfiguram continuamente, trabalhando os afetos e o imaginário dos sujeitos. Aliás, a importância dos afetos e das sensações (em confronto com a dimensão da significação) na cultura contemporânea reforça a convicção de que o entretenimento constitui um dos temas fundamentais da sociedade tecnológica. Que o corpo e a materialidade das tecnologias estejam hoje no centro das preocupações das ciências humanas é um indicativo dessa ascensão do entretenimento. Não é à toa que a área de pesquisas sobre videojogos representa uma das vertentes mais importantes e populares das pesquisas em cibercultura na atualidade. Ü trabalho de Alessandra Maia. explorando a materialidade dos afetos do horror em jogos digitais, se debruça precisamente sobre essa problemá-

tica. Em direção convergente caminha a contribuição deThiago Falcão, que lanca mão da noção de "paratesto" para explorar os aspectos da experiencia de jogar que ultrapassam a mera perspectiva da relação entre jogador e jogo. Fazendo uso de autores também evocados por Alessandra, como Hans Ulrich (iumbrecht e Friedrich Kittler. Falcão conclui questionando a noção de agencia como um atributo exclusivo dos seres humanos nos circuitos tecnológicos. A complexidade das relações entre sujeitos humanos e elementos tecnológicos no universo dos videojogos pode ser abordada exemplarmente a partir do conceito de imersão. Hm seu ensaio "Imersão em Realidades Ficcionais", João Carlos Massarolo e Dario Mesquita apresentam não apenas uma aprofundada discussão do estado da arte do tema. senão também uma perspectiva que integra o espaço fisico cotidiano às atuais experiências imersivas por meio de mídias locativas. Isso torna o nosso ecossistema midiáüco muito mais complexo, dado que não parece existir mais a "parede que separa os mundos ficcionais dos jogos do plano da realidade cotidiana. Desse modo. como afirmam os autores, emergem "novas formas de comunicação que interligam espaços, conteúdos e sujeitos . Ainda no âmbito da mesma temática dos três trabalhos mencionados acima, a contribuição do estudioso português Luis Filipe Bragança Teixeira nos oferece um panorama amplo e. em certo sentido, "arqueológico", do papel dos jogos digitais na cibercultura. Teixeira conclui seu largo passeio pelo universo dos videogames oferecendo-nos uma relevante reflexão sobre seus (muitos) impactos cognitivos e sua relevância para a formação de capacidades. Se retornamos à obra de Flusser. fica fácil perceber a centralidade da categoria do jogo na sociedade hipertecnológiea. Para Flusser, a cultura digital iria permitir o surgimento de um tipo de relação com o mundo de uma ordem muito mais criativa e lúdica que a característica da era analógica. Existe, em Flusser. um louvor ao jogo e à experimentação que. não poucas vezes, é emblematizado pela figura do hacker. Irónico, libertário e inconformado, o hacker constitui precisamente a figura central do artigo de Henrique Antoun e Fabio Malini. que investigam a dimensão política de suas ideologias e práticas. Para Antoun e Malini, os hackers são os grandes inventores do ciberespaço, mas o protagonismo político da contemporaneidade deverá caber à multidão, agenciada por meio das redes digitais. Nesse contexto, as novas formas de cobertura coletiva dos acontecimentos públicos adquire significado especial. Qual será o papel do jornalismo nesse novo ambiente, onde os coletivos em rede criam outras formas de produzir e divulgar informação, sem os filtros tradicionais que a grande imprensa lhes impõe? Nesse sentido, a análise 8

do caso do julgamento do "Mensalão" por Claudio Cardoso de Paiva constitui uni exemplo concreto, em dimensão microscópica, dos desdobramentos políticos de uma nova forma colaborativa de produzir notícias. Segundo Paiva, os agentes dessas redes sociais desenvolveram novas estratégias de poder e saber situadas *

"na interface da Etica. Política e Comunicação". A pergunta que permanece sem resposta é como definir a atividade dos jornalistas e o papel dos grandes veículos face a essa reestruturação do próprio caráter da notícia e da informação? I)essa forma, o texto de Fernanda Lopes constitui um intrigante contraponto as reflexões de Antoun, Malini e Paiva. Dedicado a investigar alguns aspectos do impacto das tecnologias digitais sobre as empresas jornalísticas, o artigo de Fernanda nos apresenta um problema intrigante. Nesse novo cenário da sociedade tecnológica e informacional, onde supostamente o acesso a todo tipo de informação deveria ser garantido, como pode a imprensa online lidar com fenômenos cobertos pela aura do segredo? Fernanda toma como estudo de caso o conclave que elegeu o novo Papa. explorando ainda o curioso paradoxo representado por episódios como o do Wikileaks. Se vivemos aparentemente sob o imperativo da transparência total e do acesso, como explicar também as crescentes demandas por sigilo e discrição dos grandes governos (especialmente, claro, dos Estados Unidos)? Trata-se de uma lógica do segredo desenvolvida, contraditoriamente, a partir das mesmas tecnologias digitais (criptografia, senhas e tokens) que anunciam hoje a era da informação total. De fato, se existe uma característica que marca fundamentalmente esta nossa cultura digital é a contradição. Em certo sentido, seria possível dizer que a cibercultura se estrutura de maneira polarizada, em torno de noções opostas, como liberdade e controle, fechamento e abertura, previsibilidade e indeterminação, racionalidade e imaginação. Os trabalhos coligidos neste livro refletem tais tensionamentos, mas indicam também que não é necessário ver os conflitos de forma negativa. É possível que essas polarizações constituam a grande riqueza da nova cultura digital. Em lugar de um mundo preto e branco, elas nos oferecem um cenário em constante transformação e sempre aberto às descontinuidades, retornos e acidentes. Se a verdadeira essência da técnica, como queria Heidegger, é uma poiesis e um desvelamento, então cabe aos pesquisadores do admirável mundo novo do digital explorar criativamente suas contradições, apontando continuamente as possíveis linhas de fuga, zonas cinzentas e aberturas ao inesperado. Entre essas zonas cinzentas situa-se precisamente o problema que abor9

do no último texto incluído nesta coletânea, dedicado a investigar alguns aspectos da relação entre homens e máquinas. De fato. se encontramos na cibercultura uma extensa terminologia derivada do campo biológico ("vírus" de computador, genes-memes, vermes, enxames etc.) é porque existe uma zona cinzenta na qual toda tentativa de separar radicalmente o orgànico e o artificial fracassa. A cibernetica decretou cientificamente a indistinçào dos sistemas vivos e maquínicos (ambos operam com base nos mesmos princípios), mas bem antes dela já se fazia uso da metáfora homem-máquina (como demonstra a obra clássica de La Mettrie. L'Homme-machine, de 1 748). Em meu ensaio, faço um esboço arqueológico dessa aproximação, mas me concentro na imagem da internet como cérebro global. Se a internet é imaginada, por autores como Vilém Flusser ou Pierre Lévy. como o gigantesco cérebro coletivo da humanidade interconectada. é porque, de fato. estamos mais próximos e mais interligados ao tecnologico do que gostamos de admitir. Somos, desde nossa origem, seres tecnológicos - e e e^sa relação com a techné que nos constitui como espécie. Ao fazer a história do imaginário que conecta organismo e aparato, dedico-me ainda a ressaltar as tonalidades religiosas que o marcaram fortemente. Prova, mais uma vez. do caráter contraditório e polarizado do Zeitgeist da cibercultura. que permite situar espiritualidade e ciência em um mesmo território epistemológico. Cabe-nos. sem dúvida, efetuar uma crítica desse imaginário tecnológico, mas ao mesmo tempo reconhecendo sua riqueza criativa. Se a cibercultura se constitui em um dos mais fascinantes domínios de estudos da contemporaneidade, é porque ela oferece um rico campo para a exploração de cenários possíveis e perspectivas de recriação tecnológica da existência. O que faremos da tecnologia é uma questão importante, mas talvez menos urgente do que a pergunta sobre o que a tecnologia fará de nós. ^ΗΗΗΡ

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Rio de Janeiro, 2 0 de maio de 2 0 1 3

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ASCESE NA MODERNIDADE: O CARÁTER TRANSFORMADOR DO LIVRO ABSOLUTO EDUARDO GUERREIRO BRITO LOSSO

Os historiadores da antiguidade dizem que foram os judeus os primeiros a santificar a escritura (FISCHER, 2 0 0 6 . p. 5 6 - 5 9 ) . Outras civilizações. mesmo possuindo textos sagrados, não valorizaram a escritura a ponto de considerá-la digna de adoração e culto, para além da fala e do ritual. Talvez esse seja um dado antropológico decisivo, contudo ainda pouco pensado, para a formação do Ocidente. A cultura ocidental e todo seu desdobramento global estabeleceram o primado da escrita. O desenvolvimento da cultura literária, da tecnologia e da história depende do registro escrito. Sem dúvida um livro não é mais sacralizado como o fizeram os judeus da antiguidade, porém, a necessidade de sua multiplicação e generalização é. a meu ver. a decorrência mesma de uma secularização da sacralidade da escrita, que a torna oculta, mas plenamente ativa, precisamente onde ela parece não estar mais em vigor. A Grécia antiga, por exemplo, que desenvolveu tanto a escrita, não tinha tal adoração a ela e inclusive Platão, no Fedro e na carta VIL mostra uma clássica desconfiança dos seus efeitos, cujas implicações metafísicas Derrida se contrapôs a partir da desconstrução e Christoph Tiircke, por sua vez. respondeu a partir da teoria crítica (DERRIDA, 1 9 8 1 , p. 6 6 - 7 2 ; TÜRCKE, 2 0 0 5 , p. 1 0 8 - 1 2 1 ) . Outras culturas, como na India, especialmente, privilegiam uma sofisticação cultural concentrada em exercícios corporais e espirituais, isto é. ascéticos, e relegando seu registro para o segundo plano (ELIADE. 1 9 9 1 . p. 4 9 - 5 0 ) 1 . Lá. a experiência vem em primeiro lugar. Quando a arte e o pensamento ocidental abordam o plano da experiência, por mais que negue a razão pura. epistemologica, não consegue sair de uma dependência do escrito, do documento. da obra. O ocidental simplesmente não é capaz de abordar a experiência como objeto sem a mediação do texto. Por esse motivo que Bataille, em A experiência interior, quer abolir a dependência que a poesia tem da linguagem e abraçar inteiramente uma experiência da errância (BA TAILLE, 1991. p. 36. 5 6 . 2 0 6 ) 2 . Por esse mesmo motivo Peter Bürger afirma que a atitude mais radical e decisiva das vanguardas foi ter recusado a obra e desejar superar a arte, transportando-a no que ele chama de "praxis vital",

Lebenspraxis

(BÜRGER. 2 0 0 8 , p. 1 0 6 - 1 0 8 ) . Contudo, ele mesmo mostra o quanto tal aposta estava necessariamente destinada ao fracasso, tornado evidente 'Sobre o conceito de verdade da lìlosofìa europeia como conhecimento e a verdade na índia como liberação, ver p. 18. 2 Pa ra citar um trecho emblematico, p. 46: "Oponho à poesia a e x p e r i ê n c i a do possível. Trata-se menos de contemplação do que de dilaceração'. 15

com a absorção institucional (museu, universidade, etc.) dos gestos subversivos das vanguardas tardias (p. 1 10). Esse malogro, a meu ver. não é uma impossibilidade factual, é uma impossibilidade da formação ocidental que está na raiz da crise da arte moderna. Em outras palavras, cultura, para o Ocidente, tornou-se sinônimo de escrita. Para estender o conceito de cultura, foi antes necessário estender o conceito de escrita, como o fez Derrida. Contudo, deveríamos pensar com mais cuidado se não há uma. digamos assim, falácia grafocêntrica. Derrida quis evitar rapidamente o problema: ao explorar a fundo a metafísica do fonocentrismo. deixou escapar as implicações do grafocentrismo (DERRIDA. 2 0 0 4 . p. 10). Quando se compara o Oriente com o Ocidente, devemos não cair na mera dualidade de estigmatizar o Oriente como intuitivo e contemplativo e o Ocidente como tecnocrático e epistemológico. Vias se existe uma verdade nisso, deve-se levar em conta que o Ocidcntc. desde muito cedo ate a modernidade. se preocupou sim com a dimensão da intuição, experiência e espiritualidade. e inclusive abordou, prática e teoricamente, em abundância o conilito entre saber e experienciar. conhecer e viver. Porém, no final das contas, ele desenvolveu um tipo específico de cultivo da espiritualidade, em contraposição a outras culturas, baseado numa prática invariavelmente voltada para a escrita. Tudo que se conhece e se vive deve ser. necessariamente. mediado pela escrita, seja na filosofia, na ciência ou na arte. Nada se conhece fora de uma determinação por escrito, quase nada se experimenta, muito menos se memoriza, sem passar pelo mesmo exercício. Toda a dialética da literatura entre o indescritível e o codificado se dá por um simultâneo fascínio pelo inefável e reforço de todas as tentativas possíveis e impossíveis de escrevê-lo. isto é. captá-lo. raptá-lo para ser capturado no papel. O modo de viver próprio do ocidental está centrado na apreensão, codificação, organização. regulação e mesmo apreciação da vida pela escrita. A dificuldade estaria em precisar melhor, afinal, de que modo diferenciado o Ocidente desenvolveu sua espiritualidade e como isso repercutiu na modernidade. Não pretendo tratar aqui de uma questão tão abrangente. isto é. as origens e a formação de uma fixação da escrita \ mas ela estará no •· (Tl RCKE. 2 0 0 5 , p. 1 1,2 3 5-24 3 )Türcke dá a melhor orientação e os primeiros passos de abordagem da problemática. Estou me baseando na tese extremamente lúcida de que "a escrita origina-se do culto e recai de volta para o culto da escrita", paráfrase da 16

meu horizonte para desenvolver outra. Minha questão é: o primado da linguagem na literatura moderna é a realização de uma ascese moderna da escrita, secularização da sacralização da escritura judaico-cristà? Se for, como se dá essa ascese da escrita, quais suas características e que perspectiva abre para a teoria da literatura interrogar a literatura moderna enquanto ascese? Este trabalho não dará conta de loda a envergadura do problema, mas apenas de introduzi-lo por meio de um recorte comparativo: selecionamos momentos em que escritores conceberam a realização de um livro absoluto, de uma nova Bíblia, de modo a ele ser capaz de transformar a vida e abrir espaço para práxis vital. Tais escritores são os sacerdotes de um culto permanente da escrita numa sociedade nela fundamentada. Por isso este pequeno artigo condensará uma série de problemas a meu ver ainda não pensados que brotam da dialética entre ascese e escrita na literatura moderna. Mallarmé, no livro Divagações e na parte intitulada "Quanto ao livro". escreveu um trecho como sempre obscuro, contudo, para o assunto a ser examinado, revelador. Seu ato sempre se aplica a papel; pois meditar, sem traços, torna-se evanescente, nem que se exalte o instinto em algum gesto veemente e perdido que você buscou. Escrever - 0 tinteiro, cristal como uma consciência, com sua gota. no fundo, de trevas relativa a que alguma coisa seja: depois, afasta a làmpada. (MALLARMÉ. 2 0 1 0 , p. 1 7 0 ) Qualquer ato do poeta é sempre dirigido pela ação de escrever. A existência poética não tem outro fim: ela só pode existir se direcionada ao seu registro. O ato poético deve sempre levar ao ato de escrever, concentrar-se no exercício de viver em torno da determinação escrita. Qualquer outro tipo de contemplação, sem que o exercício espiritual redunde em ser escrito, está destinado a evaporar-se. Não é possível meditar senão em função de preencher o papel. Meditar sem escrever ou 1er torna-se por demais impreciso. sofre de falta de objetivação. O poeta, nesse momento, não suporta o desvanecer de um agir sem determinação. Por mais que Mallarmé tenha introduzido as imprecisões etéreas do simbolismo, aqui ele não tolera que uma atividade se esfumace sem ter servido ao papel. 0 lema do poeta modialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer, -já o mito é esclarecimento e: o esclarecimento recai de volta na mitologia" (ADORNO. 1969. p. 6). 17

derno, nessa lògica, é: ao ser evanescente, que apareça escrito. Aliás, mesmo nào sendo evanescente, mesmo que seja um gesto exaltado e veemente, só fará sentido se for levado a chegar ao papel, ele deve ser teleguiado para encontrar seu fim. o único possível. Se. desde o simbolismo, a escrita deve captar o mais evanescente, isto é. abarcar o indescritível, querer o seu impossível. é ao preço de que nào deve haver vagueza sem destinar-se a ser escrita. Em seguida, lê-se uma comparação entre o tinteiro e a consciência. As tradicionais imagens da consciência como luz interior que ilumina a realidade são substituídas pela consciência como um tinteiro que dá existência às coisas na medida em que a mergulha nas trevas. A escrita, por ser feita de caracteres negros sobre o fundo branco, é alegoria de um verdadeiro escurecimento da vida. Para dar existência às coisas, é preciso que elas atravessem a escuridão do tinteiro, espécie de cristal negro da literatura. E. evidentemente, reforça-se a constatação de que as coisas só existem se forem escritas. O ato de escrever escurece a realidade: depois, basta-se a si mesmo, não precisa de nada senão sua própria escuridão soberana. A escrita afasta a luz e satisfaz-se com seu reino de trevas. O trecho aqui examinado faz parte de uma das poucas partes da obra de Mallarmé dedicadas a seu misterioso "Livro . Não poucos críticos apontaram em Mallarmé "um poeta ascético

(GREANEY. 2 0 0 8 , p. 4 6 -

4 8 : RILEY II, 1 9 9 8 . p. 2 6 6 - 2 7 0 ) devido a sua dedicação obsessiva à "obra pura". 0 Livro seria "arquetípico, simultaneamente único e universal", u m a espécie de Bíblia anti-bíblica (MARCHAL, 1 9 8 8 , p. 4 9 8 ) . Se a Bíblia é um pseudo-livro, "como a simulam as nações atuais" (MALLARMÉ, 1 9 4 5 , p. 367), o Livro seria "a explicação órfica da terra, que é o único dever de poeta e o jogo literário por excelência: pois o ritmo mesmo do livro, enquanto impessoal e vivo, até na sua paginação, justapõe-se às equações deste sonho. ou Ode" (p. 6 6 2 ) . Isto é. seria uma Bíblia moderna, que ultrapassaria a contingência dos outros livros e se tornaria uma Grande Obra alquímica aplicada ao universo da ficcionalidade moderna. Esse é o dever ascético nào poucos poetas modernos: abarcar o indescritível no ideal do Livro. A prática de transfiguração de si. a alquimia da ascese moderna, está em direcionar o vocabulário religioso "da teologia para a antropologia" (MARCHAL. 1 9 8 8 . p. 5 0 5 ) . produzir uma "teologia das letras" que descarta a mensagem religiosa desgastada, aprisionada numa ascese da mortificação, para escrever 18

praticando e praticar escrevendo uma "paixào do homem", uma "dramaturgia simbólica". 0 livro é a divinização de si "que representa uma espécie de odisseia espiritual do eu" (p. 5 0 6 ) . Contra o jejum ascético mortificador dos padres. Mallarmé propõe o gozo vital de uma criança-trabalhadora (p. 5 0 9 ) . A proximidade do trabalho da forma e da estruturação com a música, sempre reivindicada, quer fazer da ascese uma prática afirmativa, libertadora, não masoquista. Ainda assim, a ideia ligada a uma prática de si. em Mallarmé, não pode ser outra senão dentro de um projeto de obra escrita, por mais que ele não tenha sido realizado, por mais que haja até um desejo obscuro e sintomático do poeta por um "poema liberto de todo aparelho do escriba" (MALLARMÉ. 2 0 1 0 , p. 121), por uma "escritura corporal" encarnada na dançarina.

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Devemos nos perguntar, constatando tal absolutização da escrita, como que a poesia, precisamente na modernidade, chegou a esse ponto. Pode-se retorquir que Mallarmé é apenas um extremo e não se pode tomar seu exagero como regra para a poesia moderna, muito menos para toda a cultura. Meu propòsito, no entanto, é observar em seu exagero uma pista para o conflito, de toda a arte moderna e especialmente da poesia, entre realização vital e especialização literária, que na verdade é o sintoma de uma incapacidade para construir técnicas de si fora da escrita, como foi o caso da ascese e mística cristã, que é um lado esquecido do Ocidente, e de outras culturas. Daí constata-se a falta de uma valorização da prática de exercícios de interiorização e uma sobrevalorização do trabalho em torno de uma obra artística. Ao mesmo tempo, por causa justamente dessa incapacidade. encontra-se um grande investimento na transformação vital por meio da escrita, fenòmeno próprio da modernidade, cuja base não é outra senão ocidental. Nesse sentido, será útil interrogar os antecedentes do ideal do Livro mallarmiano e de sua ascese da escrita. Para isso remontarei ao primeiro grande asceta cristão, Santo Antão, cuja hagiogratia está no clássico A vida de Santo Antão de Atanásio de Alexandria. Mas não me deterei neste texto. Interessam-me especialmente algumas observações sobre ele feitas por um importante teórico dos estudos de ascese dos anos 9 0 para cá. Geoffrey Galt Harpham, em seu livro The Ascetic Imperative in Culture and Criticism. Harpham c h a m a a hagiografía de Atanásio de um "texto ascético" que apaga as distinções entre registro externo e pensamento interno (HARPHAM. 19

1 9 9 3 . p. 14. 2 7 3). isto c. antecipa a sobrevalorização da escrita. A mortificação ascética de purgação da materialidade e mutabilidade se faz nessa text uà lização mesma. A repetição que a escrita faz da realidade serve para reviver a morte de Cristo e se distanciar da corporeidade, isto é. a prática da escrita torna-se uma forma de ascese purgadora. Tais dados confundem a equação de Derrida que entende a fala como lugar da pureza da alma e a escrita como lugar da materialidade e simulacro, de forma que Harpham reconhece em Atanásio tanto características falocêntricas quanto desconstrutivas. A "textualidade multiplica a ascese da linguagem, de modo que ela não é baseada num código arbitrário, mas numa forma material inerte que se sustenta fora do mundo , "a ambição dessas pessoas é precisamente eliminar o 'hors-texte* de sua existência, tornar-se o seu próprio texto" (HARPHAM. 1 9 9 3. p. 1 5) 4 . Essa observação nos ajuda a compreender que a mobilização ascética de transformar a si mesmo a partir da escrita (com a leitura, aqui no caso a bíblica, e a prática de uma auto-análise escrita, aquilo que Foucault chamou de escrita

de

si) está intrinsecamente ligada à renúncia, e mesmo repulsa, aos valores sociais do "mundo", sempre ligados a fama. poder, riquezas, status, isto é, poderes considerados menores da vida social. Embora os poetas modernos, como Mallarmé, afirmem mergulhar no mundo, contrariando a ascese tradicional, não esqueçamos que há uma repulsa modificada mas semelhante à fonte original: substitua " m u n d o " antigo por "valores burgueses

e teremos uma boa dimensão do quanto o

modo de vida do artista moderno herda da ascese mais tradicional, guardadas todas as diferenças e mesmo oposições. O mais intrigante é que a vida em torno da escrita serve aqui como instrumento privilegiado de recusa da vida em sociedade tal como os poderes dominantes a regem. Se a ascese tradicional interioriza a ideologia cristã recém-apossada pelo império romano, por outro lado ela a aprofunda tanto que. num certo sentido, extravasa a própria ideologia e seu campo de ação. A interiorização da ideologia na ascese é totalmente contrária à interiorização da ideologia da burguesia feita pela indústria cultural e pelo controle do espaço e tempo público e privado. Uma é feita de modo ativo, pelo indivíduo, de forma a transformar sua percepção da realidade e perseguir ideais espirituais, mesmo que mediante Todas as citações originalmente em outras línguas são traduções de Eduardo Guerreiro Losso. 4

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valores tradicionais; outra é feita de modo sempre passivo e mediocriza a vivência individual. É por isso que Gavin Flood historiciza a ascese de modo a reconhecer na crítica do eu ascético (ascetic self) feita primeiro pela autonomia racional e depois pela "fragmentação pós-moderna" um erro de juízo em relação à ascese, pois, se é fato de que a autonomia deve questionar obrigações da tradição, por outro a ascese tradicional introduziu, precisamente, os primeiros traços de individualização (FLOOD. 2 0 0 4 , p.2 3 6 - 2 4 9 ) . Por outro lado, a fragmentação e dispersão subjetiva atual, ainda que também seja fruto de u m a crítica válida tanto da tradição quanto dos imperativos racionais, termina por cair numa série de patologias sociais ligadas à falta de concentração, infantilização do adulto, etc 5 . Depois de Atanásio. Evágrio Pôntico e Cassiano estabeleceram uma transição mais nítida da exortação falada para o costume do uso da escrita. A associação entre ascese e escrita, nascida no mundo antigo, levanta a questão de como a ambição de escrever um "livro absoluto" apareceu na idade da autonomia, isto é. na Europa iluminista e pós-iluminista. e que função decisiva tal livro incorporaria na concepção da prática de si do sujeito moderno. Friedrich Schlegel, numa carta a Novalis de 2 0 de outubro de 1 7 9 8 introduz uma preciosa pista: "O objetivo do meu projeto literário é escrever uma nova Bíblia e seguir os passos do profeta Maomé e Lutero" (SCHLEGEL: PREIXZ. 1 9 5 7 . p. 1 3 0 : RIASANOVSKY, 1 9 9 5 . p. 60). Schlegel dizia em outros momentos disparates semelhantes: acreditava dever ser o fundador de uma nova religião ou conclamava a fundação de uma nova mitologia. Antes de recusarmos peremptoriamente a pretensão, Mallarmé nos comprova que tais fantasias românticas foram essenciais para o cerne dos maiores anseios existenciais da modernidade poética. Cito a maior parte de um fragmento de Schlegel essencial para apontar onde o ideal do livro absoluto se coloca intrinsecamente ligado ao indivíduo, à "ideia personificada". Ou existe, para diferenciar entre a ideia de um livro infinito e um livro c o m u m , o u t r a palavra além de Bíblia, o livro pura e simplesmente, o livro absoluto? E no e n t a n t o é u m a diferença eterna, essencial e mesmo prática, se u m livro é somente meio para um lim ou obra autònoma, indic a r a uma leitura dos problemas sociais atuais derivados da indústria cultural e do mercado das drogas, ver (TÜRCKE, 2010b, p. 2 3 8 - 3 0 2 ) . Sobre o déficit de atençao hoje. consultar (TÜRCKE. 2 0 1 0 a , p. 3 0 1 - 3 2 1 ) . 21

ν id uo. ideia personificada. Isso ele não pode ser sem algo de divino e. aqui. mesmo o conceito esotérico concorda com o exotérico: uma ideia tampouco é isolada, mas é o que é somente em meio a todas as ideias. I m exemplo esclarecerá o sentido. Todos os poemas clássicos dos antigos estão indissoluvelmente ligados, formam um todo orgânico, são. corretamente considerados. apenas um poema, o único no qual a própria poesia aparece completa. De uma maneira semelhante, na literatura completa, todos os livros devem ser apenas um livro, e num tal livro em eterno devir se revelará o evangelho da humanidade e da formação (SCHLEGEL. 1 9 9 7 . p. 1 5 6 ) 6 . Schlegel está tocando em vários aspectos do problema. Em primeiro lugar, o único nome para o livro absoluto é "Bíblia". Em vez de considerar um livro isolado o meio para um fim. em outras palavras, destinado a u m a utilidade prática, a Bíblia, ao ser o livro dos livros, seria a incorporação da "ideia personificada", seria um indivíduo no sentido de que sua unidade corresponde à totalidade universal. Isso significa que a Bíblia seria o único livro apto a transformar o indivíduo e reconciliá-lo com o universal. Porém Schlegel não considera a Bíblia existente aquela que realizará a tal função (p. 4 8 )7, pois considera-a indigna de seu posto. Por isso. resta ao romântico inventar a Bíblia de fato. Contudo, no final do fragmento, a invenção é descartada para valorizar a própria totalidade existente de todos os livros, em processo de crescimento constante. A totalidade dos livros existentes, da antiguidade ao presente, compõem a Bíblia, \esse caso. a invenção romàntica da Bíblia é uma ideia moderna, a ideia da totalidade dos livros, que. aliás, não se completa, está sempre em processo, isto é. é uma "totalidade não-toda". para nos servirmos da leitura que Zizek faz de Hegel (ZIZEK, 1 9 9 2 . p. 4 4 . 9 1 ) . Observo, neste ponto, que a agudeza de Schlegel me oferece a chave para demonstrar como a santificação da escrita feita pelos judeus e seguida pelos cristãos nos leva. necessariamente, á profanação posterior do livro, que é. também, paradoxalmente, uma divinização da totalidade dos livros existentes e por vir e à identificação — estranha, porém, para nossa questão. iluminadora — do livro absoluto com o indivíduo absoluto, em outras palavras, com um ideal ascético moderno; não o tradicional, mas aquele Da recolha de fragmentos intitulada " I d e i a s " , fr. 9 5 ; v e r t a m b é m p. 2 5 1 (nota 2 5 ) e p. 211. 7 "Atheãum". fr. 12. p. 4 8 .

6

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do qual Nietzsche mesmo participa: um ideal poético (ROBERTS, 1 9 9 6 . pp. 402-427).

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Agora a posição histórica de Mallarmé pode ser esclarecida: o Livro, ao não ser escrito (ainda que essa não tenha provavelmente sido. de início, sua intenção), ao se guardar apenas como ideia, possui uma grande semelhança com a ideia de Schlegel. Mallarmé, no fundo, retoma e renova não só a ideia do pensador romântico, mas também sua ascese da escrita, concebendo o ideal do livro absoluto como aquele que efetivará a divinização do homem. O evangelho da humanidade nos tempos modernos deve ser. ele mesmo, messiànico, transfigurador. Ele não é mais instrumento da verdade, será agora ele mesmo a verdade. Não é um livro entre outros, é o livro que contém todos os outros. A loucura da ideia contém, mais uma vez. uma difícil verdade da cultura ocidental: em primeiro lugar, não se concebe transfiguração fora da prática da escrita, idealizada na figura do Livro: em segundo, não há saída para o labirinto e a pletora dos livros, só há a ideia de sua totalidade, que encarna sua própria sacralização disseminada no todo. A santificação do livro sagrado judaico-cristã se tornou, por fim. a disseminação da escrita na realidade, de modo que nossa relação com a realidade e com nossa vida mais pessoal não se dá de outro modo senão mediada pela totalidade dos livros, pelo livro absoluto, pela documentação do mundo e de si mesmo.

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Depois dos perspicazes idealismos de absolutizaçào do livro em Schlegel e Mallarmé, que merecem ser denominados de idealismos críticos, o caso de Borges aparece como o mais sensato, pendendo mais para o lado de um distanciamento irónico, mas não menos fascinado com a mesma ideia. O exercício das letras pode promover a ambição de construir um livro absoluto, um livros dos livros que inclua a todos como um arquétipo platònico, um objeto cuja virtude não diminui no decorrer do anos (BORGES, 1 9 7 4 , p. 2 4 9 ) 8 .

.

9

Aqui o escritor argentino explica, com distanciamento ensaístico. aquilo que estávamos analisando, ainda que esteja aqui se referindo antes à ambição poética de escrever uma obra de envergadura épica. Se Borges pensou o ideal do livro sem cair nele. seu distanciamento estético se vale. 8 "Nota

sobre Walt Whitman". 23

contudo, da potência estética e ontológica do pròprio ideal. Por isso, n o c o n to "Biblioteca de Babel", o n a r r a d o r faz a seguinte c o n c l a m a ç ã o :

Não me parece inverossímil que em alguma prateleira do universo haja um livro total: peço aos deuses ignorados que um homem - um só. mesmo que seja há mil anos atrás! - o tenha examinado e lido (p. 4 6 9 ) . Numa passagem mais intrigante ainda. Borges compara o dito de Homero de que os deuses provocam desventuras nos homens para que as gerações vindouras tenham o que cantar com a frase de Mallarmé,

tudo

termina em um livro" e conclui que. apesar das diferenças entre um ser "canto" (originalmente literatura oral) e outro "escrito", a ideia é a mesma. Mas a ideia é a mesma, a ideia de que nós somos feitos para a arte. somos feitos para a memória, somos feitos para a poesia e possivelmente somos feitos para o esquecimento. Mas algo permanece e esse algo é a história ou a poesia, que nào são essencialmente distintas (BORGES. 1 9 8 9 . p. 2 1 0 ) '. Somos feitos para o livro, e quando o livro é pensado para ser feito para nosso maior desejo, para o que eu chamaria de nosso desejo absoluto, ele precisa ser um livro absoluto. A grande renúncia da ascese da escrita está em dedicar nossa vida imperfeita em prol da perfeição de um livro. Mas para que serve o livro?, nào no sentido de que sirva a algo meramente utilitário. mas qual o serviço vital do livro? Nào pode ser outro senão servir a nossa vida. No entanto, esse vai e vem da vida ao livro e do livro à vida só ratifica a fratura ocidental entre teoria e prática, conhecimento e realidade, arte e vida. escrita e experiência. Não há como sair do serviço utilitário senão servindo ao cerne da vitalidade, da experiência. Há uma dificuldade primordial, em todos os autores modernos aqui analisados, de objetivar a "vida" enquanto prática ascética experimental. Porém. Schlegel. Mallarmé e Borges nào estão, incansavelmente, procurando outra coisa com a soberania do livro, por mais contraditórios e auto-irônicos que sejam, por mais que oscilem entre a ironia e o ideal. O que procuro destrinchar é que eles. de certo modo, entreveran! o princípio da solução: a única saída para a disseminação da santificação da escrita em documentação infinita da vida e da realidade está numa ascese poética de prática da escrita direcionada para a transformação de si. Porém, se eles

9

"Siete Noches".

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tocaram na solução, exibem todos os signos de estar num lugar ambíguo, quer dizer, de oscilarem entre o ponto cego do impasse e já praticarem uma ascese da escrita moderna. Em torno desse lugar difícil, pendendo entre a crise e a solução da crise (que não pode terminar a crise, antes, alimentar-se dela). Borges tem várias declarações impressionantes. Vou terminar com uma delas. Ele diz que Mallarmé foi um dos descendentes de Flaubert, mas em que sentido? "Flaubert [...] foi o primeiro Adão de uma espécie nova: a do homem de letras como sacerdote, como asceta e quase como mártir" (BORGES, 1 9 7 4 . p. 263) 1 0 . Toda a ambição de Nietzsche de que o artista, ou o íilósofo-artista. se torne um super-homem. ganha uma nova luz quando pensamos o desejo de poder poético como um desejo essencialmente ascético. O escritor moderno, depois de Flaubert, é uma nova espécie de sacerdote: pratica o sacerdócio da escrita direcionada para a vida e da vida direcionada para a escrita. Se a cultura ocidental está toda ocupada em codificar e documentar a realidade, o escritor, seu grande sacerdote, seu asceta, está ocupado em e n c a r n a r livros lidos e desencarnar livros escritos: fazer do corpo um livro transfigurados fazer do livro um corpo transfigurado. O mundo atual é. nesse sentido, uma disseminação da escrita para fora do livro. Tornou-se banal reconhecer que a internet é. num certo sentido, a realização do livro absoluto de Schlegel. Mallarmé e Borges. 0 Facebook. para dar um exemplo definitivo, é a efetivação de um livro que. sem sombra de dúvida, invade a vida social, torna-se um poderoso mediador não só entre os indivíduos, mas também na constituição dos sujeitos da "geração 2 . 0 " e de sua interioridade hoje. assim como as gerações passadas foram inevitavelmente constituídas pelo cinema, televisão e rádio. É nào só o livro das faces, não vive só de "relações virtuais", é o livro das individualidades, o livro-indivíduo. formado por todos os seus integrantes. Resta perguntar qual será a ascese da escrita e as técnicas de si a serem descobertas pelos poetas e críticos literários diante da suposta morte do livro e do verdadeiro renascimento do livro absoluto, que vai se impregnando na realidade. do mundo virtual ao real.

10Usei

aqui a tradução desta passagem de MOISÉS, 1998, p. 114. 25

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caso de Stefliany do CrossFox". Pós-graduada em Jornalismo e Convergência de Mídias (Feevale/2010). atuou como repórter, editora e colunista no Grupo RBS (Zero Hora, zerohora.com. Diário Catarinense, Jornal de Santa Catarina). Portal Terra e Petrobras. Atualmente é jornalista em São Paulo, colunista de Opinião do Grupo RBS. pesquisadora e integrante do Grupo de Estudos de Comunicação, Narrativas e Imagens do Consumo (NICO) da ESPM/SP.

Thiago Falcão Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela 1 niversidade Federai da Bahia, onde cursa, também, o Doutorado: foi bolsista CAPES/PDSE na McGill University em Montreal, no Canadá. Idealizou o site Realidade Sintética. no qual pesquisadores da área de jogos eletrônicos buscavam um alinhamento com o discurso acadêmico, e que resultou na coletânea homônima lançada em 2012. Atualmente, está em processo de conclusão de sua tese. na qual trabalha a relação agenciai entre humanos e não-humanos. via Teoria Ator-Rede. no MMORPG World of Warcraft.

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