\"Aspectos Filosóficos da Sociologia Clássica: Durkheim, Weber e a Filosofia De Kant\" - (Aula 2)

May 27, 2017 | Autor: Jayme Gomes Neto | Categoria: Social Theory, Epistemology, Immanuel Kant, Emile Durkheim
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Aspectos Filosóficos da Sociologia Clássica: Durkheim, Weber e a Filosofia De Kant1 (6 aulas) Jayme Gomes Neto2 Outubro de 2016 Aula 2 Kant e a teoria do conhecimento (II): Das fontes e dos limites do conhecimento racional

Recapitulação Vimos na aula passada que a teoria kantiana do conhecimento era elaborada no interior de um contexto de disputas filosóficas. Kant tentava responder, nesse caso, aos argumentos de duas grandes correntes filosóficas: o empirismo e o racionalismo. De um lado, Locke, Berkeley e Hume, com suas afirmações de que a experiência seria, no fundo, a única fonte legítima de todo o conhecimento possível; de outro, Descartes e Leibniz, com a defesa de um conhecimento fundado na razão pura e capaz de alcançar os objetos materiais mediante algum tipo adequação metafísica (existência de deus, harmonia preestabelecida, etc.). Vimos que o debate ai colocado girava em torno da possibilidade de se conceber uma passagem entre o intelecto e as coisas materiais, afinal, o conhecimento adequado dos objetos era aquele no qual minha representação desse objeto coincidia com ele, no que podia então dizer-se uma representação correta, ou ainda, verdadeira. No entanto, ao insistir na heterogeneidade entre as qualidades intelectuais do pensamento e as qualidades materiais dos objetos, os metafísicos, ao menos desde Descartes, se viam frente a um problema que parecia inescapável: como era possível, afinal, que meu pensamento fosse capaz de traduzir algo que lhe é completamente exterior e, ao mesmo tempo, estranho à sua natureza. Ora, vimos que a saída tradicional dos metafísicos, nesse caso, era recorrer a um terceiro conceito (Deus), capaz de englobar ao mesmo tempo todo o pensamento e toda a matéria de modo a garantir sua adequação última. Do outro lado encontrava-se a saída dos empiristas. A tese empirista era a de que, no fundo, não existiria um pensamento autônomo em relação à experiência. Nossas representações mentais seriam, no fundo, um tipo de reflexo, mais ou menos complexo, de algumas experiências simples que nos chegariam pelos sentidos; experiências que guardaríamos na memória, 1

Minicurso oferecido pelo Laboratório de Pesquisa Social (LAPS) da Universidade de São Paulo (USP) durante o segundo semestre de 2016. 2 Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

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dissociaríamos por meio da imaginação e posteriormente recombinaríamos de diversas maneiras, fosse por meio da livre fantasia imaginativa, fosse por meio de algum hábito psicológico cristalizado. Mas nesse caso – onde o conhecimento possível derivava unicamente da experiência – toda a pretensão de certeza e de universalidade científica deveria ser abandonada. Pois a experiência, como bem lembrava Hume, era aquela que iluminava apenas o modo como as coisas são ou foram, mas nunca como elas serão, ou ainda, o modo como devem necessariamente ser. Foi frente a essa problemática geral que Kant começou a encaminhar sua resposta aos problemas da metafísica racionalista (a que ele chama de dogmática) e do ceticismo, compreendido aqui com resultado tardio do empirismo britânico. O primeiro problemas dessas abordagens, dizia Kant, era o de que ambas acreditavam poder dizer algo sobre o “ser em si” de seus respectivos objetos. Os racionalistas acreditavam poder conhecer a razão, a alma, etc. em si mesmos; enquanto os empiristas acreditavam poder dizer algo sobre o ser, presente ou passado, das coisas. Frente a isso, Kant propõe à razão a tarefa do conhecimento de s, e não mais o simples conhecimento do ser dos objetos (e sujeitos). Sua tarefa transcendental era, portanto, anterior a toda a tarefa da metafísica e, por isso mesmo, um tarefa capaz de avaliá-la criticamente. Vimos, aliás, que sua Crítica da Razão Pura pretendia ser, nesse contexto, não uma simples crítica negativa da razão, mas um tribunal da razão, no qual ela poderia debruçar-se sobre si mesma a fim de examinar suas fontes e seus limites e, nesse mesmo processo, diferenciar suas pretensões legítimas de suas presunções infundadas. É nisso que consiste a tarefa do livro: ele pretende ser um exame do próprio conhecer. E era só por meio desse exame crítico, dizia Kant, que a filosofia poderia livrar-se das problemáticas anteriores. Tal exame, como vimos, se iniciava com uma pergunta simples: afinal de contas, como procederam os domínios do saber que, ao contrário da filosofia metafísica, chegaram a estabelecer-se na "via segura a ciência"? Essa pergunta era estratégica, aos olhos de Kant, pois a partir de sua resposta poríamos encontrar ao menos uma hipótese de procedimento a que caberia investigar. Em sua resposta, Kant tomava três exemplos privilegiados de saberes que teriam, segundo ele, seguido a “via segura da ciência”: a lógica, a matemática e a física. O que eles partilhavam em comum era a seguinte descoberta: que a razão só pode conhecer com absoluta certeza e correção aquilo que ela mesma pressupôs nos conceitos de seus objetos, e isso na justa medida em que os pensava como objetos do conhecimento. No prefácio de 1787, Kant ilustra sua hipótese por meio de uma famosa analogia com Copérnico: “Até hoje admitia-se que nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas

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da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento. (...) Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira ideia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imóveis(...)”3

Os contornos da hipótese kantiana são claros: nossos possíveis conhecimentos, caso existam, não serão nunca o conhecimento dos seres em si mesmos, mas sempre um conhecimento mediatizado por elementos préempíricos do sujeito que conhece, seja os objetos empíricos, seja a si mesmo como sujeito. Mas notemos o que implica esse modo de colocar a questão, pois, se é assim, se só podemos conhecer mediante as formas de uma subjetividade pura, então a pergunta que responde pela possibilidade e pelos limites de nossos conhecimentos só pode ser aquela que esclarece quais são essas mesmas formas, isto é, quais são os elementos pré-empíricos do conhecimento que, segundo Kant, constituem sua condição última de possibilidade. Nesse sentido, a última parte de nossa aula passada foi dedicada a exposição das formas que consistiam, por assim dizer, as chamadas condições de possibilidade da experiência. Vimos que para responder a essa questão, Kant partia de uma distinção fundamental entre a sensibilidade, isto é, nossa capacidade de receber representações por meio dos sentidos, e o entendimento, nossa capacidade de pensar tais representações segundo conceitos. Essa distinção era central, pois os conhecimentos cientificamente seguros analisados por Kant, fossem eles puros (matemática) ou empíricos (física), todos eles possuíam, sempre, dois tipos de elementos fundamentais: intuições da sensibilidade e conceitos do entendimento. Disso decorre, é claro, que a pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento, que consiste o alvo de Kant, só podia ser respondida mediante dois esclarecimentos: 1) quais as condições formais de aparecimento das intuições? 2) quais as condições de um pensamento conceitual que se pretende direcionar a essas intuições? A primeira dessas perguntas era respondida por Kant na seção da “estética transcendental”. As condições de aparecimento de uma intuição sensível, dizia Kant, não eram quaisquer conteúdos sensíveis que pudessem figurar nessas representações, mas as próprias formas do tempo e do espaço sem o que nenhuma representação sensível poderia ser objeto dos sentidos (Kant pensa o tempo como forma do sentido interno e o espaço como forma do sentido externo). O tempo e o espaço, compreendidos como formas a priori das intuições dos sentidos constituíam, assim, a primeira condição de possibilidade do conhecimento científico, fosse ele puro ou empírico.

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KANT, I. A Crítica da Razão Pura, B XVI.

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A segundo pergunta, aquela que se interrogava pelas condições de uma pensamento conceitual capaz de direcionar-se às intuições na condição de trazêlas à objetividade é, nesse caso, a pergunta que nos interessa mais detidamente. Vimos que a resposta de Kant apontava para a existência conceitos puros do entendimento (categorias), como se fosse preciso pressupor, como condição de todo pensamento conceitual, alguns conceitos últimos sem os quais não poderíamos dispor as representações da sensibilidade segundo as funções lógicas de uma discursividade geral. O argumento de Kant era mais ou menos o seguinte: só podemos conhecer, na medida em que ordenamos nossas representações sensíveis, isto é, na medida em que estabelecemos conexões, concatenações, vínculos de coordenação, subordiação, equivalência e etc. Conhecer é, sempre, submeter aquilo que nos chega pela sensibilidade à conexões estruturais; é perguntar por suas condições, suas consequências, suas qualidades distintivas, etc. Mas não podemos ordenar as representações de qualquer maneira, segundo quaisquer conexões aleatórias. Há, na verdade, alguns modos possíveis de estabelecer ligações e conexões entre nossas representações de modo que possamos alcançar, através delas, um conhecimento objetivo. Mas estas formas possíveis de pensarmos representações, independentemente de quaisquer conteúdos empíricos que elas venham a ter, pressupõe que essas mesmas representações se apresentem como sendo capazes de se submeter a tais formas. Por exemplo, para que eu junte as representações "maça" e "vermelhidão", a fim de dizer que "a maça é vermelha", é preciso que a intuição sensível que me chega como dada no tempo e no espaço possa ser pensada segundo alguns critérios: é preciso que ela tenha uma quantidade (que seja uma maça, por exemplo); é preciso que minha percepção do vermelho tenha certa intensidade (mais ou menos positiva); é preciso que a maça seja pensada como "substância", isto é, que ela seja pensada com suporte de determinadas qualidades, tais como sua vermelhidão, por exemplo, que podem inclusive variar. Ora, as categorias são, no fundo, esses critérios, ou ainda, esses traços gerais (nesse caso, as noções de unidade, realidade e substancialidade) que acabo pressupondo na minha intuição para que eu possa chegar, ao final, a um juízo objetivo do tipo "a maçã é vermelha". Pensar, ou ainda, ligar representações numa consciência, é operar por meio de conceitos. Ao final de sua dedução, vimos que Kant chegava a uma lista de doze categorias que estariam a guiar a atividade sintética capaz de remeter o múltiplo da sensibilidade à sua condição objetiva, compreendida aqui em termos de um regime de experiência centrado nas formas lógicas de ajuizamento. Essa passagem entre as duas tabuas kantianas, embora não isenta de dificuldades, não constitui aqui nosso ponto central. Mais importante do que isso, ao menos para nossos fins, é assinalar uma noção que nos parece fundamental a todo o percurso argumentativo kantiano, a noção de síntese, a qual é preciso dedicar algumas considerações adicionais. 4

A questão da síntese Vimos que o argumento de Kant na chamada dedução metafísica tinha por objetivo mostrar a correspondência entre, de um lado, as chamadas funções lógicas do juízo, isto é, aquelas estruturas sintáticas que remetiam aos modos possíveis de ligação entre representações no espaço lógico de uma consciência; de outro, as chamadas categorias do entendimento, que consistiam os traços gerais que deveríamos pressupor numa representação para que ela fosse levada a essas formas lógicas de ligação. No entanto, as categorias nada poderiam fazer sem um material a ser fornecido pelas intuições da sensibilidade. Para tanto, aquilo que era da ordem do múltiplo da sensibilidade deveria justamente ser determinado segundo uma regra capaz de conferir-lhe unidade. Ligar os elementos dados de maneira dispersa era, estabelecer não apenas suas conexões mas suas fronteiras de direito; era estabelecer a unidade e a identidade daquilo que recaia sob seu domínio, tal como a diferença e a oposição com aquilo que estava fora dele. Eis então o papel central da noção de síntese: ela diz respeito ao modo pelo qual o entendimento é capaz de ligar as representações com as quais trabalha. Num sentido mais amplo, sua função é fornecer uma unidade e uma determinação àquilo que é dado ao entendimento, o que vale tanto para a unificação das representações sensíveis num conceito (unidade sintética do múltiplo) como para aquela unificação de segunda ordem que liga estes conceitos do numa estrutura sintática judicativa (unidade discursiva). Eu gostaria de aproveitar então para tentar esclarecer essas duas dimensões. O primeiro sentido da a noção de síntese aparece inicialmente ligado a dimensão das intuições sensíveis. A síntese, num primeiro nível, constitui aquela atividade intelectual que se direciona às intuições fornecidas pela sensibilidade, de modo a subsumi-las numa unidade determinada. Assim, por meio da ação de conexão daquilo que até então se encontrava apenas disperso, a síntese chega a uma determinação conceitual. Esse processo geral nos remete ao fato de que o diverso da sensibilidade deve ser, nas palavras de Kant, “percorrido, recebido e ligado de determinado modo para que se converta em conhecimento” 4. A síntese das intuições é o que leva o múltiplo indeterminada até a unidade superior de um conceito. Afirmações desse tipo, no entanto, não podem prescindir de algumas considerações adicionais. Afinal, como vimos na aula passada, as intuições podiam ser de dois tipos, isto é, podiam ser empíricas (dependentes da nossas sensações) ou poderiam ser puras, como era o caso da pura forma do tempo e da pura forma do espaço. Nesse caso, ainda que a síntese das intuições continuasse

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KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 102.

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procedendo do mesmo modo e remetesse a mesma função intelectual, ela deveria chegar a resultados diferentes em cada um dos casos. No primeiro caso, a síntese de um material fornecido por meio de intuições empíricas só poderia levar, é claro, a conceitos empíricos. O fato de um conceito ser empírico, vale lembrar, não implica, no entanto, que ele não seja geral. Pois, como todo conceito, ele constitui uma regra capaz de agregar sob si uma multiplicidade de exemplares possíveis. A síntese reúne essa multiplicidade fornecendo ao conceito empírico um conteúdo. No segundo caso, isto é, no caso da síntese que opera nas puras formas do tempo e do espaço − e, portanto, sem intuições empíricas − ocorre algo mais complexo. Esse tipo de síntese, segundo Kant, não diz respeito a conceitos empíricos, como no primeiro caso, mas a conceitos construídos; ela nos remonta àqueles conceitos próprios à matemática e, em parte, à ciência natural. No caso de conceitos construídos, diz Kant, não partimos de um múltiplo dado empiricamente a fim de liga-lo e determiná-lo, mas, antes, construímos uma definição que estabelece quais características algo deve ter para que possa ser considerado um exemplo do conceito. Na matemática operamos uma definição propriamente dita e nas ciências naturais estabelecemos os critérios necessários para que algo possa ser considerado como sendo um caso da regra em questão. A síntese, nesse caso, consiste na ligação que fazemos a partir dos predicados parciais já contidos na definição a priori do conceito mediante sua projeção imagética, seja no tempo, seja no espaço. A atividade sintética que representa a definição conceitual no tempo e no espaço acrescenta assim um conteúdo ao conceito, seja construindoo e produzindo uma demonstração (como no caso da matemática), seja observando seus casos empíricos (como no caso das ciências da natureza). Eis então o primeiro nível da atividade sintética: ela preside uma ligação sobre as intuições (empíricas e puras) de modo a fornecer um conteúdo a conceitos, sejam eles empíricos ou puros. Mas dissemos que a ideia de síntese nos remetia, por um lado, à ligação de intuições (empíricas ou puras) num conceito e, por outro, àquela ação intelectual que confere a ligação das representações conceituais na unidade do juízo. Esse segundo nível remetia diretamente ao argumento apresentado na chamada dedução metafísica. O argumento podia ser reconstruído, frente as considerações precedentes, da seguinte maneira: se é verdade que a síntese é responsável por fornecer, num primeiro nível, um conteúdo conceitual mediante o processo de ligação do múltiplo das intuições, então uma síntese de segunda ordem, que não lide diretamente com intuições, deve nos remeter, por sua vez, a um outro tipo de conteúdo que não aquele imediatamente ligados às formas da sensibilidade. A função intelectual capaz de unificar as representações segundo a unidade determinada do juízo, essa chamada síntese de segunda ordem, deve nos remete ao aparecimento de conteúdos de outro tipo, isto é, um conteúdo 6

transcendental. Esses conteúdos, só podem ser, como vimos, as categorias do entendimento. Frente a esse tipo de colocação é possível compreender melhor o que estava em jogo da chamada dedução metafísica, aquela dedução que deveria ser responsável pela descoberta das categorias. Elas remetiam diretamente a essa síntese de segunda ordem que determinava a priori os conceitos e que os levava à uma unidade superior na qual podiam estabelecer-se, ai sim, juízos objetivos a respeito dos objetos. Mas, talvez, mais importe do que ressaltar esse ligação imediata entre as categorias e as chamadas sínteses de segunda ordem é perceber que, em todos os casos nos quais uma síntese opera, trata-se de única e uma mesma ação do entendimento, tomada, esta sim, em níveis diferentes. “A mesma função, que confere unidade às diversas representações num juízo, dá também unidade à mera síntese de representações diversas numa intuição; tal unidade, expressa de modo geral, designa-se por conceito puro do entendimento. O mesmo entendimento, pois, e isto através dos mesmos atos pelos quais realizou nos conceitos, mediante a unidade analítica, a forma lógica de um juízo, introduz também, mediante a unidade sintética do diverso na intuição em geral, um conteúdo transcendental nas suas representações do diverso; (...)”.5 (grifo meu).

É justamete por conta disso, aliás, que a síntese nos parece um conceito central. É ele que possibilita a passagem de uma nível a outro no interior da argumentação kantiana. Veremos que a esses dois níveis, Kant acrescentará um terceiro, que constitui o ponto mais alto de todo o seu sistema e, segundo ele, também o ponto mais alto de toda a filosofia de tipo transcendental. Dedução “transcendental” das categorias No capítulo da dedução transcendental, Kant leva adiante sua reflexão sobre a atividade sintética do entendimento. Sua preocupação com a questão síntese se justificava, entre outras coisas, pois, “entre todas as representações, a ligação é a única que não pode ser dada pelos objetos, mas realizada unicamente pelo próprio sujeito, porque é um ato da sua espontaneidade”6. Mas a ligação do diverso – e aqui temos outro passo importante na argumentação – pressupõe, para Kant, mais do que a simples ideia de um múltiplo e sua respectiva síntese. O que a ideia de ligação indica é a unidade do múltiplo ligado e, portanto, determinado. Isso de modo tal que a verdadeira condição de possibilidade de toda ligação do entendimento só pode ser a sua própria unidade. Mas se toda ligação pressupõe uma unidade, prosseguia Kant, então essa unidade tem de ser procurada antes de qualquer estrutura judicativa e, portanto, antes daquelas

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KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 108. KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 130.

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condições que possibilitam a estruturação discursiva das percepções com vistas à constituição de objetos num determinado regime geral de experiência: “Esta unidade, que precede a priori todos os conceitos de ligação, não é a categoria da unidade (§ 10); porque todas as categorias têm por fundamento as funções lógicas nos juízos e nestes já é pensada a ligação, por conseguinte a unidade de conceitos dados. A categoria pressupõe, portanto, já a ligação. Temos, pois, que buscar esta unidade (como qualitativa, § 12) mais alto ainda, a saber, no que já propriamente contém o fundamento da unidade de conceitos diversos nos juízos e, por conseguinte, da possibilidade do entendimento, mesmo no seu uso lógico”.7

Ora, a unidade fundamental, anterior até mesmo às funções lógicas do juízo e à própria unidade dos conceitos ai enunciados, só poderia ser a unidade da consciência enquanto local de referência de toda síntese possível ou, mais precisamente, a unidade da pura autoconsciência que, sob a representação “eu penso”, deveria poder acompanhar todas as outras representações.8 Possuir representações, aliás, não significava outra coisa senão o poder de remetê-las à unidade de uma consciência que se manteria, em algum nível, autoidêntica; pois, de outro modo, insistia Kant, eu teria tantas consciências quantas fossem as minhas representações e não poderia chegar com isso a nenhuma identidade. Em verdade, nesse caso, eu nem poderia dizer de tais representações que fossem minhas, pois só às chamo “minhas” à medida que tomo consciência de minha identidade por meio da unidade de suas sínteses. Com isso, Kant chegava ao ponto mais alto de sua dedução. Ele já havia insistido que a mesma unidade sintética que num primeiro nível referia-se aos conceitos empíricos também era aquela que, num segundo nível, remeteria à unidade dos conceitos puros do entendimento capazes de ligar as representações conceituais à unidade dos juízos. O que Kant concluía era que essa unidade, agora num terceiro e último nível, era justamente a unidade da pura autoconsciência mediante a unidade transcendental da atividade sintética. Daí porque Kant poderia dizer que “a unidade sintética da apercepção é o ponto mais elevado a que se tem de suspender todo o uso do entendimento, toda a própria lógica e, de acordo com esta, a filosofia transcendental; (...)”9. Por fim, se os argumentos kantianos chegavam à unidade transcendental da autoconsciência como a unidade mais elevada do entendimento, que, por isso mesmo, deveria ser aquela a qual estariam conformes os múltiplos sensíveis, as representações conceituais e os juízos, o restante de sua argumentação deveria perfazer o caminho de volta; ou seja, desvelar o modo específico pelo qual da pura autoconsciência se poderia passar aos objetos. Nesse caso, não se tratava apenas de mostrar “que” a autoconsciência fundamentava um determinado modo 7

KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 131. KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 132. 9 KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 134 (nota). 8

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de experiência dos objetos, mas de explicar e ilustrar “como” ela era capaz fazêlo.10 Restava à dedução a tarefa de explorar os limites e as possibilidades de um processo de intelecção de objetos que, em princípio, estariam, eles mesmos, fora de todo intelecto e, num certo sentido, ilustrar essa possível passagem do entendimento à sensibilidade. Nesse caso, parte do argumento consistia em mostrar como o entendimento, a despeito de seu ímpeto categorizante, não poderia dispor indistintamente do múltiplo, cujo respectivo processo de remissão ao uno, longe de aparecer como algum tipo de dissolução marcada pela violência da identidade, deveria, antes, ser representado como algum tipo passagem capaz de mediação. A ilustração dessa passagem possível chegará, por fim, não apenas à conclusão de que as categorias seriam as únicas condições possíveis de uma relação a objetos, mas que elas se aplicariam a todos as representações da autoconsciência11.12 Encaminhamentos (I): A crítica da Razão e a questão das ciências humanas Ao fim de sua argumentação, Kant chegava ao seguinte diagnóstico: o de que o conhecimento possível, ao contrário do que até então se pensava, demandava a realização de duas condições transcendentais de possibilidade. A primeira, como vimos, era dada pelas formas da sensibilidade: o conhecimento Vale lembrar que essa distinção entre mostrar 1) “que” a dedução é inteiramente a priori e 2) mostrar “como” ela é possível inteiramente a priori, não remete aqui necessariamente a existência de uma segunda dedução, de cunho empírico-psicológico. Responder a pergunta pelo “como”, nesse contexto, não significaria empreender uma dedução subjetiva relativa ao conjunto das faculdades cognitivas envolvidas no processo de conhecimento mediante categorias. Significaria, antes, e de maneira mais modesta, afastar as dificuldades que impossibilitariam o argumento central, a saber, o argumento segundo o qual os conceitos puros, a despeito do caráter a priori, deviam necessariamente se aplicar a intuições. Assim, o argumento relativo à possibilidade deveria apenas mostrar sob qual determinado tipo de arranjo (entre sensibilidade e entendimento) seria possível visualizar a relação necessária das categorias aos diversos sensíveis. A esse respeito ver: HENRICH, Dieter: The proofstructure of kant`s transcendental deduction, (IV). 11 KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 143. 12 O argumento de Kant, desenvolvido ao fim da dedução transcendental (§ 26) remontava à unidade das próprias representações formais do tempo e do espaço, com as quais estariam conformes, de saída, os múltiplos da sensibilidade. Essa unidade imediata, entretanto, não era fornecida pela sensibilidade (passiva), mas na sensibilidade. Nesse caso, era a síntese da intermediária da imaginação que fornecia um elo de mediação possível entre o diverso da intuição e a unidade dos conceitos − haveria, no fim das contas, uma unidade imediata, capaz de fazer a ponte entre o imediato sensível e a unidade mediata dos conceitos. O argumento era, em verdade, um tanto complexo, mas, para nossos propósitos, a solução propriamente fornecida por Kant interessa menos. O importante, nesse caso, é assinalar o seguinte ponto: se os múltiplos da sensibilidade, pelo próprio modo como nos apareciam, já nos eram dados necessariamente segundo representações sensíveis dotadas de uma certa unidade e homogeneidade (porque sempre submetidos ao tempo e espaço representados pela imaginação como um tipo de unidades), então todas as nossas intuições sensíveis encontravam-se em condições de serem levadas a discursividade do pensamento conceitual já que todas encontravam-se previamente sob uma figura da unidade. Essa conclusão, como veremos, será objeto de uma tensão no interior do argumento kantiano. 10

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possível era sempre limitado àquilo que se podia representar espacial ou temporalmente, ou ainda, àquilo que pressupunha a pura representação, fosse do tempo, fosse do espaço. De outro lado, uma segunda condição de possibilidade era fornecida pelo entendimento: o conhecimento objetivo e universalizável dos diversos sensíveis era, em primeiro lugar, um conhecimento conceitual e, em segundo lugar, um conhecimento capaz de operar a unidade discursiva dos conceitos por meio das categorias do entendimento. Eis assim, a resposta fornecida pela Critica da razão pura quanto a possibilidade do conhecimento, suas fontes e seus limites. A essa resposta que afirmava as condições positivas de possibilidade, como dissemos, Kant acrescentava uma resposta negativa, isto é, uma resposta capaz de esclarecer os limites do conhecimento. Esse tipo de análise, como se sabe, é feita principalmente na última parte do livro, a chamada "dialética transcendental", na qual Kant investiga aquilo o que acontece quando nosso entendimento e, mais ainda, nossa razão tentam conhecer objetos não imediatamente presentes à sensibilidade, com suas respectivas formas a priori. Nesse contexto, isto é, quando tomamos por possíveis objetos de nosso entendimento e submetemos a nossos raciocínios aquilo não nos é fornecido pela experiência, o que a hipótese kantiana nos mostra é que a razão torna-se inconsistente. O pensamento direcionado a objetos que não encontram na experiência sua pedra de toque é, nesse caso, liberado para prosseguir apenas por meio de uma dialética na qual os raciocínios, contanto que mantenham-se nos trilhos do encadeamento racional, podem especular a vontade. Na última parte de seu livro, Kant retorna às três principais questões que, até então, haviam atormentado os metafísicos de seu tempo: a questão da imortalidade da alma (questão das condições últimas do sujeito pensante), a questão começo do mundo (questão das condições últimas dos objetos naturais tomados em conjunto) e questão da existência de Deus (questão da totalidade criadora e mediadora de sujeitos e objetos). Em todos esses casos, é claro, os objetos em questão não apresentam um correspondente sensível. A alma, a totalidade dos objetos do mundo, e Deus, não encontram referentes espaçotemporais e, na verdade, só são objetos privilegiados do interesse filosófico na medida em que transcendem todo o campo sensível, antecedendo-o e condicionando-o. Mas justamente por isso, diz Kant, a razão se encontra frente a esses objetos como que incapaz de um veredito. Seus raciocínios, contanto que atendendo às regras de encadeamento da razão especulativa, podem ser direcionados, ora para um lado ora para outro. A fim de ilustrar seu argumento, Kant fornece provas, por argumentos alegadamente lógicos e racionais, tanto da existência como da inexistência de Deus; tanto da tese de que o mundo tem um começo, como da que o mundo é infinito, e assim por diante. Mas colocar as coisas dessa maneira, é, na verdade, o modo kantiano de insistir que a dialética da razão, quando deixada a sua própria sorte, não pode levar a verdade de um conhecimento objetivo, mas apenas a uma "lógica da ilusão". 10

Ora, um encaminhamento desse tipo, entretanto, coloca problemas evidentes às chamadas ciências humanas. Afinal, se o conhecimento possível é necessariamente aquele no qual os objetos deve poder encontrar uma intuição correspondente no tempo e no espaço, pensar, então, o estatuto daquelas ciências que, como se sabe, não encontram necessariamente objetos situados no tempo e no espaço, ou mesmo objetos submetidos a formalização de tipo matemática. Ora, parte das saídas fornecidas no interior do neokantismo, como se sabe, foi a de insistir na distinção entre dois modos diferentes de conhecer: de um lado encontraríamos o modo de conhecimento operado pelas ciências da natureza, tal como descritos por Kant na sua primeira crítica; de outro, encontraríamos o modo de conhecimento próprio às chamadas ciências do espírito. Nesse último caso (ciências humanas) o conhecimento deixava de carregar pretensões objetivistas ou mesmo cognitivistas, passando a interessar-se pelo particularismo histórico de seus objetos, por suas qualidades singulares e pela reconstrução de seu sentido contextual. Mas essa, no entanto, não foi a única saída possível. Veremos que Durkheim, na medida em que parecia se debater com essas questões, acabou por fornecer a elas uma saída alternativa. Nesse caso, a alegada pretensão positiva da primeira crítica kantiana não era abandonada no que diz respeito ao seu conteúdo científico e cognitivo, mas remodelada a partir de um novo tipo de formalização dos fenômenos que não mais aquela fornecido pela matemática. Esse remodelamento proposto por Durkheim acabou por seguir, na verdade, uma via simbólica, no que o mestre francês parecia antecipar, em parte, a apropriação kantiana feita pelo estruturalismo de Lévi-Strauss e, em parte, aproximar-se daquele tipo de solução mais tarde fornecida por neokantianos como Cassirer. A partir desse guinada simbólica, compreendida como condição de possibilidade da apreensão adequada de parte dos fenômenos culturais, Durkheim passou a empreender não só uma sociologia alegadamente positiva, mas se viu em condições de investigar até mesmo as condições de possibilidade do conhecimento tal como formalizadas por Kant no campo dos objetos naturais. A ambição positiva da sociologia, no seu ponto mais alto, parecia poder voltarse até mesmo à chamada teoria do conhecimento, reduto até então dos filósofos profissionais. Em seu último grande trabalho, As Formas Elementares de Vida Religiosa, Durkheim encaminhou uma investigação sociológica a respeito de seis noções alegadamente fundamentais ao chamado espírito humano: tempo, espaço, força, causalidade, gênero e totalidade. Esse tipo de investigação, entretanto, só pode ser compreendido de maneira adequada, se levarmos em conta algumas tensões internas ao argumento kantiano, no que é preciso retomar a alguns pontos de nossa reconstrução.

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Encaminhamentos (II): Uma abordagem complementar das categorias Vimos anteriormente que a estratégia argumentativa de Kant tinha por afirmação central aquela que postulava a ligação entre as formas do juízo e os conceitos do entendimento. A alegação − encaminhada na chamada "dedução metafísica" − partia da aposta de que as categorias deveriam ter sua necessidade vinculada à necessidade do uso dos juízos enquanto forma adequada ao conhecimento objetivo dos objetos. O pensamento capaz de ordenar objetivamente seus objetos, dizia Kant, deveria ser aquele capaz de estruturar-se em enunciados segundo determinadas funções lógicas. No entanto, para que uma dada representação pudesse de fato ser representada desta ou daquela maneira estabelecida, segundo relações necessárias a priori, era preciso, como vimos, que alguns de seus traços ou feições fundamentais não nos remetessem diretamente a conteúdos contingentes resultantes da síntese das intuições sensíveis, mas a conteúdos necessariamente adequados a essas mesmas formas de representação a priori. Assim, dizia Kant, se um juízo prescreve, por exemplo, uma relação de inerência entre dois termos (sujeito e predicado), essa prescrição só pode ser realizada na medida em que o sujeito sintático remeta a algo capaz de ser representado como substância e o predicado remeta a algo capaz de ser representado como acidente. Os conceitos capazes de figurar nos juízos deveriam possuir não apenas um conteúdo material dado a partir da síntese das intuições, mas, como vimos, um "conteúdo transcendental". O argumento geral de Kant pode ser expresso, por exemplo, na seguinte passagem dos Prolegômenos a toda metafísica futura: “(...) não basta à experiência, como comumente se imagina, comparar percepções e uni-las numa consciência por meio do juízo; daí não brota nenhuma validade universal e necessária do juízo, em virtude das quais unicamente ele se pode tornar objetivamente valido e ser uma experiência. (...) a intuição dada deve ser subsumida num conceito que determina a forma do juízo em geral relativamente à intuição, o qual liga a consciência empírica desta intuição numa consciência em geral e assim cria para os juízos empíricos uma validade universal; semelhante conceito é um conceito puro do entendimento que nada mais faz do que determinar em geral para uma intuição a maneira como ela pode servir aos juízos”.13

Colocar as coisas dessa maneira, no entanto, nos leva a um conjunto de considerações a respeito do estatuto das chamadas categorias. Pois, a essa afirmação, Kant parece acrescentar, às vezes, outra mais exigente, que diz respeito ao modo específico pelo qual as categorias possibilitam os juízos. Nesse caso, não bastaria assinalar que as categorias constituem os conteúdos adequados à realização da forma lógica do juízo, mas sim que constituem conteúdos aptos a realizarem essas formas de determinadas maneiras. Ora, 13

KANT, I. Prolegômenos a toda metafísica futura (§ 20).

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parece natural que um problema desse tipo se colocasse a Kant. Isso porque, do ponto de vista das funções lógicas, seria indiferente se as posições sintáticas de sujeito e predicado, por exemplo, fossem ocupadas por esta ou aquela representação. Isto é, do ponto de vista formal, poderíamos dispor livremente as representações em uma ou outra posição – ora como substância ora como acidente, ora como causa ora como consequência, etc. – contanto que a relação formal entre elas fosse preservada. Daí a estratégia transcendental de Kant parecer, em alguns momentos, não se contentar com afirmação de que as categorias simplesmente possibilitariam a realização de determinadas funções lógicas dos juízos, insistindo que elas deveriam constituir, na verdade, algum tipo de restrição extralógica de aplicação dessas funções. Como bem aponta um conhecido comentador14, essa parece ser a visão de Kant num parágrafo adicionado à segunda edição da Crítica: “Antes, porém, quero apenas retomar ainda a explicação das categorias. São conceitos de um objeto em geral, por intermédio dos quais a intuição desse objeto se considera determinada em relação a uma das funções lógicas do juízo. Assim, a função do juízo categórico era a da relação do sujeito com o predicado; por exemplo: todos os corpos são divisíveis. Mas, em relação ao uso meramente lógico do entendimento, fica indeterminado a qual dos conceitos se queria atribuir a função de sujeito e a qual a de predicado. Pois também se pode dizer: algo divisível é um corpo. Pela categoria da substância, porém, se nela fizer incluir o conceito de corpo, determina-se que a sua intuição empírica na experiência deverá sempre ser considerada como sujeito, nunca como simples predicado; e assim em todas as restantes categorias”.15 (grifo meu)

Dizer que uma determinada intuição empírica, no caso de sua subsunção categorial “deverá sempre ser considerada como sujeito, nunca como simples predicado” é o modo kantiano de insistir que as categorias não apenas prescrevem uma adequação a funções lógicas gerais, mas determinam, quando aplicadas, que certas representações devam necessariamente ocupar certas posições sintáticas especificas. No exemplo dado, algumas representações deveriam ser tomadas por sujeito e algumas por predicado, de modo que as categorias evocariam restrições não diretamente ligadas à pura forma lógica do juízo. Elas seriam, como já dito, um tipo de restrições extralógicas do uso de tais funções. Em verdade Kant parece oscilar em sua estratégia transcendental, ora defendendo aquela forma mais simples de argumento, segundo a qual as categorias simplesmente possibilitariam o uso lógico dos juízos – o que sugere que a necessidade categorial depende simplesmente da necessidade de fazermos juízos sobre os objetos –, ora defendendo essa segunda forma de argumento, mais exigente, que encontra nas categorias não apenas as condições de 14 15

GUYER, Paul. “The transcendental deduction of categories”, p.131 KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 128-9.

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possibilidade, mas um conjunto de determinações relativas ao uso propriamente dito dos juízos. Mas, insistir na afirmação de que as categorias constituem um tipo restrição extralógica do discurso exige, entretanto, um tipo de argumentação mais elaborada. Pois se esse é o caso, então Kant deve nos fornecer a fonte dessa restrição. Isto é, ele deve nos mostrar qual a instância capaz de justificar essas mesmas restrições e não outras. Kant também parece oscilar a esse respeito, recorrendo, por um lado, a certo tipo de autoconsciência transcendental, por outro, a certa concepção específica de objeto, como instâncias que exigiriam um uso restritivo das funções lógicas do juízos e, portanto, um conjunto de categorias que nos remeteriam a certa normatividade dessas funções. Eis uma tensão que nos parece central ao argumento transcendental: o estatuto categorial. O transcendental e a problematização sócio-lógica. Considerações desse tipo, é claro, levantam problemas ao pensamento kantiano. Dizer que devemos buscar o fundamento da normatividade categorial, com seus imperativos a respeito da disposição de objetos no interior dos juízos, numa outra região que a da lógica discursiva, equivale a afirmar que algo da ordem das categorias não se encontra dado imediatamente da tabua dos juízos e, portanto, que a dedução encarregada da passagem dessa tabua lógica à tabua das categorias não poderia ser isenta de considerações adicionais. Nesse caso, as categorias, ao menos as categorias enquanto esses conteúdos transcendentais, não poderiam resultar inteiramente de uma dedução dos juízos, tal como pretendia a "dedução metafísica". Assim, esse caráter extralógico dos conceitos com os quais trabalhava o entendimento, esse elemento suplementar que os tornava mais do que os correlatos semânticos de formas sintáticas de disposição do diverso, poderia ser procurado em outro lugar. Essa maneira peculiar de ler o transcendental kantiano será, como veremos, de fundamental interesse à empreitada durkheimiana, pois, ainda que as demandas discursivas com vistas à disposição de objetos num regime judicativo de experiência continuassem valendo, esse tipo de encaminhamento abria claramente a possibilidade para que o social tomasse seu lugar lá onde as puras exigências discursivas já não podiam mais arbitrar sobre o modo adequado de disposição das representações. Mais do que isso, valeria lembrar daquela afirmação kantiana segundo a qual, do ponto de vista da pura forma dos juízos, seria indiferente dizer que 1) "a pedra é pesada" ou que 2) "algo pesado é uma pedra". A escolha do conceito "pedra" e não do conceito de "peso" como adequado a exercer a função de sujeito gramatical (mediante a categoria de substância), nesse caso, deveria ser feita segundo um critério outro que aquele fornecido pela pura forma lógica dos juízos. Escolher entre um e outro desses ajuizamentos possíveis, nesse caso, seria tarefa de uma certa lógica das representações e não mais da lógica dos 14

juízos. Essa lógica, e aqui reside a aposta fundamental de Durkheim, deverá possuir uma caráter social. Segundo essa leitura do argumento, poderíamos compreender a investigação a respeito das categorias como estando parcialmente liberada em relação à lógica dos juízos e, num certo sentido, liberada em relação à própria arquitetônica kantiana. Nesse caso, não apenas as famosas distinções entre sensibilidade, entendimento e razão, com suas respectivas faculdades, poderiam ser, em alguma medida, reconfiguradas à luz de novas considerações, mas o próprio empreendimento investigativo poderia debruçar-se para fora dessa arquitetônica a fim de encontrar uma lógica das representações agora liberada.

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