Aspectos Polêmicos da Aplicação do Novo Código Florestal no Estado de São Paulo

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ASPECTOS POLÊMICOS DA APLICAÇÃO DO NOVO CÓDIGO FLORESTAL NO ESTADO DE SÃO PAULO CONTROVERSIAL ASPECTS OF THE IMPLEMENTATION OF THE NEW FOREST CODE IN THE STATE OF SÃO PAULO Letícia Yumi Marques1 Resumo: Cerca de um ano e meio após sua publicação em 28 de maio de 2012, a aplicação da Lei Federal nº 12.651/2012 ainda não ocorreu de forma plena e efetiva. Contribuem para esse atraso diversos fatores jurídicos e técnicos que, na prática, estendem, para após a promulgação da lei, o intenso debate que antecedeu sua votação pelo Congresso Nacional e prejudicam a eficácia do seu cumprimento. Palavras-chave: Meio Ambiente. Direito. Reserva Legal. Cadastro Ambiental Rural. Abstract: About a year and a half after its publication on May 28, 2012, the application of Federal Law No. 12.651/2012 not occurred yet fully and effectively. Contribute to this delay many legal and technical factors that, in practice, extend after the enactment of the law the intense debate that preceded its vote by Congress and undermine the effectiveness of compliance. Keywords: Environment. Law. Legal Reserve. Rural Environmental Registry. Sumário: 1 Introdução. 2 O Processo Administrativo para Instituição da Reserva Legal no Estado de São Paulo. 3 Do Não Processamento do Pedido de Instituição de Reserva Legal em Decorrência da Não Implantação do CAR. 4 Das

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Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2012. Bacharel em Direito pela PUC-SP, 2008. Professora Convidada do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Imobiliário da COGEAE/PUC-SP. Professora Assistente Voluntária da disciplina de Direito Ambiental do Curso de Graduação em Direito da PUC-SP.

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Orientações da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e a Preterição Ilegal pela Instituição da Reserva Legal Via Compensação Ambiental. 5 Das Divergências Acerca da Possibilidade de Recomposição e Regeneração de Reserva Legal em Áreas de Cerrado no Estado de São Paulo e o CAR. 6 Conclusões Articuladas. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO Cerca de um ano e meio após sua publicação em 28 de maio de 2012, a aplicação da Lei Federal nº 12.651/2012 ainda não ocorreu de forma plena e efetiva. Contribuem para esse atraso diversos fatores jurídicos e técnicos que, na prática, estendem, para após a promulgação da lei, o intenso debate que antecedeu sua votação pelo Congresso Nacional. O envolvimento da sociedade no processo de elaboração e votação do Novo Código Florestal foi marcante. Paulo de Bessa Antunes2 entende que: O Novo Código Florestal é lei que nasceu marcada pela polêmica e por fortes e acalorados debates, nem sempre com a necessária isenção e análise. (...) O intenso debate demonstra que o grau de explosividade do tema é muito elevado e que, em tal contexto, a racionalidade e estudo em relação ao documento legal em vigor é mercadoria escassa. Fato é que no calor dos debates e na virulência de posturas preconcebidas poucos leram a Lei e poucos, de fato, sabem o que nela está contido.

Deveras, com escassas exceções, nunca o processo de aprovação de uma lei foi tão democrático. Ambientalistas e ruralistas, players tradicionalmente opositores, foram ouvidos pelo Executivo Federal nos trabalhos envolvendo a elaboração da Medida Provisória n.º 571/2012, mais tarde convertida na Lei Federal n.º 12.727/2012, que deu ao Novo Código Florestal sua atual redação. Cientistas e pensadores manifestaram-se na mídia; cidadãos foram às ruas. O Novo Código Florestal teve a difícil tarefa de agradar a todos e, como resultado, vê-se que nenhum dos setores envolvidos está totalmente satisfeito – e é esse o ideal da democracia e do processo legislativo: a busca pela conciliação de interesses. Essa conciliação, no entanto, parece estar longe de ser alcançada. Especialmente na Coordenadoria de Biodiversidade e Recursos Naturais –

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BESSA ANTUNES, Paulo de. Comentários ao Novo Código Florestal. São Paulo: Atlas, 2013, p.1.

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CBRN –, órgão ambiental responsável pela análise e instituição das áreas de Reserva Legal no Estado de São Paulo, nota-se que alguns Centros Técnicos Regionais – CTR3 – divergem sobre a possibilidade de conduzir processos para instituição de Reserva Legal por meio de compensação ambiental4 até a efetiva implantação do Cadastro Ambiental Rural – CAR –, pelo Ministério do Meio Ambiente5, o que, até início do ano de 2014, ainda não ocorreu. Há divergências também de cunho técnico, especialmente sobre áreas de cerrado. Os debates e polêmicas acerca da aplicação da Lei Federal n.º 12.651/ 2012 (ainda meses após sua publicação) entre advogados, técnicos e órgãos ambientais, envolvendo, por vezes, o Ministério Público e juízes, nem sempre especialistas em Direito Agrário ou Ambiental, acabam tendo o condão de prolongar a discussão de uma lei já posta ou negar a aplicação de lei democraticamente constituída.

Instituídos pelo Decreto Estadual n.º 54.653, de 6 de agosto de 2009. Lei Federal n.º 12.651/2012 - Art. 66. O proprietário ou possuidor de imóvel rural que detinha, em 22 de julho de 2008, área de Reserva Legal em extensão inferior ao estabelecido no art. 12, poderá regularizar sua situação, independentemente da adesão ao PRA, adotando as seguintes alternativas, isolada ou conjuntamente: I - recompor a Reserva Legal; II - permitir a regeneração natural da vegetação na área de Reserva Legal; III - compensar a Reserva Legal. (...) § 5o A compensação de que trata o inciso III do caput deverá ser precedida pela inscrição da propriedade no CAR e poderá ser feita mediante: I - aquisição de Cota de Reserva Ambiental - CRA; II - arrendamento de área sob regime de servidão ambiental ou Reserva Legal; III - doação ao poder público de área localizada no interior de Unidade de Conservação de domínio público pendente de regularização fundiária; IV - cadastramento de outra área equivalente e excedente à Reserva Legal, em imóvel de mesma titularidade ou adquirida em imóvel de terceiro, com vegetação nativa estabelecida, em regeneração ou recomposição, desde que localizada no mesmo bioma. § 6o As áreas a serem utilizadas para compensação na forma do § 5o deverão: I - ser equivalentes em extensão à área da Reserva Legal a ser compensada; II - estar localizadas no mesmo bioma da área de Reserva Legal a ser compensada; III - se fora do Estado, estar localizadas em áreas identificadas como prioritárias pela União ou pelos Estados. § 7o A definição de áreas prioritárias de que trata o § 6 o buscará favorecer, entre outros, a recuperação de bacias hidrográficas excessivamente desmatadas, a criação de corredores ecológicos, a conservação de grandes áreas protegidas e a conservação ou recuperação de ecossistemas ou espécies ameaçados. § 8 o Quando se tratar de imóveis públicos, a compensação de que trata o inciso III do caput poderá ser feita mediante concessão de direito real de uso ou doação, por parte da pessoa jurídica de direito público proprietária de imóvel rural que não detém Reserva Legal em extensão suficiente, ao órgão público responsável pela Unidade de Conservação de área localizada no interior de Unidade de Conservação de domínio público, a ser criada ou pendente de regularização fundiária. § 9o As medidas de compensação previstas neste artigo não poderão ser utilizadas como forma de viabilizar a conversão de novas áreas para uso alternativo do solo. 5 Decreto Federal n.º 7.830/2012 - Art. 21. Ato do Ministro de Estado do Meio Ambiente estabelecerá a data a partir da qual o CAR será considerado implantado para os fins do disposto neste Decreto e detalhará as informações e os documentos necessários à inscrição no CAR, ouvidos os Ministros de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Desenvolvimento Agrário. 3 4

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2 O PROCESSO ADMINISTRATIVO PARA INSTITUIÇÃO DA RESERVA LEGAL NO ESTADO DE SÃO PAULO O processo administrativo paulista para instituição da área de Reserva Legal inicia-se com o preenchimento, pelo interessado, de requerimento feito por meio de formulário eletrônico, acompanhado, além de documentos pessoais (RG e CPF ou ato constitutivo da pessoa jurídica, cópia de eventual Termo de Ajustamento de Conduta – TAC – ou declaração de inexistência de acordos ou sentenças judiciais) e da propriedade (ITR, CCIR, matrícula, memorial descritivo, mapa de acesso, planta planialtimétrica, etc.) de Laudo de Caracterização de Vegetação6, elaborado por profissional habilitado, acompanhado da respectiva ART, contendo os seguintes dados7: • Bioma e fisionomia ou formação florestal e ecossistemas associados: Mata Atlântica (Floresta Estacional Decídua; floresta Estacional Semidecídua; Floresta Ombrófila Densa; Floresta Ombrófila Mista; Campos de Altitude; Manguezal e Restinga) ou Cerrado (Cerradão, Cerrado stricto sensu, Campo Cerrado e Campo), conforme Lei Federal nº 11.428/06, Lei Estadual nº 13.550/09 e Resolução SMA 64/09. • Estágio de sucessão ecológica: Primário ou Secundário (inicial, médio, avançado), conforme Resoluções Conama 1/94, 07/94, 07/96, 417/09 e 423/10 e Resolução SMA 64/09. Deverá também listar as espécies ocorrentes, e conter fotos que ilustrem a situação da área proposta para averbação. Indicar a coordenada e visada da foto legenda.

Os documentos apresentados pelo interessado (proprietário/possuidor da área) passam então à análise do órgão ambiental, que, se entender necessário, pode solicitar complementações e/ou esclarecimentos ao longo do processo que, ao final, se deferido o pedido de instituição da Reserva Legal, culmina na emissão do Termo de Responsabilidade de Preservação de Reserva Legal – TRPRL. Todavia, divergências têm retardado o andamento do referido processo administrativo ou, em alguns casos, até mesmo impedido a instituição da área de Reserva Legal nos moldes do Novo Código Florestal.

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Resolução SMA n.º 64, de 10 de setembro de 2009. Extraído do site da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de São Paulo. Disponível em: http://www.sigam.ambiente.sp.gov.br/sigam2/Re positorio/222/Documentos/ Reserva_Legal.pdf. Acesso em 31.01.2014.

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3 DO NÃO PROCESSAMENTO DO PEDIDO DE INSTITUIÇÃO DE RESERVA LEGAL EM DECORRÊNCIA DA NÃO IMPLANTAÇÃO DO CAR O documento mais importante no processo administrativo para instituição da área de Reserva Legal é o Laudo de Caracterização de Vegetação. Trata-se de estudo elaborado por profissional contratado pelo interessado, que após trabalho de campo, avalia, analisa, classifica a vegetação do imóvel e propõe a forma de instituição da área de Reserva Legal. Sendo a proposta pela instituição por meio de regeneração, o Laudo deve apresentar o programa de acompanhamento para regeneração natural8 da área; se por meio de recomposição, o Laudo deve apresentar o seu planejamento, indicando, com detalhes, como ocorrerá o plantio das mudas e suas espécies na proporção definida em regulamento; e, por fim, se por meio de compensação ambiental por servidão administrativa9, o Laudo deverá indicar as características dos imóveis dominante e serviente, bem como o déficit de Reserva Legal da área originária e o seu cruzamento com a área compensatória, tudo documentado em relatório fotográfico e plantas com delimitação da área proposta para compensação ambiental. Nos casos em que a proposta para instituição da área de Reserva Legal consista na compensação por meio de servidão ambiental, a aplicação do Novo Código Florestal tem enfrentado dificuldades iniciais já no processamento do requerimento do interessado. No Estado de São Paulo, alguns Centros Técnicos Regionais da CBRN têm se manifestado no sentido de que o prosseguimento de um processo de compensação ambiental apenas poderia ocorrer mediante a efetiva implementação do CAR pela Ministra de Meio Ambiente, nos termos do artigo 21 do Decreto Federal n.º 7830/2012, uma vez que o CAR, enquanto base Convém esclarecer que, no entendimento desta autora, a regeneração natural deve ser conduzida, ou seja, acompanhada pelo proprietário/possuidor da área. Isto, pois, embora o conceito da regeneração natural, de forma simplista, consista na recuperação da vegetação nativa do local pela própria natureza, o interessado na instituição da Reserva Legal deve monitorar o sucesso dessa regeneração que, por motivos técnicos, pode ou não ocorrer ou que, então, pode ser dificultado por motivos externos, tais como queimadas, chuvas excessivas, pragas, etc. Assim, o simples abandono da área pode não caracterizar a regeneração natural da área, conforme interpretação finalística do artigo 66 do Novo Código Florestal. 9 Analisam-se apenas os casos de compensação ambiental por meio de servidão ambiental, visto que, estando pendente de regulamento, a compensação ambiental por meio de Cotas de Reserva Ambiental ainda não vem sendo realizada. 8

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de dados a nível nacional, deverá conter os dados das áreas originária e compensatória, fazendo os cruzamentos necessários para, dentre outras finalidades, evitar a sobreposição de áreas ou a repetida utilização de uma mesma área compensatória, sem excedente. Nesses casos, o interessado tem sido oficiado sobre a impossibilidade de análise do pedido, que apenas poderia prosseguir e deixar de ser arquivado, caso a instituição da área de Reserva Legal ocorresse por recomposição ou regeneração. Outros Centros Técnicos Regionais, no entanto, têm dado regular andamento ao processo, solicitando o registro do imóvel no Sistema de Cadastro Ambiental Rural do Estado de São Paulo – SICAR-SP10 –, de forma que, uma vez implementado o CAR pela Ministra de Meio Ambiente, os dados já registrados no SICAR-SP migrariam automaticamente para a base de dados federal. A conduta de alguns Centros Técnicos Regionais, que têm colocado óbices à continuidade do processo administrativo para instituição da Reserva Legal por meio de compensação ambiental via servidão administrativa, sob o fundamento de que sem a efetiva implantação do CAR a compensação não pode ser realizada, é manifestamente ilegal e tem o nítido condão de direcionar a vontade do interessado para as outras formas de instituição de Reserva Legal (regeneração e recomposição). É preciso destacar que, no Estado de São Paulo, o SICAR-SP encontra-se em funcionamento, via internet11, desde junho de 2013, quando foi publicado o Decreto Estadual n.º 59.261/2013, que o instituiu. Em que pese ainda não haver ato da Ministra de Meio Ambiente considerando o CAR efetivamente implantado, é imperioso reconhecer que o Decreto Estadual n.º 59.261/2013 encontra-se vigente e que o SICAR-SP encontra-se em pleno funcionamento, sendo possível aos interessados acessar o sistema online e realizar o cadastro do imóvel. Assim sendo, não deve a autoridade ambiental negar-se a dar continuidade ao processo de instituição da Reserva Legal sob o fundamento de que isso não seria possível até que o ato da Ministra do Meio Ambiente seja publicado, uma vez que existe no Estado de São Paulo um sistema operacional devidamente regulamentado por Decreto do Chefe do Executivo, este, por sua vez, respaldado na Lei Federal n.º 12.651/2013.

Decreto Estadual nº 59.261, de 5 de junho de 2013 - Institui o Sistema de Cadastro Ambiental Rural do Estado de São Paulo SICAR-SP, e dá providências Correlatas. 11 Disponível em http://www.ambiente.sp.gov.br/car/ 10

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O Princípio da Legalidade, com lastro no art. 37, caput da Constituição Federal12 e no artigo 2º da Lei Federal n.º 9.784/9913, comanda que à Administração Pública não é dado fazer ou deixar de fazer, senão em virtude de lei. Por conseguinte, o Novo Código Florestal introduziu na esfera de direitos do proprietário ou possuidor rural o direito público subjetivo à instituição da Reserva Legal de seu imóvel por meio da compensação ambiental; direito este consagrado pelo Poder Legislativo e que não pode ser negado pela Administração Pública, esta obediente ao citado Princípio da Legalidade. Tais razões demonstram que é mais condizente e adequada ao comando legal a conduta dos Centros Técnicos Regionais que acatam os processos administrativos para instituição de área de Reserva Legal por compensação ambiental dando-lhes seguimento e deferindo-os quando presentes os requisitos justificadores da emissão do TRPRL, aguardando o momento de implementação do CAR pelo Executivo Federal para posterior transferência dos dados do SICAR-SP para o sistema nacional. Desta forma, o proprietário ou possuidor rural que pretenda regularizar seu imóvel não será prejudicado pela inércia do Poder Executivo Federal, que se encontra, até este início de 2014, em mora no seu dever de regulamentar o CAR. 4 DAS ORIENTAÇÕES DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO E A PRETERIÇÃO ILEGAL PELA INSTITUIÇÃO DA RESERVA LEGAL VIA COMPENSAÇÃO AMBIENTAL Em 21 de maio de 2013, a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo – PGE/SP – emitiu o Parecer GDOC 18487-4033348/2013, relativo aos questionamentos da Secretaria do Meio Ambiente acerca do Novo Código Florestal. Trata-se de documento que pretende orientar a aplicação da Lei Federal n.º 12.651/2013 pelos órgãos ambientais paulistas. Embora o citado Parecer da PGE tenha abordado inúmeras questões, convém destacar os pontos polêmicos que têm impacto direto no processo de instituição da Reserva Legal. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...). 13 Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. 12

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Na interpretação do artigo 66 do Novo Código Florestal, a PGE/SP entende que se coloca ali uma “regra geral” segundo a qual a instituição da área de Reserva Legal deve ocorrer prioritariamente por meio da recomposição ou regeneração, de maneira que a compensação ambiental poderia ocorrer apenas excepcionalmente. O artigo 66 da Lei Federal 12.651/2012, relativo à regularização da Reserva Legal, somente pode ser interpretado à luz da regra geral constante do artigo 12 do mesmo diploma legal, segundo a qual, excetuados os casos previstos no artigo 68, todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa a titulo de Reserva Legal, observados os percentuais constantes dos incisos I e II do dispositivo em questão, e cuja localização, nos termos do artigo 14 da lei em análise, deverá levar em consideração os seguintes critérios: (i) o plano de bacia hidrográfica; (ii) o Zoneamento Ecológico-Econômico; (iii) a formação de corredores ecológicos com outra Reserva Legal, com Área de Preservação Permanente, com Unidade de Conservação ou com outra área legalmente protegida; (vi) as áreas de maior importância para a conservação da biodiversidade; e (v) as áreas de maior fragilidade ambiental. [...] A regra é a instituição da Reserva Legal no próprio imóvel, mediante a adoção das alternativas de recomposição da vegetação nativa ou de condução da regeneração natural, sempre que tais medidas se apresentarem, sob o aspecto técnico, indicadas à luz dos critérios constantes do artigo 14 da Lei Federal 12.651/2012, levando-se em conta as funções da Reserva Legal mencionadas no artigo 3º, III. Assim, somente quando tecnicamente não se mostrarem indicadas a recomposição da vegetação nativa e/ou a adoção de ações que permitam a sua regeneração natural no próprio imóvel à luz de tais critérios, é que poderá ser autorizada a compensação da Reserva Legal.

O entendimento da PGE/SP acerca da existência de uma regra geral que determina a prevalência da recomposição e da regeneração como formas de instituição da Reserva Legal não está de acordo com a própria redação do artigo 66 do Novo Código Florestal, que, ao invés de estipular prioridades, estabelece que as formas de instituição da Reserva Legal podem ser empregadas isolada ou conjuntamente. Art. 66. O proprietário ou possuidor de imóvel rural que detinha, em 22 de julho de 2008, área de Reserva Legal em extensão inferior ao estabelecido no art. 12, poderá regularizar sua situação, independentemente da adesão ao PRA, adotando as seguintes alternativas, isolada ou conjuntamente: I - recompor a Reserva Legal; II - permitir a regeneração natural da vegetação na área de Reserva Legal; III - compensar a Reserva Legal.

Por esta razão, qualquer interpretação que busque restringir as opções de instituição de Reserva Legal dadas ao proprietário e possuidor rural pela legislação podem ser consideradas ilegais, na medida em que altera

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o sentido da norma e impede o exercício de um direito legalmente constituído, consistente na possibilidade de escolha da forma pela qual a Reserva Legal será instituída. Vale lembrar, com supedâneo na interpretação finalística da norma jurídica, que a finalidade do Novo Código Florestal é conciliatória, com a busca da regularização da situação de agricultores atualmente em situação de ilegalidade. Assim, se o intuito da Lei Federal n.º 12.651/2012 é proporcionar ao produtor rural meios para instituir a área de Reserva Legal de seu imóvel, colocando à sua disposição três formas distintas para o cumprimento da obrigação inserida em seu artigo 12, desarrazoado seria entender que esses proprietários deveriam lançar mão de áreas já há muitos anos destinadas à agricultura e/ou à criação de animais para recomposição ou regeneração da vegetação nativa. Fosse esse o intuito do legislador, pode-se entender que a compensação da Reserva Legal não teria sido sequer permitida. A conciliação de interesses para a regularização dos imóveis rurais é entendimento compartilhado também por Paulo de Bessa Antunes14: Os comentários feitos neste livro demonstram que, de fato, a tônica do Novo Código Florestal é o reconhecimento e a aceitação de fatos consumados que foram se acumulando ao longo dos anos, frutos da inércia das autoridades encarregadas de fiscalizar o Código Florestal revogado, pela ousadia de diferentes setores que, cientes de sua força política e econômica, simplesmente desatenderam as normas legais vigentes, bem como de uma esquizofrenia legislativa que, por sucessivas mudanças na Lei n.º 4.771, de 1965, foi criando novas e maiores exigências ambientais, sem qualquer preocupação com a observância das normas então vigentes.

De um arcabouço de possibilidades para resolver os problemas do meio ambiente e da agricultura no país, por meio da edição de uma nova lei florestal em substituição à revogada legislação, que não foi efetivamente aplicada por inércia do Poder Público, o legislador optou por “aceitar fatos consumados”, propiciando aos proprietários e possuidores rurais meios para regularizar seus imóveis. Nessa linha, a compensação ambiental tem sido, sem dúvidas, a forma mais procurada por produtores e possuidores rurais para instituição das áreas de Reserva Legal de seus imóveis, por ser o meio menos gravoso para cumprimento da obrigação do artigo 12 do Novo Código Florestal, do ponto de vista da manutenção das áreas já há tantos anos destinadas à produ14

BESSA ANTUNES, Paulo. Comentários ao Novo Código Florestal. São Paulo: Atlas, 2013, p. 2.

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ção agrícola. Dificultar o uso da compensação ambiental, nesse cenário, corresponderia a dificultar a própria instituição da Reserva Legal. 5 DAS DIVERGÊNCIAS ACERCA DA POSSIBILIDADE DE RECOMPOSIÇÃO E REGENERAÇÃO DE RESERVA LEGAL EM ÁREAS DE CERRADO NO ESTADO DE SÃO PAULO E O CAR Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente15 e do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística – IBGE16 –, o Estado de São Paulo concentra áreas do bioma Cerrado em 32% (trinta e dois por cento) do seu território, predominantemente na região norte, estendendo-se a regiões próximas a São José do Rio Preto, Presidente Prudente e divisa com o Paraná. Apesar de se tratar de uma área extensa, como é notório, o Cerrado já havia dado lugar à agricultura em muitos municípios do interior paulista. Tais dados, quando confrontados com a interpretação da PGE/SP acerca da aplicação do artigo 66 do Novo Código Florestal, são preocupantes. Assim, como visto anteriormente, a orientação da PGE/SP para a CBRN é dar preferência pela recomposição ou regeneração em detrimento da compensação ambiental como forma de instituição da Reserva Legal e, em áreas de Cerrado, a viabilidade da recomposição e regeneração é debatida por agrônomos, biólogos e demais profissionais da área. Em suma, os debates técnicos concentram-se na (i) impossibilidade de cultivo de mudas de espécies de vegetação do Cerrado, uma vez que, por conta de suas características, seu cultivo em viveiros demandaria recursos técnicos extremamente onerosos, o que inviabilizaria a recomposição de uma área com espécies nativas desse bioma; e (ii) divergências acerca da possibilidade de regeneração da vegetação nativa no bioma Cerrado, o que poderia, ou não, ocorrer com sucesso, dependendo das condições de solo, de água e de banco de sementes. Como se vê, a exigência pela recomposição ou regeneração da Reserva Legal em áreas de Cerrado pode ser tecnicamente inviável de ser atendida e, nessa linha, são diversos processos administrativos para instituição da

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Disponível em http://www.mma.gov.br/biomas/cerrado. Acesso em 30 de janeiro de 2014. Disponível em ftp://ftp.ibge.gov.br/Cartas_e_Mapas/Mapas_Murais/. Acesso em 30 de janeiro de 2014.

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Reserva Legal em trâmite na CBRN que se alongam em discussões técnicas a respeito do tema. Não é objeto deste arrazoado tratar das divergências técnicas sobre as possibilidades de recomposição e regeneração da Reserva Legal em áreas de Cerrado, uma vez que são temas alheios à área jurídica. No entanto, o tema ganha especial relevância no campo jurídico frente à implementação do CAR, cuja base de dados é formada com as informações do IBGE que, conforme visto, informam a existência de Cerrado em 32% (trinta e dois por cento) do território paulista. Dessa forma, muitos proprietários ou possuidores rurais podem ter seus imóveis classificados pelo sistema como pertencentes ao bioma Cerrado e, a partir disso, os interessados podem enfrentar processos administrativos complexos, com intensos debates técnicos, para instituição da área de Reserva Legal de seus imóveis. 6 CONCLUSÕES ARTICULADAS O Novo Código Florestal é fruto de um processo legislativo democrático, que contou com intensa participação da sociedade e dos setores envolvidos. Por esta razão, embora não agrade na totalidade nem ambientalistas, nem ruralistas, deve ser respeitada e cumprida por todos. Em que pese ainda haver muitos debates técnicos e jurídicos sobre o tema, é preciso reconhecer que o momento de debater já passou, dando início à fase de cumprimento da nova lei. Nesse diapasão, as polêmicas que têm se sobressaído nos processos de instituição da Reserva Legal constituem óbices ao cumprimento da legislação, fazendo com que se perpetuem neste momento, de forma descabida e antidemocrática, os debates já encerrados com a promulgação da Lei Federal n.º 12.651/2012. A aplicação do Novo Código Florestal com plena eficácia dos seus instrumentos, introduzidos com a finalidade de propiciar aos produtores e possuidores rurais meios para regularização de seus imóveis, deve ser imediata, devendo o Poder Público regulamentá-los com o intuito de assegurar seu cumprimento, inclusive em consonância com as possibilidades técnicas. No entanto, a aplicação da lei florestal não deve impor meios e formas tecnicamente inviáveis de serem atendidas. Nesse sentido, observa-se que os debates, embora enriquecedores da democracia, podem, neste momento da aplicação da legislação, prejudicar a própria proteção do meio ambiente. Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 79-90, maio de 2014

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MARQUES, Letícia Y. Aspectos Polêmicos da Aplicação do Novo Código Florestal no Estado de São Paulo

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Recebido em: 1º de fevereiro de 2014. Aceito em: 02 de março de 2014.

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Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 79-90, maio de 2014

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