Aspectos relativos à proteção dos sistemas de medicina tradicional e biodiversidade através dos direitos de propriedade intelectual

Share Embed


Descrição do Produto

Aspectos relativos à proteção dos sistemas de medicina tradicional e biodiversidade através dos direitos de propriedade intelectual Letícia de Souza Daibert1

Resumo: A Medicina Tradicional (MT) é amplamente utilizada nos países em desenvolvimento, especialmente naqueles em que se verifica uma certa deficiência nos sistemas públicos de saúde ou nos que há comunidades as quais não possuem acesso à este sistema. Nestes mesmos países, verifica-se, geralmente, a ocorrência de uma maior biodiversidade. O presente trabalho pretende, em breves linhas, fazer uma análise do sistema internacional de proteção aos direitos de propriedade intelectual existente atualmente. Após, passa à análise da possibilidade de proteção dos mencionados recursos através da utilização dos mecanismos disponibilizados por referido sistema. Finalmente, pontuam-se algumas questões que podem emanar da ausência completa de regulação do tema. Palavras-chave: propriedade intelectual – medicina tradicional – biodiversidade

1 INTRODUÇÃO AOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

Os direitos de propriedade intelectual (PI) contemplam os inventores com o monopólio temporário sobre suas invenções, com vistas a incentivar a atividade inventiva. O aumento da inovação tecnológica compensaria, assim, as perdas geradas pela ineficiência econômica a que dá causa o monopólio.2

1

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especializanda em Estudos Diplomáticos pelas Faculdades Milton Campos. 2 CHARLTON, Andrew; STIGLITZ, Joseph E. An Agenda for the development round of trade negotiations in the aftermath of Cancun. Genebra: Ed.Report for the Commonwealth Secretariat Library, 2004. pg. 61.

Na criação e interpretação dos sistemas de proteção à PI, faz-se necessário que os Estados atentem para o estabelecimento de um equilíbrio entre os interesses dos usuários e dos produtores do conhecimento, de forma a favorecer, ao mesmo tempo, a inovação e o acesso à tecnologia, conforme disposto no Art. 7 do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio da Organização Mundial do Comércio (TRIPS):

Art. 7 Objetivos A proteção e implementação dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica, da transferência e disseminação de tecnologia, para a produção de vantagens mutuas para os produtores e usuários do conhecimento tecnológico, de maneira a conduzir ao bem estar social e econômico, e ao equilíbrio entre direitos e obrigações. (TRIPS, Art. 7, 1994. Tradução nossa.)3

Na proteção destes direitos, os Estados possuem uma certa margem de manobra que permite a adoção de medidas para evitar o abuso dos direitos de propriedade intelectual por seus titulares. Veja-se o disposto no Art. 8, do TRIPS:

Art. 8: Princípios Os Estados-membros podem, ao formularem ou emendarem suas leis e regulamentos, adotar medidas necessárias à proteção da saúde pública e nutrição, e à promoção do interesse público em setores de vital importância sócio-econômica e de desenvolvimento tecnológico, sempre que tais medidas sejam consistentes com as disposições do presente Acordo. Medidas apropriadas, desde que consistentes com as disposições do presente Acordo, podem ser necessárias para prevenir o abuso dos direitos de propriedade intelectual pelos titulares dos direitos ou o recurso a práticas que não restrinjam de forma não razoável o comércio ou afetem adversamente a transferência internacional de tecnologia. (TRIPS, Art.8, 1994. Tradução nossa)4

3

Art. 7 Objectives. The protection and enforcement of intellectual property rights should contribute to the promotion of technological innovation and to the transfer and dissemination of technology, to the mutual advantage of producers and users of technological knowledge and in a manner conductive to social and economic welfare, and to a balance of rights and obligations. 4 Article 8: Principles. 1. Members may, in formulating or amending their laws and regulations, adopt measures necessary to protect public health and nutrition, and to promote the public interest in sectors of vital importance to their socio-economic and technological development, provided that such measures are consistent with the provisions of this Agreement. 2. Appropriate measures, provided that they are consistent with the provisions of this Agreement, may be needed to prevent the abuse of intellectual property rights by right holders or the resort to practices, which unreasonably restrain trade or adversely affect the international transfer of technology.

O dispositivo em questão é particularmente importante para os países em desenvolvimento e menos desenvolvidos (LDC), posto permitir a elaboração de políticas públicas necessárias à mitigação dos efeitos negativos que possam advir da proteção à PI, de forma a promover um equilíbrio entre os interesses dos produtores e usuários do conhecimento5.

Com efeito, é possível, com a aplicação desse dispositivo, adotar medidas para a prevenção e combate da concorrência desleal, ou mesmo para a promoção da saúde pública e nutrição, preservando, ao mesmo tempo, os direitos exclusivos conferidos aos titulares dos direitos de propriedade intelectual.6

O Painel adotado no marco do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), no caso Canada – Term of Patent Protection, reafirmou a necessidade de se assegurar um regime de propriedade intelectual que promova o equilíbrio entre os interesses dos produtores e usuários do conhecimento.7 Aduziu, na oportunidade, que os objetivos e limitações estabelecidos nos Arts. 7 e 8, bem como nos demais dispositivos que espelham os propósitos do TRIPS, devem ser considerados na aplicação daquele acordo, reconhecendo, assim, que nenhum dos direitos de propriedade intelectual eventualmente outorgados aos produtores de conhecimento é absoluto.

Conclui-se, deste modo, que muito embora os Estados-membros estejam obrigados a adotar parâmetros mínimos de proteção dos direitos de PI sob o TRIPS, eles dispõem de uma ampla margem de discricionariedade para a construção das normativas internas acerca desses direitos, de forma a atender as necessidades de suas populações e promover o desenvolvimento. 8

5

CHARLTON. op. cit. pg. 62. WATAL, Jayashree. Intellectual property rights in the WTO and Developing Countries. Haia: Kluwer Law International, 2001. pg. 293. 7 Canada – Patent Protection of Pharmaceutical Products (Canada – Pharmaceutical Patents)(WT/DS114/R), como adotado em 7 de abril de 2000. para. 7.26. 8 CORREA, Carlos María. Propiedad Intelectual y Salud Publica. Buenos Aires: La Ley, 2006. pg. 107. 6

1.1 Proteção Internacional aos Direitos de Propriedade Intelectual

O TRIPS determina que os Estados membros da OMC adaptem suas legislações internas, para incluir parâmetros mínimos de proteção à PI, dentro dos períodos de transição estipulados.9

O objetivo do Acordo, saliente-se, não é o de harmonizar a proteção dos direitos de PI em todos os Estados10. O âmbito de discricionariedade conferido pelo TRIPS para a elaboração das normas permite que os Estados as adequem às suas realidades internas, de forma a favorecer o desenvolvimento e bem estar sócio-econômico.

1.1.1 Patentes

Patentes consubstanciam a forma mais usual de proteção das invenções, concedendo aos seus titulares, de forma exaustiva, os direitos elencados no Art. 28, do TRIPS11, que dispõe: Artigo 28: Direitos conferidos 1. A patente confere ao seu titular os exclusivos direitos: sempre que o objeto da patente seja um produto, o de impedir que terceiros, sem autorização do titular, realizem os atos de: produzir, utilizar, colocar à venda, vender ou importar, para esses propósitos, aquele produto; sempre que o objeto da patente seja um processo, o de impedir que terceiros, sem autorização do titular, realizem os atos de: utilizar, colocar à venda, vender ou importar, para esses propósitos, ao menos o produto obtido diretamente por meio daquele processo. 2. Aos titulares da patente também é conferido o direito de promover a transferência, inter vivos ou causa mortis, da patente e o de celebrar contratos de licenciação. * Este direito, como todos os demais estabelecidos no presente Acordo com respeito ao uso, venda, importação ou distribuição de bens, está sujeito às provisões do Art. 6. (TRIPS, Art. 28, 1994. Tradução nossa.)12

9

CORREA. op. cit. pg. 105. BERMANN, George A.; MAVROIDS, Petros C. (Org.). WTO law and developing countries. Nova Iorque: Ed. Cambridge University Press, 2007. pg. 127. 11 CORREA, Carlos Maria. Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights: a commentary on the TRIPS agreement. Reino Unidos: Oxford University Press, 2007. pg. 296. 12 Article 28: Rights Conferred 1. A patent shall confer on its owner the following exclusive rights: (a) where the subject matter of a patent is a product, to prevent third parties not having the owner's consent from the acts of: making, using, offering for sale, selling, or importing for these purposes that product;* 10

Resulta cristalino, da leitura do dispositivo citado, que os direitos conferidos ao titular da patente são exclusivos, no sentido de que provêm ao mesmo poderes para impedir que terceiros, sem seu consentimento, executem determinados atos. A patente, deste modo, não confere nenhum direito positivo de ação ao seu titular, mas direitos negativos, que o possibilitam prevenir que terceiros se apropriem da idéia fixada na invenção.13

Insta gizar que o direito de patente tutela a idéia fixada na invenção. Não autoriza, portanto, sua comercialização de imediato, se não atendidas as condições postas para tanto. A comercialização de medicamentos, e.g., geralmente demanda permissão prévia da autoridade de vigilância sanitária local, sem a qual não é possível.

1.1.2 Matéria patenteável

O Art. 27.1 do TRIPS estabelece que o direito de patente se aplica a quaisquer invenções, sejam produtos ou processos, em todos os campos de conhecimento.

Artigo 27: Matéria Patenteável Observadas as condições dos parágrafos 2 e 3, as patentes devem ser disponibilizadas para quaisquer invenções, tanto produtos como processos, em todos os campos de conhecimento, desde que sejam novas, manifestem atividade inventiva, e tenham aplicação industrial. * Observadas as condições do parágrafo 4 do Artigo 65, parágrafo 8 do Artigo 70 e parágrafo 3 deste Artigo, as patentes devem ser disponibilizadas e os direitos dela decorrentes aplicáveis sem discriminação quanto ao local da invenção,o campo de tecnologia, e o fato de o produto ser nacional ou importado. * Para os propósitos deste Artigo, os termos "atividade inventiva" e "aplicação industrial" podem ser considerados pelos Membros respectivamente como sinônimos dos termos "não obviedade" e "utilidade". (TRIPS, Art. 27.1, 1994. Tradução nossa.)14 (b) where the subject matter of a patent is a process, to prevent third parties not having the owner's consent from the act of using the process, and from the acts of: using, offering for sale, selling, or importing for these purposes at least the product obtained directly by that process. 2. Patent owners shall also have the right to assign, or transfer by succession, the patent and to conclude licensing contracts. * (footnote original) This right, like all other rights conferred under this Agreement in respect of the use, sale, importation or other distribution of goods, is subject to the provisions of Article 6. 13 CORREA. op. cit. pg. 295. 14 Article 27: Patentable Subject Matter 1. Subject to the provisions of paragraphs 2 and 3, patents shall be available for any inventions, whether products or processes, in all fields of technology, provided that they are new, involve an inventive step and

Uma vez observados os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, portanto, qualquer invenção é patenteável, aplicando-se, para tanto, o princípio da não discriminação.

Importa observar que o termo discriminação, empregado no dispositivo em análise, é de interpretação controversa, devendo ser substituído, sempre que possível, por termos mais específicos, como asseverado pelo Painel do caso Canada – Pharmaceutical Patents: “Discriminação é um termo a ser evitado, sempre que parâmetros mais precisos estejam disponíveis, e, quando empregado, é um termo a ser interpretado com precaução e cuidado, de forma a não se lhe atribuir mais precisão que a contida no termo.” 15 (Relatório do Painel, Canada – Pharmaceutical Patents, paras. 7.94 e 7.98.Tradução nossa.)

O princípio da não discriminação aplicado aos campos de tecnologia exige seja assegurado tratamento igualitário a quaisquer produtos ou processos sobre os quais se requeira tutela por meio de patente. Não se admitem, portanto, a incidência de discriminação de fato ou direito com base em algum aspecto específico relativo à invenção objeto de patente.

1.1.3 Requisitos de patenteabilidade

Para que determinado produto ou processo possa receber proteção de patente, deve ser demonstrado que a) inspira novidade, b) apresenta atividade inventiva e c) possui aplicação industrial.

are capable of industrial application.(5) Subject to paragraph 4 of Article 65, paragraph 8 of Article 70 and paragraph3 of this Article, patents shall be available and patent rights enjoyable without discrimination as to the place of invention, the field of technology and whether products are imported or locally produced. (footnote original) For the purposes of this Article, the terms "inventive step" and "capable of industrial application" may be deemed by a Member to be synonymous with the terms "non-obvious" and "useful" respectively. 15 'Discrimination' is a term to be avoided whenever more precise standards are available, and, when employed, it is a term to be interpreted with caution, and with care to add no more precision than the concept contains.

Novidade significa inovação. Denota algo que possui pouco tempo de existência, que é recente.16 O requisito de novidade se propõe justamente à determinação de se a invenção, cuja patente é reivindicada, acrescenta algo ao arcabouço de conhecimento à ela preexistente.

Quanto mais rigorosos os critérios adotados para o estabelecimento da novidade, menor será o número de patentes conferidas, incrementando-se, assim, o acesso e uso de conhecimentos técnicos e produtos. 17

O caráter inventivo, ou a não obviedade da invenção, visa assegurar não sejam patenteados conhecimentos técnicos já obtidos ou que poderiam ser obtidos por pessoa com razoável grau de instrução no campo tecnológico correspondente. Previnem, portanto, a concessão de patentes sobre a evolução corriqueira de conhecimentos pré-existentes.

Com freqüência se utiliza como parâmetro para se avaliar a atividade inventiva o efeito inesperado ou surpreendente dela decorrente.18 O TRIPS, entretanto, não estabelece critérios precisos para se proceder a esta análise. Lado outro, concede uma grande margem de discricionariedade aos Estados-membro para a determinação destes balizamentos.

A aplicação industrial, por fim, reflete o propósito dos direitos de PI de proteger não a idéia em abstrato, mas a fixação da idéia e sua aplicação industrial. Cumpre destacar que o TRIPS não define a aplicação industrial, deixando ao arbítrio dos Estados sua determinação.

Nos EUA, e.g, basta que uma invenção se demonstre útil para que mereça proteção por patente.19 O alto grau de flexibilidade naquele país permitiu que empresas, como bancos ou

16

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 5ª edição, 1977. pg. 334. 17 CORREA, Carlos María. Propiedad Intelectual y Salud Publica. Buenos Aires: La Ley, 2006. pg. 126. 18 CORREA. op. cit. pg. 128. 19 CORREA. op. cit. pg. 130.

companhias de seguros, ingressassem tardiamente no campo das patentes, as requerendo com relação a métodos negociais, ou serviços financeiros.20

2 MEDICINA TRADICIONAL

A medicina tradicional (MT) é amplamente utilizada nos países em desenvolvimento, nos quais, geralmente, o acesso à saúde pública é limitado por razões financeiras e culturais. Muitas vezes a MT é a única forma que algumas populações mais isoladas possuem para tratar seus doentes21. A MT tem adquirido maior relevância para os países desenvolvidos na medida que a indústria farmacêutica tem se valido dos conhecimentos das comunidades que compartilham este conhecimento, principalmente as indígenas, para produzir novos medicamentos22.

Neste cenário, questiona-se a possibilidade deste tipo de conhecimento ser tutelado pelos direitos de PI atualmente existentes, e quais problemas podem surgir desta proteção.

2.1 Conceito Segundo a Organização Mundial de Saúde, a MT corresponde à “soma total dos conhecimentos e práticas baseados em teorias, crendices ou experiências originais de diferentes culturas, sejam estes explicáveis ou não, usados na manutenção da saúde, bem como na prevenção, diagnóstico, melhora ou tratamento de doenças físicas e mentais.23”

2.2 Patenteabilidade

20

CORREA. op. cit. pg. 17. CORREA. op. cit. pg. 249. 22 McCLELLAND, Lynn. Bioprospecting: Market-based solutions to biopiracy. UCLA Journal of Law and Technology. Los Angeles: 2004, pg. 01. 23 ZHANG, Xiaorui. General Guidelines for Methodologies on Research and Evaluation of Traditional Medicine. Genebra: 2000, WHO/EDM/TRM/2000.1, pg. 01. 21

As patentes, conforme visto na seção 1, protegem invenções que sejam novas, não óbvias e tenham aplicação industrial.

2.2.1 Novidade

Em geral, o requisito de novidade irá impedir que conhecimentos de MT, que tenham sido disponibilizados para uso no decorrer dos anos, ou que tenham sido publicados, sejam patenteados. Isto porque o conhecimento já estaria inserido no arcabouço de conhecimento anteriormente existente.

Apesar disto, pode haver situações em que este conhecimento, ainda que disponível, tenha ficado restrito a um pequeno grupo de indivíduos, de forma a não permitir o acesso de terceiros à informação24. Desta forma, estaria atendido o requisito da novidade. Nos Estados Unidos, segundo o art. 102 da Lei de Patentes 25, os conhecimentos de MT publicados por escrito naquele ou em outro país não são patenteáveis. Entretanto, se a MT houver sido utilizada, mas não documentada, o requisito de novidade estaria preservado. Conclui-se, portanto, que o requisito de novidade é relativo naquele país.

Este fato deu origem a diversas patentes sobre materiais biológicos e conhecimentos de MT adquiridos em países em desenvolvimento, nos quais não se verificava uma documentação sistematizada, mas a transmissão das informações oralmente26

Esta apropriação indevida pode ser classificada como biopirataria, compreendendo recursos no estado em que estão, ou seja, que não sofreram nenhum tipo de beneficiamento. Com

24

CORREA. op. cit. pg. 255. United States Code Title 35, Patent Laws, Rev. 2 de setembro de 2007, disponível em: http://www.uspto.gov/web/offices/pac/mpep/consolidated_laws.pdf 26 CORREA. op. cit. pg. 256. 25

vistas a reduzir esta prática, tem-se observado um esforço de documentação destes recursos e MT, de forma a impedir sejam patenteados, por violação do requisito da novidade.

2.2.2 Não obviedade

Uma vez atendido o requisito da não obviedade, deve-se buscar identificar no objeto da patente a não obviedade, avaliando-se até que ponto algo que está disponível na natureza pode ser considerado como uma genuína invenção.

Em muitos países, é proibida a proteção por patente de materiais biológicos. Todavia, esta permanece sendo uma questão bastante controvertida, em especial no que se refere ao isolamento de substâncias que já existiam na natureza.

No Brasil, a Lei 9.279/1996, em seu art. 10, IX, veda expressamente que se considerem invenções “seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais27”.

Cumpre ressalvar que como o direito de propriedade intelectual é próprio de cada país, a vedação da concessão de patentes em um não significa que a mesma vedação valerá em outros.

2.2.3 Aplicação industrial

No que toca a aplicação industrial, é de se ver que os maiores interessados em obter monopólio sobre recursos biológicos e MT são grandes laboratórios e empresas farmacêuticas. Entretanto, não é objeto do presente artigo analisar as implicações da concessão destas patentes a este nicho de mercado.

27

Lei 9.279 de 14 de maio de 1996, publicada no DOU em 15.05.1996.

2.3 Biopirataria A biopirataria pode ser definida como “a apropriação de conhecimento e recursos biológicos de comunidades rurais e indígenas por indivíduos ou instituições que procuram o obter monopólio exclusivo (através de patentes ou outros direitos de propriedade intelectual) sobre estes recursos e conhecimento28”

Sempre que se cogita a necessidade de proteção da MT através dos direitos de PI, o que se busca é justamente evitar a biopirataria, assegurando que os benefícios que por ventura se extraiam destes conhecimentos possam ser compartilhados com as comunidades que os desenvolveram.

Não há nenhuma provisão específica no TRIPS a respeito da MT, o que significa que os Estados podem protegê-la através dos direitos de PI já existentes ou mesmo criar um sistema sui generis de proteção, desde que não entre em conflito com a normativa no acordo em questão29.

A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), de 1992, em contrapartida, alerta para a necessidade de se respeitar, preservar e manter o conhecimento, as inovações e as práticas das comunidades indígenas e rurais, e de incentivar a divisão eqüitativa dos benefícios advindos dessas atividades. Veja-se, neste particular, o disposto no art. 8 da CDB:

Artigo 8 Conservação in situ Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso: j) Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqùitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento,

28

HO, Cynthia M. Biopiracy and beyond: a consideration of socio-cultural conflicts with global patent policies. University of Michigan Journal of Law Reform. Michigan: 433, primavera de 2006, pg. 07. 29 WATAL. op. cit. pg. 141.

inovações e práticas;30

Após a adoção da CDB, alguns países andinos se reuniram na adoção da Convenção de Cartagena sobre Acesso a Recursos Biológicos, para estabelecer quais as formas aceitáveis de exploração dos recursos biológicos, cominando penas para a violação de seus termos31.

Muitas outras propostas para proteger a MT têm sido estudadas no marco da Organização Mundial sobre Propriedade Intelectual e da OMC. Avalia-se a possibilidade de estabelecimento de um sistema sui generis de proteção, o qual não entraria em conflito com o TRIPS, uma vez que não restringiria, mas ampliaria a proteção aos direitos de PI, tornando-os aplicáveis a um maior número de hipóteses32.

Há, ainda, propostas de emenda do TRIPS, para incluir entre suas normas previsões específicas sobre MT e recursos biológicos, acrescentando um parágrafo 3º ao art. 27.

Não obstante haja diálogo entre os atores da comunidade internacional sobre o tema, os avanços ainda são incipientes. Ainda que os países em desenvolvimento tenham formulado inúmeras propostas junto à OMC e à WIPO, a falta de coesão em suas ações tem conduzido à ausência de um acordo sobre o tema33.

3. Conclusão

Ante todo o exposto, conclui-se haver a necessidade de se promover a preservação da MT, bem como dos recursos biológicos, seja através dos meios já existentes ou da criação de um novo sistema de tutela, um sistema sui generis, de forma a reconhecer e compensar adequadamente os criadores e possuidores de tais conhecimentos.

30

Convenção sobre Diversidade Biológica, conforme adotada pelo Decreto Legislativo nº2 de 1994. Disponível em: http://www.mma.gov.br/port/sbf/chm/doc/cdbport.pdf 31 McCLELLAND. op. cit.. pg. 02. 32 CORREA. op. cit. pg. 121. 33 HO. op. cit. pg. 08.

Neste cenário, imperiosa a necessidade de os países em desenvolvimento, nos quais se observa uma maior biodiversidade, bem como a maior ocorrência de conhecimentos de MT, de coordenar suas ações no sentido da obtenção das mudanças pelas quais propugnam. Sem isto, dificilmente se chegará a algum acordo sobre o tema.

Referências Bibliográficas:

Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, de 15 de abril de 1994, doc. OMC LT/UR/A-1C/IP/1.

BERMANN, George A.; MAVROIDS, Petros C. (Org.). WTO law and developing countries. Nova Iorque: Ed. Cambridge University Press, 2007. Canada – Term of Patent Protection (Canada – Patent Term) (WT/DS170/AB/R), como adotado em 18 de setembro de 2000.

CHARLTON, Andrew; STIGLITZ, Joseph E. An Agenda for the development round of trade negotiations in the aftermath of Cancun. Genebra: Ed.Report for the Commonwealth Secretariat Library, 2004.

Convenção sobre Diversidade Biológica, conforme adotada pelo Decreto Legislativo nº2 de 1994. Disponível em: http://www.mma.gov.br/port/sbf/chm/doc/cdbport.pdf

CORREA, Carlos María. Propiedad Intelectual y Salud Publica. Buenos Aires: Ed. La Ley, 2006.

CORREA, Carlos Maria. Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights: a commentary on the TRIPS agreement. Reino Unidos: Ed. Oxford University Press, 2007.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 5ª edição, 1977.

HO, Cynthia M. Biopiracy and beyond: a consideration of socio-cultural conflicts with global patent policies. University of Michigan Journal of Law Reform. Michigan: 433, primavera de 2006.

Lei 9.279 de 14 de maio de 1996, publicada no DOU em 15.05.1996.

McCLELLAND, Lynn. Bioprospecting: Market-based solutions to biopiracy. UCLA Journal of Law and Technology. Los Angeles: 2004.

United States Code Title 35, Patent Laws, Rev. 2 de setembro de 2007, disponível em: http://www.uspto.gov/web/offices/pac/mpep/consolidated_laws.pdf .

WATAL, Jayashree. Intellectual property rights in the WTO and Developing Countries. Haia: Kluwer Law International, 2001.

ZHANG, Xiaorui. General Guidelines for Methodologies on Research and Evaluation of Traditional Medicine. Genebra: 2000, WHO/EDM/TRM/2000.1

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.