Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha: política linguística familiar e português como língua de herança em Barcelona

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Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha: política linguística familiar e português como língua de herança em Barcelona Andreia Sanchez Moroni (UNICAMP)1

Resumo: Dentro do contexto das novas migrações internacionais, este artigo se centra na situação dos filhos de brasileiros residentes no exterior e nas iniciativas possíveis para transmitir a língua portuguesa brasileira como língua de herança da família. Tais iniciativas podem ser definidas como micropolíticas linguísticas familiares, criadas pelas famílias e direcionadas a elas. O artigo apresenta a Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha (APBC), iniciativa civil sem fins lucrativos, formada por um grupo de famílias que organiza encontros culturais, de lazer e aulas de português para crianças filhas de brasileiros de 2 a 12 anos, em Barcelona, Espanha. De acordo com dados do IBGE, a Espanha seria o terceiro país que mais recebe brasileiros, atrás dos EUA e de Portugal. Assim, a iniciativa da APBC se insere num marco de planejamento e políticas linguísticas voltadas para as famílias, com importante papel inclusive na reivindicação deste espaço e dos direitos dos brasileiros nascidos no exterior ante órgãos como Consulados Gerais ou o Ministério de Relações Exteriores do Brasil. O artigo pretende documentar a história da APBC e fazer um retrato do modelo pensado por este grupo para transmitir a língua e a cultura do Brasil a crianças brasileiras nascidas no exterior. Mostra, também, como associações da sociedade civil podem, sim, criar espaços e desenhar políticas linguísticas que vão ao encontro de suas necessidades, apostando num modelo de ação local que começa de “baixo para cima” (bottom-up) e abre espaços para que políticas públicas ou governamentais sejam posteriormente criadas para este coletivo. Palavras-chave: políticas linguísticas, políticas linguísticas familiares, português como língua de herança, Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha (APBC). Abstract: In the context of new international migrations, this article focuses on the situation of children of Brazilians that live abroad and the possible initiatives to transmit the Brazilian Portuguese language as the family heritage language. Such initiatives can be defined as micro linguistic policies, created by families and directed to them. The article presents the Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha [Association of Parents of Little Brazilians of Catalonia] (APBC), a non-governmental, 1

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non-profitable initiative, formed by a group of families that organizes cultural and leisure events as well as Portuguese classes for children of Brazilians aged 2-12 in Barcelona, Spain. According to the IBGE, Spain would be the third largest destination of Brazilians, behind the U.S. and Portugal. Thus, the APBC initiative is part of a language planning and policies scenario focused on families, with an important role also in revindicating this space and the rights of Brazilians born abroad before organs like General Consulates or the Ministry of Foreign Affairs of Brazil. The article intends to document the history of the APBC and make a picture of the model designed by this group to convey the language and culture of Brazil to Brazilian children born abroad. It also shows how non-governmental associations can indeed create space and draw language policies that meet their needs, focusing on a model of local action that acts bottom-up to generate spaces where public policies are subsequently created for this collective. Keywords: language policies, family language policies, Portuguese as a heritage language, Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha (APBC).

1. Brasileiros no mundo, língua portuguesa pelo mundo

As migrações sempre existiram. Apesar das fronteiras políticas – e, por extensão, culturais e linguísticas –, do ir e vir de pessoas entre seu território ou estado de origem e outros, os movimentos migratórios sempre estiveram presentes, mesmo antes que o termo globalização fosse cunhado. Neste artigo, para abordar os processos de planejamento e políticas linguísticas familiares que parecem estar se configurando com as peculiaridades destes nossos tempos pós-modernos e de cibercultura entre as comunidades brasileiras da diáspora, gostaria de dirigir a atenção para os fluxos de brasileiros que, desde o final da década de 1990 e durante a de 2000, deixaram seu país natal para se estabelecer no exterior. Tal “fluxo” só é possível como uma tendência, resultado de diversas trajetórias individuais, e nunca é demais recordar que cada vida é em si uma história e as motivações para deixar o país podem ser das mais diversas: buscar empregos e condições de vida melhores; estudar; aventurar-se pelo mundo. Atrevo-me a dizer, pelo coletivo em que me

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centrarei, o dos brasileiros residentes em Barcelona, que muitos dos que se lançaram a esse empreendimento eram jovens, isto é, com idade entre 20 e 30 anos, ainda sem as amarras de uma família – e hoje, talvez uma década depois de iniciada a aventura, já tenham se embrenhado pelas emoções da paternidade, não necessariamente ao lado de outro brasileiro. Em 2010, o censo demográfico, que se ocupa de traçar o perfil da população brasileira em seu território a cada década, pela primeira vez decidiu mapear de alguma maneira o coletivo de brasileiros no exterior, perguntando nas entrevistas feitas nas residências se havia alguém da família morando fora do país (IBGE, 2011, p. 55-56). Embora a iniciativa não tenha necessariamente resultado em números definitivos e absolutos, fornece algumas pistas importantes sobre os principais destinos escolhidos pelos emigrantes:

Figura 1: Dados do censo do IBGE sobre brasileiros residentes no exterior (IBGE, 2011).

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Tais dados revelam que há um grande coletivo estabelecido nos Estados Unidos (23,8% do total de emigrantes), seguido por Portugal (13,4%), destino favorito na Europa, provavelmente pela facilidade de se falar o mesmo idioma, além de Espanha (9,4%) e Japão (7,4%), este último escolhido por um grande número de nipo-brasileiros que parecem se identificar com a cultura do país de origem de seus pais ou avós. Com exceção de Portugal, por razões óbvias, existem cursos de português como língua de herança destinados a filhos de brasileiros em todos estes três destinos principais, bem como em muitos outros países1. Pode-se mencionar, por exemplo, iniciativas como a Brasil em Mente (Nova York, EUA); aquelas filiadas à Associação Brasileira de Iniciativas Educacionais no Reino Unido – ABRIR; a Associação Brasileira de Educação e Cultura – ABEC (Suíça); a Sociedade Amigos do Brasil (Minokano, Japão), entre outras. Algumas existem há mais de uma década, outras, há alguns anos, mas é fato que há vários grupos de alunos funcionando de maneira regular mundo afora, mantidos por associações de brasileiros em geral sem fins lucrativo. Seria possível falar, hoje, de uma língua brasileira global? Pouco provável. Talvez seja possível falar em muitos dialetos de português brasileiro global, cada um com as especificidades do país em que a comunidade de falantes está (e que já não são apenas aqueles onde o português é o idioma oficial), seus tropeços, abraços e rixas com as línguas com que têm contato. Apesar disso, em todos esses casos falamos da língua trazida por uma comunidade de imigrantes brasileiros, que trata de abrir ou manter espaços para usá-la em territórios onde ela não é a língua oficial – onde é, portanto, uma língua minoritária. Dentro desse panorama, quando um pai ou mãe brasileiro decide transmiti-la ao filho nesse outro país estrangeiro, seja qual for, entramos naquilo que nos interessa: o português como língua de herança (POLH). Nesse sentido, embora o que eu trate de documentar aqui seja a maneira como uma dessas comunidades de brasileiros estabeleceu seu planejamento e política linguística, não seria irreal supor que histórias parecidas estejam acontecendo em outras partes do mundo. Ao contrário: temos vários indícios disso.

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Antes de entrar no POLH, é importante mencionar que esse tema parece estar conquistando espaços de discussão e diálogo apenas depois de várias ações para que o fenômeno da diáspora brasileira pelo globo ganhasse nome, forma e força. Dentro do próprio Brasil e de suas políticas públicas existe hoje um campo de discussões e ação no que foi chamado de “Brasileiros no Mundo”. Este é o nome dado a uma página web mantida pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE), onde estão compiladas informações úteis para o coletivo de brasileiros fora do Brasil. É o nome dado à conferência “das comunidades brasileiras no exterior”, com três edições realizadas em 2008, 2009 e 2010, e a quarta agendada para 19 a 22 de novembro de 2013, impulsionada pelo próprio governo. Um dos importantes resultados desses encontros foi a constituição do Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE) – cujos membros são eleitos pela comunidade da diáspora (ver Plano de ação MRE/CRBE) – e permite ao governo brasileiro conhecer melhor as especificidades e demandas de cada comunidade, ao mesmo tempo que dá certa voz política a elas. Apesar de ser impulsionada pelo governo, não é factível que uma estrutura como o CRBE alcance representatividade e efetividade para esse coletivo de cidadãos residentes no exterior se não como reflexo do que ela já engloba, se não como uma tentativa de escalonar as iniciativas locais rumo ao global, de construir tal representatividade de baixo para cima, a partir de iniciativas que já existem, e não o contrário. Até o momento, essa pauta parece estar sendo respeitada e pode indicar um rumo possível para que as iniciativas pelo POLH encontrem sua voz e haja a criação de uma política global, impulsionada pelo governo brasileiro, para o ensino e aprendizado do português entre as crianças brasileiras nascidas ou residentes no exterior – hoje inexistente. Aqui, mais uma vez me atrevo a dizer, pelo foco nos grupos que promovem o Português como Língua de Herança (mas que bem poderiam ser os grupos de capoeira ou outros tipos de organização), que as comunidades brasileiras no exterior podem, sim, estar bastante organizadas quando se trata de zelar pelos interesses de manutenção de sua

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identidade, sua brasilidade. E que estão conquistando espaços de representatividade das instâncias locais rumo às globais. Isso também é parte do que pretendo demonstrar ao contar a história da Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha (APBC).

2. Globalização e regionalização, aldeia global e redes sociais: um novo caldo de cultivo

Se, por um lado, podemos pensar que o número de pessoas com maior acesso a viagens e a mesma possibilidade de imigrar é maior que em outras gerações, de que temos acessos às mesmas marcas de roupas e eletrodomésticos, programas de TV ou cadeias de alimentação nas mais díspares capitais do mundo, sabe-se que junto a esse sentimento de globalização surgem também movimentos que desejam marcar as diferenças regionais, o que pode ser estendido às questões de identidade (HALL, 2011). Assim, talvez não seja de surpreender que em Barcelona, segunda maior cidade da Espanha, houvesse um grupo de pais e mães brasileiros (muitos dos quais correspondiam aos “jovens” que emigraram no final da década de 1990 e início da de 2000, agora casados, em muitos casos com cônjuges de outra nacionalidade) que começaram a interagir por meio de uma comunidade criada em uma rede social, a qual marcava claramente esse aspecto de pertencimento, ressaltando a origem local comum: brasileiros residentes em Barcelona. Isso aconteceu nos anos de 2006 a 2008, entre os usuários frequentadores do Orkut – muito popular entre os brasileiros e, para estes, predecessor do Facebook. A comunidade em questão é a “Brazucas em Barcelona” e, apesar de ainda existir e contabilizar 7738 membros em 23 de março de 2013, não contava com atividade significativa nessa data, já que a maioria dos usuários abandonou o Orkut em detrimento de outras redes sociais, embora seus perfis continuem a existir. Outras comunidades de residentes na cidade nesse intervalo de 2006 a 2008 também podem ser citadas no Orkut, como “Clube da Luluzinha em Barcelona” (26 membros em 23 de março 2013), especificamente de mães brasileiras, mas aquela que se

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consolidou como verdadeiro ponto de encontro virtual para questões das mais variadas parece ter sido realmente a Brazucas. Os temas postados compreendiam programação cultural; dúvidas sobre trâmites, documentação, obtenção de vistos de trabalho e residência; classificados; preços de passagem aérea para o Brasil e um longo etc. Dentro da comunidade, começaram a surgir também tópicos relacionados às famílias e aos filhos, um desejo comum de que essas pessoas e suas crianças estivessem em contato real, e não só virtual, umas com as outras. Pode parecer estranho que a semente de uma associação educativa e cultural esteja dentro dos computadores, a partir de afinidades descobertas pela internet e vínculos iniciados ali. Mas não é. É parte do que Marshall McLuhan intuiu ao descrever o fenômeno de aldeia global já com os primeiros meios de comunicação em massa (MCLUHAN, 2005). A grande inovação da internet, da web 2.0 e das redes sociais foi permitir que os espectadores, consumidores dessa cultura global, se transformassem também em protagonistas, criadores de conteúdo, verdadeiros sujeitos com possibilidades reais de interagir entre si – e de construir espaços reais, não só virtuais, de representatividade e poder (UGARTE, 2008). A APBC, como fruto desta era que vivemos, começou assim. Em 2007, Roberto Tadeu Nora, solteiro, um dos pais da “Brazucas em Barcelona”, desejando encontrar famílias (fossem elas tradicionais, monoparentais, brasileiras, mistas, nucleares ou expandidas) que também quisessem contratar uma professora para dar aulas lúdicas de português a sua filha Bárbara, então com seis anos, decidiu organizar um churrasco em sua casa e estender o convite à comunidade do Orkut, o que rendeu uma reunião com cerca de 80 pessoas. Ele deu início, assim, a uma série de sete encontros-almoços informais para as famílias de brasileiros, nesse ano e no seguinte, os quais antecederam os encontros sociais futuramente organizados pela APBC.1 Paralelamente, nas conversas entre uma feijoada e um churrasco, iam surgindo dúvidas sobre como fazer para que as crianças aprendessem a falar e usar o português brasileiro, bem como soubessem mais sobre a cultura do Brasil. Um pai se preocupava

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porque a filha não sabia escrever em português e não conseguia conversar por chat com a família no Brasil. Uma mãe queria saber o que fazer para que seu filho de dois anos também falasse em português. Em casa, as crianças misturavam castelhano, catalão e português – o que fazer? Será que isso era normal? Os encontros-almoços transcorreram ao longo de dois anos, enquanto as ideias permaneciam de molho e amadureciam, atravessando os frequentadores dos encontros, os quais, apesar de simpatizarem com as mesmas, não haviam chegado ao ponto de formalizar alguma iniciativa no sentido educacional – embora elas estivessem presentes. Segundo Tadeu, desde o primeiro churrasco, sua intenção era formar um grupo de crianças para que sua filha pudesse frequentar aulas de português de modo que o custo de aulas em grupo fosse menor que o de aulas particulares e mais viável para as famílias envolvidas. Ele também já previa que, caso fosse fundada uma associação, seria mais fácil conseguir apoio institucional para esse tipo de atividades. Aos poucos a questão avançava e outro espaço foi criado: no Orkut, essas famílias criaram uma comunidade própria, mais específica para os que tivessemm filhos: “Brasileirinhos na Catalunha” – que contabilizava 96 membros remanescentes em 07 de abril de 2013. No final de 2009, graças mais uma vez à internet, o desejo de que houvesse algum tipo de curso de português para crianças voltou à pauta de um grupo de discussão mantido por e-mail. Tratava-se da lista de distribuição de mensagens da APEC, Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na Catalunha, organização da sociedade civil que congrega pesquisadores e estudantes brasileiros em geral morando temporariamente na Catalunha por motivos acadêmicos. A APEC é uma organização única do gênero na Espanha e realiza desde meados da década de 1990 um seminário anual que dá aos pesquisadores oportunidade de publicar artigos e difundi-los entre a comunidade científica, ampliando a visibilidade de suas pesquisas, promovendo o encontro e o intercâmbio acadêmico e também oferecendo apoio e informação aos que estão chegando.

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A partir da troca de e-mails, a diretoria da APEC acolheu em sua reunião mensal um grupo de pais interessados na criação das aulas de português para crianças e abriu espaço para que o tema fosse discutido. Uma das mães manifestou interesse em ser a educadora do grupo. Embora ainda faltasse encontrar um espaço para que as atividades ocorressem, o momento de formalizar essa associação de famílias havia chegado: a semente da Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha havia sido plantada.

3. A Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha

A primeira ideia para viabilizar as aulas de português dos quatro pais que constituiriam a diretoria de estreia da APBC foi procurar o apoio do Centro de Cultura Brasileira de Barcelona (CCBB), órgão vinculado ao Consulado Brasileiro, com espaço próprio e salas de aula onde se realizavam aulas de um curso regular de português para adultos. No entanto, o espaço para as aulas das crianças não pôde ser cedido naquele momento. O diretor do CCBB recomendou à APBC que as atividades tivessem início como um projeto piloto e, uma vez que o mesmo já estivesse estabelecido, a APBC poderia encaminhar ao MRE, via CCBB, um pedido para receber ajuda financeira.2 Através de contatos anteriores estabelecidos por membros da APEC, conseguiu-se o apoio da Associació Cultural La BiblioMusiCineteca, uma biblioteca particular mantida pelo Sr. Ferrán Baile. Com muita simpatia, o primeiro grupo de crianças brasileiras, com idade entre dois e cinco anos, passou a se reunir para suas “aulas” semanais aos sábados nas frias manhãs de janeiro de 2010 e aprenderia cantigas de roda e outros conteúdos de educação pré-escolar em português, como números, formas, cores, ouviria histórias, conheceria o coelho da Páscoa, o saci, o Dia do Índio, desenhos animados etc., a partir de uma abordagem lúdica. Como não havia apoio financeiro, as famílias participantes concordaram em arcar com uma mensalidade que cobriria os custos com materiais e professor. O espaço foi cedido de forma gratuita.

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Batizado de Projeto Educativo-Cultural Brasileirinhos, a primeira grande ação da APBC começava, assim, a caminhar. Paralelamente, as atividades sociais da Associação iam ganhando forma, de acordo com as intenções registradas no estatuto: - Fomentar a integração entre as famílias com crianças de origem brasileira; - Promover atividades socioculturais entre as famílias associadas; - Promover o ensino da língua portuguesa entre as crianças e o conhecimento da identidade e da cultura brasileira, através do Projeto Educativo-Cultural Brasileirinhos; - Promover a extensão, integração e intercâmbio cultural entre Brasil e Catalunha (Estatuts de l’APBC, Capítol I, Article 2, 2009, 1).

O calendário incluía participação em eventos culturais como a parceria com o grupo PROPERS, iniciativa da UNESCO em Barcelona: a APBC foi convidada para participar na Festa das Américas em 2011 e posteriormente a PROPERS cedeu o espaço de sua sede para que a festa junina da APBC se realizasse nesse mesmo ano. As crianças também participaram do festival musical Tradicionàrius ao lado da cantora e compositora Anna Ly, que em 2012 se tornaria uma das educadoras das aulas de português, e foram promovidos almoços para as famílias e um grande número de atividades sociais. Pode-se dizer que, em um ano, essa política linguística de transmissão do português como língua de herança voltada para as famílias e por elas concebida estava consolidada.

4. Português como língua de herança: uma política linguística para as famílias

Embora não houvesse nos discursos da Associação – blogue, e-mails informativos, tópicos em fóruns de discussão e mesmo nas conversas entre os associados – o uso do específico do termo “planejamento” ou “políticas linguísticas”, vale recordar que políticas linguísticas existem mesmo quando não são explícitas ou estabelecidas pelas autoridades e podem ser deduzidas a partir das práticas, ideologias e crenças das pessoas (MCCARTY, 2011). Com a curta história da APBC, foi possível observar como uma política linguística

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pensada pelas famílias e para elas foi se configurando para a transmissão e manutenção do português como língua de herança entre a comunidade de imigrantes brasileiros de Barcelona, saindo de dentro das casas e das famílias para ser exercida por um grupo maior de pessoas, do micro ao macro ou do local rumo ao global: no caso, a comunidade brasileira da cidade de Barcelona que se estabeleceu em torno da APBC. Tal política, não sejamos ingênuos, vai muito além de um curso de português de uma hora e meia semanal dirigido a crianças. As aulas de português existem e foram viabilizadas pelo grupo de pais, fazendo parte da trajetória do grupo: depois do momento de consolidação na BiblioMusiCineteca e de uma passagem de um ano e meio pelo espaço do CCBB, hoje já são três as turmas em funcionamento no Centre Cívic Parc Sandaru, um dos muitos espaços culturais mantidos pela prefeitura de Barcelona, onde estão divididas por faixa etária: 2-3 anos, 4-5 anos e 6-11 anos, para crianças já alfabetizadas. Mas talvez mais importante que a conquista desse espaço formal e de apoios institucionais, seja reconhecer que o curso se configura como uma extensão do que estas famílias já desejam e exercem dentro de casa, se expandindo para outra camada da cebola do planejamento e das políticas linguísticas mencionada por MCCARTY, onde se “revelam espaços de ação em que os agentes locais implementam, interpretam [...] iniciativas de políticas [linguísticas] variadas” (MCCARTY, 2011b, 109). Ou seja: o planejamento linguístico das famílias passou a ser implementado em uma nova instância, e isso não se deu simplesmente através da sala de aula. Para explicar em linhas gerais como ocorreu a implementação dessa nova instância, é fundamental ressaltar o espaço que o surgimento da APBC criou para a troca, o contato e os vínculos entre pais e mães que falam português com suas crianças, principalmente em toda a atividade social que transcorre fora da sala de aula. Essas famílias tratam de transmitir às crianças seu legado de brasilidade, seja através da culinária, dos contatos frequentes com os parentes via internet, de ferramentas culturais como músicas, livros ou tradições que marcam Carnaval, Páscoa, Natal. E sabem, ainda que intuitivamente, que parte dessas manifestações só são possíveis numa coletividade, pois “a cultura é um sistema compartilhado de valores, de

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representações e de ação [...] A cultura, assim, não é uma herança: ela é uma produção histórica, uma construção discursiva” (MAHER, 2007: 261). E essa cultura brasileira em Barcelona, focada especialmente nas crianças e na transmissão desse legado, com a atuação da APBC também passou a ser algo que se conjuga no coletivo. Por isso, nessa fórmula e na política linguística dessa comunidade, tão importante quanto o espaço formal de aprendizado da língua portuguesa em sua variante brasileira são os encontros culturais e de lazer organizados para sócios e simpatizantes, que incluem Carnaval infantil, festa junina, festas de aniversário, aula aberta de capoeira, teatro, narração de histórias, oficinas de artesanato, idas a espetáculos, almoços, piqueniques, entre muitos outros. Por um lado, alguns desses eventos são organizados com a clara finalidade de rememorar e manter tradições do Brasil (como o Carnaval e a festa junina), já outros são criados aproveitando alguma oportunidade que a própria cidade oferece (eventos culturais que envolvem música e teatro em português, por exemplo), e há ainda os encontros informais entre as famílias (almoços e festas de aniversário). Em todos, além de “compartilhar e (re)produzir” cultura, essas crianças têm oportunidades multiplicadas de estar em contato com outros falantes da língua e veem a cultura em cuja produção discursiva a família deseja que se insiram representada positivamente (a qual, lembremos, não deixa de ser a de uma minoria na Catalunha). Veem, também, que não são, por exemplo, a única criança da escola com a excentricidade de ter uma mãe ou pai brasileiro, o que ajuda a diluir possíveis sensações de estranhamento e vergonha por ser diferente, tendo mais oportunidades de identificar-se (e desejar fazê-lo) com este coletivo e este discurso de brasilidade. E, não menos importante, têm a oportunidade de criar vínculos com estas pessoas, este contexto, esta cultura. Pois, afinal, um “aprendiz de língua de herança” (ou “heritage language learner”) é isso: alguém que tem uma conexão pessoal com um grupo étnico-cultural particular (FISHMAN, 2001) ou proficiência na língua adquirida de um modo natural, mais do que em sala de aula (VALDÉS, 2001) – deixaremos os méritos de mergulhar nas nuances da questão

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para Beaudrie (2012). No entendimento intuitivo e inato que os membros da APBC parecem ter da questão, a política linguística por eles coreografada a partir de improvisações livres, porém muito bem fundamentadas, parece ter suficientes elementos para ser bem-sucedida, ao menos no que diz respeito a desenvolver essa conexão pessoal e oportunidades de aprendizado naturais, contextualizadas, dentro das práticas linguísticas da comunidade. Nesse ponto, também é interessante considerar o que Beaudrie, Ducar e Relaño-Pastor (2009) observaram ao lidar com alunos adultos que desejavam se matricular em cursos de espanhol nos EUA, idioma que em realidade era sua língua de herança, lançando aqui a hipótese de que talvez a situação se aplique a outros contextos: os alunos de espanhol como língua de herança têm um perfil diferente dos de espanhol como língua estrangeira, e suas necessidades de aprendizado estão intimamente relacionadas ao desejo de se reconectarem com seu legado cultural e aprenderem mais sobre suas perspectivas e práticas. Nesse contexto, a identidade cultural é a peça-chave, e não só o pano de fundo, do desenvolvimento linguístico (HE, 2006, 7), e torna-se fundamental explorar a identidade cultural desses alunos tanto dentro como fora da sala de aula, já que suas necessidades relacionadas a ela não podem ser satisfatoriamente atendidas num curso de espanhol como língua estrangeira. Considerando o relatado por Beaudrie (2012), a política linguística das famílias da APBC e suas aulas de português para seus neo-brasileirinhos parecem até uma ação preventiva iniciada em idades ainda muito tenras para que as necessidades acima sejam atendidas. Cultivam-se essas conexões pessoais com um grupo cultural; apesar do momento semanal em sala de aula, procura-se que a proficiência na língua seja aprendida de maneira natural, tanto dentro de casa como multiplicando-se as oportunidades de contato com falantes; a identidade cultural é o que norteia certas práticas linguísticas tanto dentro como fora de sala de aula e é vivida na prática; e, no futuro, não será preciso se “reconectar” com o legado cultural, pois a conexão já está aí.

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Essa última constatação, no entanto, abre portas para outras configurações: se a brasilidade já faz parte das identidades destes sujeitos, passa a existir a possibilidade de abdicar ou rejeitar tal legado. Pois, lembremos, eles não são exclusivamente brasileiros: são sujeitos que estão crescendo na Catalunha, muitas vezes com pai ou mãe de uma terceira nacionalidade, que não a brasileira ou espanhola3, com histórias de vida que já percorreram outros territórios identitários. Se essas third culture kids (POLLOCK; REKEN, 2009) ou sujeitos híbridos (BURKE, 2003) irão se liquifazer (BAUMAN, 2003) em seu caldo de cultivo e a brasilidade não irá caber no copo ou terá que ficar escondida no fundo da fôrma é algo que só o tempo dirá. O que se sabe por ora, com certeza, é que em Barcelona estão tratando de mantê-la como ingrediente em certas receitas de família desta pós-modernidade.

Notas

1) Informações fornecidas por Roberto Tadeu Nora em entrevista à autora em 6 de abril de 2013. 2) Os quatro membros-fundadores foram: Roberto Tadeu Nora da Silva (presidente); Marina Simone Dias (vice-presidente); Edilaine Aguiar (tesoureira) e Andreia Moroni (secretária). A ata fundacional da APBC está datada de 26 de setembro de 2009. A documentação foi apresentada para registro e obteve aprovação da Direção Geral de Direito e Entidades Jurídicas (Direcció General de Dret i d’Entitats Jurídiques) do Governo da Catalunha em 27 de julho de 2011, sendo inscrita no registro de Associações do Governo da Catalunha (Servei de Registre i Assessorament d’Entitats de Dret Privat) em 19 de agosto do mesmo ano, segundo documentação oficial à qual a autora teve acesso. Paralelamente, a então professora e coordenadora das aulas de português, Marina Simone Dias, redigiu e enviou o pedido para ajuda financeira do MRE em nome da APBC em 2010. A APBC recebeu verba do Ministério de Relações Exteriores do Brasil para cobrir custos com professores e material didático nos anos de 2011 e 2012. O diretor do CCBB nesse período foi o prof. Wagner Moura. 3) Apesar de mencionarmos aqui o conceito de “nacionalidade”, que pode ser interpretado como oficialmente pertencente a um Estado, sabemos que muitas vezes um Estado político engloba mais de uma nação. Com isso, pontuamos que somos conscientes das grandes diferenças entre a identidade catalã e a espanhola e da especificidade de cada um destes legados.

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Referências ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO E CULTURA (ABEC). Disponível em: . Acesso em: 09 out 2013. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE INICIATIVAS EDUCACIONAIS NO REINO UNIDO (ABRIR). Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2013. ASSOCIAÇÃO DE PAIS DE BRASILEIRINHOS DA CATALUNHA (APBC). Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2013. ASSOCIAÇÃO DE PESQUISADORES BRASILEIROS NA CATALUNHA (APEC-BCN). Disponível em: . Acesso em: 06 abr 2013. ASSOCIACIÓ CULTURAL LA BIBLIOMUSICINETECA. Disponível em: . Acesso em: 06 abr. 2013 BAUMAN, Z. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BEAUDRIE, Sara M. Introduction: Developments in Spanish Heritage Language Assessment. Heritage Language Journal. Vol. 9, nº 1, primavera de 2012. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2013. BEAUDRIE, S.; DUCAR, C.; RELAÑO-PASTOR, A. “Curricular perspectives in the heritage language context: Assessing culture and identity”. Language, Culture, and Curriculum. Vol. 22, nº 2, pp. 157-74, 2009. BRASILEIROS NO MUNDO. Disponível em: . Acesso em: 06 abr 2013. BURKE, P. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. BRASILEIRINHOS NA CATALUNHA. Comunidade no Orkut. Disponível em: . Acesso em: 06 abr. 2013. BRAZUCAS EM BARCELONA Comunidade no Orkut. Disponível em: . Acesso em: 06 abr. 2013.

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