ATEOLOGIA BÍBLICA - ENSAIOS DE EXEGESE CRIATIVA

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ATEOLOGIA BÍBLICA ENSAIOS DE EXEGESE CRIATIVA

Anderson de Oliveira Lima

1 GÊNESIS

Os princípios Ao abrir a Bíblia o leitor encontrará, logo nas primeiras palavras, o princípio. Princípio de quê? Princípio de tudo? Princípio do tempo? Da matéria? Não o princípio de Deus, pelo menos. Como agente criador ele está fora dessa delimitação, vive acima da ininterrupta cronologia que aí conhece seu início. E que o leitor não se pergunte sobre o que era de Deus antes desse princípio. Lembremo-nos da resposta que santo Agostinho (não) dá a essa mesma questão: “Preparava o inferno para os que perscrutam esses mistérios profundos”.1 Diz-se que Deus preexiste à existência, que é causa incausada, que está à parte da matéria; o panteísmo é assim interditado para qualquer teologia bíblica. Mas essas palavras ainda são vagas, temos ciência. Fato é que a resposta à pergunta sobre o que era de Deus antes do Gênesis não existe e, surpreendentemente, perguntas que expõe a incompletude das páginas bíblicas ainda irritam alguns de seus maus leitores. Então, para não seguirmos sem nada nas mãos ofereço respostas que partem do ponto de vista do leitor: o princípio de Gênesis é o começo do livro (ou dos livros se considerarmos o cânone), o princípio de um conteúdo, o ponto de partida das coisas que na sequência do texto hebraico serão apresentadas, o princípio de uma narrativa compósita que influenciou o mundo e de muitas leituras que, como essa que empreendemos, criam mundos ficcionais e alternativos sempre com vistas a tocar o real. Na leitura bíblica as respostas fáceis nos escapam, como vimos logo nas primeiras palavras lidas. Acostumemo-nos, para ler a Bíblia apropriadamente, com sua peculiar

laconicidade, com sua desconcertante incompletude, com seu estilo conciso, direto e autoritário.2 Será assim o tempo todo. Os autores bíblicos dizem o que têm pra dizer e o resto é por conta do leitor, que em não raras ocasiões se encontrará no escuro. Para aqueles de seu tempo, os destinatários originais (leitores implícitos ou modelos), parte dessas lacunas eram preenchidas por saberes comuns, cotidianos, presentes na cultura, interdiscursivos. Mas para nós, que somos reais e estamos tão distantes espacial e temporalmente de qualquer desses leitores virtuais, muitas dúvidas persistirão. Pesquisas sempre podem ajudar: história de Israel, arqueologia da terra santa, sociologia do mundo bíblico, comentários e mais comentários... Entretanto, algumas lacunas, algumas encruzilhadas interpretativas, alguns mistérios filológicos seguirão insuperáveis. Desde o princípio o livro, se lido, anuncia o fracasso das pretensões dogmáticas. E então? Usemos mais a imaginação, se é o que temos (e não é pouca coisa). Acrescento de antemão uma instrução aparentemente banal que, todavia, é fundamental para lidar livremente com um patrimônio cultural e religioso (sagrado para muitos) tão gasto: empreguemos a imaginação sem culpa, sem medo de incorrer em pecados e acabar no inferno, sem medo de criar heresias e sermos excomungados, pois são exatamente esses espaços de sentidos incertos, indomáveis, que tornam a Bíblia um livro relevante para cada nova geração de leitores e não sua literalidade, sua historicidade, sua mensagem supostamente verdadeira, unívoca. Esta verdade, aliás, só existe para aqueles que usaram sua autoridade legitimadora para canonizar suas próprias leituras em detrimento de outras. Os heréticos de todas as gerações, bons e maus leitores, foram sempre livres leitores, intérpretes autônomos, recriadores das narrativas sagradas, biblistas razoavelmente emancipados das algemas eclesiásticas. Se hoje apagaram-se as fogueiras dos legitimadores, dos canonizadores, dos repetidores de catecismos, daqueles que antes também foram inquisidores e excomungadores, aproveitemos a ocasião. Rompamos (ainda que tardiamente) com a enrijecida tradição de leitura bíblica e criemos nossas boas heresias urgentemente; encontremos nosso princípio: princípio da leitura pessoal, independente, autônoma, descompromissada, despretensiosa, o princípio de uma arte exegética criativa.

O enfado de um Deus único

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No primeiro versículo da Bíblia o que tem princípio são os céus (no plural) e a terra. Se Deus realmente os traz à existência neste primeiro versículo e devemos supor que o enunciado do segundo lhe segue cronologicamente, concluímos que Deus faz seu trabalho criador gradualmente. Acontece que no segundo a terra não está pronta: ela é uma matéria amorfa, uma massa inabitável. O sopro (ou o espírito) de Deus ainda precisa trabalhar essa matéria-prima para que ela possa ganhar forma, utilidade e, depois, receber a vida. Nessa estranha e brevíssima cosmogonia parece que céus e terra não estão completamente separados. Os elementos se misturam, o espaço, o vazio não marca os limites das coisas. Essa fase protocriacional se caracteriza pelo estado caótico; não há distinção entre sagrados e profanos, tudo é ainda potencialidade. O primeiro dia do trabalho divino começa (no versículo 3) com a criação da luz. Para um mito das origens cosmogônicas a aplicação dessa mensuração cronológica cria mais dificuldades que soluções. O dia de trabalho divino não deve corresponder às nossas 24 horas; neste momento sequer o sol existe para regular o relógio primitivo que tornaria inteligível essa mensuração. O regime de trabalho criacional parece dar a medida do dia. A luz, primeira obra dentro desse padrão trabalhista divino, é um elemento de simbologia grandiosa: é valor eternamente eufórico, sinal da presença divina no espaço de sua ação, elemento revelador que se sobrepõe às trevas da inatividade e abre os afazeres da mente criativa. O sol, no imaginário do autor bíblico, será um luminar que também se levanta quando pela manhã a luz divina e primeva (que independe dele) já desempenha sua função reveladora. Lendo também essas linhas Jack Miles, não temendo violar os limites da ortodoxia, aponta o estranho fato de o anônimo narrador bíblico nos colocar diante de um Deus que fala sozinho.3 Não temos, a não ser que polemizemos acerca do plural do próprio substantivo elohim, qualquer informação sobre outro ser com o qual Deus comunga. Quando elohim fala, ordena a criação a algum outro ser? Se dirige a algum deus menor, a um anjo operário ou demiurgo? Agora estão abertas possibilidades interpretativas que seguem pelas veredas politeístas, mas elas se tornarão inadequadas se pretendemos seguir lendo a Bíblia para além de seu primeiro capítulo. A intertextualidade bíblica nos limita dentro das fronteiras do monoteísmo, pois ao longo das próximas páginas o mesmo Deus que aqui é plural ganhará outros nomes e será domesticado pelo monoteísmo de redatores, copistas, tradutores, editores etc. Assim sendo, optamos por ler essa passagem dentro de

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alguns limites intertextuais que nos mantém em diálogo com a maior parte dos leitores interessados na Bíblia. Sendo assim, ousemos no monoteísmo: sem iguais, sem vida social, o Deus bíblico cumpre antes do tempo as condições de um monoteísmo que, de tão enfadonho, o faz criar um mundo repleto de seres inferiores que lhe trarão preocupações, provocarão sua ira e ameaçarão constantemente seu estado ataráxico. Epicuro, o pensador grego, diria que essa ação criadora que aqui começa e cujos resultados se mostrarão muitas vezes desastrosos não parece digna de um ser divino, bem-aventurado. Ele escreveu: “Aquele que é plenamente feliz e imortal não tem preocupações, nem perturba os outros; não é afetado pela cólera ou pelo favor, pois tudo isso é próprio da fraqueza”.4 Que inteligência superior cria o risco de crises e preocupações para si mesmo? Como um ser que por definição devia ser completo cria algo novo como que para suprir alguma falta? Mais lacunas. Conclui-se que o Deus bíblico quer se arriscar e parece não prever as consequências de seus atos. Paradoxalmente o Deus que os homens consideram onisciente vai criar e depois se arrepender de ter criado; vai destruir quase tudo e se arrepender de ter destruído. Noutras palavras, voluntariamente ele abrirá mão da paz edênica que lhe pertencia, da ataraxia que é condição da felicidade, da bem-aventurança epicurista, para sofrer a vida como todos nós sofremos, marcada pela incerteza do devir. Como qualquer pai que decide gerar filhos sem negligenciar sua formação, Deus escolhe as alegrias e os desprazeres erráticos daqueles que tem vidas frágeis sob seus cuidados. Ao arriscar comparar a ação perigosa da criação com a decisão de um pai, ofereço uma primeira imagem antropomórfica do Deus bíblico, uma imagem que alivia pouco a árdua tarefa que se impõem todos aqueles que, lendo a Bíblia, ambicionam conhecer Deus e suas vontades para além da literariedade. No texto bíblico Deus fala sozinho, já vimos. Suas palavras (“Haja luz”) não são parte de um diálogo; não há um interlocutor explícito no nível narrativo. Também não é uma ordem dada a si mesmo e não poderemos nos assegurar de que foram dirigidas a outrem. Mesmo assim a monotonia do único Deus, o tédio monoteísta antes da criação, não é o motivo de sua primeira fala. Ele fala sozinho e fala para criar, para trazer à existência o que no silêncio não existe. Junto à luz ele cria o som, cria a voz, cria a linguagem, um atributo divino poderoso que é capaz de fazer ser o que antes não era. A 4

linguagem faz existir e produz ordem, opera eficazmente contra o caos da agramaticalidade. Nas trevas só o silêncio que aqui é sinônimo de inexistência. Northrop Frye afirmou que os textos bíblicos são de um período da história humana (fase hieroglífica ou metafórica) em que as palavras ditas eram encaradas como realidades concretas:5 era tempo oralidade, de palavras mágicas, de encantamentos ativados por chaves verbais secretas. Não por acaso os homens temiam as maldições proferidas e ansiavam por palavras abençoadoras, assim como supunham que os nomes dados aos filhos condicionavam o futuro, atraíam a boa sorte, moldavam personalidades. Não é de admirar que no texto o próprio Deus faça uso desse poder realizador da palavra para trazer tudo à existência. Na Bíblia aquilo que não foi nomeado não existe; o verbo que não se fizer carne não produz salvação.

Os trabalhos e os dias Além do laconismo bíblico já mencionado, do estilo econômico, sintético, que deixa o texto aberto e pede constantemente a participação do leitor, 6 a abordagem do primeiro capítulo de Gênesis também é suficiente para exemplificar o uso consciente de repetições que é característico da antiga literatura hebraica e serve para dar ao texto uma estrutura organizacional, uma forma que é tranquilizadora, digna de um mundo criado. Aqui várias vezes Deus fala para criar, dá nome às suas obras, inspeciona-as e atesta sua qualidade. O narrador, sem as modernas preocupações com ineditismo, sem criar neologismos, sem notas ou glosas explicativas, contenta-se em oferecer o mínimo e não se envergonha do vocabulário limitado. Ele é objetivo, incisivo, seguro, e com certos refrãos vai ritmando o texto ao colocar sempre as mesmas marcas verbais que emolduram os dias da criação com bastante clareza. Se o leitor moderno não se deixar levar pelas expectativas geradas por seus hábitos modernos de leitura, se aceitar se submeter ao ritmo proposto pelo narrador bíblico, poderá notar que o mito da criação reproduz literariamente a rotina do trabalhador braçal em que o autor converteu o Deus dos hebreus no mundo do texto. Mais que se prender aos detalhes o leitor do relato da criação deve seguir com a leitura ininterruptamente, de preferência em voz alta, alterando timbres e intensidades entre frases do narrador e do protagonista divino, respirando um pouco ao final de cada dia de trabalho de elohim para 5

sentir na voz, no próprio corpo, a canseira do trabalha manual, rotinizado e desgastante que o agente criador revive em gênero mitológico. Testemunhamos

Deus,

trabalhador

hábil,

criativo

e

vigoroso

agindo

ininterruptamente, um artesão dando forma e utilidade àquela matéria antes informe. Os desafios que se impôs são enormes, e quando ao final de cada dia o narrador repete que houve tarde e houve manhã – assim rápido, seco, sem que exista nada entre estes os dois códigos cronológicos – sentimos quão pouco tempo tem para si o Deus no papel de trabalhador. Entre cada tarde e nova manhã deve se esconder um tempo obscuro, fugidio, tempo cuja duração parece ínfima, cujo único propósito é restaurar as energias para uma nova jornada. Nós o sabemos: para o trabalhador entre tarde e manhã é tempo de sono, tempo de não-vida. Nada de distrações, não há espaço para entretenimentos, não há disposição para os prazeres nem lugar para fruições que não aspiram salários... O Deus único do monoteísmo judaico-cristão, assim como o workaholic moderno, não tem com quem se divertir e sequer imagina a vida fora de seu iluminado ateliê. Ali imobilizado, a vida do trabalhador, mesmo do divino, se resume àquelas horas de labor sedentária. Ele abdica da sua vida presente por uma possível família feliz no futuro; se alimenta de esperança. O dia não é seu, sua vitalidade não lhe pertence, seu corpo maculado cujas mãos ásperas mal conseguem se livrar da argila que manuseia horas a fio é apenas um instrumento feito insensível pelo hábito. Tudo se resume a dar forma a um mundo. É como a vida de todo aquele que só se ocupa em gerar vida para outros, que não sabe ser se não for o ser-para.

O ciclo vital Atendo-nos às tarefas realizadas pelo Deus hebreu nos seus primeiros quatro dias de trabalho é possível notar que há uma ação que aquele artesão divino executa reiteradamente: ele separa. Robert Alter também notou (e antes de nós) a importância do verbo separar nos primeiros 19 versículos da Bíblia Hebraica7 e, tomando essa ação como chave de leitura para esta porção textual, conclui-se que a obra criacional dos primeiros dias da semana é mais organizadora ou delimitadora do que propriamente criadora. A massa informe descrita brevemente nos primeiros versos já continha a matéria-prima para tudo o que deveria existir; dela o criador extrairia os elementos, distinguiria as 6

substâncias, delimitaria os mundos, esculpiria as formas, formataria os objetos, enfim, produziria um cosmos autossustentável capaz de receber a vida em suas múltiplas formas. Elohim separa a luz das trevas, os céus da terra, separa as águas superiores das inferiores, o seco do molhado, o dia da noite, o sol da lua, as estações, os dias, os anos... E quando o nosso mundo está pronto o solo, autônomo como deveria ser, passa a gerar vegetação. Deus supervisiona a separação das espécies e em cada uma o funcionamento do ciclo vital que nelas já funcionava em uma versão primeva, prototípica: sementes que produzem rebentos, que se tornam árvores, que amadurecem, geram frutos, que também percorrem seu ciclo, envelhecem e morrem. Quando sem vitalidade se fundem à terra e alimentam a mãe que antes os alimentou, deixam em seu ventre novas sementes que, segundo suas espécies, gerarão novos rebentos. Tal é o método da natureza, eficiente e capaz de se aplicar com resultados promissores a todas as demais espécies que o criador ainda tinha que trazer à existência.8 Feitos os testes iniciais Deus viu que tudo o que realizara até ali era bom. O bem sucedido criador podia passar ao próximo estágio na manhã seguinte chegando à vida animal, ainda mais sofisticada, mas também gerada de uma separação. Porções pequenas da matéria original surpreendentemente ganhariam vida. Com os ponteiros de seu relógio girando num andamento único, num adágio sem igual em que cada segundo é milenar, Deus faz surgir os animais marinhos, as aves, os répteis, os animais selvagens, os rebanhos domésticos... Uns mais fortes, outros mais belos; uns mais ágeis, outros mais astutos; a vida animal é multiforme, idiossincrática, desigual, hierárquica, aristocrática. Elohim segue criando e separando. Se antes foi de se estranhar o fato de Deus falar sozinho, maior surpresa deveria nos causar o momento em que ele fala com os bichos (Gn 1.22); mas já sabemos que ele está pondo em ação sua já citada palavra performativa, a enunciação que cria a verdade, o verbo que faz ser.9 Ele ordena aos animais que se multipliquem, garante-lhes autonomia por meio da fecundidade. Têm os animais o instinto que os faz procriar e obrar em favor da manutenção da própria vida, e mesmo quando são vencidos pela morte contribuem, entregando a matéria de seus corpos, com a continuidade da vida no planeta, com novos estágios do interminável ciclo em que todos estamos envolvidos. O criador, trazendo à existência seres inseridos num sistema autossustentável, não precisaria mais se ocupar com cada espécime individualmente. Criados os primeiros macho e fêmea de cada 7

espécie, os quais traziam em seus corpos versões orgânicas, novas e mais elaboradas das sementes e da terra fértil, já não seria necessário que Deus emitisse sua voz criadora a todo instante, nem seria preciso atuar dia após dia como supervisor para que as coisas não saíssem dos trilhos. O mundo natural não foi arquitetonicamente construído para funcionar como um panóptico; ele é vivo e independe do olhar onisciente, do agir onipotente, da supervisão onipresente; nós o chamamos de ecossistema.

Criaturas divinas? Do geral ao específico, das galáxias ao indivíduo, segue em sua labuta o divino artesão. Na terra se fez assim: primeiro a vegetação, depois a vida animal “e tantas outras coisas que fazem as nossas delícias”.10 Por fim os homens, ápice da criação, ponto mais elevado da hierarquia divinamente estabelecida para todas as espécies viventes. O nascimento dos humanos diz pouco sobre nós, mas traz revelações indiretas e surpreendentes sobre o próprio Deus. Elohim faz os homens (macho e fêmea) segundo sua imagem (Gn 1.26). O autor bíblico primeiro criou Deus, seu personagem, sua ficção; depois, no mundo do texto, o Deus criado faz o homem, também um personagem, mas cujo referente todos conhecemos. Isso nos permite conjeturar sobre a feição divina. Ambos os criadores não conseguem ir muito longe: para o escritor um Deus deve fazer uso da linguagem e deve falar hebraico, deve ter o poder de construir um mundo que faça sentido. Todavia, esse Deus arquiteto e artesão é bastante humano, demasiado humano: ainda que nos exceda pela imortalidade, pela não sujeição aos limites do tempo, ele não passa de mais um sujeito sonhador que submete seus dons criativos às vontades da natureza, à necessidade de comunhão, à obrigatoriedade do trabalho e à inevitável exaustão física. Quanto a elohim como criador, este molda uma escultura de si mesmo, dota-a de habilidades singulares como a divina linguagem, dá-lhe saberes que o capacitam a dominar as demais criaturas: consequentemente o homem é como um deus entre os animais e tudo o que faz reproduz em menor escala aquilo que seu criador faz em dimensões cósmicas. Olhando esses dois criadores de frente nos perguntamos: quem se parece com quem? Quem criou quem?

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Decepciona-me um pouco ver que todo o elaborado edifício erigido ao longo de cinco dias de árduo trabalho divino converte-se, no sexto, numa grande panela cheia de variados mantimentos (Gn 1.29-30). De certo modo a narrativa mitológica já reduz a vida animal a coisas, a objetos vivos criados para os usos e abusos humanos. O homem, com divina autoridade sobre a vida e a morte das demais espécies concluirá de seu posto privilegiado que é mais divino que animal – um engano. Por suas obras (a cultura e a moral) o homem buscará suprimir sua real natureza, tentará enterrar os vestígios de sua origem telúrica: ele almeja domesticar a besta que contém e ruboriza quando este lado maldito de seu corpo rompe com suas cadeias. O homem interdita sua vontade de violência, seus desejos sexuais – até seu amor próprio precisa ser negado. Ele esconde sua ambição de poder sobre os demais, disfarça seu egoísmo, cria contratos sociais e condena ao banimento os que são demasiadamente humanos para conviver entre os deuses. No palco, formatado para ser seu falso Olimpo, o homem cobre toda nudez, castra, tosa, desenvolve normas de etiqueta para regular os gestos e se portar dignamente. Mas o teatro da cultura humana é, vez após vez, descortinado por uma força maior, a prova definitiva de que Deus não nos dotou com todas as suas qualidades: a morte faz do homem apenas mais um dentre os animais; quando ela o devora, quando faz perecer sua carne e o converte em mantimento para seres que ele julgava inferiores, sua animalidade volta à tona, seu orgulho é quebrado e ele tende a recorrer àquele Deus criador em busca da eternidade que lhe falta. Nasce a religião; mas segue o império da morte que, por sua vez, alimenta mais religião. Lemos que o homem criado é um onívoro, um consumidor insaciável que se vê autorizado dominar as demais formas de vida para saciar sua fome. E ele não poupará nenhum vegetal, nenhuma fruta, nenhum animal. E quanto ao Deus criado pelo homem segundo sua imagem? É ele também um consumidor? Qual seu alimento? Para alguns religiosos ele pede carne, pede sangue, pede vidas. Deveras, muitos sacerdotes, acompanhados daquele homogêneo exército de turiferários, chamam de liturgia o ato de consumir, com manipulado consentimento, o tempo, a inteligência, o corpo e a alma dos fiéis. Por meio deles Deus parece consumir o próprio adorador tirando-lhe a vitalidade, o tempo livre, obscurecendo-lhe a visão, a razão, convertendo o ser que se supôs divino em mera vítima sacrificial. O homem, criado para dominar, para matar e comer, no contexto religioso estranhamente tem prazem em oferecer-se em holocausto. No templos a mais

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nobre criatura, fazendo mau uso do seu dom, redige leis que malogram o projeto daquele Deus que devotou seu suor em favor da vida humana e sua hegemonia.

A imagem de um Deus cansado Se ainda faltava uma prova definitiva da proximidade entre elohim e o homem que criou ela nos é dada no sétimo dia da semana cósmica: depois de tanto enfado o artesão todo-poderoso precisa descansar. A tradução do verbo hebraico poderia ser outra, mas assim, como as versões brasileiras o apresentam, ele está em perfeita consonância com as ações de Deus ao longo de uma longa semana de trabalho. É curioso que, embora todos se deparem com esse Deus cansado no final do relato da criação, os profissionais da hermenêutica ortodoxa pouco se ocupem com as consequências teológicas dessa imagem frágil e humanizada que suas Bíblias anunciam. Quanto ao narrador bíblico, o criador do Deus cansado, seu propósito é claro: faz o próprio Deus, para o qual reivindicam adoração, observar o sábado e assim legitima a tradição religiosa de seu interesse enquanto reclama o próprio descanso semanal. Aí cumprem-se algumas das exigências de uma narrativa mitológica: o texto explica aquilo que não se compreende por meio da razão ou da observação fazendo uso de uma ficção, uma história de deuses de tempos primitivos, de atos originários e cenários cósmicos. O desconhecido, que é a causa de muitos medos, é dominado pelo discurso que de uma só vez é revelador e obscuro, mais misterioso que descritivo. Quando essa mitologia ainda era aceitável como verdade os temores da incerteza podiam ser razoavelmente contidos; amenizavam-se as inquietações existenciais mais agudas como a gerada pela sensação de despropósito da vida e descontrole do devir. Ela ainda trazia as razões para a manutenção das instituições sociais e religiosas do presente do autor, desvendava as relações entre a vida e o respeito ao dia santo que definia ritualmente a identidade de uma religião. Dizem que a modernidade trouxe o desencantamento do mundo e incapacitou os discursos mitológicos, mas isso não quer dizer que os mitos devam ser descartados. Tais produções lacônicas e plurissignificantes seguem atuando num sistema literário, circulando na cultura ocidental, produzindo memórias coletivas de poder homogeneizador e impulsionando criações originais. Quando temos muitos novos usos para as mesmas velhas histórias as palavras convertem-se em patrimônios. 10

Estágio conclusivo: eis que elohim exige um tempo para si. Por menor que seja seu shabat ele o valoriza, o separa dos demais dias, o santifica. Eis a inauguração de um verdadeiro tempo sagrado, destinado à fruição das merecidas recompensas e não destinado a mais canseira, a mais pressão, a mais rituais. No sétimo dia Deus finalmente pode desfrutar da própria vida e do momento presente; pode abster-se de preocupações, esquecer-se das dores do existir; pode, enfim, sem perturbações, ser como um Deus entre os seus humanos.11 Os autores ou redatores dessa suposta fonte sacerdotal estariam reivindicando, na Babilônia do século VI a.C., o direito a um dia de descanso semanal? 12 Provavelmente. Essa deve ser a história do livro, informações úteis para explicar os interesses de seus primeiros leitores, compreender seus primeiros usos. Não é o que buscamos. Que os historiadores, aqueles que olham e acreditam para trás,13 se ocupem disso. Para nós importa apenas a literatura e sua repercussão nas criações do agora, importa a imagem construída de um Deus humanizado que não serve bem à teologia judaico-cristã mas que deixa a todo leitor o imperativo para a fruição das nossas próprias criações.

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No livro XI, capítulo 12 das Confissões. Sobre estas características da literatura bíblica veja: AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 1-20. 3 MILES, Jack. Deus: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 37-39, 4 Sentenças Vaticanas 1, tradução extraída de: EPICURO. Sentenças vaticanas. Texto, tradução e comentários de João Quartim de Moraes, São Paulo: Edições Loyola, 2014. 5 FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 28-30. 6 Conforme Eliana B. Malanga que, empregando o conceito de Umberto Eco, defendeu a abertura da Bíblica Hebraica a partir dessas mesmas peculiaridades literárias. Veja: MALANGA, Eliana B. A Bíblia Hebraica como obra aberta: uma proposta interdisciplinar para uma semiologia bíblica. São Paulo: Humanistas, 2005, p. 266-267. 7 ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 214. 8 Baseamo-nos no Gênesis de: GRAYLING, A. C. O bom livro: uma Bíblia laica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p. 9. 9 Aqui adotando o rótulo “performativo” conforme apresentado por Michel Onfray em Tratado de ateologia: física da metafísica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 106. 10 ONFRAY, Michel. A escultura do eu: a moral estética. Coimbra: Quarteto, 2003, p. 78. 11 Parafraseando Epicuro a partir de sua Carta a Meneceu. 12 Cf. SCHWANTES, Milton. Projetos de esperança: meditações sobre Gênesis 1-11. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 33-34. 13 Cf. Friedrich Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos, I, 24. 2

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