AULA 1 do curso 7 Leituras para pensar o futebol - A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra

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Aula 1 do Curso 7 Leituras para pensar o futebol – Prof. Marcos Alvito


CURSO 7 Leituras para pensar o futebol

Prof. Marcos Alvito (UFF)

Livraria Al Farábi – Rio de Janeiro (Rua do Rosário, número 30)

3 de novembro de 2015

AULA 1: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra

Autor: Marcos Alvito

Obra: Publicada em 2014 (Rio de Janeiro: Apicuri), baseia-se em pesquisa original de estágio pós-doutoral realizado na University of Leicester (Inglaterra), entre 2007 e 2008. O livro está dividido em duas partes: a primeira é uma "Breve história do futebol inglês" e contém 8 capítulos que tratam desde o surgimento de um violentíssimo jogo na Inglaterra medieval até a Premier League. A parte II, "Um ano de futebol na Terra da Rainha" é composta por 32 breves capítulos que traçam um retrato do futebol inglês em diversas dimensões: as apostas, os hooligans e a polícia, os pubs, a hiper-comercialização e a resistência dos torcedores à mesma, o futebol feminino e até mesmo o críquete e o rúgbi entre outros temas.

Textos da aula: Capítulos 1 a 8 de A Rainha de Chuteiras



Fonte: 1612, The country swaines at footeball (Os porcos da aldeia no futebol), livro e ilustrações de Henry Peacham, que afirmava que a vida é que nem o futebol, que a nossa riqueza é lançada para lá e para cá e que no jogo da vida há vencedores e perdedores. Na margem, colocou uma frase latina que poderia ser traduzida assim: "Estas coisas vulneráveis e fracas, parecidas com brinquedos de crianças, chamadas a força e a riqueza humanas."

7 trechos bons para pensar (todos extraídos de ALVITO,Marcos. A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. Rio de Janeiro:Apicuri, 2014)

01 (pp. 23-24): Os violentos jogos de football

"Jogos com bola existiram em diversas sociedades ao longo da história, na Grécia e em Roma, na China do início do século II, bem como em diversos países da Europa durante a Idade Média (França e Itália dentre outros). Mas a matriz do futebol jogado hoje em todo o planeta veio da Inglaterra. 
Durante séculos, não havia apenas uma, mas várias modalidades do jogo de football. Na ausência de um sistema de transportes e de comunicações mais desenvolvido, cada localidade desenvolvia tradições próprias. Esses jogos faziam parte do calendário agrícola, tradicional e religioso dessas comunidades: eram disputados no Natal, na Páscoa e sobretudo na Terça-Feira Gorda, quando assumia um caráter carnavalesco de inversão da ordem social. Por um dia, os jovens da aldeia se reuniam às centenas para beber, brincar e finalmente jogar o futebol. Por vezes, jogavam contra os jovens de uma aldeia vizinha, às vezes dividiam-se em casados contra solteiros ou simplesmente em dois grupos, sem que houvesse preocupação em que os dois lados tivessem números iguais.
A bola normalmente era uma bexiga de animal, às vezes revestida de couro e na maioria das vezes não havia propriamente regras, era um vale-tudo com o propósito de levar a bola até os goals (objetivos). Olhos roxos, braços machucados e pernas quebradas eram muito comuns e as mortes não eram raras, caso em que os legistas costumavam registrar como "Death by Football" (morte por futebol). Ainda hoje, em algumas regiões da Inglaterra, existem festas em que há um jogo de bola muito semelhante aos descritos nas fontes históricas. Em Ashbourne, por exemplo, no norte da Inglaterra, perto de Derby, há dois jogos em dias seguidos, na Terça-feira Gorda e na Quarta-feira de Cinzas. Os confrontos se dão entre os Up'ards (os "de cima") e os Down'ards (os "de baixo"), representando duas áreas da cidade. A disputa começa nas ruas da cidade mas depois se dá em campo aberto e a distância entre os gols é grande: mais de cinco quilômetros. O percurso inclui um pequeno rio e a massa de jogadores briga pela bola na água. O jogo de Ashbourne é atestado pelo menos desde 1683, mas é bem possível que já ocorresse bem antes.
Voltando à Idade Média, os reis e as autoridades locais promulgaram uma série de proibições, impondo multas e até a prisão, mas de nada adiantou. Este tipo de jogo tornara-se uma diversão popular tradicional. Quando era jogado nas cidades causava ainda mais problemas, interrompendo o comércio e os negócios em geral, destruindo propriedades e ameaçando a ordem pública. Além disso, os reis preferiam que seus súditos praticassem o arco-e-flecha, preparando-se para a guerra, ao invés de baterem-se uns aos outros em disputa da pelota.

02 (pp. 29-30): Com que regra?

"Como é que um jogo da ralé, perseguido durante séculos pelas autoridades, veio a se tornar o esporte mais popular do planeta?
Tudo passou pela transformação de um jogo rural violento e selvagem em um esporte praticado nas escolas mais aristocráticas da Inglaterra. Os professores tinham enorme dificuldade em conter pupilos originários de uma camada social superior. Os filhos da aristocracia desrespeitavam abertamente e eventualmente agrediam seus mestres. Às vezes até botavam fogo na escola. Eram o terror da região em torno: estupravam camponesas, destruíam pubs, batiam nos aldeões. Entre eles mesmos havia muita violência: os calouros eram tratados pelos veteranos como escravos, partindo até mesmo para o abuso sexual. Os diretores tiveram uma brilhante ideia: dirigir esta energia excessiva e destruidora para a prática de uma atividade física. Acontece que o football que existia até então não servia, era apenas um jogo, ou seja, não tinha regras. Usando o pátio do colégio como campo, aos poucos o football foi se transformando em um esporte, embora de início as regras fossem transmitidas oralmente e variassem de escola para escola. E é claro que durante muito tempo os calouros serviram apenas para marcar a linha lateral. Jogar era privilégio dos veteranos. De qualquer forma, a tática funcionou e aos poucos os diretores conseguiram pacificar um pouco suas escolas. Eram totalmente apoiados pela Igreja, que à época professava a doutrina da "Cristandade Musculosa", também conhecida por "Corpo são e mente sã". Cansar os meninos era uma maneira de evitar os pecados.
Os meninos cresciam e logo ingressavam nas melhores universidades, onde chegavam já com vontade de bater uma bola. Mas havia um problema: cada um vinha de uma escola diferente e não havia uma regra comum. Umas escolas, por exemplo, permitiam carregar a bola com as mãos e chutar livremente a canela dos adversários, às vezes até quebrar. Era a regra da escola de Rugby, ou Rugby Football, de onde derivou o primo do futebol conhecido por rúgbi. Outras jogavam pela regra de Cambridge, mais próxima do futebol atual, em que só se usavam os pés. (…)
Em Londres, onde já havia vinte e cinco clubes de futebol, alguns deles decidem estabelecer uma regra oficial. A turma que se reuniu na Freemasons' Tavern em 1863 adotou a regra que proibia carregar a bola com a mão e os pontapés (a não ser na bola). Antes mesmo dessa época já havia clubes de futebol, mas antes das partidas tinham que combinar com que regra iriam jogar. Muitas vezes jogavam o primeiro tempo com a regra de Rugby e o segundo com a regra de Cambridge, mais próxima do nosso futebol."

03 (pp. 35-37): A máquina de fazer dinheiro

"Com o sucesso da FA Cup e a difusão de uma regra única, o futebol se transforma em uma febre nacional. São criados clubes por toda a parte, sobretudo no norte industrial, onde os operários representam um público fiel e entusiasmado. Para se manterem, os clubes logo cercam seus campos, instalam bilheterias e erguem as primeiras arquibancadas de madeira embora a maioria dos espectadores assistisse ao jogo de pé nos terraces, normalmente com degraus cavados em uma pequena elevação de terra, onde o ingresso era mais barato. Para atrair mais público, os clubes logo começam a "contratar" jogadores, fazendo pagamentos por debaixo do pano ou tornando os melhores jogadores empregados do clube." (…)
"A F.A. recua em sua intransigência e em 1885 aceita o profissionalismo, com algumas restrições. Vencida essa primeira barreira, os clubes do norte da Inglaterra, onde o futebol realmente movimentava dinheiro, tinham outro problema a resolver: a falta de jogos durante a temporada. Apenas a F.A. Cup não era o suficiente para manter uma estrutura cada vez mais dispendiosa. O esquema dos jogos por convite tinha três inconvenientes. Primeiro: a falta de regularidade, podiam passar períodos sem conseguir jogos. O segundo problema era a dificuldade que os melhores clubes tinham em conseguir partidas contra equipes realmente à altura, pois adversários fáceis não atraíam muito público. E o que era pior: às vezes a equipe adversária não aparecia por um motivo qualquer, causando enorme prejuízo.
Somente um calendário regular de jogos, divulgados com antecedência junto ao público, contra adversários igualmente poderosos, permitiria manter uma estrutura profissional de pagamentos aos jogadores. Dentro do espírito racional e empresarial da classe industrial e comercial do norte da Inglaterra, a solução não tardou a surgir. Em 1888, doze clubes*, a maioria do norte da Inglaterra, criam a Football League (Liga de Futebol), doravante responsável pela organização de um campeonato por pontos corridos e partidas de ida e volta. Era algo até então inédito no futebol, inspirado nas competições entre os Condados (regiões em que é dividida a Inglaterra) existentes no cricket. Ao contrário da F.A. , dirigida sobretudo por profissionais liberais e membros da elite, os criadores da Football League eram empresários, homens de negócios que haviam subido na vida. A Football League e seu campeonato são um sucesso: em 1892, quatro anos depois da sua criação, já há 28 clubes divididos em duas divisões. (…)
A F.A. tentou erguer barreiras contra a comercialização do esporte. Em primeiro lugar, estabeleceu limites à transferência de jogadores, praticamente presos aos clubes, pois só podiam deixá-los com o consentimento do empregador. Em 1900, estabeleceu um teto salarial de quatro libras, o que apenas era o dobro do que ganhava um trabalhador manual. Estes dois princípios visavam impedir que dois ou três clubes com mais poder financeiro monopolizassem os melhores jogadores"
04 (pp.43-45): O jogo do povo – futebol e classe operária

"Explicar a popularidade do futebol sempre foi um desafio. No caso da Inglaterra, o ponto-chave é entender o seu valor para a classe operária. Em uma época de grandes transformações, com milhões de pessoas migrando do campo para as cidades e tendo que reconstruir suas vidas, seu círculo de amizades e seu sistema de valores, o futebol era crucial. Ele permitia estabelecer novos vínculos, sobretudo entre os homens, recriando identidades e solidariedades em torno de um clube que passava a representar uma comunidade determinada. Jogado ou assistido, o futebol era o principal lazer dos trabalhadores, mas ia muito além disso. Nele estavam inscritos valores específicos da classe operária, como o espírito de equipe e a dureza necessária para enfrentar os desafios do dia-a-dia. Cimentava os laços masculinos e permitia marcar ainda mais as diferenças de gênero, pois as mulheres eram praticamente excluídas desse universo.
Até a evolução das regras do jogo reflete essa transformação do futebol naquilo que o historiador inglês Eric Hobsbawm chamou de "a religião laica da classe operária". No primeiro código elaborado pela F.A., a regra número 6 estabelecia que todo aquele jogador que estivesse mais à frente que a bola estava "out of play" (fora de jogo). Ou seja, na prática, só se podia passar a bola para trás, nunca para frente. Isso impossibilitava os lançamentos e as tabelinhas. Só havia uma tática: pegar a bola e sair driblando pra frente até o gol. Era um jogo altamente individualista. Conta-se que um cavalheiro, instado pelos seus companheiros de time a passar um pouquinho a bola, teria respondido que jogava simplesmente para o seu prazer. Ou seja, de início, a forma como era jogado o futebol representava os valores nada coletivistas da classe dominante.
Felizmente, já em 1866 é estabelecida a "offside rule" (regra do impedimento), que definia que a bola podia ser passada à frente para um jogador, desde que ele tivesse entre ele e o gol pelo menos três jogadores adversários, número que cai para dois em 1925. Com isso desenvolve-se o jogo de passes, em que o conjunto da equipe torna-se mais importante do que o valor individual. É bem possível que o primeiro objetivo da mudança da regra tenha sido somente diferenciar ainda mais o Association Football do Rugby, onde até hoje a bola só pode ser passada para trás. A transformação do estilo de jogar não foi causada e sim permitida pela regra. Se o "dribbling" foi substituído pelo "passing game", isso se deve à penetração dos valores operários. A própria disposição tática das equipes, com o estabelecimento de posições específicas, pode ser vista como um reflexo da divisão de trabalho predominante no ambiente da fábrica." (…)
"Essa identificação quase perfeita entre o futebol e a classe operária refletia-se em um crescimento extraordinário do público presente aos estádios. Entre 1911-2 e 1938-9, a média de público nos jogos da primeira divisão da Football League passou de 17.000 para 30.600. Durante a Segunda Guerra Mundial, o futebol não foi interrompido de todo"
05 (pp.49-50): O fim da época de ouro: casa, automóvel e televisão

"Nunca mais o futebol atrairia tanto público quanto nos três ou quatro anos depois do término da Segunda Guerra. Durante a década de 1950 o público total cairia quase todos os anos, para sofrer um grande baque logo no início da década de 1960: na temporada 1960-1, há uma diminuição de 12%. O público total da Football League, que já fora de 41 milhões em 1948-9, caíra para cerca de 28 milhões. (…)
Estava em curso um processo de transformação da sociedade no pós-guerra. Após anos de austeridade e restrições, a economia européia e a inglesa em particular entrariam em uma época de prosperidade que duraria até meados da década de 1970. Sobe o valor real dos salários e aumenta enormemente o consumo de bens e mercadorias. Na Inglaterra, cada vez mais as pessoas eram proprietárias de suas casas. O número de automóveis particulares nas ruas multiplica-se (…) Em 1950, era raro alguém ter televisão em casa, mas em 1961 ela já estava presente em 75% dos lares. Maior renda significava a possibilidade de outras formas de passar o sábado à tarde, antes reservado ao futebol. E os avanços da condição feminina também exerciam pressão sobre os homens para ficarem em casa" (…)
Durante a década de 1950 e boa parte da década de 1960, a cobertura televisiva do futebol foi mínima. O único jogo a ser transmitido em sua totalidade e ao vivo era a final da Copa da Inglaterra. Em 1950 ela foi assistida por mais de um milhão de pessoas e três anos depois, esse número sobe para 10 milhões. O sucesso foi tão grande que na temporada seguinte a final passou a ser realizada uma semana após o encerramento do campeonato da liga para evitar a queda do público presente aos jogos. Esse dano às bilheterias era o principal medo dos clubes, fator que explica o porquê das transmissões ao vivo dos jogos da Football League só terem sido autorizadas pela primeira vez em 1983. Na verdade, a televisão "roubava" público do futebol por conta das suas outras atrações. Ela fazia parte de um processo de "privatização do lazer" que afetou outras diversões de massa, como o cinema, por exemplo. De qualquer forma, após 1964, a BBC começa a apresentar nos sábados à noite um dos programas mais famosos da TV britânica: Match of the Day, contendo os gols e os melhores momentos (…)
Com salários livres e cada vez menos presos aos clubes, os melhores jogadores tendem a ser contratados pelos clubes mais poderosos, normalmente das grandes cidades. Os jogadores, por sua vez, começam a ser transformados pela televisão e pelos jornais e revistas em "estrelas", ajudando a vender produtos. Antes heróis da classe operária, encarnando os valores coletivos da classe, os jogadores passam a ser representados como indivíduos ligados à riqueza e ao consumo hedonista. Antes o ídolo era uma figura com Stanley Matthew, o lendário ponta-direita que jogou até os 50 anos, não bebia, era um decente e respeitável pai de família. Agora a imprensa cultivaria George Best, cuja única semelhança com Matthews era a posição em que jogava. Best, um gênio com a bola no pé, era tão famoso que chegou a ser chamado de "o quinto Beatle"."

06 (pp.52-53 e 56-59): Os hooligans e a grande crise do futebol inglês

"A par da diminuição significativa, a composição do público e sua forma de comportamento também estavam mudando na década de 1960. A juventude cada vez menos se conformava ao papel antes a ela reservado. Há todo um "estilo" jovem que busca acentuar as diferenças através de um uso de formas particulares de vestuário, uso da linguagem, apresentação pessoal, gostos musicais e comportamento em geral. Esse "poder jovem" começa a estar presente também nos estádios de futebol, um teatro perfeito para encenar atos de diferenciação e de rebeldia. Até meados da década de 1950, o público dos estádios podia ser dividido em dois grandes grupos: nos terraces atrás do gol e nas laterais, ia a classe operária, assistindo aos jogos de pé. Nas arquibancadas cobertas e com assentos localizadas junto ao centro do gramado, a classe média e os diretores (na tribuna de honra).Não havia até então espaços distintos para os torcedores das duas equipes, não eram segregados, separados por cercas ou pela polícia. Misturavam-se sem problema por todas as áreas.
Os jovens, que começam a frequentar viajar em grandes grupos para as partidas, normalmente de trem, revolucionam a ecologia do estádio. Escolhem os terraces atrás do gol, os chamados ends, como seu espaço particular. Ali começam a torcer de uma maneira bem mais expressiva e fanática ou, na visão dos mais velhos, de uma forma menos respeitável e educada. Começam a usar canções da música popular e logo começam a desafiar o grupo de jovens que vinha torcer pelo time adversário. Ciosos do seu território, esses grupos de jovens começam a se comportar de forma tribal, o que passa a incluir as tentativas de tomada do end oposto, resultando em conflito e violência." (…)
"Além de ofensas, xingamentos e ameaça, as brigas entre torcedores rivais, as invasões de campo e o arremesso de objetos tornavam-se a cada dia mais frequentes. Já em novembro de 1963, o Everton F.C. é o primeiro clube a colocar cercas atrás do gol, chamadas pelos jornais de "hooligan barriers" (barreiras contra os hooligans). Ao mesmo tempo, estava havendo uma diminuição do público que frequentava o estádio, causada pelas transformações em curso na sociedade, mas também agravada por esse aumento na violência.
Confrontos entre grupos de jovens ocorriam também fora do futebol, e o público começa a ficar extremamente sensível a este tipo de notícia, o que é amplamente explorado pela imprensa, cada vez de forma mais sensacionalista. Os jornais do final da década de 1960 passaram a vender a idéia de que havia uma "guerra" em curso nos estádios, o que sem dúvida contribuiu para afastar ainda mais o público bem-comportado e para tornar o sábado à tarde ainda mais excitante para os jovens. Começava assim um círculo vicioso que logo iria resultar na criação de pequenos grupos de jovens torcedores voltados exclusivamente para a violência e o combate entre si, as chamadas "firms" ou "crews". No início da década de 1970 os jornais populares já publicavam rankings dos grupos de torcedores mais violentos. E as "firms" começaram a ousar cada vez mais, buscando aumentar a sua "reputação". A violência no futebol começa a fazer parte do cardápio de atrações da televisão que começa a focalizar os confrontos entre as torcidas, os palavrões e desafios obscenos em um verdadeiro estímulo ao à agressividade exibicionista.
De início a "brincadeira" era tomar o end da torcida adversária, pois a invasão do território inimigo era a suprema humilhação dos contrários. Mas a polícia começa a prever estes incidentes e a prender os envolvidos. A minoria de jovens interessados somente em brigar começa a planejar outros tipos de ação, muitas vezes encontrando os grupos rivais fora do estádio. Ao mesmo tempo, começam a ser tomadas medidas para prevenir a violência, mas que transformam os estádios em verdadeiras prisões: são levantadas cercas em torno de todo o campo e o estádio é dividido em pens ("chiqueirinhos") separados por grades. De ambos os lados, as torcidas estavam enjauladas. Esta divisão e segregação dos torcedores aumenta ainda mais o clima e as manifestações de rivalidade e de agressão verbal. Os torcedores visitantes passam a ser escoltados pela polícia desde o seu desembarque dos trens e marcham como se fossem um exército inimigo até o local do jogo. Cada vez mais a polícia usa cães e cavalos, é montada uma verdadeira "operação de guerra" a cada sábado. Os torcedores passam a ser revistados à entrada, mas os interessados em violência conseguem ludibriar a polícia com uma maligna criatividade: afiam moedas até torná-las pontudas, enrolam jornais até tranformá-los em armas e por aí vai. A presença de enormes contingentes policiais e o clima belicoso tornam tudo aquilo ainda mais atrativo para os torcedores patologicamente violentos, ao mesmo tempo em que a frequência aos estádios cai assustadoramente.
Grupos de extrema-direita como o National Front logo percebem as possibilidades propiciadas por aquele tipo de ambiente e começam a usar o futebol como um palco para expressões de racismo e xenofobia. Jogadores negros são xingados, recebidos com gestos imitando primatas, atiram-se bananas no campo. As incursões destes grupos no exterior, acompanhando a seleção inglesa, solidificam a reputação dos hooligans ingleses que começam a ser imitados por jovens de outros países. Tudo isso ocorre sobretudo na década de 1980, quando a Inglaterra está sofrendo uma recessão econômica profunda, um grave processo de desindustrialização e desemprego, tudo isso agravado pela política neo-liberal de Margaret Thatcher, primeira ministra da Inglaterra desde 1979: privatização de empresas estatais, guerra aos sindicatos e ao Estado de Bem-Estar social, com cortes de verba na educação, na saúde e nos serviços públicos em geral." (…)
"Foram muitas as tentativas de explicação do hooliganismo. Alguns tentaram relacioná-lo a uma forma de protesto contra a comercialização excessiva do futebol, mas a violência dos hooligans não era contra os diretores e sim contra os outros grupos de jovens. Ademais, o hedonismo e o consumismo abraçados por eles mostram uma clara aceitação do capitalismo. Problemas sociais, que decerto podem ter contribuído, não são uma explicação suficiente, porque o problema surgiu no início da década de 60, uma época de prosperidade e baixas taxas de desemprego. Houve quem relacionasse o hooliganismo a um setor mais "rude" da classe trabalhadora, marcado por uma socialização violenta, em que a briga, a formação de grupos de jovens e a defesa do território eram características centrais. Essa hipótese parece ter mais peso, embora deva-se ressaltar que os hooligans não viessem de uma só classe social.
Richard Holt, em seu livro Sport and the British, é quem parece melhor dar conta do fenômeno. Ou melhor, dos fenômenos. Para ele, o hooliganismo é resultado de um conjunto articulado de processos. A defesa do território e da comunidade era uma característica das classes populares há vários séculos: o futebol tradicional jogado entre as aldeias é um bom exemplo disso. Tornar-se "homem" entre os jovens da classe trabalhadora era um aprendizado que envolvia bebida, brincadeiras verbais e brigas, eventualmente envolvendo dois grupos distintos, cada um deles afirmando sua masculinidade, o pertencimento a um território e a solidariedade coletiva. Este comportamento era ao mesmo tempo estimulado e controlado pelos homens mais velhos. As disputas entre as turmas de jovens ficavam restritas ao bairro e não causavam maiores problemas. A partir da década de 1950, começam a se esgarçar as solidariedades de classe e muitas comunidades inclusive desaparecem diante das transformações econômicas e das reformas urbanas que põem abaixo bairros inteiros. Cada vez menos os jovens irão seguir as carreiras dos pais e mesmo quando o fazem não mais se conformam a uma posição subordinada que lhes barra o acesso a bens de consumo cada vez mais desejados.
O futebol e seus "rituais de sábado à tarde" irão proporcionar a estes jovens o pertencimento a um novo tipo de comunidade, uma identidade definida pelo clube e um território próprio a defender (o end). Alguns valores da classe trabalhadora, como a rudeza (hardness) e o apego ao local serão retrabalhados e elaborados em novas formas. O skinhead, por exemplo, com suas pesadas botas de operário e cabeça raspada para diferenciar-se dos estudantes de classe média com seus cabelos longos, pode ser visto como uma caricatura agressiva da figura do trabalhador. Todo aquele que vem de fora, seja o torcedor do outro clube ou o imigrante paquistanês ou indiano é visto como um inimigo.
É claro que esta nova configuração social do futebol iria resultar em tragédia, mas às vezes a tragédia pode ser o início de um novo tempo."

07 (pp. 64 e 67-70): Premier League S.A.

"Outra proposta feita por Taylor iria revolucionar a ecologia dos estádios ingleses. Em nome do conforto e, principalmente, da segurança dos torcedores, Taylor propõe o fim dos terraces, tornando obrigatória a colocação de assentos em todos os estádios das quatro primeiras divisões da Inglaterra dentro de no máximo quatro temporadas (em 1994-95). Posteriormente a norma foi alterada e continuou obrigatória somente para as duas primeiras divisões. Taylor admitia que a capacidade dos estádios seria reduzida, mas pedia que os torcedores não fossem penalizados financeiramente. Infelizmente, embora a maioria das propostas encaminhadas por Taylor tenha sido seguida, não pode-se dizer o mesmo do "espírito" do relatório. Muitas das mudanças foram implementadas em nome da segurança mas, na prática, tentando transformar o torcedor em consumidor, para atrair preferencialmente famílias de classe média, com maior poder aquisitivo e comportamento mais passivo.
Por um lado, as mudanças pós-Taylor recuperaram a credibilidade do futebol inglês, desgastada por décadas de hooliganismo. Havia um consenso nacional quanto à necessidade de por fim ao que vinha acontecendo no futebol. A tragédia de Hillsborough sensibilizou a todos quanto a isso. Tinha que se dar um basta. As reformas nos estádios eram absolutamente necessárias, quanto a isto não há dúvida. A ênfase na segurança dos torcedores dava um novo norte às autoridades até então obcecadas com a questão da violência. A polícia é obrigada a admitir seus erros e excessos e a buscar um novo tipo de relacionamento com os torcedores. Os clubes, todavia, irão aproveitar as mudanças de forma a elitizar o futebol. Agora a classe trabalhadora, o coração do futebol inglês, não será mais bem vinda. Nos estádios reformados ou nos novos e modernos estádios construídos de acordo com as normas o preço das entradas vai subir assustadoramente de forma a afastar os "indesejáveis". Agora a classe trabalhadora, antes o coração e a alma do futebol inglês, não será mais bem vinda. Na verdade, o público deixa de ser tão importante, porque cada vez mais o futebol passa a ser um produto fabricado para a televisão."
(…)
"Ao mesmo tempo em que as reformas pós-Taylor davam nova vida ao futebol inglês, ia chegando ao fim o sistema estabelecido pela Football League desde a sua fundação em 1888. Já vimos que os fundadores da Football League haviam buscado evitar que a liga fosse monopolizada pelos maiores clubes, adotando o teto salarial e estabelecendo um rígido sistema de transferência que na prática prendia os jogadores aos clubes. Estas medidas prejudicavam os jogadores mas impediam que os grandes clubes fizessem uso do seu maior poder financeiro. Mesmo quando o teto salarial é abolido no início da década de 60 e o sistema de transferências começa a mudar, havia ainda dois mecanismos de redistribuição. O principal era a divisão das rendas entre os clubes – uma prática estabelecida desde a Primeira Guerra Mundial. Não somente as bilheterias eram divididas, mas também os recursos provenientes da venda de direitos para a televisão e de patrocínio. Além disso, havia também um fundo de 4% sobre as rendas dos jogos para ser igualmente dividido entre os clubes. É claro que os clubes mais poderosos gostariam de por fim a isso.
Em 1983, Arsenal, Everton, Liverpool, Manchester United e Tottenham, os chamados "Cinco Grandes", pressionam e conseguem por fim à divisão da renda das bilheterias com o clube visitante. Antes, se um pequeno clube como o Luton Town ou o Bristol Rovers ia jogar em Anfield ou em Old Trafford a renda era parcialmente dividida, gerando recursos essenciais para a sobrevivência dos clubes menores. Agora os grandes clubes passaram a embolsar toda a renda dos jogos em casa. A esse severo golpe contra os clubes menores seguiu-se outro poucos anos depois. Em 1986, um ano após a tragédia de tragédia de Heysel, os "Cinco Grandes", depois de ameaçarem fundar uma liga própria, acabam com a divisão igualitária do dinheiro vindo da televisão pelos 92 clubes da Football League. Doravante, os vinte clubes da Primeira Divisão passam a ficar com 50% da venda dos direitos, sendo a outra metade dividida pelos setenta e dois clubes das três divisões restantes, também de forma desigual: 25% para a Segunda Divisão e os restantes 25% a serem divididos pelos clubes da Terceira e da Quarta Divisões. E mais: o fundo sobre a renda dos jogos encolhia de 4% para 3%. Além disso, a maioria necessária para aprovar propostas recuava de três quartos para dois terços, o que na prática legava aos clubes grandes um maior poder de voto dentro da Football League Como resumiu muito bem o historiador Dave Russell, O abismo entre ricos e pobres no futebol inglês iria ampliar-se, da mesma forma que estava ocorrendo na sociedade inglesa como um todo.'
Quando a Football League completava um século de existência, em 1988, o dinheiro proveniente da televisão, cada vez mais significativo, voltaria a ser o pomo-da-discórdia. Neste ano os clubes mais poderosos ameaçam novamente criar uma liga independente. E mais uma vez são bem sucedidos: agora a Primeira Divisão passa a dispor de 75% do total da venda dos direitos televisivos. Para muitos, esse acordo selava a morte da filosofia proposta pela Football League, que enfatizava a interdependência entre os clubes. Os pilares desse sistema haviam sido desmontados um a um. Em uma sociedade neoliberal fascinada pela "racionalidade econômica" e pela "eficiência" os ideais da Football League não tinham mais lugar.
É preciso notar que nem mesmo no interior da Primeira Divisão a partilha das riquezas vindas da telinha era igualitária. Os "Cinco Grandes", mais atraentes do ponto de vista dos anunciantes, tinham seus jogos transmitidos a cada semana, abocanhando uma parcela maior dos recursos. Isto lhes permitia contratar melhores jogadores, ter um melhor desempenho e, consequentemente, tornarem-se produtos ainda mais cobiçados pelo mercado publicitário, o que gerava mais renda e assim por diante.
Este processo de concentração de riquezas seria radicalizado através da formação de uma liga à parte, o que vem a ocorrer a partir de 1991. O rompimento definitivo com a Football League, tantas vezes ameaçado pelos grandes clubes, tornava-se uma realidade. Os vinte e dois clubes da Primeira Divisão, aproveitando uma disputa política entre a Football Association e a Football League, conseguiram o apoio da primeira para a formação de uma liga independente, a Premier League. O momento era crucial, um ano antes de firmar um novo contrato de televisão a partir da temporada 1992-3. Com a criação da nova liga os recursos não precisariam mais ser divididos – nem mesmo de forma parcial – com os clubes das divisões inferiores. (…)
Com os novos recursos e uma audiência mundial, contratam-se técnicos e atletas estrangeiros, melhorando o nível técnico e gerando maior interesse junto ao público. Havia apenas onze jogadores não-britânicos na primeira temporada em 1992-93, tornam-se 66 em 1995-96 e 400 em 2000-1, ano em que a Premier League já era transmitida para 141 países e tinha uma audiência acumulada de 1,3 bilhões de pessoas. O futebol inglês, antes fechado sobre si próprio, passava a ser vendido como uma mercadoria valiosa no mercado global da indústria do lazer.
Alguns clubes, obviamente os gigantes, com maior apelo e glamour, não perdem a chance de se transformarem em corporações transnacionais, como é o caso principalmente do Manchester United, que passa a adotar uma estratégia de "conquista" do mercado asiático (…)
Para os torcedores o preço dos ingressos não para de subir, aumentando 300% somente entre 1992-99, mas o público de maior poder aquisitivo agora passa a frequentar o "novo futebol", glamourizado pela televisão e transformado em um produto "respeitável", um ramo privilegiado da indústria do entretenimento.
Os clubes maiores, com estádios com maior capacidade e mais torcida, tendem a ficar cada vez mais ricos. Nem mesmo dentro da Premier League a divisão de recursos provenientes da televisão é igualitária: os clubes com mais jogos retransmitidos recebem mais recursos. Tudo passa a ser motivado pelo lucro, sem nenhum respeito pela tradição. Ou seja, agora o futebol inglês passava a ser dirigido pelas "forças do mercado", que sempre tendem a tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres."


Próxima aula em 10/11/2015:

A busca da excitação – de Norbert Elias e Eric Dunning


 
















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