Autoconsciência e Reflexão

September 24, 2017 | Autor: R. Sá Pereira | Categoria: Philosophy of Mind, German Idealism
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AUTOCONSCIÊNCIA E REFLEXÃO RESUMO Esse artigo consiste em uma avaliação crítica da tradicional teoria da reflexão no quadro geral de uma teoria da autoconsciência, tomando por base uma antiga crítica a essa mesma teoria proposta por Tugendhat (1979). Defendo aqui duas teses. Sustento, em primeiro lugar, que o problema da circularidade que motiva a crítica de Tugendhat pode ser facilmente formulado no âmbito da abordagem linguística proposta por Tugendhat, segundo a qual a autoconsciência tem a forma de um saber proposicional imediato em primeira pessoa. Sustento, por último, que esse círculo pode ser facilmente rompido quando assumimos que as formas mais básicas de atitudes de se são isentas de um componente identificador.

INTRODUÇÃO

O problema central da autoconsciência emerge a partir do que do que Henrich denominou

“teoria

da

reflexão”



(Henrich,

1967).

Sua

característica essencial consiste na concepção do fenômeno da autoconsciência como o resultado de um ato do pensamento que se volta sobre o próprio sujeito de tal ato tomando-o como seu objeto. O primeiro a tomar ciência dos problemas gerados por tal teoria foi Fichte. Se a autoconsciência for entendida como o resultado de um ato de reflexão, a referência consciente a si mesmo não seria bem sucedida a menos que o indivíduo que reflete já soubesse de algum modo que ele próprio é quem está realizando o ato de reflexão. Assim o teórico da reflexão se veria às voltas com o seguinte dilema. Ou bem seria necessário um ato de reflexão de segunda ordem (no sentido de que eu sou o indivíduo realizando o ato de reflexão original) e esse ato exigiria, por sua vez, um outro ato de ordem superior e, assim, indefinidamente. Ou bem a consciência de si seria dada no próprio ato de reflexão. Ora, mas como a consciência de si deve resultar da realização

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2 do ato de reflexão, o sujeito da reflexão não teria como saber que ele próprio estaria realizando tal ato antes ou durante a sua própria realização. Fichte imaginava poder contornar tal problema, concebendo a autoconsciência como uma forma absolutamente espontânea de se “autocolocar” . Tomaríamos consciência de nós mesmos na medida em que ao refletirmos nos “autocolocamos” como sujeito e objeto do nosso próprio pensamento. Ora, a solução e Fichte é claramente retórica. Segundo Pothast, o mais influente discípulo de Henrich nos anos setenta, não é absolutamente compreensível como o eu poderia se autocolocar a partir de um ato de reflexão levada a cabo por si mesmo. A abordagem analítico-lingüística de Tugendhat surge como o resultado da sua avaliação crítica da posição tradicional. Segundo tal avaliação, o problema fundamental levantado por Fichte e Henrich só teria lugar uma vez que a autoconsciência é pensada nos termos do modelo tradicional sujeito-objeto segundo o qual o sujeito põe ou apreende a si mesmo como um objeto perfilado diante da mente . Colocando de lado a teoria da reflexão, a autoconsciência passa a ser compreendida como o conhecimento imediato de si que teria a forma de uma simples proposição em primeira pessoa , governada por dois princípios fundamentais: o princípio da simetria veritativa (entre predicações na primeira e terceira pessoas fazendo referência a um mesmo estado de coisas) e o princípio da assimetria epistêmica (entre o conhecimento de si na primeira pessoa e o mesmo conhecimento na perspectiva de terceiros). Esse artigo consiste em uma avaliação crítica da tradicional teoria da reflexão no quadro geral de uma teoria da autoconsciência, tomando por base uma antiga crítica a essa mesma teoria proposta por Tugendhat (1979). Defendo aqui duas teses. Sustento, em primeiro lugar, que o problema da circularidade que motiva a crítica de Tugendhat pode ser facilmente formulado no âmbito da abordagem linguística proposta por Tugendhat, segundo a qual a autoconsciência tem a forma de um saber proposicional imediato em primeira pessoa. Sustento, por último, que esse círculo pode ser facilmente rompido quando assumimos que as formas mais básicas de atitudes de se são isentas de um componente identificador.

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SIMETRIA VERITATIVA E ASSIMETRIA EPISTÊMICA Segundo o diagnóstico de Tugendhat, o problema tradicional de Fichte só surge porque a autoconsciência é entendida nos termos tradicionais do modelo sujeito-objeto. Segundo esse modelo epistemológico tradicional, objetos estariam perfilados diante da mente que os apreenderia ou por uma percepção interna ou por um pensamento de ordem superior. Tomar consciência de si seria então por , ou seja, apreender a si mesmo como um objeto perfilado diante da mente . Tugendhat resume suas críticas à posição tradicional nos seguintes termos: A dificuldade com a teoria da reflexão identificada por Henrich da qual Fichte partia se nutre da suposição de que se trata de algo cuja essência consiste na identidade entre conhecer e ser conhecido. Para alguém que não reconheça que o fenômeno da autoconsciência tenha ou pressuponha tal estrutura, a dificuldade não existe. A dificuldade, que é, com efeito, insolúvel, é apenas o reflexo do absurdo de tal abordagem (Tugendhat, 1979, 64).

Segundo a interpretação crítica de Tugendhat, o problema da circularidade só se coloca quando a autoconsciência é erroneamente entendida como a suposta consciência imediata da identidade entre o sujeito da representação e o sujeito representado, resultante do ato de reflexão. Se, por um lado, a consciência imediata da identidade de si deveria ser estabelecida no próprio ato de reflexão, por outro lado, o próprio ato de reflexão não poderia ser realizado a menos que o sujeito da reflexão já estivesse cônscio da sua própria identidade. Assumindo a consciência prévia da identidade do sujeito, a teoria da reflexão acaba por pressupor o que deveria antes ser explicado pelo próprio ato da reflexão (Tugendhat, 1979, 62). Assim, se a autoconsciência em geral toma a forma de uma de uma predicação de si , a chamada autoconsciência imediata exibe a forma particular de uma proposição psicológica em primeira pessoa na qual o predicado auto-atribuído é mental. Tendo descartado a teoria da reflexão, a abordagem analítico-lingüística de Tugendhat deve ainda responder a duas questões fundamentais. Ela deve esclarecer, em primeiro lugar, o emprego do pronome de primeira pessoa como um termo singular

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4 peculiar no contexto do pensamento em primeira pessoa. Ademais, ela deve tornar compreensível o próprio estatuto imediato da autoconsciência. Como último ponto de referência, o pronome de primeira pessoa não identifica minha própria pessoa como um dentre outros indivíduos em um domínio. Contrariamente a Wittgenstein e Anscombe, Tugendhat sustenta que o pronome de primeira pessoa em uma predicação mental em primeira pessoa se refere à minha pessoa como um indivíduo passível de ser identificado a partir da perspectiva de uma terceira pessoa. Assim, Tugendhat estabelece o que denomina princípio da simetria veritativa entre predicações psicológicas em primeira e terceira pessoas do singular: A frase “eu φ”, quando proferida por mim, é necessariamente verdadeira exatamente quando a frase “ele φ” for verdadeira, quando proferida por uma terceira pessoa a qual por meio do emprego do pronome “ele” se refere à minha pessoa. (1979, 88, grifo do autor).

Quando alguém se refere a si mesmo por meio do seu nome próprio e uma terceira pessoa se refere a um mesmo indivíduo por meio de uma descrição, duas diferentes proposições estão sendo expressas à luz da teoria Fregeana da proposição). Isso porque quem não saiba da coreferencialidade dos termos singulares envolvidos pode, de forma consistente, afirmar uma das predicações e negar a outra ou vice-versa. Suponhamos que ao investigar o assassinato de Laio na condição de rei de Tebas, Édipo seja levado a conjeturar o seguinte: (1) O assassino de Laio sente vergonha pelo seu feito. Quando uma terceira pessoa pensasse: (2) Édipo sente vergonha pelo seu feito, estaria se referindo à mesma pessoa. Mas na medida em que Édipo não soubesse que nome “Édipo” e a descrição definida “o assassino de Laio” se referem a uma mesma pessoa (ele próprio), Édipo tanto poderia de forma consistente tanto afirmar (1) e negar (2), quanto afirmar (2) e negar (1). Segundo a teoria Fregeana da proposição, (1) e (2) exprimem proposições diferentes. Na avaliação de Tugendhat, a coisa muda de figura quando os termos singulares envolvidos são as expressões dêiticas “eu” e “ele”. Quando alguém se refere a si mesmo por meio do pronome de primeira pessoa e um terceiro (ou a própria pessoa) se refere ao mesmo indivíduo por meio do pronome de terceira pessoa, uma

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5 mesma proposição estaria sendo expressa. Assim, Édipo não poderia afirmar (3) e negar de forma consistente (4): (3) Ele (fazendo referência à sua própria pessoa) se sente envergonhado. (4) Sinto-me envergonhado. Entretanto, embora uma mesma proposição esteja sendo expressa a partir da perspectiva da primeira e terceira pessoas, apenas aquele que entretém o pensamento (4) possuiria um conhecimento imediato de si. São observações e inferências que levam alguém a pensar em (3). Assim, a simetria semântica é seguida por uma assimetria epistemológica entre as orações psicológicas em primeira e terceira pessoas. Em outras palavras, a mesma proposição é conhecida de forma distinta a partir da perspectiva da primeira e da terceira pessoas. Para conhecer a verdade de (3), tenho que observar a conduta da pessoa a quem atribuo vergonha ou fazer inferências, enquanto que para que conhecer a verdade de (4) nenhuma observação ou percepção interna do estado mental em questão seriam necessários. Mas se o suposto conhecimento imediato de si enquanto sujeito de estados mentais não pode ser compreendido como a percepção interna de tal estado mental, Tugendhat nos deve uma explicação sobre como entendê-lo positivamente. Seguindo Wittgenstein, Tugendhat afirma que proposições psicológicas em primeira pessoa são imunes a um erro de referência quando empregadas em conformidade com a sua própria regra de emprego. Assim, se compreendo a regra do emprego do pronome de primeira pessoa, não posso deixar de reconhecer que ao empregar tal pronome estou fazendo referência à minha própria pessoa. Da mesma maneira, se compreendo a regra de uso do predicado “sentir vergonha”, não posso deixar de reconhecer tampouco que o que sinto é vergonha (quando estou sentindo alguma coisa). Tendo reconhecido que o emprego do pronome “eu” é referencial, Tugendhat também se recusa a assimilar as proposições psicológicas em primeira pessoa a meras expressões de estados mentais, como propunha Wittgenstein. Embora as predicações psicológicas da forma (4) não possam ser entendidas como asserções, como as predicações correspondentes na terceira pessoa (3), elas ainda assim exprimem uma forma imediata de saber não baseado, contudo, em um ato de

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6 cognição (Conferir, 1979, 133). Assim, Tugendhat conclui que ao empregar uma proposição psicológica em primeira pessoa em conformidade com a sua própria regra, o sujeito não pode deixar de reconhecer sua verdade de forma imediata.

PROPOSIÇÕES REFLEXIVAS: DE VOLTA COM O PROBLEMA DA CRICULARIDADE Como observamos, para Tugendhat, a autoconsciência só constitui um problema quando abordada segundo o modelo sujeito-objeto tradicional. Uma redescrição do fenômeno em termos predicativos seria capaz de contornar o problema da circularidade. Ter consciência de si significa então saber que um determinado predicado mental φ se aplica à pessoa referida (sem ser identificada) pelo pronome de primeira pessoa em um pensamento sobre si. O conteúdo dessa predicação de si é determinado fundamentalmente pelo chamado princípio da simetria veritativa. Segundo esse princípio, a oração psicológica em primeira pessoa “eu φ” só será verdadeira, quando a oração psicológica em terceira pessoa “ele φ” também o for quando enunciada para fazer referência a mim mesmo. Mas mesmo que o pronome pessoal “ele” se refira ao mesmo indivíduo referido pelo pronome de primeira pessoa, há inúmeras situações nas quais alguém poderia afirmar “eu φ” e negar de forma consistente “ele φ” ou, inversamente, afirmar “ele φ” e negar “eu φ”. No exemplo anterior, Édipo poderia de forma consistente afirmar (3) e negar (4) ou, inversamente, afirmar (4) e negar (3). Suponhamos que o pronome pessoal “ele” se refira a Édipo anaforicamente, por meio da descrição definida “o assassino de Laio” ou por meio do nome próprio “Édipo”: (5) O assassino de Laio cometeu um crime. Ele se sente envergonhado. (6) Édipo cometeu um crime. Ele se sente envergonhado. Não tendo consciência de que ele próprio é o assassino de Laio, Édipo poderia de forma consistente afirmar (4) e negar (5) ou, inversamente, poderia afirmar (5) e negar (4). De forma similar, sofrendo de amnésia, ou desconhecendo que ele próprio é

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7 conhecido como “Édipo”, Édipo poderia de forma consistente afirmar (6) e negar (4) ou, inversamente, afirmar (4) e negar (6). Mas quando Tugendhat concebe a simetria veritativa entre (3) e (4), ele tem em mente o emprego do pronome da terceira pessoa ou como um substituto de uma descrição demonstrativa ostensiva: “essa pessoa” ou simplesmente como um pronome demonstrativo: “esse ai” (Conferir, Tugendhat, 1979, 87): No seu famoso trabalho da década de sessenta, Castañeda nos apresenta uma série de argumentos contrários à suposta equivalência entre (4) e (3). (Conferir, Castañeda, 1966, páginas 42-45). A experiência realizada por Mach em Viena (retratada por Perry em diferentes trabalhos sobre o tema) nos permite ilustrar mais facilmente o ponto principal. Após um dia de trabalho estafante, Mach (um professor famoso) toma um ônibus de volta para casa. Mas ao adentrar no veículo, observa um professor maltrapilho vindo na direção contrária à sua. Nesse momento Mach pensa consigo mesmo: “Olha como ele (essa pessoa) está mal vestido”. Contudo, à medida que se aproxima do seu assento, Mach se dá conta de que ele estava observando sua própria imagem refletida no espelho e que ele, ou seja, essa pessoa maltrapilha, a quem ele se referia de forma ostensiva instantes atrás, era ele próprio. Observando sua conduta no espelho, Édipo poderia de forma consistente afirmar (3) e negar (4) ou, inversamente, afirmar (4) e negar (3), uma vez que ele não teria tiver ciência de que ele próprio é essa pessoa a quem está se referindo por meio do pronome da terceira pessoa “ele”. Assim, à luz da teoria Fregeana da proposição, as orações (3) e (4) exprimem proposições ou conteúdos distintos na medida em que Édipo pode afirmar (4) e negar (4) ou, inversamente, afirmar (3) e negar (4) de forma consistente. Segundo o exemplo anterior, mesmo conhecendo o significado dos termos singulares e gerais envolvidos, Mach poderia acreditar de forma consistente que ele (ou seja, esse homem que ele observa caminhado na direção contrária à sua) está maltrapilho, sem ter que acreditar, contudo, que ele próprio está maltrapilho e vice-versa. Se quisermos reconhecer a simetria veritativa entre (3) e (4) proposta por Tugendhat, reconhecendo que (3) e (4) enunciam um mesmo conteúdo (ou seja, possuem as mesmas condições de verdade), devemos abandonar a teoria Fregeana da proposição em favor da teoria referencialista (Kaplan, 1989a e 1989b). Ao enunciar (3) e (4),

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8 Édipo estaria exprimindo, segundo expressão cunhada por Kaplan, uma mesma proposição singular que tem o próprio Édipo como seu constituinte e não uma condição da sua identificação (um sentido fregeano ) expressa por uma descrição definida que seria satisfeita contingentemente por Édipo. Tal proposição seria o conteúdo (2) formulado acima: (2) Édipo sente-se envergonhado. Quer quando pense que ele próprio ou ele (essa pessoa designada ostensivamente) ou que Édipo está se sentindo envergonhado, Édipo estaria exprimindo um mesmo estado de coisas que tem a forma da proposição singular (2). À luz do princípio da simetria veritativa de Tugendhat, (4) não seria verdadeira a menos que (3) também o fosse. Entretanto, na medida em que Édipo pode acreditar que ele próprio está se sentindo envergonhado sem ter que acreditar que Édipo ou ele estejam se sentindo envergonhados ou acreditar ainda que ele ou que Édipo esteja se sentindo envergonhados sem ter acreditar que ele próprio está se sentindo envergonhado, o conteúdo expresso em (2) (e o princípio da simetria veritativa) não são capazes de exprimir o que é próprio à auto-referência reflexiva. A autoconsciência deve ser entendida como uma forma consciente de auto-referência em oposição a uma forma casual e não-consciente de auto-referência. Quando Édipo amaldiçoa o assassino de Laio, ele se refere a si mesmo sob a forma de um pensamento predicativo: o assassino de Laio está amaldiçoado. Mas ele não tem consciência que está se referindo a si mesmo uma vez que não sabe que a descrição definida “o assassino de Laio” se aplica unicamente a sua pessoa. Édipo só se refere conscientemente a si mesmo por meio de tal descrição definida quando, ao final da tragédia, reconhece que ele próprio é o assassino de Laio. Essa capacidade peculiar de se referir conscientemente a si mesmo é caracterizada em orações principais do discurso direto como (4) pelo emprego do dêitico essencial “eu” (Perry, 1979), e em orações subordinadas em um relato sobre uma terceira pessoa pelo pronome reflexivo indireto “ele (ela) próprio” como um quasi-indicador (Castañeda, 1968), como no exemplo: (7) Édipo pensa que ele próprio* está amaldiçoado1 1

Castañeda se utiliza do sinal para indicar o reflexivo indireto.

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A alternativa a uma teoria puramente referencial seria uma teoria descritiva do conteúdo da predicação de si capaz de dar expressão à reflexividade própria ao emprego do pronome de primeira pessoa. Segundo Reichenbach, só podemos entender como diferentes ocorrências de expressões dêiticas e de demonstrativos de um mesmo tipo poderiam fazer referência a coisas diferentes sob a suposição de que o emprego dessas ocorrências faria referência a elas mesmas (reflexividade) (Reichenbach 1947). Assim, haveria uma sinonímia entre o pronome de primeira pessoa “eu” empregado em (4) e o misto de descrição e demonstração: “o locutor dessa frase em primeira pessoa” ou, alternativamente, “o pensador desse pensamento em primeira pessoa”. Assim, ao enunciar a oração predicativa (4) (ou nela pensar), Édipo estaria exprimindo o seguinte conteúdo: (8) O pensador desse pensamento em primeira pessoa (4) sente-se envergonhado. (8) nos permitiria compreender a diferença de significação cognitiva entre (4) e as demais asserções. Édipo pode acreditar que Édipo, ou que ele (essa pessoa), está se sentindo envergonhado sem ter acreditar que ele próprio* está se sentindo envergonhado uma vez que as condições de verdade reflexivas de (4) são inteiramente distintas das condições de verdade reflexivas de (3) e (2). Enquanto (7) exprime as condições de verdade reflexivas de (4), as condições de verdade reflexivas de (2) e (3) teriam a forma das seguintes proposições, respectivamente: (9) O indivíduo que responde pelo nome de “Édipo” em (2) sente-se envergonhado. (10) O indivíduo que é referido pelo pronome “ele” em (3) sente-se envergonhado. Segundo a teoria díctica , a auto-referência reflexiva (4) seria sempre mediada pelo próprio pensamento auto-referente reflexivo (8)2. Uma pessoa faria referência consciente a si mesma na medida em que empregasse uma predicação de si auto-referente. Essa abordagem se apresenta como uma conseqüência natural do truísmo de que o dêitico “eu” se refere a quem quer que o empregue. O emprego do pronome de primeira pessoa que reflete o domínio da sua semântica parece exigir que o falante saiba que ele está se auto-referindo ao realizar tal emprego. (8) parece 2

“Teoria díctica” como tradução mais adequada de “token-reflexive theory” é uma sugestão do parecerista anônimo acolhida por mim.

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10 constituir, portanto, uma das coisas fundamentais que uma falante competente deve saber ao enunciar a predicação (4). Mas a despeito das razões que militam a favor da teoria díctica, (8) e (4) não podem ser equivalentes uma vez que exprimem estados de coisas diversos. Quando Édipo enuncia ou pensa (4), ele está predicando da sua própria pessoa a propriedade de estar amaldiçoado. (4) é verdadeira quando o indivíduo Édipo satisfaz a propriedade de sentir-se envergonhado. Quando ele enuncia ou pensa (8), em contrapartida, ele está predicando a sensação de vergonha de alguém que satisfaça a condição de ser o locutor ou o sujeito pensante de (4). (8) é verdadeira quando o locutor ou o sujeito pensante de (4) satisfaz a mesma propriedade de sentir-se envergonhado. Segundo a terminologia introduzida por Kaplan, enquanto (4) exprime uma proposição singular sobre Édipo, (8) exprime uma proposição geral que não é especificamente sobre Édipo, mas antes sobre uma condição de identificação que é satisfeita por Édipo: ser o locutor ou o sujeito pensante de (4) (Cf. Kaplan 1989a). Mas se a proposição singular (2) é incapaz de exprimir o que é próprio à autoconsciência, a proposição geral (8) parece nos conduzir de volta ao problema da circularidade levantado por Fichte. Segundo a teoria do pensamento de ordem superior (HOT) que constitui o sucedâneo contemporâneo da tradicional teoria da reflexão, o indivíduo só poderia se auto-referir de forma consciente na medida em que a proposição em primeira pessoa (4) dispusesse a identificar a si mesmo como o autor de (4) ao enunciar ou entreter em pensamento a proposição de ordem superior expressa por (8) (conferir Rosenthal 2004, pág. 168). A esse respeito, Bermúdez observa o seguinte: Parece claro que tal pessoa não terá êxito em referir-se a si mesmo a menos que ela saiba que ela produziu a ocorrência em questão. Mas isso nos conduz diretamente de volta ao problema da circularidade. Empregar o pronome de primeira pessoa de modo a refletir o domínio da sua semântica (...) exige saber que se é o autor de tal emprego e isso é um conhecimento com um conteúdo de primeira pessoa. (Bermúdez, 1997 15).

Se, por um lado, é apenas por meio do emprego do pronome de primeira pessoa que consigo fazer referência a mim mesmo de forma consciente, por outro lado, não terei êxito em fazer referência a mim mesmo pelo emprego de tal pronome a menos que já saiba que sou o produtor dessa ocorrência. Assim compreendida, a dificuldade levantada originalmente por Fichte sobrevive ao giro lingüístico favorecido por 10

11 Tugendhat. O problema levantado por Fichte repousa sobre a suposição geral de que a auto-referência reflexiva tem que ser ela própria um ato realizado de forma autoconsciente (no qual o sujeito que se auto-refere saiba que é ele quem realiza o ato de auto-referência). Assim, ou bem é necessário um conteúdo de ordem superior para que o sujeito possa se tornar consciente de que ele próprio está realizando tal ato, ou bem o sujeito se torna consciente de que está se auto-referindo no próprio ato original de auto-referência. No primeiro caso, nos vemos confrontados com um regresso infinito enquanto no segundo com um círculo vicioso. Assim, o problema inicial da circularidade pode ser descrito semanticamente por meio de um dilema fundamental. Por um lado, a proposição singular (2) e o princípio da simetria veritativa são incapazes de exprimir o que é próprio à auto-referência cognitiva. Por outro lado, a proposição geral (8) parece pressupor a auto-referência cognitiva ao invés de explicá-la predicativamente.

ATITUDES DE SE COMO ATITUDES LIVRES DE IDENTIFICAÇÃO: ROMPENDO O CÍRCULO Mas muito provavelmente o que Tugendhat tinha em mente com a sua abordagem linguística não se resumia à simples ideia que a autoconsciência se estruture como uma forma de saber proposicional em primeira pessoa. Segundo Tugendhat, se conheço o significado ou a regra do emprego de uma determinada predicação psicológica (4), então não tenho como que não saber que estou me auto-referindo: Já observamos que a frase “eu φ” também é verdadeira quando empregada meramente em conformidade com sua regra. Disso se segue, contudo, que eu também posso ter certeza de que a frase “eu φ” é verdadeira quando a emprego meramente em conformidade com a regra (conferir, Tugendhat, 1979, 133).

Wittgenstein foi certamente o primeiro a tomar ciência dessa peculiaridade semântica ao distinguir dois tipos de orações em primeira pessoa. O primeiro seria aquele no qual o pronome de primeira pessoa é usado como sujeito: (11) Tenho dor O segundo tipo é caracterizado pelo emprego do mesmo pronome como objeto: 11

12 (12) Tenho o braço quebrado. O que distingue o emprego do pronome de primeira pessoa como sujeito do emprego do mesmo pronome como objeto é a impossibilidade de um erro peculiar. Enquanto o emprego de tal pronome como objeto envolve o reconhecimento de uma pessoa dentre outras e está, por essa razão, sujeito a um erro de identificação, o emprego do mesmo pronome de primeira pessoa como sujeito não estaria sujeito ao mesmo tipo de erro uma vez que não faria referência a nada (Wittgenstein 1958). Shoemaker acolhe a distinção proposta por Wittgenstein, mas sustenta contra este que em seu emprego como sujeito o pronome de primeira pessoal é referencial, embora de uma forma diferente do seu emprego como objeto (Shoemaker 1968). Se podemos inferir que alguém tem dor da afirmação (11) como também que duas pessoas têm dor da afirmação (11) e da suposição de que Paulo tem dor, o pronome da primeira pessoa possui inegavelmente a função de termo singular em (11). Shoemaker busca tornar compreensível a distinção proposta por Wittgenstein, analisando as orações em primeira pessoa nos seus dois componentes básicos: a identificação, realizada pelo termo singular “eu”, e a predicação, realizada por um termo geral. No primeiro tipo de conteúdo (o eu como objeto), estamos sujeitos a dois tipos de erro: um relativo ao componente predicativo e o outro relativo ao componente da identificação. Acreditando, por exemplo, em (12) posso corretamente identificar um objeto (meu braço) que não esteja quebrado efetivamente. Mas tendo corretamente acreditado que alguém tem o braço quebrado, posso supor erroneamente que é o meu braço que está quebrado quando se trata de um braço alheio. Já no segundo tipo de conteúdo (o eu como sujeito), estamos sujeito ao erro apenas relativamente ao componente predicativo. Ao pensar (11), posso me equivocar quanto ao fato de ser dor o que estou sentido, mas jamais quanto ao fato de ser eu o indivíduo que está sentido dor. A impossibilidade de tal erro foi batizada por Shoemaker como a “imunidade ao erro por identificação relativo ao emprego do pronome da primeira pessoa do singular”. A posição original de Shoemaker (compartilhada aqui por Tugendhat) ainda exige um reparo fundamental. Em primeiro lugar, como Evans (1982) corretamente assinala, a imunidade ao erro por identificação não parece estar restrita à classe das proposições

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13 psicológicas do em primeira pessoa na quais um predicado mental é auto-atribuído. Suponhamos a seguinte afirmação: (13) Minhas pernas estão cruzadas. Sob a suposição de que sei que as pernas de alguém estão cruzadas, não faz sentido indagar se sei que são as minhas pernas que estão cruzadas e não as pernas de uma outra pessoa. Mas se é assim, a ausência de identificação na predicação de si não pode ser explicada pela auto-atribuição de um predicado mental. A tese central de Evans é a de que a imunidade ao erro por identificação não seria uma propriedade de proposições simpliciter, mas antes de juízos ou crenças sobre proposições a partir dos seus modos de justificação. Assim o juízo expresso por (11) será imune ao erro por identificação quando sua justificação estiver baseada nas sensações de dor do próprio sujeito. Da mesma forma, o juízo expresso por pela asserção (13) também estará imune ao erro por identificação quando sua justificação estiver baseada em informações proprioceptivas sobre a posição dos membros do próprio corpo. Em ambos os casos, a informação de que uma determinada propriedade está sendo instanciada é normalmente acompanhada pela informação adicional de que sou eu quem a estou instanciando. Nestes termos o círculo de Fichte está rompido de uma vez por todas. Se é verdade que quando pensamos em nós mesmos como objetos temos que nos identificar como objetos dentre outros, quando pensamos em nós mesmos como sujeitos estamos imunes a qualquer erro de identificação pela simples razões que tais proposições não contêm nenhum componente de identificação. Assim, embora a proposição reflexiva da forma (8) exprima o conhecimento da minha identidade como autor do pensamento (4), eu não necessito me identificar como tal por meio de (8) como o autor de (4) uma vez que o pensamento (4) não contém nenhum componente de identificação. Quando penso (4) não tenho que me identificar como seu autor mediante (8).

REFERÊNCIAS:

Bermúdez, José. 1998. The paradox of self-consciousness. Cambridge: MIT Press.

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14 Castañeda, H. N., 1966. "He": A study in the logic of self-consciousness. Ratio, 8: 130-57. Castañeda, H. N. “Indicators and Quasi-Indicators”. American Philosophical Quarterly, 4, 1967: 85--100. Castañeda, H. N.1989. “The reflexivity of self-consciousness: Sameness/identity, data for artificial intelligence”. Philosophical Topics, 17:27-58. Cramer, K. 1970. Erlebnis. Em: H. Gadamer , Stuttgarter Hegel Tage. Bonn. Dretske, F., 1981. Knowledge and the Flow of information. Bradford Books, MIT Press, Cambridge, Massachusett. Dretske, F., 1995. Naturalizing the mind. MIT Press. Evans, G, 1982, Varieties of Reference, Oxford University Press. Fichte, J.G., 1794. Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre. Jena und Leipzig. Henrich, D. 1967. Fichtes ursprüngliches Einsicht. Frankfurt a. M. Henrich, D.1970. “Selbstbewusstsein: kritishe Einleitung in eine Theorie”. Em: R. Bubner (Editor), Hermeneutik und Dialetk, Tübingen. Kaplan, David. “Afterthoughts”. Em (Almog, et. al., 1989a), 565-614. Kaplan, David. “Demonstratives”. Em (Almog, et. al., 1989b), 481-563. (Manuscrito original de 1977). Perry, John. 1979. “The Problem of the Essential Indexical”. Noûs 13: 3-21. Perry, John, Barwise, Jon. 1983. Situations and Attitudes. Cambridge, MIT Press. Perry, John. 1985. "Self-Knowledge and Self-Representation," Proceedings of IJCAI (1985): 238-42. Perry, John. 1993. The Problem of the Essential Indexical and Other Essays. New York: Oxford University Press. Perry, John. 2001. Reference and Reflexivity. Stanford: CSLI Publications. Pothast, U. 1971. Über einige Fragen der Selbstbeziehung. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann.

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15 Reichenbach, Hans. “Token-reflexive words”. Em: Elements of Symbolic Logic. New York: The Free Press, 1947: 284ff. Rosenthal, D., 2004. “Being conscious of ourselves”. Monist 87, 2. Shoemaker, Sydney. 1963. Self-knowledge and self-identity. Ithaca, NY: Cornell University Press. Shoemaker, Sidney. 1968. “Self-Reference and Self-Awareness”. Journal of Philosophy 65: 555-567. Tugendhat, E. 1979. Selbstbewusstsein und Selbstbestimmung. Sprachanalytische Interpretationen. Tradução inglesa: P. Stern. Self-Consciousness and SelfDetermination. Cambridge, MA: MIT Press, 1986. Tugendhat, E. 1997. Egozentrizität und Mystik. München.1999. Citado a partir da tradução espanhola de Maricio Suárez Crothers Egocentricidad y Mística. Barcelona 2004. Wittgenstein, 1958. The Blue and Brown Books. Oxford: Blackwell.

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