Avaliação crítica do tema da passagem (da servidão à liberdade, da ignorância à sabedoria) na Ética de Spinoza, com foco na teoria das essências eternas dos indivíduos finitos.

June 19, 2017 | Autor: Gustavo Lunz | Categoria: Metaphysics, Baruch Spinoza, Spinoza, Freedom, Spinoza's Ethics
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Avaliação crítica do tema da passagem (da servidão à liberdade, da ignorância à sabedoria) na Ética de Spinoza, com foco na teoria das essências eternas dos indivíduos finitos. Gustavo Lunz Graduando em Filosofia pelo IFCS/UFRJ Resumo: O presente artigo pretende analisar o tema da passagem (da servidão à liberdade, da ignorância à sabedoria) na Ética de Spinoza, investigando como isso se reflete na relação entre as essências eternas e temporais dos indivíduos finitos. Abstract: This paper tries do analyse the change (from servitude to freedom, from ignorance to wisdom) in the Spinoza’s Ethics, investigating how this is reflected in the relation between the eternal and temporal essences of the finite individuals.

1. Introdução. Plano de trabalho.

Avaliar o tema passagem no sistema spinozano importa uma articulação

complexa de diversos conceitos ali forjados e, acreditamos, é simplesmente impossível de empreender sem lançar mão, pontualmente, de outras tantas noções legadas pela tradição filosófica que antecedeu a Ética.

Antes de apontar o que Spinoza tem como passagem e tentar uma crítica,

impõe-se esclarecer os conceitos de essência, essência eterna (e sua “contraparte temporal”), como elas são ou não observáveis nos indivíduos finitos, o que o autor considera liberdade e servidão, ignorância e sabedoria. E uma tal exposição desse conjunto de conceitos somente após tentar compreender o que é eternidade e o “sentido forte” que o determinismo possui para Spinoza.

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Constituído um tal arcabouço conceitual, mostra-se oportuna uma

segunda etapa do texto, destinada a esmiuçar as relações estabelecidas entre os diversos elementos do conjunto. A crítica que se pretende fazer sucede esse esforço e conclui este trabalho. A tarefa não é pequena.

2. Determinismo e eternidade.

A primeira das premissas que se faz necessária é aquela atinente ao

sentido forte do determinismo que Spinoza assume na Ética. Não nos parece que haja como se afastar desse sentido forte se levarmos em conta a Proposição 29 da 1a Parte da Ética (“Nada existe, na natureza das coisas, que seja contingente; em vez disso, tudo é determinado, pela necessidade da natureza divina, a existir e operar de uma maneira definida”). A proposição não deixa espaço para qualquer especulação em contrário: não só as coisas existem por determinação da natureza divina como estão destinadas por essa mesma natureza a operarem de modo determinado, não se podendo esperar que assumam qualquer feição contingente. O erro de se atribuir contingência aos eventos é demonstrado em diversas passagens da obra1.

No mais, a localização da referida proposição na obra (1a Parte – Deus) e a

feição que possui no sistema spinozano (Deus é a única substância e causa imanente de todos os entes finitos) retira qualquer brecha para que se sustente sua vigência parcial ao modo de uma lex specialis. Os termos escolhidos para iniciar sua construção (“Nada existe, na natureza das coisas...”, etc.) impede que se considere a assertiva uma norma geral que suporte exceções em capítulos circunscritos desse mesmo sistema.

1 Um exemplo dessas demonstrações é encontrado na Ética, 2a Parte, Proposição 44, Corolário. 2 Neste sentido, é de interesse o seguinte trecho na Ética, 1ª Parte, Proposição 17, Escólio 2: “(…);

como na eternidade não há quando, nem antes, nem depois, segue-se exclusivamente da perfeição de Deus que ele nunca pode, nem alguma vez pôde, decidir diferentemente, ou seja, que Deus não existiu anteriormente aos seus decretos nem pode existir sem eles.” 3 É o caso das Definições 1, 4, 6 e sua explicação, explicação da Definição 8; Axioma 7. O termo



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Tudo o que foi, é e será está determinado a acontecer de modo preciso e

em ordem também estabelecida, é o que indica a Proposição 33 da mesma 1a Parte da Ética (“As coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus de nenhuma outra maneira nem em qualquer outra ordem que não naquelas em que foram produzidas.”). O cenário de eventos é fixo, preordenado.

Deus não só possui conhecimento dos tempos presente, passado e futuro

como também a eles tem acesso constante, na medida em que é mais que sempiterno (simplificadamente imagine-se um ente imperecível, mas sujeito ao devir, preso e limitado à série “A” de Mac Taggart), é verdadeiramente eterno. O sentido spinozano de eternidade não difere daquele legado pela tradição filosófica precedente

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. Agostinho e Boécio já atribuíam a Deus esta

transcendência ao tempo, não sujeição ao devir.

3. Essência. Essências finitas. Essências eternas.

O texto da Ética inicia-se com uma lista de noções, “Definições” e

“Axiomas” necessários para que o leitor se ambiente e possa se orientar através das proposições que se seguem nas cinco partes da obra. Ali fixam-se os conceitos de substância, atributos, modos, liberdade, eternidade, entre outros. São ao todo oito definições e sete axiomas que se complementam com o fim de tornar coerentes as proposições que construirão o sistema.

Interessa para os fins do trabalho o que Spinoza entende por essência,

que não recebe tratamento exclusivo em nenhuma das definições e axiomas que integram o preâmbulo da 1a Parte da Ética, embora o termo ali apareça nada menos que seis vezes3, às quais que se pode somar as ocorrências do termo natureza, tomado no trecho como seu sinônimo a partir da assimilação que o 2 Neste sentido, é de interesse o seguinte trecho na Ética, 1ª Parte, Proposição 17, Escólio 2: “(…);

como na eternidade não há quando, nem antes, nem depois, segue-se exclusivamente da perfeição de Deus que ele nunca pode, nem alguma vez pôde, decidir diferentemente, ou seja, que Deus não existiu anteriormente aos seus decretos nem pode existir sem eles.” 3 É o caso das Definições 1, 4, 6 e sua explicação, explicação da Definição 8; Axioma 7. O termo “natureza” ocorre como sinônimo 3 vezes, nas Definições 1, 2, 7.



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próprio Spinoza empreende na Definição 1. A Definição 4 liga indissociavelmente as noções de essência e atributos da substância, como a dizer que os atributos expressam aquilo que a substância é, aquilo que se percebe a partir da substância simplesmente a partir da constatação de sua existência. Mas a noção spinozana comporta diferenças em relação ao que os medievais conceberam por essência4. Na Definição 2 do preâmbulo da 2a Parte e no Escólio ao Corolário da Proposição 10 dessa mesma 2a Parte da Ética, Spinoza indica que a implicação entre essência e coisa (no caso, o modo homem) é dupla. Deus é a causa imanente e eficiente de tudo, mas não está incluído nas suas essências5.

Mas Spinoza aponta no texto também para essências finitas dadas no

tempo, e outras também finitas mas eternas. As essências eternas de modos finitos existentes (essências formais) ou mesmo inexistentes estão inseridos na ideia infinita de Deus conforme indicado na Proposição 8 da 2a Parte da Ética. No que diz respeito especificamente à essência do homem, ela é “constituída por modificações definidas dos atributos de Deus”6, resultado de uma coordenação de extensão e pensamento7. No que diz respeito às essências dadas no tempo, a Proposição 7 da 3a Parte da Ética a essência finita e atual (inserida no tempo, sujeita ao devir) de uma coisa é definida como o “esforço pelo qual, quer sozinha, quer em conjunto com outras, ela age ou se esforça por agir, isto é (pela prop. 6), a potência ou o 4 É

preciso estar atento para o fato de que a existência e a essência no que diz respeito à substância spinozana se colapsam (Proposição 7 da Ética, 1a Parte) e que sua existência é também necessária nos termos da Proposição 11 dessa mesma parte. Lançar mão dos recursos explicativos de mundos possíveis (onde propriedades essenciais de p são aquelas que ocorrem em todos os mundos onde p existe e propriedades necessárias aquelas das quais p é dotado em todos os mundos possíveis) mostra-se inadequado no sistema spinozano. Qualquer estipulação distinta da atual emerge como eivada de erro, mutilada e inadequada ante a Proposição 33 da Ética, 1a Parte. 5 “(...); Deixo, entretanto, isso de lado, pois meu único objetivo aqui era o de fornecer a razão pela qual não disse que à essência de uma coisa pertence aquilo sem o qual a coisa não pode existir nem ser concebida. É que, certamente, sem Deus, as coisas singulares não podem existir nem ser concebidas e, no entanto, Deus não pertence à sua essência. Afirmei, em vez disso, que o que constitui a essência de uma coisa é aquilo que, se dado, a coisa é posta e que, se retirado, a coisa é retirada, ou aquilo sem o qual a coisa não pode existir nem ser concebida, e inversamente, aquilo que sem a coisa não pode nem existir nem ser concebido” (grifei). 6 Ética, 2ª Parte, Proposição 10, Corolário. 7 Além de ser dotado de um corpo, o homem pensa (Axioma 2, 2a Parte da Ética). Não há qualquer subordinação entre extensão e pensamento, mas paralelismo. Por isso é utilizado o termo coordenação.



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esforço pelo qual ela se esforça por perseverar em seu ser”. As referências ao agir não são gratuitas: a Proposição 3 da mesma 3a Parte liga as ações da mente às ideias adequadas. E o termo “perseverar” parece indicar mais do que duração temporal, mas um espelhamento do símile eterno dessa essência. Dadas a definição de finitude fornecida no preâmbulo da 1a Parte como a limitação que algo sofre em função de outra coisa da mesma natureza (Definição 2), e a Proposição 4 da 3a Parte (“Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior”- um modo outro que limite e tolha seu agir), insinua-se uma diferença entre as possibilidades lógicas da ação, a amplitude possível do agir de uma essência finita eterna em comparação àquilo que efetivamente se dá num mundo em que outras essências de modos concorrem. Questão que se impõe é como se articulam essas duas espécies de essências, se e como interagem, já percebido que há uma diferença/distância entre elas.

4. Liberdade. Beatitude. A parte eterna da mente humana.

Entender como se articulam essas duas ordens de essências do seres

finitos passa necessariamente por entender qual é a verdadeira “felicidade” possível aos homens, de que maneira poderiam ser verdadeiramente livres e cheios de beatitude. Spinoza traça a liberdade com contornos muito próprios, reservando-a quase que exclusivamente à substância divina 8 . A liberdade acessível aos homens é a consciência resignada de sua sujeição aos decretos divinos, observáveis na ordem das coisas, dos fatos, da natureza; uma submissão a Deus que os livre de serem reféns de expectativas e receios. 8 Conforme

Definição 7 da 1a Parte da Ética livre é a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir. Isso leva a incontornável conclusão de que apenas Deus é inteiramente livre, sendo os modos sempre determinados a agir por causas externas. A inconsciência desses princípios é que produziria a ilusão de liberdade que os homens possuem acerca da liberdade de seus apetites e ações. Outra passagem onde é frisada a ilusão de liberdade humana está inserida no Apêndice da 1a Parte da Ética: “Com efeito, disso se segue, em primeiro lugar, que, por estarem conscientes de suas volições e seus apetites, os homens se creem livres, mas nem em sonho pensam nas causas que os dispõem a ter essas vontades e esses apetites, porque as ignoram.” (grifei)



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No longo escólio final à Proposição 49 da 2a Parte da Ética a suprema

felicidade e a beatitude humana são singelamente identificadas com o conhecimento de Deus (não a consequência de tal conhecimento, mas ele próprio) que induz à submissão, à realização de “ações que o amor e a generosidade nos aconselham”. Esse conhecimento se traduz obviamente em ideias adequadas e não mutiladas da substância e da ordem das coisas. Mais: são justamente essas ideias adequadas9 que constituirão a parte da mente humana que não perece após a morte do corpo, conforme as Proposições 23, 29 e 31 da 5a Parte da Ética. Os binômios servidão/liberdade e ignorância/conhecimento mostram-se como dois aspectos do tema passagem10 . A aquisição de conhecimentos do terceiro gênero 11 é crescentemente libertadora do homem, não sujeita a retrocessos. A aquisição de ideias adequadas pelo homem que cresce em conhecimento se é efetiva, deve também ser perene. Como a verdade é índice de si mesma, ela faz dissipar dúvidas e previne o erro acerca daquele objeto visado, conforme Proposição 43 da 2a Parte da Ética. A seguir tem-se um gráfico traçado a partir dessas considerações e que pretende retratar a evolução do estado emocional e a proporção de ideias mutiladas e adequadas na mente de um homem que conseguisse atingir a plena sabedoria, a beatitude spinozana. A linha pontilhada retrata a sua oscilação de 9 A Proposição 31 da 5a Parte da Ética se refere a conhecimento dos segundo e terceiro gêneros. 10 Nesse sentido a Proposição 6 da 5a Parte da Ética: “À medida que a mente compreende as coisas

como necessárias, ela tem um maior poder sobre os seus afetos, ou seja, deles padece menos.” 11 No que diz respeito aos três gêneros de conhecimento, eles são bem caracterizados por Spinoza no Escólio 2 da Proposição 40 da 2a Parte da Ética. Os conhecimentos de primeiro gênero são aqueles que decorrem das sensações brutas e das opiniões herdadas, próprias ao senso comum. Os conhecimentos do segundo gênero decorrem da razão e operações dedutivas. O terceiro gênero de conhecimento constitui o material de uma assim chamada “ciência intuitiva” que partes da ideias adequadas da essência formal de certos atributos divinos, nas palavras do próprio autor. Parece-nos que o contato intelectual e apreensão dessas essências propicia ao homem tornado sábio tudo o que necessita para, no mundo, estabelecer ideias adequadas acerca de cada um dos modos finitos com os quais se depara. Difícil estabelecer se a utilização de um vocabulário místico (beatitute, etc.) tem mesmo em mira a conquista dessa ciência intuitiva como uma ocasião de “iluminação”, nada impedindo que se possa considera-la como a culminância de uma atividade diuturna de operações intuitivas, de estudo e reflexão filosóficos. Por fim, deixemos assente que o segundo e terceiro gêneros de conhecimento são aqueles que inegavelmente propiciam ideias adequadas, elementos da parte eterna da mente, aquela que Spinoza afirma sobreviver ao corpo.



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ânimo; o tamanho das barras retangulares verticais, sua potência de agir. O conteúdo branco indica o quantitativo de ideias mutiladas; o escuro, o quantitativo de ideias adequadas. Pretendi retratar cada um dos momentos da vida de uma pessoa que viesse a se tornar sábio ao final de sua vida, indicando a crescente preponderância das ideias adequadas (propiciadas pelos conhecimentos do segundo e terceiro gêneros) no conjunto total de ideias que habitam sua mente. A linha pontilhada oscila muito a princípio, na medida em que seu estado de ânimo é prisioneiro de temores e expectativas que nutre, efeito de suas ideias mutiladas (em t1 elas são a totalidade – barra totalmente branca). O ritmo da oscilação diminui na mesma proporção do aumento da barra escura (a representar ideias adequadas) e assume a forma reta indicadora da tranquilidade quando, em t5, podemos afirmá-lo sábio e detentor de uma mente quase toda eterna. Sua potência de agir cresce à medida em que adquire mais conhecimento do segundo e terceiro gêneros. O gráfico ficaria mais ou menos assim:

t1





t2

t3

t4 t5



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5. Relações entre essências formais e atuais. Causalidade, Mereologia?

As relações entre as essências formais e atuais representam desafio interpretativo de monta. As referências à Mereologia e à causalidade são bastante numerosas no texto da Ética e não estão concentradas. Por isso, esta tentativa de análise não se pretende completa. Confiando na harmonia com que o próprio Spinoza construiu seu sistema, tal análise lança mão de algumas proposições para tentar levar luz sobre as relações entre essas essências, deixando de lado, tanto quanto possível, conceitos anacrônicos12 e estranhos à concepção do autor. Problema outro é verificar se essas soluções interpretativas não são contraditórias. Vejamos.

Não há motivo para repetir aqui as indicações que Spinoza faz sobre o que

sejam as essências formais e atuais, objeto da seção 3 supra. Assente o que seja uma e outra, cabe aferir se é possível dar à essência formal eterna o papel de causa de seu símile temporal. O corolário da Proposição 17 da 1a Parte da Ética parece autorizar o entendimento, que não se coloca em choque com a posição privilegiada que a substância divina ocupa no sistema como causa primordial e imanente de tudo o que existe. Nesse sentido, é interessante que se transcreva o trecho: “Portanto, como o intelecto de Deus é a única causa das coisas, isto é, (como mostramos), tanto de sua essência como de sua existência, ele deve necessariamente delas diferir, seja no que toca à essência, seja no que toca à existência. Com efeito, o que é causado difere da respectiva causa precisamente naquilo que ele recebe dela. Por exemplo, um homem é a causa da existência de outro homem, mas não de sua essência, mas devem diferir, entretanto, no existir. E, portanto, se a existência de um se extinguir, a do outro não se extinguirá por isso; mas se a essência de um pudesse ser destruída e tornar-se falsa, a essência do outro também seria destruída...” A observação é semelhante aquela da nota 4 supra. Tomar um conceito analítico contemporâneo de causalidade (em que p é causa necessária de q sse em todos os mundos nos quais q existe, p também existe e o precede no tempo) simplesmente não traria qualquer vantagem para a interpretação da Ética. 12



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Ao aplicar o entendimento spinozano de causalidade às duas espécies de

essência, emerge como possível considerar que a essência eterna seja causa da existência da essência finita atual do homem, distinta de sua causa justamente no existir. O perecimento do causatum em nada interferiria na existência perseverante da essência formal.

Embora não ostente a mesma importância que a relação substância-

acidente, como já dito, numerosas são as referências à relação parte-todo na Ética. A “Pequena Física” inserta no Escólio da Proposição 13 da 2a Parte da Ética veicula uma série de enunciados que sustentam a precedência ontológica do todo sobre suas partes. E a já citada Proposição 23 da 5a Parte da Ética13, por outro lado, confere aspecto inegavelmente mereológico às relações entre essências formais e atuais. Da mente humana, de sua essência atual duplamente implicada (Proposição 10 da 2a Parte da Ética), o algo que permanece são as ideias adequadas que a compõem. A relação parte todo propicia alguma explicação para a dinâmica dessas essências. Ainda que as considerações da “Pequena Física” levem em conta o atributo extensão, entendo que elas possam ser livremente aplicadas às ideias ante as Proposições 7 da 2a Parte da Ética. O princípio de paralelismo não deve ser considerado como óbice às considerações sobre a eternidade de essências e de ideias, mas como um instrumento que propicia uma livre transição e ampla aplicação das proposições a cada um dos atributos da substância acessíveis ao homem (extensão e pensamento).

À falta de óbice, as ideias adequadas que compõem parte da essência atual

finita podem também compor as essências formais; as ideias mutiladas que entram em sua composição perecem com o corpo (Proposição 21, 5a Parte, Ética). O sistema spinozano não parece comportar um “mundo das ideias” dissociado desse que é vivenciado, levando à conclusão de serem de outra ordem as ideias componentes das essências formais. A conclusão a que se chega, com o 13 “A mente humana não pode ser inteiramente destruída juntamente com o corpo: dela permanece

algo, que é eterno”.



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natural risco de erro, é a de que essências formais eternas e seus correlatos finitos e temporais partilham algo de seus elementos constituintes: as ideias adequadas propiciadas pelos conhecimentos do segundo e terceiro gêneros.

6. Conclusão. A crítica possível.

Ao encerrar o trabalho, a conclusão que se chega é a de que Spinoza tem

bom êxito em estabelecer uma possibilidade de passagem e liberdade num universo regulado pelo princípio de razão suficiente, ainda que para isso as noções de passagem e liberdade (sobretudo esta) tenham uma feição que a tradição filosófica anterior não chancelasse 14 . Como afirmado, a liberdade possível ao homem se traduz em submissão aos decretos divinos, na adesão a essa vontade/intelecto. O sistema spinozano é regulado por um determinismo forte, sem propiciar alterações quaisquer na ordem e elenco de acontecimentos advindos da atividade criadora de Deus.

A substância divina que se expressa através de seus atributos nesse

universo que nos cerca inclui e a corporifica é imutável e ainda assim, é permitido o movimento a seus modos. No que toca à passagem ignorância/conhecimento e servidão/liberdade percebe-se que ela é efetiva para seus modos dentro de uma perspectiva temporal onde é perceptível o acréscimo da potência de agir de um homem que cresce também em conhecimento de Deus. A passagem é predeterminada, mas ainda assim possível. A diferença existente entre as potências de agir das essências atuais e aquelas das essências formais (onde X ≤ Y) propicia o limite a ser atingido pelo esforço em agir, melhor ou pior sucedido em função dos conatus de outros modos da substância. O que se percebe dessa tentativa de interpretação é que Spinoza erigiu seu sistema com

14 “Com efeito, naquelas coisas em que o agir está em nosso poder, igualmente está o não agir, e

naquelas nas quais o não está em nosso poder, também está o sim, de sorte que, se está em nosso poder agir, quando é belo, também o não agir estará em nosso poder, quando é desonroso, e se o não agir, quando é belo, está em nosso poder, também estará em nosso poder agir, quando é desonroso.”, Aristóteles, Ethica Nicomachea I i3 – III8. Tratado da Virtude Moral. Trad. Marco Zingano. São Paulo, Odysseus, 2008.



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opção preferencial pelo princípio de razão suficiente, traduzido no determinismo tantas vezes aludido nestas páginas. Se crítica é possível, é que o resultado obtido em termos de projeto de salvação do homem não diferiu em muito da ataraxia visada por estóicos e outras escolas da Antiguidade, com grave prejuízo ao sentido de liberdade.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



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Ethica Nicomachea II3 – III8. Tratado da Virtude Moral. Aristóteles. Tradução Marco Zingano. São Paulo, Odysseus, 2008.



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