AVATAR: PENSAMENTO MÁGICO NO CIBERESPAÇO. PRODUTO AUDIOVISUAL SOBRE A MONTAGEM INTELECTUAL DE EISENSTEIN

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SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL

ALFREDO GÓES VILLAS-BÔAS

AVATAR: PENSAMENTO MÁGICO NO CIBERESPAÇO. PRODUTO AUDIOVISUAL SOBRE A MONTAGEM INTELECTUAL DE EISENSTEIN

Belo Horizonte - MG 2009

ALFREDO GÓES VILLAS-BÔAS

AVATAR: PENSAMENTO MÁGICO NO CIBERESPAÇO. PRODUTO AUDIOVISUAL SOBRE A MONTAGEM INTELECTUAL DE EISENSTEIN

Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do título de Especialista em Artes Visuais apresentado ao Departamento de Educação do SENAC/MG.

ORIENTADORA: Profa. Ms. Heloisa Nazaré dos Santos

Belo Horizonte - MG 2009

VILLAS-BÔAS, Alfredo G. Avatar: pensamento mágico no ciberespaço – produto audiovisual sobre a montagem intelectual de Eisenstein/ Alfredo Góes Villas-Bôas – Belo Horizonte, 2009. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Artes Visuais) – SENAC/MG, 2009. 61 p. Inclui bibliografia.

AVATAR; CIBERESPAÇO; PENSAMENTO MÁGICO; TEORIA DA MONTAGEM.

ALFREDO GÓES VILLAS-BÔAS

AVATAR: PENSAMENTO MÁGICO NO CIBERESPAÇO. PRODUTO AUDIOVISUAL SOBRE A MONTAGEM INTELECTUAL DE EISENSTEIN

Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do título de Especialista em Artes Visuais apresentado ao Departamento de Educação do SENAC/MG.

Aprovada em

de

de 2009.

BANCA EXAMINADORA

Professora: Roberta Lopes

Professora MSc.: Heloisa Nazaré dos Santos

Professor MSc.: Marcelo Amianti

Dedico este trabalho a minha família, amigos e as boas companhias excêntricas que articulam o discurso em assuntos não óbvios e fazem delirar o verbo.

RESUMO Este trabalho visa à produção de um curta-metragem de animação em vídeo digital no qual serão apropriadas as possibilidades de experimentação do vídeo enquanto um meio audiovisual de características particulares. Tais características agregam elementos do Cinema e da TV engendrando o que seria uma “linguagem do vídeo” através de “tendências” recorrentes em diferentes produtos videográficos. Será apropriado do pesquisador Arlindo Machado, um paralelo entre a teoria da montagem de Eisenstein e maneira como o fazer videográfico se apropriou de seus conceitos na construção de planos de enquadramento sintéticos. O curta-metragem abordará como tema o pensamento mágico, entendimento da realidade através da magia e do mito, manifestado em consonância com o contemporâneo fenômeno da hibridação e/ou “cyborgização” entre homem e máquina através de extensões do corpo material para um corpo virtual, como proposto por André Lemos. O “avatar”, abordado na concepção estruturada nos estudos de cibercultura, em que o homem personifica determinado corpo virtual através das interfaces gráficas nos ambientes de simulação das redes telemáticas, será tratado como um corpo editável, carregado de possibilidades antropomórficas e zoo-antropomórficas, típicas da narrativa mítica. Dessa forma, a narrativa do vídeo será estabelecida através de metáforas visuais que contemplem as tendências de uma possível linguagem o vídeo em consonância com a teoria da montagem de Eisenstein e das possibilidades de transformação das extensões virtuais do homem com elementos oriundos da mitologia e da magia.

Palavras-chave: Avatar; Ciberespaço; Pensamento Mágico; Teoria da Montagem.

ABSTRACT

This work aims to produce a short film of animation in digital video which will provide opportunities for experimenting with the video as audio-visual characteristics. These features add elements of cinema and TV engendering what would be a "language of the video" through "trends” recurring in different video-graphics. It is appropriate to researcher Arlindo Machado, a parallel between the theory of Eisenstein’s montage and how to make a video appropriated his concepts of the construction plans of synthetic environment. The short film will broach, as theme, the magical thinking, understanding of reality through the magic and myth, expressed in harmony with the contemporary phenomenon of hybridization and / or "cyborgização" between man and machine through extensions of the body material to a virtual body as proposed by André Lemos. The "avatar", addressed in the structured design of cyberculture studies, in which the man embodies a virtual body through the graphical interfaces in environments of simulation of such networks, will be treated as a body editable, full of possibilities and anthropomorphic and zooanthromorphic, typical of mythical narrative. Thus, the narrative of the video will be established through visual metaphors that address the trends of possible language the video in consonance with the theory of Eisenstein and assembly of the possibilities of transformation of the virtual extensions of man with elements from the mythology and magic.

Keywords: avatar; cyberculture; magical thinking; theory of montage.

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO

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2 DESENVOLVIMENTO TEÓRICO E PRÁTICO

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2.1 CINEMA: ambiente de imersão

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2.2 SUJEITO – SE: eu, Se e a máquina

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2.3 QUENTE OU FRIO

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2.4 NARCISO: imagem projetada

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2.5 CIBERESPAÇO

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2.5.1 Hermetismo e Gnoticismo

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2.5.2 Ritos de Passagem

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2.5.3 Hierofania: Contato com o divino, tempo e espaço

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2.6 CYBORGS: ficção e realidade

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2.7 AVATARES: extensões cibernéticas

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2.8 VÍDEO: mídia híbrida

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3 DESENVOLVIMENTO DE PRODUTO

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3.1 O produto

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3.2 Pesquisa de imagem e som

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS

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APÊNDICE A – REFERÊNCIAS VISUAIS: pesquisa para composição de quadros e

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texturas APÊNDICE B - SECOND LIFE: ambiente de imersão em realidade virtual em três

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dimensões APÊNDICE C - TAUMATRÔPO: máquina de produção simbólica e figurativa baseada

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no fenômeno da persistência retiniana. APÊNDICE D – OUTRAS IMAGENS

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APÊNDICE E – IMAGENS AUTORAIS

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APÊNDICE F – STORYLINE, ARGUMENTO E COMENTÁRIOS

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APÊNDICE G – ANÁLISE DE CENAS E METÁFORAS

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1 INTRODUÇÃO O interesse presente neste projeto é uma continuação, em outra instância investigativa, do trabalho de conclusão do bacharelado em Comunicação Social, com habilitação em Rádio e TV, na Universidade Estadual de Santa Cruz, UESC – BA. No referido trabalho, foram construídos, como produto de conclusão, uma série de três (03) videoclipes experimentais que adaptavam uma narrativa mítica a partir da instância sonora, contado através de músicas do grupo pernambucano Mundo Livre S/A, para o audiovisual. A referida adaptação seguiu baseada na narrativa do monomito do herói, proposta por Joseph Campbell em seu trabalho “O Herói de Mil Faces” (CAMPBEL, 2004). O que sugere Campbell é que toda narrativa mítica do herói apresenta uma mesma estrutura, variando apenas os aspectos culturais referentes à civilização em que o mito acontece. Verificando que os meios de comunicação de massa possibilitam construções sincréticas entre as franjas do real e do imaginário, Edgar Morin e a “teoria culturológica dos meios de comunicação” apresentam proposições sobre os media1 do século XX, sobretudo o Cinema, como ambientes mitificados e habitados por personagens envolvidos em uma aura mística de glamour, chamados pelo autor de “olimipianos” (MORIN, 1975). Tais personagens seriam proeminentes sujeitos do Olimpo midiático (atores, personalidades da política, cantores, entre outros), ambiente pré-concebido em que esses “semideuses” habitariam como produtos do espetáculo, influenciando as identidades e conseqüentemente o modo de vida do público através de processos de identificação, assim, modificando hábitos da própria audiência. Na contemporaneidade, argumenta-se que estamos em outro período de transição a respeito da hegemonia do audiovisual. Do cinema para a TV, e da TV para os meios telemáticos conectados a internet. Agora, o usuário de computador tem papel fundamental na enunciação do significado e na produção direta do conteúdo do meio. O ciberespaço é tratado como um ambiente sincrético, onde na sociedade pós-industrial o homem manifesta resquícios do pensamento mágico, mítico. No contexto deste trabalho o estudo das possibilidades de imersão do homem no ciberespaço será referenciado nos trabalhos de André Lemos (2007), pesquisador da cibercultura, que sob um recorte 1

Media, vocábulo latino que em português significa meios, tendo sido importado do inglês com a acepção de meios de comunicação de massa, vide mass media.

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antropológico, analisa as experiências de imersão em rede, como o prolongamento da identidade e conseqüentemente da consciência em outra realidade, imaterial e eletrônica, mas de possibilidades simbólicas polissêmicas a partir da hibridação entre homem e máquina em diversos caminhos. Nesse sentido tem-se como proposta de trabalho a construção de um vídeo sobre a presença do pensamento mágico na relação entre o homem e as novas tecnologias das redes telemáticas ligadas à Internet, apresentando metáforas visuais com base na concepção da montagem intelectual de Sergei Eisenstein (1997). O vídeo aqui proposto pode ser compreendido como uma precária produção, ou em uma perspectiva dadaísta, rompe com a distante condição do mainstream - entendido como as estruturas profissionais de uma produção da indústria cultural que prima pelo uso exímio da tecnologia e da técnica, como um meio para um fim – distanciando-se dos padrões técnicos ditados por esse mesmo mercado. Ainda assim, a ousada proposição em vídeo procura compactuar com o que se entende por videoarte, evidentemente uma manifestação das artes visuais, além de seguir a tendência do make yourself, premissa do faça você mesmo, a partir das facilidades de enunciação de imagens disponibilizadas com as tecnologias digitais e de divulgação através da internet e mídias consideradas de baixo custo, como a gravação particular de cd’s e dvd’s.

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2 DESENVOLVIMENTO TEÓRICO E PRÁTICO

2.1 CINEMA: ambiente de imersão Por volta de 1970 e 1980 o pensamento crítico relacionado às teorias de comunicação foi empenhado numa tentativa de instituir uma teoria da subjetividade para o Cinema. Conhecida como “teoria da enunciação cinematográfica”, essa nova corrente pretendia ser organizada através de estudos estruturalistas, semioticistas ou como sugere o pesquisador Arlindo Machado, sob a ótica marxista, feminista, ou multiculturalista, todas engajadas em instituir como “a posição, a subjetividade e os afetos do espectador são trabalhados ou programados no cinema” (MACHADO, 2002, p.83). As abordagens teóricas analisavam de que maneira os processos técnicos e as tecnologias empregadas no filme eram estruturados para a criação e a organização das imagens sugeridas pelo cinema. Na perspectiva da enunciação, as imagens e, conseqüentemente, a montagem, trabalhavam para tornar o espectador sujeito identificado com as proposições subjetivas apresentadas em um filme. O que levanta o autor, citando os estudos de Miriam Hansen (Machado, 2002, p.83), é que todas as tentativas para se criar uma teoria de enunciação do cinema envelheceram antes mesmo que pudessem ser sintetizadas em uma estrutura. O cinema mudara rápido demais, com produções voltadas puramente para o entretenimento, sobretudo a produção hollywoodiana, como os musicais, o que desarticulava o modelo ideal e no qual se sustentava a abordagem estruturalista. O cinema era tratado como “clássico” e o público, considerado de forma igualmente ideal, deveria ter uma relação préestabelecida com o filme em uma espécie de acordo que compreende o indivíduo que sai de seu ambiente quotidiano e se coloca sujeito na sala escura, imerso, de posicionamento bem definido, com a afetividade aguçada na expectativa da projeção. O que veio a decretar a grande crise das teorias estruturalistas do cinema foi o deslocamento da hegemonia de produção audiovisual paras as novas tecnologias, na época, da televisão e do vídeo. Os filmes passaram a ser produzidos não mais apenas para a sala escura, deveriam contemplar a distinta relação do espectador com os novos meios, que não mais deslocava a audiência de seu ambiente particular. Assistir a TV é uma prática dispersiva e distraída, diferente da imersão na sala escura e, portanto,

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menos identificatória, pois a própria exibição da narrativa na TV é fragmentada, interrompida, seriada e sujeita à intervenção do público através da prática do zapping2. Os meios audiovisuais que surgiram após o cinema não possuem a mesma aparente realidade na riqueza de detalhes e na simulação de profundidade encontrados na tela grande da sala escura. O monitor de TV ou vídeo possui imagem granulada, a própria tela é pequena e sem profundidade, exigindo maior concentração do expectador, uma maior concentração de energia sensorial em um único sentido, além da dispersão dos demais sentidos, voltado para o trabalho de decodificação da imagem e dificultando qualquer fascínio ilusionista que o faça desprender-se de sua própria vigília de sensações. Seguindo o pensamento de Machado (2002), o fenômeno da imersão subjetiva do sujeito nas produções simbólicas audiovisuais só vem a ser retomado em alta potência com o desenvolvimento de outros meios posteriores à hegemonia audiovisual da televisão. Tais meios são de concepção digital, conectados à rede mundial de computadores (são exemplos: hipermídia, ambientes colaborativos em rede, realidade virtual, sites de relacionamentos). Com o advento das tecnologias digitais, houve novas possibilidades de experimentação para a produção de conteúdo gráfico, sobretudo com o desenvolvimento de aparelhos informacionais, quase ou totalmente autômatos que em certa medida, libertaram o operador do aparelho de uma série de conhecimentos técnicos necessários para o desempenho da ação de enunciação e produção imagética .

2.2 SUJEITO-SE: eu, SE e a máquina Olá, eu sou você. Preso nesse aparelho Que há pouco você ligou. Você é meu carrasco, além desse botão Ao qual você me entregou. Você me entregou. Você se entregou. (Quarta Parede – Mundo Livre S/A)

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A prática do zapping corresponde à mudança de canal ou emissora que o público realiza durante a exibição de diferenciados programas. Consiste em uma recepção fragmentária do conteúdo da programação, podendo ser aleatório ou seletivo, mas sempre um passeio por diferentes conteúdos.

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Edmund Couchot, pesquisador francês, aponta em seu livro “La technologie dans l’art” um conceito fundamental para se entender o contemporâneo fenômeno de retomada de imersão da subjetividade que é construída nos meios digitais em rede. Lá no não-lugar entendido como ciberespaço, acontece o que Couchot trata por “SujeitoSE”, ou sujet-ON¸. O termo é derivado da junção da palavra sujeito, acoplado ao pronome indefinido ON, equivalente francês ao “SE” do idioma português. O pesquisador buscava exprimir uma nova manifestação da subjetividade, não mais baseada na expressão de uma vontade ou sujeito “real”, esteja ele na função de autor, espectador ou agente narrador de uma diegese, como no caso do cinema ou TV, mas uma construção que parte das limitações e automatismo de um aparelho, uma máquina ou dispositivo técnico (MACHADO, 2002, p.86-87). Machado indica ainda que o conceito apresentado por Couchot é uma apropriação particular que o autor realiza a partir de uma proposição de Merleau-Ponty; “a percepção existe sempre no modo do se”, (PONTY, apud MACHADO, 2002, p.87). De forma bastante simplificada, o Sujeito-SE começa a se delinear quando os processos de produção simbólica ainda não digitais (como a pintura, cinema, TV e o vídeo analógico) adquirem uma autonomia em relação ao operador do maquinário, podendo funcionar com pouca ou nenhuma intervenção humana no instante de um gesto ou ação que enuncia uma construção simbólica específica. A consolidação do automatismo na ação enunciadora de uma técnica figurativa acontece com o surgimento da fotografia no século XIX, mas as primeiras manifestações da enunciação maquínica remetem aos estudos da ótica e geometria na perspectiva renascentista, elaboradas por Leo Baptista Alberti. A automatização das técnicas pictóricas que serviam aos estudos de perspectiva de ponto central através da utilização de aparelhos como o intersector de Alberti, a tavoleta de Brunelleschi e a tela quadriculada de Dürer3, iniciaram o processo que libertaria a pintura do olho e da mão 3

O intersector de Alberti dispunha um véu de fios sobre um quadro de madeira, divididos em bandas pro outros fios mais espessos, formando pequenos quadrados. O aparelho era colocado entre o olho do pintor e a cena visada, proporcionando um campo de visão quadriculado pelo qual o artista poderia reproduzir o contorno dos objetos. A tavoletta de Brunelleschi consistia de aparelho com um orifício que, através do qual o espectador observava a imagem de um objeto real sobreposta a uma pintura desse mesmo objeto. A tela quadriculada de Dürer, por sua vez, apresentava diferentes portinholas com vidros, fios e molduras quadriculadas que buscavam um entendimento matemático da imagem exposta em determinado selecionado pelo aparelho. É importante destacar que todos os aparelhos citados buscavam uma compreensão matemática para a composição figurativa e a constituição da ilusão da perspectiva através dessa “matematização” das formas.

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do pintor. Parte do processo de criação figurativa foi transferida para dispositivos não naturais de construção ótica, que organizavam as informações através de operações matemáticas, uma espécie de algoritmo geométrico para as formas. Em tal contexto salienta-se que a perspectiva é considerada por Couchot como “uma máquina de ver no sentido mais completo do termo: perceber e figurar; registrar e inventar” (COUCHOT apud MACHADO 2202, p.87). A partir das técnicas e aparelhos de representação figurativa da perspectiva e da invenção da fotografia no séc. XIX surge uma nova categoria de sujeito, ao qual Couchot denomina “sujeito aparelhado”, dependente cada vez mais dos recursos da máquina para ver e representar. O sujeito aparelhado é impessoal, indefinido e autônomo, nele o “eu” é subtraído, passando a funcionar sob o modo do “SE”. Mas isso não significa dizer que o olhar automatizado e mediado pela máquina esteja destituído de uma função subjetiva, ação direta de um sujeito. O que os procedimentos técnicos acarretam são uma ampliação do olhar, um prolongamento, uma extensão.

[...] não significa, entretanto, que esse SE perde suas qualidades de sujeito e se torna objeto. SE permanece sempre sujeito, sujeito do fazer técnico, mas um afazer despersonalizado, fundado numa espécie de anonimato (COUCHOT apud MACHADO, 2002, p.88).

Em essência, quem vê e enuncia é a máquina, mas a participação do sujeito é indispensável, papel estruturante, personagem central da figuração ou ação de produção simbólica. [...] não se trata mais simplesmente de uma imagem, mas de uma imagem vista, de uma imagem que é visada, a partir de um lugar originário de visualização, por algo/alguém, que é uma espécie de sujeito máquina (MACHADO, 2002, p.88).

A guinada nas reflexões sobre a produção simbólica/figurativa, proposta por Couchot, desloca para outro pólo o que as teorias estruturalistas e as leituras mais “engajadas” até então atribuíam ao cinema. A abordagem da enunciação cinematográfica apresentava o cinema como um “desdobramento” e/ou “imitação” do inconsciente humano, por natureza. O que sugere Couchot é que o deslocamento do “eu” para o “SE”, atuante no sujeito, é produto direto de uma nova relação entre homem e máquina e a partir dessa híbrida interação, existiria uma nova força atuante, um “inconsciente maquinal, multiforme, mas delimitado” (MACHADO, 2002, p.89)

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Os aparelhos de prolongamento da visão e as demais máquinas de construção de significado figurativo, agora de concepção digital, imprimem uma nova realidade ao homem, inicialmente quase autômata, mas podendo atingir o automatismo por completo. Câmeras fotográficas e filmadoras de última geração podem realizar a tarefa de captação e registro de imagens sem que o usuário necessariamente conheça os processos óticos de formação da imagem alvo. Desde o sistema de lentes, passando por operações algorítmicas para a conversão de dados numéricos até uma organização geométrica da imagem, todos esses processos são alheios, misteriosos, escapam da compreensão parcial ou total da grande maioria de usuários. Noutra perspectiva, ainda mais avançada, uma câmera fotográfica ou filmadora é capaz de capturar e registrar imagens de maneira programada, sem que nenhum olho humano esteja por detrás de seu visor. Cita-se: “De quem é então a imagem obtida? Ela resulta da visada de um “eu” subjetivo, ou de uma máquina que simula uma visão?” (MACHADO, 2002, p.89) Contemplando as propostas a respeito do sujeito-SE de maneira correlata ao que sugere o conceito, estão as relações do homem com os computadores, sobretudo, quando manifestadas na interatividade com a alteridade do outro e com o inconsciente maquinal das experiências em rede, ou online. Um sujeito, frente a um computador, o opera, mas desconhece por completo ou parcialmente os processos técnicos e tecnológicos que convertem os impulsos externos à máquina, conferido ao aparelho por esse mesmo sujeito, enunciador, em informação compreensível também ao próprio sujeito. A própria máquina - hardware e software - pode ser encarada como um conjunto de muitas outras máquinas, com funções separadamente específicas e prédeterminadas, mas de funcionamento conjunto, como uma meta-máquina. O sujeito agora, deslocando o eu em detrimento do SE, em um pólo voltado para a subjetividade enunciadora singular, e noutro pólo, para uma delimitada realidade maquinal, torna-se então um espécie de receptor-ativo, que imerso em uma construção de significado, onde o papel estruturante do eu é fundamental, também depende da enunciação autômata de uma máquina conectada a outras máquinas. Portanto, “[...] esses dois componentes do sujeito não cessam de se defrontar e de negociar, mas também de deslocar e de mudar de figura” (COUCHOT apud MACHADO, 2002, p.90).

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2.3 QUENTE OU FRIO Em seus estudos, Mcluhan (2007) fundamenta os meios de comunicação como extensões do homem. Para o autor, há uma diferenciação categórica dos meios em quentes ou frios. Meio Quente é aquele que prolonga um único sentido e em alta definição, o que significa dizer que há uma experiência de acuidade de dado sentido, excitado por grande quantidade de estímulos específicos para aquele sentido. Um meio quente não deixa muitos espaços a serem preenchidos ou completados pela audiência. Um Meio Frio, ou de baixa definição, oferece uma baixa ou pouca saturação de estímulos sensoriais, o que podemos entender como uma relação pouco profunda, de fácil dispersão e/ou de apreensão sensorial precária. Nessa compreensão a fotografia é um meio quente quando comparado ao desenho, assim como o cinema em relação a TV. Especificamente sobre o cinema, Mcluhan o situa como sendo uma manifestação que bem representaria aquele período Pós-Revolução Industrial, desde o surgimento do meio, sua consolidação e sua subseqüente perda de hegemonia para TV, o que consolida um novo aspecto organizador da sociedade, a Era da Eletricidade. A eletricidade possibilitou ao homem uma nova percepção dos fenômenos do mundo, em grande parte, que ele mesmo causara. Segundo o autor, o cinema era exemplo de uma era mecânica, de fenômenos sociais em seqüência de uma lógica social estruturante que resultara na própria manifestação tecnológica da projeção cinematográfica, fotogramas mecanicamente organizados em seqüência. A lógica social que sobrepõe à lógica mecânica da seqüência é a lógica do simultâneo, instantânea e elétrica, maneira de perceber e de pensar da qual resulta a TV, garantindo à audiência um novo posicionamento na relação com os meios audiovisuais, não mais numa perspectiva do espaço, mas sim da velocidade e dos números. O que coloca Mcluhan sobre a especificidade das tecnologias elétricas como elemento de estruturação social é que as tecnologias especializadas - o que compreende os meios quentes ou de alta definição - “destribalizam”, enquanto as tecnologias não especializadas, fundamentalmente as elétricas, “retribalizam”. Aquilo que pode ser entendido como “destribalização” diz respeito ao choque a que uma determina estrutura social é submetida ao lidar com a superação de um meio frio por um meio quente. Tal choque, como sugere Mcluhan, provoca uma

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“especialização” ou “fragmentação” das coisas da cultura. Seria preciso, então, uma “censura”, no entendimento freudiano da palavra, para que as manifestações culturais fossem “esfriadas”, ao menos, a fim de preservar o próprio sistema nervoso humano, e dessa maneira, “aprendidas” e “assimiladas”, ao mesmo tempo em que é preservado o sistema de valores daquela cultura, uma espécie de estratégia pedagógica.

A intensidade ou alta definição produz a fragmentação ou especialização, tanto na vida como no entretenimento; isto explica por que toda intensidade deve ser “esquecida”, “censurada”, e reduzida a um estado bastante frio antes de ser “aprendida” ou assimilada. A “censura” freudiana é menos uma função moral do que uma indispensável condição do aprendizado (MCLUHAN, 2007, p.39-40).

Exemplo de fragmentação provocada pelas tecnologias especializadas é a exibição cinematográfica, em que todos os participantes, enquanto público, devem compactuar com uma auto-censura, no isolamento do “eu”, e respeitar o sistema de valores que dita não ser de bom tom conversar em voz alta, ou qualquer outra manifestação comportamental que perturbe ou atrapalhe a exibição do filme ou desestabilize o sujeito sentado ao lado. Os meios frios, por sua vez, não especializados, agregam os sujeitos. Considera-se então, que determinada temperatura - os estímulos suscitados pelo meio – é agradável o suficiente para que se instaure uma zona de conforto. Atuando nesse espaço de conforto, o sistema nervoso central não sofre uma saturação de estímulos e os sujeitos se dispersam mais facilmente, interagem de maneira mais direta, como acontece na prática de assistir televisão, em que os movimentos da casa, as atividades internas do lar, não cessam. Enquanto meios, o dinheiro, a roda a escrita ou qualquer outra forma especializada de aceleração, de intercâmbio e de informações, operam no sentido da fragmentação da estrutura tribal. Igualmente, uma aceleração extremamente acentuada, como a que ocorre com a eletricidade, contribui para restaurar os padrões tribais de envolvimento intenso [...] (MCLUHAN, 2007, p. 40).

2.4 NARCISO: imagem projetada No capítulo O Amante dos “Gadgets”; Narciso como narcose, de seu já citado livro, Mcluhan apresenta uma interessante análise sobre o mito grego. Segundo o autor, o nome do personagem vem da palavra grega “narcosis”, entorpecimento. Mcluhan nos

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conta que apesar da narrativa seguir trágica, com a morte do personagem, em nenhum momento do mito há uma descrição de que Narciso havia reconhecido a imagem na água como sendo a sua própria imagem, o seu reflexo, o que de todo modo não o impediu de atingir certo estado de entorpecimento e cair sobre o lago, morrendo por afogamento. Tal estado de torpor e não reconhecimento de seu reflexo decorre de um processo de “auto-amputação”, inteiramente ligado ao fenômeno da ampliação das funções ou das capacidades do corpo para o exterior através de extensões tecnológicas e de produção simbólica, conseqüente da própria consciência. O fenômeno psicológico da auto-amputação foi observado em pesquisas médicas conduzidas pro Hans Selye e Adolph Jonas, em que ficou constatado “que todas as extensões de nós mesmos, na doença ou na saúde, não são senão tentativas de manter o equilíbrio” (MCLUHAN, 2007, p.60). Essa força auto-amputativa é uma estratégia que o organismo manifesta sempre que o sujeito não consegue localizar, definir ou mesmo evitar a causa de alguma irritação. A irritação, por sua vez, como colocada pelo autor, diz respeito a toda força que interfere no conforto direto do sistema nervoso. Aqui, percebemos uma clara relação entre a “auto-amputação” e a “censura” freudiana. Ambos os fenômenos objetivam o conforto ao organismo. O homem, desde os primórdios, vem projetando seus órgãos motores ou sensoriais para fora de si mesmo e criando uma relação de dependência e subserviência a esta mesma extensão. Exemplo disso é a roda, “extensão do pé”, mas que também “amputa” o órgão locomotor de diversas funções, tornando o homem subserviente de seu prolongamento tecnológico. A tecnologia, sobretudo a elétrica, é a exteriorização do próprio sistema nervoso central do homem, vivo e dinâmico, desencadeando comodidades, buscando conforto. O homem, “servomecanismo” de seus prolongamentos, assume um estado de “embotamento”, artifício para suportar as tensões sofridas a partir da própria intensidade de estímulos captados e provocados por seu órgão artificialmente prolongado. Se pensarmos no telefone celular, o aparelho serve como extensão de nossos ouvidos e boca, permitindo comunicação móvel e quase instantânea, mas na medida em que nos tornamos dependentes do aparelho, nos sentimos como que “amputados” em sua ausência frente uma necessidade de seu uso. O mesmo pode ser percebido com as extensões que o homem desenvolve no ciberespaço. O e-mail é a extensão de nossa memória, além de nos habilitar com funções de comunicação escrita veloz, um meio quente em relação à carta ou telegrama. O perfil em sites de relacionamentos como o

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Orkut é uma extensão de nossa própria identidade (isso presumindo uma sinceridade por parte do usuário), expondo nuances de tendências, gostos e interesses.

2.5 CIBERESPAÇO

A internet, quando analisada sob as proposições de Mcluhan, extrapola os limites de definição sobre meio quente ou frio, passando a ser ambos. Tal qual como o cinema, o ciberespaço é uma realidade onde reside o pensamento mágico e com grande capacidade hipnótica, mas de maneira muito mais potencializada, também agrega diferentes grupos de sujeitos, como um meio frio. Podemos dizer que a conformidade da interação entre sujeito e máquina, imerso ou mais disperso, será fator estruturante para a categorização da internet, considerando dada circunstância ou função requisitada pelo usuário. A internet é um veículo aglutinador de muitos outros meios, proporcionando uma inter-relação dinâmica, convergência de mídias, o que acontece no ciberespaço. O ciberespaço é uma dimensão tecnicista e mágica, seu potencial para a interação das mais diferentes personalidades nos faz encarar a já citada característica da “retribalização” da sociedade, advinda das tecnologias eletrônicas. Consensualmente o ciberespaço é um não-lugar, por ele perpassa senão toda, quase toda a produção de dados e informação digital da sociedade contemporânea, conseqüentemente é um espaço onde as manifestações de produção simbólica são criadas ou discutidas em algum momento. O termo ciberespaço é originário do ano de 1984, a partir do romance de ficção cientifica Neuromancer, de Willian Gibson.

Para Gibson, o ciberespaço é um espaço não físico ou territorial, composto por um grande conjunto de redes de computadores, através das quais todas as informações (sob suas mais diversas formas) circulam. O ciberespaço gibsoniano é uma “alucinação consensual”. A Matrix, como chama Gibson, é a mãe, o útero da civilização pós-industrial onde os cibernautas vão penetrar. Ele será povoado pelas mais diversas tribos, onde os cowboys do ciberespaço circulam em busca de informações (LEMOS, 2002, p.127).

A partir dessa citação, podemos entender o ciberespaço em duas perspectivas. Numa perspectiva, o ciberespaço é o local onde nos encontramos quando nos ligamos a um ambiente simulado, realidade virtual (chat de bate papo, programa de envio de mensagens online, entre outros). Noutra, é um conjunto de computadores ligados em

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rede, que se interligam ou não, mas acessam e constituem a internet. Assim, podemos encarar que a sociedade contemporânea vive um fenômeno de “realidade aumentada”, já que o ciberespaço agrega sobre o espaço físico, de três dimensões, uma nova dimensão eletrônica, dinâmica e que abrange e amplia as proposições de Couchot citadas por Machado, de um inconsciente maquinal, interagindo ao inconsciente humano, agora não mais de aparelhos isolados, mas que se comunicam entre si de forma ominidirecional e sincrética.

O ciberespaço é um espaço sem dimensões, um universo de informações navegável de forma instantânea e reversível. Ele é, dessa forma, um espaço mágico, caracterizado pela ubiqüidade, pelo tempo real e pelo espaço nãofísico. Esses elementos são característicos da magia como manipulação do mundo (LEMOS, 2002, p.128).

Com a racionalização dos espaços e a quantificação produtiva do tempo, imposições da lógica da modernidade, vivemos agora um período de desmaterialização das coisas, uma “instantaneidade”, uma “presentificação” jamais observada desde a maquinização elétrica do mundo. O ciberespaço, apesar de ser um vetor para a vanguarda, desperta no imaginário do homem a fantasia e os desejos com profundas raízes no passado, acessando outra realidade, em que o homem pode ser um homem além, deslocando-se no espaço/tempo de maneira mais fluída, uma construção típica das realidades míticas, mágicas. Com possibilidades ricas de representação simbólica e figurativa, o ciberespaço pode ser analisado sob algumas linhas paralelas com o pensamento mágico. Cita-se: O ciberespaço se encontra preso em estruturas arcaicas, imaginárias e simbólicas de toda a vida em sociedade. Devemos, assim, esclarecer o conceito de ciberespaço sob a luz do hermetismo, da gnose, dos ritos de passagem, do tempo real, do espaço imaginário e da metáfora evolucionista e organicista da noosfera, do cybionte, da inteligência coletiva e do rizoma (LEMOS, 2002, p.127).

2.5.1 Hermetismo e Gnosticismo Continuando as investigações de Andre Lemos, torna-se de interesse deste projeto suas observações a respeito das características oriundas do pensamento mágico, referentes ao hermetismo e gnosticismo. As observações do autor revelam paralelos entre os procedimentos para buscar informações presente tanto no pensamento mágico,

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quanto no ciberespaço. Hermetismo, grosso modo, é uma técnica para o armazenamento do conhecimento místico, assim, criando todo um sistema lingüístico funcional, com o qual se tem acesso às informações necessárias para a manipulação da magia (exemplo: rituais, símbolos, códigos secretos, cartas de correspondência astrológica, imagens, totens). Há ainda, a arte da memória, proposta pelo poeta grego Simone de Céos (556469 a. C.), que orientava sobre uma técnica de memorização baseada na imaginação de uma construção, onde o artífice da obra imaginada vinculava um dado objeto ou cômodo pensado a uma memória específica. Assim, ao percorrer mentalmente a construção, poderia resgatar as memórias vinculadas aos cômodos e objetos. O ciberespaço é o novo local da memória humana, um hipertexto vivo e coletivo, com todo um vocabulário próprio e técnicas de manipulação hermética. Acionar o mouse e clicar em ícone, seja no desktop de um computador ou em um site ligado a rede, é o correspondente ao saber decifrar os caminhos e códigos que levam o praticante de magia às informações desejadas. Por outro lado, o grande fluxo de dados digitais transita sob a forma de códigos criptografados, herméticos, disponíveis para aqueles que detenham o domínio daquela velada linguagem. O simples, e para alguns, obsoleto código html, disponível ao click do mouse ao acionar a função “exibir código fonte”, quando navegando pelo conteúdo de um website, até a quebra de senhas e o acesso à informações confidenciais, ação executada pelos crackers4¸ são exemplos de uso do hermetismo na esfera eletrônica do ciberespaço. Gnose é um termo grego que significa “conhecimento”, uma forma de conhecimento universal, ligada a Deus. O gnosticismo se manifesta na cibercultura através da cultura raver e zippie, que utilizam os espaços online como ponto de encontro para a troca de informações sobre esoterismo, eventos, festivais de música eletrônica, medicina naturalista, sexo e drogas. Esses grupos exercem uma espécie de “tecnoxamanismo”, buscando um conhecimento transcendental, por assim dizer, gnóstico, para experimentar vivências de um simulado naturalismo nos grandes festivais da cultura rave, onde os antigos valores dos festivais hippies, manifestação de contracultura do passado, são resgatados e re-significados a partir do momento em que a 4

Termo usado para designar aquele que pratica a quebra (ou cracking) de um sistema de segurança, de maneira não autorizada. Criado em 1985 por hackers que buscavam uma diferenciação jornalística a respeito das práticas que envolvem o termo hacker. Cracking reflete a quebra de sistemas de softwares, mensagens e códigos criptografados e o desenvolvimento de vírus e programas de invasão e espionagem.

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tecnologia não é rejeitada, mas sim, abraçada, tida como fundamental enquanto fator de organização de suas práticas ciberculturais e psicodélicas.

2.5.2 Ritos de Passagem O rito de passagem, como sugere a própria expressão, é um evento em que um determinado indivíduo ou grupo social adquire ou adentra em novo estágio de existência, agregando novo status, estando inserido em uma nova camada de uma realidade naquele contexto cultural. É assim o ritual de hombridade de muitas comunidades tribais em que o jovem, após satisfazer as exigências necessárias, seja uma caçada, prova de tolerância à dor e qualquer outro teste, no sentido de uma avaliação de capacidades, quando bem sucedido, pode então gozar do status adulto e desfrutar das benesses socioculturais desse novo estágio. Então, sob a luz do hermetismo e do gnosticismo o ciberespaço é uma nova realidade na qual o usuário online se insere, abandonando a vida mundana para adentrar uma realidade de ações fantásticas e ter acesso aos mais diversos tipos de conhecimento. A metáfora do rito de passagem aplicada ao sujeito no ciberespaço serve também como uma metáfora social global ou planetária, em análise estrutural, na medida em que a sociedade vai deixando para trás a era industrial, de economias e valores rígidos, para uma era pós-industrial, permeada por trocas de todos os tipos, dinâmica e até então sem precedentes.

O ciberespaço deve ser compreendido com um rito de passagem da era industrial à pós-industrial, da modernidade dos átomos à pós-modernidade dos bits, como diria Negroponte (LEMOS, 2002, p.132).

A tela do computador é um portal. O login e senha do usuário, em sua conta pessoal de e-mail ou o clicar do arquivo para acessar seu conteúdo no próprio computador, através da manipulação de ícones, que são propriamente ações de uma linguagem iconogáfica, representam uma aplicação do conhecimento hermético no quotidiano da cibercultura. Conversar online com muitos outros usuários de forma paralela, através de um aplicativo de comunicação como o MSN ou em jogo multiplayer, não seria uma espécie de onipresença? - capacidade muitas vezes atribuída às deidades, então, uma nova forma de conhecimento gnóstico.

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2.5.3 Hierofania: contato com o divino, tempo e espaço. Diferente de um tempo horizontal e linear, delimitado de forma seqüencial por forças organizadoras como a racionalização dos espaços, o tempo no ciberespaço é o que foi convencionado chamar de Tempo Real (LEMOS, 2002, p.133) e pode ser entendido como tempo instantâneo ou presenteísta. Na velocidade do apertar de botão do mouse, um acesso. Na realidade do ciberespaço o tempo que importa é o agora, burlando até mesmo a noção do “aqui”. O usuário imerso passa horas conectado sem se dar conta, ele pode participar de um site de relacionamentos em rede social, participar de um jogo multiplayer que acontece através da alteridade e do prolongamento digital de outros sujeitos, acessar seus e-mails, explorar o conteúdo de um site com as idas e vindas da leitura hipertextual, além de conversar com amigos conectados ao mesmo tempo no ciberespaço, mas situados em localidades diferentes. Essa multiplicidade de ações possíveis destaca a ubiqüidade, característica daquilo que está em todo tempo e em toda parte. Assim, a específica relação do homem com a noção do instante, o tempo real do ciberespaço, se relaciona com o tempo sagrado do mito, descrito por Mircea Eliade, mitólogo romeno, nas palavras de André Lemos:

O tempo sagrado do mito é um tempo repetitivo que fixa determinada memória coletiva; e ele é reversível, pois o passado é a fonte do saber na preparação do presente e do futuro. Ele atualiza o ilo temporare, o tempo primordial, de onde tudo veio à existência (LEMOS, 2002, p.134).

É coerente dizer que o tempo sagrado do mito e o tempo real do ciberespaço não são concepções de um tempo linear, mas sim um tempo de conexões, em que o desenrolar das ações dependem estritamente das idas e vindas, de retomadas, uma narrativa não linear para entendimento e construção de dada realidade. A hierofania acontece não por qualquer experiência de sobrenatural, ela se manifesta na experiência estética, ou tecno-estética, que apresenta ao homem a transcendência para uma nova realidade, um novo espaço social onde se destaca o imaginário.

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2.6 CYBORGS: ficção e realidade André Lemos conduz a discussão sobre a relação entre aquilo que é considerado natural e o artificial apresentando o posicionamento de Bernard Stiegler, que baseado nos trabalhos do antropólogo francês André Leroi-Gourhan (1911-1986), mostra uma perspectiva de simbiose para a formação do homem. Quando o ancestral humano fez uso da ferramenta como extensão do braço, podemos considerar que a necessidade da ferramenta fez então, a condição de instrumentalização e desenvolvimento da técnica e da tecnologia, o cultivo de uma artificialidade, própria da condição humana. Por outro lado, é esse mesmo ancestral que de alguma maneira manifesta a necessidade da ferramenta. Assim, não se sabe ao certo se o homem produz a técnica ou é produzido por ela. A partir dessa perspectiva, o cyborg é extrato direto de uma constituição híbrida entre o natural e o artificial. O ancestral humano é também ancestral do cyborg, que projetara a função de seus membros e órgãos de forma mecânica. Agora na contemporaneidade, com todas as possibilidades de domínio técnico das tecnologias elétricas, o cyborg, figura muito explorada nas narrativas do gênero da ficção científica, torna-se personagem do quotidiano social através das muitas formas de virtualização do mundo e do próprio homem. O corpo, na condição contemporânea da cibercultura, torna-se marcado pela característica

da

hipertextualidade

com

o

excesso

de

possibilidades

da

contemporaneidade e com poderes múltiplos onde vão ser inscritos vários textos, compondo então, vários corpos:

Ideológico (o corpo inscrito no fluxo da moda), epistemológico (o corpo cínico, travestido), semiótico (o corpo como signo flutuante), tecnológico (os media, as redes telemáticas, as nanopróteses), econômico (corpo desejo de consumo) e político (corpo nas massas) (LEMOS, 2002, p.167).

O ser híbrido, natural e artificial é na verdade uma antiga manifestação presente no imaginário de diversas épocas e culturas, sempre despertando o debate a respeito do mito criador e de um desejo do homem em equiparar-se à deidade, questionar e dominar a natureza. Para Lemos, sob dada interpretação de mundo, os primeiros seres artificiais inclusive o homem - vieram ao mundo por força da criação divina, a força da natureza, denominada Phusís, na perspectiva grega que chegou até nós. Em outra proposição, os

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seres autômatos, concebidos pelo homem em outro estágio de interpretação de mundo, são animados, providos de movimento para se assemelhar ao homem criador, pelo engenho de outra força que não a natural, a técnica, ou Thecnè, igualmente do grego.

Os primeiros seres artificiais vieram ao mundo pelo ato divino; ou é o sopro vital que anima o barro, ou o nome de Deus escrito e colocado na boca do Golem, ou a descarga elétrica do Dr. Frankenstein, ou o amor pela Eva Futura de Viliers de L’Isle-Adam... Com as primeiras criaturas artificiais o divino anima e realiza a obra dos homens. Já os autômatos são animados pela força da mecânica, pelos paradigmas newtonianos de energia, força, movimento, regularidade. Eles não são mais a vida que se infiltra no artifício, mas a vida simulada em movimentos mecânicos (LEMOS, 2002, p.168).

O cyborg, ser híbrido entre o natural e o artificial, especificamente uma união ou conexão direta ente homem e máquina, acontece de maneiras distintas, em distintas alterações do corpo e conseqüentemente das novas experiências cognitivas desse corpo alterado com o mundo. Lemos define os cyborgs em protéticos e interpretativos. Os cyborgs protéticos seriam aqueles em que há uma alteração ou intervenção por uma máquina no corpo físico, não necessariamente intervenção cirúrgica. O deficiente visual que recebe o implante de uma lente que o ajuda a enxergar melhor corrigindo ou substituindo sua córnea, o físico norte-americano Stephen Hawkins, que se desloca por uma cadeira de rodas motorizada e tem sua voz gerada por um aparelho digital, são exemplos cabíveis. Há ainda a manifestação cyborg nas artes, ou como vem sendo tratada, na cibearte, destacando-se o performer protético Sterlac.

Um dos melhores exemplos de cyborg protético está nas performances do ciber-artista Sterlac. Ele utiliza seu próprio corpo como ambiente, expandido o caráter ao mesmo tempo repulsivo e fascinante da junção corpo-máquina. Sterlac leva ao extremo a fusão do corpo com as novas tecnologias, utilizando seu corpo como espaço, buscando reduzir a oposição entre o natural e o artificial. Seu corpo é seu simulacro (LEMOS, 2002, p.172).

É a partir das interpretações do teórico francês, Guy Debord (1931-1934), que Lemos sugere os aspectos do cyborg interpretativo. Nessa maneira de hibridação, não está manifesta a intervenção direta do inorgânico no orgânico, do artificial implantado ou acoplado ao biológico do corpo, da carne. Para Debord (apud Lemos 2002), o espetáculo é a mais sutil estratégia de controle e condicionamento dos mass media, assim, da sociedade do espetáculo, produto direto do capitalismo. O espetáculo seria responsável por uma manutenção da

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opressão através da alienação. Nesse pensamento, estaríamos todos nós sujeitados à condição alienante como cyborgs interpretativos, induzidos por uma programação midiática em plano simbólico, atuando no imaginário. Os próprios meios massivos, como o cinema, imortalizaram essa condição, como o personagem Alex de Large, do filme Laranja Mecânica, homônimo ao romance do qual foi adaptado. Temos também, como exemplo, a sociedade descrida por George Orwell em seu romance 1984. Em sua postura interpretativa, André Lemos sugere que a cibercultura e seus extratos são o prenuncio de uma reformulação da lógica estrutural da sociedade e, nessa leitura, as possibilidade das redes telemáticas conduzem o cenário para a destituição da hegemonia dos mass media (rádio, imprensa, cinema, TV) e minimização dos danos pela estrutura do espetáculo, além de apresentar novas alternativas aos cyborgs interpretativos, no caso, nós.

A facilidade do meio e a possibilidade de ser emissor (novidade tecnológica da cibercultura em relação a cultura dos massa media), tem feito das webcams um fenômenos mundial (LEMOS, 2002, p.162).

O comentário do autor expõe uma das possibilidades de emissão direta do usuário na internet, o cibersexo. Os cyborgs interpretativos, agora em rede, passam a ser denominados pelo estudioso como netcyborgs (LEMOS, 2002, p.173).

2.7 AVATARES: extensões cibernéticas Ainda somos míticos. Basta observar na relação quotidiana do homem com o mundo. Um sujeito repara uma mulher a qual considera atraente e se refere a ela como uma “gata”. Noutra condição, um homem muito rude é tratado por “gorila”, ou quando tem pouco cuidado com sua higiene pessoal, tomado por “porco”. Algumas pessoas, indo além, são diretamente associadas às figuras místicas, como anjo (um anjo de pessoa) ou dragões (feia como um dragão, cuspindo fogo). No primeiro caso, temos uma condição de zoomorfismo, quando características animais são atribuídas ao ser humano, podendo também acontecer o contrário. No segundo caso, quando o humano é associado a personagens imaginários, de natureza zooantropomórfica explícita, podemos relacionar essa manifestação com o que sugere o mitólogo norte-americano Joseph Campbell (2004) em seu livro O Herói de Mil Faces. No capítulo intitulado

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“Transformações do Herói; o herói primordial e o herói humano”, Campbell nos oferece uma interessante visão a respeito das criaturas zooantropomórficas presentes no pensamento das realidades mitológicas. O estudioso aponta que o mito e suas narrativas desempenharam inicialmente na sociedade uma função de dar conta de explicações para a criação dos cosmos e do mundo. Temos então o mito criador, contando o surgimento de divindades e do mundo. Mas adiante, no próprio avanço da condição humana, na medida em que as narrativas míticas deram conta do metafísico em dado estágio civilizatório, foi necessário então, dar conta das coisas do mundo e dos homens sob outro olhar. O que sugere Campbell é que os estágios interpretativos do homem vão mudando, assim como também os mitos. Do mito criador, ao mito dos heróis fundadores. Da metafísica da lenda à pré-história, até atingir a história corrente do tempo humano do dia a dia. Assim, Campbell relata histórias de prodigiosos reis chineses que viveram há mais de dois mil anos antes de Cristo. Tais reis eram criaturas fantásticas e possuíam um aspecto de homem e animal, além de condições de concepção, nascimento e infância que extrapolavam a simples condição humana, como por exemplo, crescer da infância à fase adulta em apenas um dia após nascido.

Esses reis serpentes e minotauros falam de um tempo passado o qual o imperador era portador de um poder especial, criador e sustentador do mundo, que é muito maior que o poder presente na psique humana normal. Naquela época foi realizado o pesado trabalho de titãs, o amplo estabelecimento das bases de nossa civilização humana. Mas com o progresso de ciclo, veio um período no qual o trabalho a ser feito já não era proto-humano ou sobre-humano; tratava-se de um trabalho que cabia especificamente ao homem – controle das paixões, exploração das artes, elaboração das instituições econômicas e culturais do Estado (CAMPBELL, 2000, p.307).

É possível associar as observações de Campbell com a condição interpretativa do homem sobre as forças naturais da criação, phusís, e o conseqüente domínio da técnica, theknè, citado por Lemos (2002). Na medida em que as estruturas sociais se tornaram cada vez mais complexas fizeram-se necessárias outras construções sígnicas para lidar com a própria condição da artificialidade humana e seu afastamento de um estado natural. Entretanto, os heróis míticos do período citado ainda estariam em conexão íntima com a força de criação natural, estes seriam encarnações diretas da própria força primordial, o divino personificado no mundo através de seu avatar.

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O termo avatar, ou avatara, vem do hindu, e significa “descendente especial de deus do céu ou da terra” (RECUERO, 2000, p.2). O avatar, encarnação de uma deidade, é a condensação da força primordial no mundo material através de uma persona, uma consciência capaz de existir em realidades distintas, “um viajante de mundos” (RECUERO, 2000, p.2). Na cibercultura, o avatar pode ser entendido como a representação gráfica de um determinado usuário online, dentro de um aplicativo ou software específico. Essa representação gráfica é um prolongamento humana em uma condição de hibridismo entre o biológico e o inorgânico, uma construção simbólica do cyborg interpretativo, agora na concepção do netcyborg proposta por Lemos (2002), e com as possibilidades de uma “emissão/enunciação” diretas, permitida pelos meios telemáticos conectados ao ciberespaço. O pensamento mágico atua explicitamente nas manifestações de um avatar construído pelo agente enunciador que é o usuário, o netcyborg. Do mundo material para o não-lugar do ciberespaço, galgando ritos de passagem, transcendendo realidades, além das possibilidades de zoomorfismo, antropomorfismo e zooantropomorfismo que acontecem de maneira recorrente nas diferentes diegeses do mito, recurso providenciado a partir das interfaces gráficas de softwares para imersão na internet. O avatar no ciberespaço, sua representação visível na tela, é constituído de um elemento humano, sujeito enunciador, como também pelos recursos gráficos disponíveis através do software, maquínicos, os quais possuem parâmetros técnicos para a construção da representação gráfica desse mesmo avatar, seja ela em duas dimensões ou na simulação tridimensional, processos que são quase sempre misteriosos ou totalmente desconhecidos pelo usuário. Aqui, retomamos então o conceito de sujeito-SE, proposto por Couchot e defendido por Machado (2002) em que o agente enunciador, o elemento humano do “eu”, atua híbrido a um inconsciente maquinal coletivo, que delimita a atuação do usuário às condições pré-concebidas e autômatas das máquinas. Esse inconsciente maquinal, por sua vez, pode ser relacionado nessa condição, ao que Lemos chama de corpo rede (LEMOS, 2002, p.173), quando o homem se conecta interpretativo à camada hipertextual eletrônica, considerando que tal camada, estende uma nova e virtual dimensão da realidade, denominada de noosfera (LEMOS, 2002, p.134). No não-lugar do ciberespaço as identidades se manifestam desprendidas de questões de gênero, isso se dá por conta do fenômeno da descorporificação da qual

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resulta a construção do avatar e, algumas vezes, de questões de classes. Apesar de haver ambientes em que todos os netcyborgs estejam inseridos sob as mesmas condições para aquela realidade, existem ambientes em que há categorização de classes pode ser presumida. Geralmente tais ambientes de imersão possuem um intercâmbio econômico entre a realidade simulada e o mundo material. Isso acontece através da conversão de dinheiro, capital no mundo material, por créditos da realidade simulada, que mudam de nomenclatura conforme as especificidades do cenário proposto, podendo ser desde jogos eletrônicos online, sites de relacionamentos com vantagens para usuários vips, sistema de armazenamento de arquivos em ficheiros, entre outros. A compra desses créditos eletrônicos quase sempre permite ao usuário vantagens na edição gráfica de seu avatar digital, o que pode ser visivelmente reconhecido pelos outros participantes daquele mesmo ambiente e consequentemente projeta certo “agenciamento” da identidade, tal quais os signos da moda na realidade material, destacando e definindo classes ou categorias de sujeitos. Se de certa maneira o avatar no ciberespaço não está inteiramente desprendido das questões de agenciamento de classe, ele se rebela contra as definições de gênero e se desprende, na forma, da semelhança com a forma humana.

Diferente dos Nicknames (apelidos) que representavam as pessoas nos chats e MUD’s como Surfista_SP_:-), ou \\\gargula///, mesmo com a ajuda de sinais, como as asas de barras do gárgula, ou a localização (São Paulo) ou o emoticom do estado emocional de felicidade do Surfista,a represnetação gráfica, visisual, do avatar, quer seja bidimensional ou tridimensional, podia ser acrescida de animações, como correr ou cumprimentar, expressões, de raiva ou felicidade, e melhorado com roupas e adereços, e até mesmo transportes como skates ou bicicletas. Tais modificações abriam uma possibilidade de identificação do interator com sua representação no mundo virtual, que nos chats e MUD’s (ambientes de texto) sequer podiam sonhar (TAVARE, 2004, p.215).

Diferente dos jogos eletrônicos, nos quais o sujeito muitas vezes recebe do software um avatar pronto, totalmente ou quase delimitado, o que também já define parâmetros de gêneros e classes na diegese do jogo, quando co-relacionadas com o mundo real, o avatar do ciberespaço é editável e possibilita outros desdobramentos de projeções de personalidade. Usuários de determinado sexo podem escolher avatares com uma aparência do sexo oposto e até mesmo fazer uso da prática de identidades flutuantes, “livre para o exercício de multipersonalidades, agindo por sinceridades sucessivas” (MAFESOLI apud LEMOS, 2002, p.175).

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O interessante, para este trabalho, é o cyborg envy ou desejo cyborg (STONE apud LEMOS, 2002, p.173), que pode ser interpretado como o fascínio que leva o homem a gerar projeções de identidade no ciberespaço e cuja quebra de fronteiras é uma forte característica. Temos então, uma vez mais, uma manifestação do pensamento mágico, o rito de passagem, como também o encantamento do homem através de suas extensões que extrapolam o corpo, como explicou Mcluhan sobre o mito de Narciso. Se observarmos mais de perto essas relações entre o homem e suas projeções, veremos refletir a dualidade entre a força criadora da natureza (phusís) e a criação artificial (theknè). O sujeito no ciberespaço recorre às novas identidades que manifestam e projetam essas forças criadoras. No ciberespaço, assim como nos mitos, não é incomum a representação de avatares com características zoomórficas ou antrozoomórficas, dialogando com a gênese primordial de Campbell, ou até mesmo avatares de aparência totalmente baseadas em signos autômatos, como robôs que podem ou não se assemelhar a uma forma humanóide. Todavia, independente do aspecto visual que o usuário, o sujeito cyborgizado, escolha ou defina dentro das possibilidades de representações gráficas possíveis em um ambiente de imersão, o que está em jogo é uma construção identitária, uma projeção reflexiva. Lacan, em seus estudos sobre a infância, apresenta a chamada “Fase do Espelho”, que pode ser identificada entre o sexto (6°) e décimo sexto (16°) mês de vida da criança. Nessa fase, a criança replicaria no seu comportamento as identificações projetadas a partir do comportamento dos adultos próximos. A construção da imagem especular do sujeito no ciberespaço aconteceria de maneira semelhante, expõe Tavare:

Na construção do repertório sígnico da sua própria imagem especular, em que o jogador está construindo o avatar, ocorre então uma troca sígnica, da mesma maneira que o avatar está construindo seu jogador (TAVARE, 2004, p.218).

No caso citado, Roger Tavare se refere à construção do avatar para a imersão em ambientes de jogo em realidade virtual através de interfaces gráficas, figurativas. Todavia, pensando de maneira mais abrangente, o perfil do site de relacionamentos Orkut é uma projeção identitária no ciberespaço, um avatar hipertextual com recursos gráficos que expõem informações textuais e imagens através de painéis. As imagens expostas podem ser de qualquer natureza, desde que digitalizadas e respeitando os termos de uso daquele serviço enquanto meio de comunicação, mas isso não implica

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que as fotografias visíveis sequer correspondam com a aparência do usuário do perfil no mundo real. As imagens podem sofrer alterações em softwares de edição de imagens, ou até mesmo pertencer originalmente a outro ser humano ou personagem estritamente ficcional, ou seja, uma apropriação da imagem de outro, além da possibilidade de imagens não figurativas, inteiramente abstratas. Também é interessante ressaltar, ainda utilizando o perfil do Orkut como exemplo, a maneira como o avatar interfere e constrói a identidade do usuário. Quando não conectado, o usuário fica alheio às experiências de sociabilidade em rede, é nesse momento em que o avatar nos chama e requisita nossa atenção. Agora acontece outra manifestação do pensamento mágico, que se relaciona com o sentido de perpetuação das estruturas sociais presentes na repetição do rito. São assim as “obrigações” que os orixás requisitam aos “filhos de santo”, como também as oferendas e até mesmo as promessas e os votos de fé do imaginário cristão, as festas de terreiro, as novenas, as celebrações ritualísticas em geral. A constante manutenção do avatar é um rito. O deus-menino cobra de seus fiéis a lembrança de seu sacrifício em cada missa e subserviência aos mandamentos. Oxum, orixá feminino das águas doces, figura associada à beleza e vaidade, requer presentes, depositados na águas em sua homenagem. O avatar no ciberespaço nos cobra uma oferenda de vida ou morte. A morte é o seu abandono, ele só vive quando nos ofertamos a ele. Fica então a promessa que devotamos à nossa própria extensão, imagem, de darlhe vida e alcançar através dela algumas graças, como as formas de sociabilidade e o acesso que o ciberespaço proporciona.

2.8 VÍDEO: mídia híbrida O vídeo não é cinema. Fora a distinção entre as tecnologias empregadas nos processos de criação dos específicos veículos, existe diferenças do fazer técnico, que precedem a própria concepção do produto almejado e evidente, o caráter final desse mesmo produto. O vídeo, enquanto seguimento midiático é uma expressão posterior ao Cinema e também à própria TV, não somente no que diz respeito as suas datações históricas, mas na maneira em que este, o vídeo, se apresentou numa anárquica e experimental forma de linguagem audiovisual que ao longo de seus fazeres incorporou características peculiares tanto do Cinema, quanto da TV.

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Sem querer delimitar o que venha a ser uma linguagem do vídeo, algumas características serão aqui apresentadas com base nos estudos do já citado autor, Arlindo Machado, que em seu livro “Pré-Cinemas e Pós-Cinemas”, aponta algumas tendências do vídeo como expressão audiovisual. Vale ressaltar, que na época das pesquisas do referido livro, a década 1990, alguns avanços tecnológicos como as câmeras digitais de alta definição, HDTV, e os monitores de LCD, com formato widescreem, ou televisores de plasma não existiam. Em seus estudos, Machado (1997) observou que o vídeo é orientado por uma “decomposição analítica dos motivos”, o que decorre em função da baixa definição da imagem eletrônica e dos limites pequenos dos monitores de TV e vídeo. A imagem eletrônica, por sua própria natureza, tende a se configurar sob a figura de sinédoque, em que parte, o detalhe e o fragmento são articulados para sugerir o todo, sem que esse todo, entretanto, possa jamais ser revelado de uma só vez. (MACHADO, 1997, p.194)

Assim, uma tendência do vídeo é fragmentação da imagem, um recorte mais específico do quadro. Machado sugere que o primeiro plano, close up, seria o enquadramento mais adequado ao vídeo, considerando um melhor aproveitamento de suas características técnicas. Por outro lado, nada impede que justamente o ruído ou precariedade da imagem eletrônica sejam utilizados como recurso lingüístico, estético, para a composição específica de certo enunciado imagético. Outra característica técnica para esta tendência está associada a pouca profundidade de campo das câmeras de vídeo, que impediria maior aproveitamento de enquadramentos mais abertos e amplas paisagens. Isso não significa dizer que no vídeo só possam existir primeiro planos, mas seus quadros tendem “para o recorte fragmentário e fechado, cujo modelo é dado pelo primeiro plano” (MACHADO, 1997, p.194). Esses recursos criam uma característica própria do vídeo, em que o número de figuras que aparecem por vez na tela costuma ser limitado, reduzido, já que o recorte amplamente difundido trabalha espaços pequenos. A composição do quadro videográfico costuma ser “despojada”, e até mesmo os cenários, quando observados pelo autor na década de 1990, período de sua análise, apresentavam a tendência de ser menos detalhados e realistas. O que propõe Machado, é que o vídeo opera num esquema de síntese, uma espécie de limpeza dos “códigos” audiovisuais ali representados, “até reduzir a figura ao seu mínimo significante” (MACHADO, 1997, p.194).

33 Isso tudo quer dizer que, por suas próprias condições de produção, o quadro videográfico tende a ser mais estilizado, mais abstrato e, por conseqüência, bem menos realista que seus ancestrais, os quadros fotográfico e cinematográfico (MACHADO, 1997, p.194).

O autor percebe que o vídeo se afasta da estrutura mais corriqueira de narrativa, que é apresentada por quadros que privilegiam uma imagem realista e especular da realidade, com grande profundidade de campo e perspectivas tradicionais advindas do cinema. A construção audiovisual baseada no quadro estilizado, de poucos elementos mostrados por vez, favorece e necessita de uma dinâmica diferente, uma inter-relação rica na associação entre um quadro e outro. Trata-se de um quadro que pouco da a ver como significação “primeira”, como reflexo especular puro e simples e que, inversamente, estimula o trabalho de “leitura” da articulação de planos e força a emergência daquilo que Eisenstein chamava de “olho intelectual”, o olho sensível às estruturas significantes. (MACHADO, 1997, p.194)

A partir de um esvaziamento de elementos em quadro, da abstração das formas, a significação é deslocada para fora dos limites do próprio enquadramento e composição, promovendo a significação na relação entre os quadros sucessivos e no processo de atribuição de sentido da montagem. A dinâmica dos quadros do vídeo converge com o que Eisenstein (1990) denomina de montagem intelecual, uma maneira de associação para quadros, inicialmente cinematográficos, baseados em modelos de linguagens orientais articuladas em ideogramas. Tomemos como exemplo a língua chinesa, forma de expressão derivada de pictogramas “primitivos” e que utiliza um sistema de símbolos gráficos “semipictóricos”, como ícones, que “faz articular imagens para produzir sentido” (MACHADO, 1997, p.195). A estrutura da língua chinesa, diferente das línguas ocidentais com seus tempos, flexões verbais e conectivos, não apresenta flexão gramatical e sua escrita semipictórica não possui símbolos específicos para a representação de conceitos abstratos, a construção desses sentidos estaria então, na articulação de metáforas e metonímias.

Nas línguas ocidentais, as palavras designam diretamente os conceitos abstratos; no chinês, entretanto, pode-se chegar ao conceito por uma via inteiramente outra: operando combinações de sinais pictográficos, de forma a estabelecer uma relação entre eles. Por exemplo: para anotar o conceito de “amizade”, a língua chinesa combina os pictogramas de “cão” (símbolo de fidelidade) e de “mão direita” (com a qual se cumprimenta o amigo). Cada um desses sinais isoladamente se refere apenas a uma “amizade” particular; a combinação dos dois, entretanto, faz com que o signo resultante designe a

34 “amizade” em geral. (IVANOV, 1985, p. 221-235; GRANET, 1968, p.43 apud MACHADO, 1997, p.194)

Grosso modo, essa é a relação proposta na montagem intelectual de Eisenstein, uma justaposição de imagens a fim de suscitar certo sentido, mais preciso e ao mesmo tempo amplo, para a constituição de uma idéia ou conceito.

O fragmento A, derivado dos elementos do tema em desenvolvimento, e o fragmento B, derivado da mesma fonte, ao serem justapostos fazem surgir a imagem na qual o conteúdo do tema é personificado de forma mais clara. OU: A representação A e representação B devem relacionadas entre os muitos possíveis aspectos do tema em desenvolvimento, devem ser procurados de modo que esta justaposição - isto é, a justaposição destes precisos elementos e não de elementos alternativos – suscite na percepção e nos sentidos do espectador a mais completa imagem deste tema preciso. (EISENSTEIN, 1990, p.51).

Assim, contemplando as especificidades de uma forma de comunicação audiovisual, na qual, o ritmo das imagens em sequência, complementadas (ou não, com um fundo sonoro), constrói um sentido específico, mesmo que tal sentido seja a ambiguidade. A justaposição de representações desencadeia processos de construção de significados complexos, diferente da exibição de representações imagéticas ordenadas de maneira sempre linearizadas e respondendo a uma lógica, cujo o entendimento, se dá numa espécie de exibição referencial em detrimento da combinatória que resulta em abstrações próprias da ambiguidade do símbolo.

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3 DESENVOLVIMENTO DO PRODUTO 3.1 – O produto O produto resultante das pesquisas deste trabalho constitui de um vídeo abordando tema da presente relação entre o pensamento mágico e os prolongamentos do homem no ciberespaço, especificamente o avatar. A montagem dos quadros do vídeo será predominantemente baseada na montagem intelectual sugerida por Eisenstein. O propósito é construir metáforas visuais que a partir da justaposição de imagens abordem os conceitos apresentados, como a relação entre homem e máquina, que resulta na hibridação do sujeito-SE, no cyborg interpretativo ou netcyborg, o avatar como extensão da identidade do ciberpaço e a constante dualidade entre a criação natural, Phusís, e a criação artificial, Theknè. Ao pensarmos no vídeo como um todo, este não será um construto engendrado aleatoriamente, mas uma narrativa de conexões através de imagens simbólicas, uma própria alusão à manifestação do tempo na narrativa do mito e no pensamento mágico. Apesar de o tema abordado apontar a virtualização do ser, e as associações de representações figurativas mais corriqueiras do ciberespaço serem predominantemente ligadas a elementos visuais maquinais do próprio universo computacional, como texturas de placas de circuitos, cores e luzes vibrantes, além de certa profusão das construções em computação gráfica em 3D, que simulam objetos em três dimensões, esta proposição de trabalho videográfico busca partir por outra vertente, mais artesanal, por assim dizer, aproveitando ilustrações feitas à mão livre e algumas tratadas em computador. A intenção, na verdade, é que o vídeo tenha uma atmosfera precária, apesar da mediação dos softwares de computação gráfica (Corel Draw, Adobe Flash CS4, Adobe Ilustrator CS4, Adobe Photoshop CS4) e edição de imagens (Adobe Premiere) que pretendem ser utilizados. Assim, a escolha estética visa valorizar o elemento humano, sujeito enunciador no ciberespaço, e as próprias características de experimentalismos audiovisuais que o vídeo permite e incita.

3.2 Pesquisa de imagem e som Segundo a edição brasileira da revista Computer Arts, especializada em artes e design, edição nº 06 (www.computerarts.com.br), a ilustração está em alta no mercado

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da comunicação e da produção de bens culturais. Não somente a ilustração em seu molde mais costumeiro - ilustração gráfica para impressos dos mais diversos formatos mas também a ilustração animada. Segundo matéria apresentada na revista, a ilustração seria uma saída, uma espécie de criação identitária aos artistas gráficos, frente à predominância de trabalhos gráficos realizados inteiramente em softwares de computação e edição de imagens, e instauraria uma certa aproximação entre os mais diversos trabalhos realizados. Seria leviano dizer que as fontes de pesquisa para esse vídeo são A ou B, dada a grande quantidade de referências e estímulos pelos quais somos bombardeados através da TV, Cinema, Internet, revistas em quadrinhos da tradição norte-americana dos Comics, da tradição japonesa do Manga (lê-se mangá), e outros suportes ainda mais undreground com os quais se possa ter contato, como as ilustrações em xilogravura dos cordéis. Por outro lado, para restringir o acervo a ser consultado, grande parte das pesquisas será realizada através de um blog, que responde pelo endereço http://smellycat.com.br. O Smelly Cat (gato fedorento, quando traduzido ao português), possui um foco: “Pretende falar de animação, desenhos animados e tudo o que for relacionado. Personagens de animação em produtos, games, livros. Tudo é motivo para falar no assunto”, nas palavras de seus administradores, Bruna Calheiros e Carlos Merigo. Analisando o conteúdo do blog, foram prospectadas algumas animações consideradas relevantes por sua composição estética de estilos e formas. São elas: O Amor de Gary (http://smellycat.com.br/2009/03/09/o-amor-de-gary); Death Cab For Cutie, videoclipe da banda Grapevine Fires (http://smellycat.com.br/2009/03/15/deathcab-for-cutie-grapevine-fires);

AQUA

(http://smellycat.com.br/2008/08/18/aqua/);

Clementine, videoclipe da música homônima para Megan Washington, da banda Washington (http://smellycat.com.br/2008/11/26/clementine-washington/). Além disso, foram realizadas pesquisas em outras fontes de referência. A partir do Youtube, site para vídeos na web, busquei o videoclipe A Ilha, da banda pernambucana Nação Zumbi (http://www.youtube.com/watch?v=yDtwTZ_8iS0). Outra referência, trata-se do longa metragem em animação Persepolis (França / EUA, 2007, direção de Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi). O filme utiliza um traço simples e elegante. A maioria das seqüências de seus quadros produzidas em preto e branco, além de aproveitar texturas de grafismos que parecem terem sido feitos em tinta e pincel, favorecendo o está

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denominado, no contexto deste trabalho, de uma atmosfera orgânica, ruidosa, mas ainda assim com grande leveza. Em uma análise comparativa, ficou evidenciada certa similaridade na composição de todas as animações pontuadas, uma valorização da ilustração e características visuais que remetem ao orgânico, ao ruído do pincel, da tinta sobre o papel. Como última referência, cita-se o menu de abertura do filme O Grande Truque (The Prestige, EUA / Reino Unido, 2006, direção de Christopher Nolan). No menu interativo do DVD deste filme há a encantadora imagem do Thaumatrope ou taumatrópio, uma antiga máquina de animação baseada no fenômeno de persistência de retitiana. O aparelho emprega duas imagens que rapidamente justapostas através do giro das faces de uma placa que as exibe, parecem se fundir em uma terceira imagem, idéia ou conceito, o que pode ser referenciado ao mecanismo da montagem intelectual. O som ao qual este produto contempla se distancia das narrativas videográficas pesquisadas. Se nos videoclipes sugeridos há uma montagem de imagens sobre a cadência rítmica da linha musical e a narrativa segue sob a orientação da narrativa musicada, o produto experimental desde projeto estará liberto de uma total sincronia entra imagem e som. Mas o que se ressalta é a busca por uma polissemia sonora, aproveitando ruídos diversos, do mundo, de websites e do próprio computador, como o característico ruído do modem, ao tentar conexão com a internet. Produzir um vídeo não é, por assim dizer, um trabalho fechado, extramente préconcebido. A experimentação se faz na medida em que as imagens vão sendo captadas e, posteriormente, durante a montagem, muitas variantes que funcionavam do ponto de vista intelectual não funcionam do ponto vista técnico, imagético ou figurativo, seja por limites das capacidades técnicas do material humano ou tecnológico empregado, ou até mesmo pela mudança de idéias em relação às considerações anteriores. A mostra do processo construtivo pode ser analisada no Apêndice I (REFERÊNCIAS VISUAIS: pesquisa para composição de quadros e texturas).

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde as rudimentares pinturas pictográficas na gruta de Altamira, passando pelas pinturas renascentistas em perspectiva ou experimentos óticos com os primeiros aparelhos de ilusão como o Taumatropo - a fotografia e sua precisão na simulação do real, o cinema e sua dimensão narrativa, até os mais recentes meios de imersão nas redes telemáticas - não se pode negar a recorrente presença das forças psíquicas que atuam nas projeções do homem e o colocam em contato com o mágico através das experiências estéticas. O pensamento mágico, assim como outras maneiras de interpretar o mundo, tem se adequado às diferentes realidades, mas o anseio do homem em ter contato com o divino permanece, sobretudo, não naquilo que ainda escapa da compreensão humana e se mantém inexplicável ou sobrenatural, mas na artificialização da natureza, artifício próprio da condição do ser e que possibilita a expressão da técnica e a noção de arte, também mutável ao longo dos estágios civilizatórios. As possibilidades recentes do ciberespaço e as manifestações do sujeito nesse não-lugar sincrético despertam as percepções para uma nova encruzilhada de caminhos cada vez mais diversos. Na medida em que se multiplicam as formas de hibridismo entre homem e máquina, consequentemente a realidade se expande, tal qual o mundo se torna mais amplo para uma criança que pouco a pouco vai dominando o alfabeto e a gramática. O vídeo, meio audiovisual híbrido da TV e do Cinema, desenvolveu enquanto prática de registro e criação pessoais um caráter que apreende a produção caseira, precária e que se distancia das grandes estruturas de produção que servem ao mercado comercial e são orientadas por uma instrumentalidade de vanguarda do aparato tecnológico utilizado para a obtenção de resultados. Além disso, o vídeo também é uma expressão genuína de um tempo, com uma poética particular, em que a inventividade e as possibilidades das novas tecnologias digitais permitem dizer que Theknè é Poiésis, e assim, arte. Uma forma de arte típica de uma sociedade que pensa e se projeta de maneira eletrônica e digital, orientada por fatores de reprodução seriada e da reapropriação. Somos criaturas simbólicas. Míticos, totêmicos, racionais, projetamos os anseios na busca do conforto existencial de todos os tipos através da tecnologia e dos saberes. Seres duais no eterno conflito entre o natural e o artificial, harmonia que segue de

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improviso sobre as partituras do possível e do sonhar. As novas tecnologias digitais e o acesso possibilitado pela crescente produção de bens tecnológicos ocasionam um sucateamento desses mesmos bens, técnicas e fins para seu uso. Tal sucateamento acontece cada vez mais depressa devido às renovações que norteiam o progresso tecnicista na simulação de imagens que figuram a realidade. Esse campo da sucata, do precário, é amplo espaço de atuação para a produção videográfica e difusão de conteúdo imagético, empregando a experimentação e a inventividade. O fazer videográfico independe de grande estrutura de produção e domínio técnico exímio, visto todas as facilidades de automatismo que as tecnologias oferecem. Por assim dizer, o vídeo é uma importante ferramenta de contar histórias na contemporaneidade, talvez ocupando o espaço, em âmbito das produções pessoais, que um dia tenha sido dos impressos ou da própria narrativa oral, onde atua em profusão o mito e o pensamento mágico. A constante busca do sujeito em tentar responder questões sobre aquilo que lhe exerce influência em plano simbólico pode, nessa era de desdobramentos virtuais, ser re-significada a partir da produção em imagem digital, uma zona de atuação para o imaginário humano e seu encantamento perante aquilo que lhe é invisível e sensível. Nessa zona, no não-lugar do ciberespaço, a consciência humana se projeta e assume identidades convenientes e muitas vezes descartáveis, atuando na construção de ambientes imaginários, que oferecem permissividade de desdobramentos em experiências sensíveis e extrapolem as noções da realidade pragmática e material.

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REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Editora Bertrand Brasil – DIFEL, 7ª edição, 1987. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. CAMPBEL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobra. 9ª Ed. SP: Cultrix/Pensamento, 2004. COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In: PARENTE, André; (org.). Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. EISENSTEIN, Serguei. O sentido do filme. RJ, Zahar, 1990. ESTRELA, Chaberlly. Moda e arte: atravessamentos, influências e rupturas. SENAC, 2008. GRANNEL, Craig; FOLCO, Natalie. Tendências 2008. Computer arts: a revista completa em arte digital, São Paulo, ano 1, n. 6, p. 40-45, fev. 2008. LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre. Editora Sulina, 3ª Ed., 2007, 295p _________. Aspectos da cibercultura: vida social nas redes telemáticas. In: PRADO, José Luiz Aidar; (org.). Crítica das práticas midiáticas: das sociedades de massa as ciberculturas. São Paulo: Hackers Editores, 2002, 168p. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem; tradução de Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2007. MACHADO, Arlindo. A arte do vídeo. São Paulo: Brasil. _________. A televisão levada a sério. São Paulo: Editora Senac, 2001. _________. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997. _________. O sujeito no ciberespaço. In: PRADO, José Luiz Aidar; (org.). Crítica das práticas midiáticas: das sociedades de massa as ciberculturas. São Paulo: Hackers Editores, 2002, 168p. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo; tradução de Maura Sardinha. 3ªEd. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1975. RECUERO, Raquel da Cunha. Avatares: viajantes entre mundos. Ecos Revista, Pelotas, V. 6, n. 1, Jan./jun. 2002. Disponível em: < http://www.ucpel.tche.br/ecosrevista/publicacoes.php?ler=15>. Acesso em: 20 jun. 2009

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TAVARE, Roger. Cyborgs de carne e softwares: avatares e consciências nos jogos e nas redes. In: Derivas: cartografias do ciberespaço, Leão, Lucia (Org). São Paulo: Annablume, 2004, 225p. XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983 (coleção Arte e Cultura; V. n.º5).

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APÊNDICE A - Referências visuais: pesquisa para composição de quadros e texturas

O Amor de Gary (Gay Lê Film - Copyright Supinfocom Valenciennes 2008) Extraído de: http://smellycat.com.br/2009/03/09/o-amor-de-gary

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APÊNDICE A - Referências visuais: pesquisa para composição de quadros e texturas

Videoclipe Death Cab For Cutie | Banda Grapevine Fires (Chris Louie e Bill Barminski, conhecidos como Walter Robot, 2008). Extraído de: http://smellycat.com.br/2009/03/15/death-cab-for-cutie-grapevine-fires

AQUA - produzido por 22 italianos de 7 anos de idade da 2ª série com a ajuda da professora Rafaella Traniello. O projeto escolar das matérias de arte e música. Extraído de: http://smellycat.com.br/2008/08/18/aqua/

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APÊNDICE A - Referências visuais: pesquisa para composição de quadros e texturas

Videoclipe da música Clementine da Megan Washington, da banda Washington, criada por Webuyyourkids, 2008. Extraído de: http://smellycat.com.br/2008/11/26/clementine-washington/

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APÊNDICE A - Referências visuais: pesquisa para composição de quadros e texturas

Videoclipe da música A Ilha, da banda Nação Zumbi, Trama Records, 2007 Extraido de: http://www.youtube.com/watch?v=yDtwTZ_8iS0)

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APÊNDICE A - Referências visuais: pesquisa para composição de quadros e texturas

PERSEPOLIS - França / EUA, direção de Vincent Paronnaud / Marjane Satrapi, 2007) Extraído de: http://www.sonypictures.com/classics/persepolis/

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APÊNDICE A - Referências visuais: pesquisa para composição de quadros e texturas

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APÊNDICE B - Second Life: ambiente de imersão em realidade virtual em três dimensões Extraído de: http://images.google.com.br/images?hl=pt-BR&client=firefox a&channel=s&rls=org.mozilla%3Apt BR%3Aofficial&um=1&sa=1&q=second+life&btnG=Pesquisar+imagens&aq=f&oq= "LIBERE SEUS INSTINTOS E FANTASIAS NUM MUNDO VIRTUAL 3D ONDE TUDO TEM IMPACTO SOBRE SUA VIDA REAL!" (Chamada publicitária do Second Life )

Uma da telas para seleção de avatar no Second Life. O

sujeito

tem

a

possibilidade de escolha de

diversos

tipos,

inclusive zoomórficos.

Cenário

submarino

no

ambiente de imersão do Second Life. Sereias em baixo d’água.

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APÊNDICE B - Second Life: ambiente de imersão em realidade virtual em três dimensões

Loja virtual para a compra de bichos de estimação virtual no Second Life. A compra acontece mediante a aquisição de créditos relativos com o câmbio em dólar do mundo material. O avatar que possui um animal de estimação se destaca através do agenciamento social no ambiente de imersão.

1

2

1 - Avatares zooantropomórficos interagem com demais avatares de figuração humana. 2 - Avatar zooantropomórfico com figuração do gênero feminino atual como modelo publicitária.

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APÊNDICE B - Second Life: ambiente de imersão em realidade virtual em três dimensões

Aplicativo para a edição do avatar no ambiente Second Life. O usuário imerso tem a possibilidade de manifestar o zooantropomorfismo de acordo aos seus anseios identitários.

Avatares

zooantropomórficos

em

atividade de cibersexo. No ambiente de imersão do Second Life, a interface gráfica permite a figuração de atividades sexuais em recortes específicos daquele cenário.

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APÊNDICE B - Second Life: ambiente de imersão em realidade virtual em três dimensões

A sexualização nos ambientes de imersão é bastante corriqueira. Muitos usuários online se desprendem das questões de gênero ao assumir outras identidades flutuantes diversas.

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APÊNDICE C - Taumatrôpo: máquina de produção simbólica e figurativa baseada no fenômeno da persistência retiniana. Extraídas de: http://images.google.com.br/images?client=firefox-a&rls=org.mozilla:ptBR:official&channel=s&hl=pt-BR&q=taumatropo&um=1&ie=UTF-8&sa=N&tab=wi

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APÊNDICE C - Taumatrôpo: máquina de produção simbólica e figurativa baseada no fenômeno da persistência retiniana.

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APÊNDICE D - Outras imagens

THE SCREAM, MUNCH VERSIONS Acessado em: < http://yassenvasilev.wordpress.com/2008/10/24/the-scream-versions/ >

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APÊNDICE D - Outras imagens THE SCREAM, litografia Acessado em: < http://images.google.com.br/images?client=firefox a&rls=org.mozilla:pt-BR:official&channel=s&hl=ptBR&q=the%20scream%20munch&um=1&ie=UTF-8&sa=N&tab=wi>

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APÊNDICE E - Imagens autorais: estudo de personagens e cenas

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APÊNDICE E - Imagens autorais: estudo de personagens e cenas

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APÊNDICE E - Imagens autorais: estudo de personagens e cenas

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APÊNDICE F - Storyline, argumento e comentários STORYLINE: Um personagem se conecta a internet através de seu computador e a partir de então uma série de imagens sugere possibilidades fantasiosas para a sua representação no ciberespaço (avatar) através de metáforas visuais repletas de elementos extraídos da mitologia e do universo mágico.

ARGUMENTO:

O vídeo mostra a relação de um estranho personagem acessando a rede de computadores e projetando sua consciência para dentro do ciberespaço. Começa então uma seqüência de imagens que constroem metáforas visuais a respeito das possibilidades de representação do sujeito no ambiente de imersão online. Imagens em animação mostram as projeções do sujeito através de seu avatar que vai se transformando na medida em que o vídeo segue.

A justaposição de imagens, baseadas na montagem intelectual de Eisenstein é posta em exercício através da tensão entre as seqüências de animação e as inserções de imagens conceituais, metafóricas, a respeito da dualidade entre aquilo que é natural e aquilo que artificial, instigando o questionamento a respeito da relação homem / natureza.

Ao final do vídeo a série de metáforas audiovisuais suscita a concepção de uma nova realidade que se torna mais e mais factível em nossos dias: a inter-relação de hibridismo que envolve homem e máquina. Esse hibridismo tem a finalidade de que o sujeito encontre seu lugar no mundo, sem perder a capacidade de sonhar e de se encantar sob forças do pensamento mágico que se adéqua ao tempo.

O ponto de vista narrativo exercita uma trajetória constituinte à narrativa do próprio mito, apresentando um tempo de conexões, representado através da dança das imagens que são justapostas, repetidas, sobrepostas e não enuncia noção de tempo e espaço, referenciais para localidades geográficas, tal o ciberespaço.

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APÊNDICE G - Análise de cenas e metáforas O PERSONAGEM SEM OLHOS constitui uma metáfora para o prolongamento dos sentidos projetados e externalizados ao corpo. A atenção do personagem está em outros eventos do tempo e espaço que não o tempo e espaço ao seu redor. Uma experiência estética de imersão nos ambientes em rede.

A METÁFORA DO RITO DE PASSAGEM, como explicada na justificativa teórica desse projeto é bastante explorada na narrativa audiovisual do produto final. Os diferentes portais aos que o avatar do sujeito vai transpondo representam de maneira clara a transição deste mesmo sujeito para outros ambientes de imersão no ciberespaço, assim como outros estágios de projeção de identidade e conseqüentemente de possibilidades daquela nova condição recém adquirida.

A TRANSFORMAÇÃO DO AVATAR na medida em que o mesmo atravessa portais é uma alusão às diferentes possibilidades de representação gráfica do avatar no ciberespaço. Assim, vão sendo apresentadas características do pensamento mágico como o zoomorfismo, zooantropomorfismo e antropomorfismo.

O TAUMATROPO é uma máquina de ilusão de ótica baseada no fenômeno da persistência retiniana criado em 1825, pelo físico londrino, Dr. John Ayrton Paris. Assim, a seqüência de imagens que se inicia com a simulação da preparação rudimentar do fogo através da fricção de gravetos (sendo que o graveto citado é na verdade a varinha de um taumatropo), garante uma metáfora visual a respeito da dualidade entre natural e artificial. As imagens mostradas nas faces da plaqueta do taumatropo, de um lado uma tela e do outro uma estilização da figura humana do quadro “O Grito” (pintura do norueguês Edvard Munch, datada de 1893), quando em movimento unificam as duas gravuras em uma condição de revelação do hibridismo entre homem e máquina.

A FIGURA QUE DANÇA NO ESCURO é uma alusão direta ao pensamento mágico, mítico, ao tempo de conexões do mito e do acesso da psique humana às noções de forças primordiais da criação, Phusís. A FIGURA DA MÁSCARA TEATRAL representa a construção ou influência das projeções de identidade no ciberespaço fora da rede. O sujeito assume facetas diversas,

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trazendo para o mundo material a necessidade de manutenção da instância da vida virtual ou projetada. Além da própria noção de permissividade que os avatares conferem nos distintos ambientes ou cenários de imersão, verdadeiros palcos onde atores sociais constroem informação e interagem na simulação de condições que muitas vezes não são cabíveis no espaço social material e civil.

O BEBÊ CIBERNÉTICO é a própria condição de cyborgização em uma complexidade mais ampla, a do cybionte. Não um único ser que se hibridiza com as máquinas, mas toda a humanidade que se insere em um novo estágio cada vez mais intenso de virtualidade e interdependência com o universo maquínico.

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