Bakhtin, Robert Stam e uma proposta de pensamento dialógico para os estudos cinematográficos

July 4, 2017 | Autor: Túlio Sousa | Categoria: Discourse Analysis, Philosophy Of Language, Languages and Linguistics, Bakhtin
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Bakhtin, Robert Stam e uma proposta de  pensamento dialógico para os estudos  cinematográficos1    Sidney de Paulo2      As questões que me levam a escrever este texto certamente já  foram  discutidas  por  diversos  teóricos  do  cinema,  mas  o  que  proponho  é  um  olhar  particularizado,  um  olhar  que  espero  que  contribua  para  os  estudos  cinematográficos.  Ao  que  parece,  os  problemas  fundamentais  ainda  recaem  sobre  certa  tríade:  autor/obra/público, ou, então, vão desde a especificidade do gênero  cinematográfico  até  sua  relação  com  gêneros  próximos,  como  o  teatro, a fotografia ou a literatura. Questão não menos importante se  concerne à dualidade entre Vida e Arte (ético e estético) que, a meu  ver,  são,  antes,  partes  complementares  e  indissolúveis  do  que  uma  bipartição propriamente dita.  E, se existe a necessidade de uma filiação teórica, não escondo  grandes  afinidades  com  o  pensamento  de  Mikhail  Bakhtin  e  seu  Círculo.  Por  conseguinte,  muitas  vezes  estabeleço  diálogos  com  estudiosos  que  denomino  bakhtinianos,  apesar  de muitos  deles  não  se sentirem à vontade com tal rótulo: João Wanderley Geraldi, Irene  Machado,  Beth  Brait,  Valdemir  Miotello.  No  campo  do  cinema,  procuro conhecer os textos de Robert Stam, pois estes me ajudam a  fazer  uma  ponte  entre  cinema  e  Bakhtin,  já  que  o  filósofo  russo  nunca  se  pronunciou  acerca  da  Sétima  Arte.  Nesse  sentido,  os                                                               1

   As idéias aqui esboçadas foram levadas à discussão no XIV Colóquio Bakhtiniano –  Bakhtin  e  Cinema:  as  contribuições  de  Robert  Stam,  evento  realizado  na  UFSCar,  no mês de agosto de 2009, sob orientação do Prof. Dr. Valdemir Miotello, no qual  estive  presente  como  convidado  (e  organizador),  juntamente  com  o  Prof.  Dr.  Arthur Autran Franco de Sá Neto, do Departamento de Imagem e Som.  2    Mestrando do programa de pós‐graduação em Lingüística, na área de Linguagem e  Discurso,  na  Universidade  Federal  de  São  Carlos,  UFSCar,  São  Carlos,  SP,  Brasil.  Endereço eletrônico: [email protected] 

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problemas  acima  serão  refletidos  sob  a  luz  das  correntes  de  pensamento aqui expostas.  Em  sua  Introdução  à  teoria  do  cinema  (2003),  Stam  faz  uma  síntese da História e evidencia como o filme foi encarado conforme a  época  e  a  corrente  filosófica  vigente.  Destas  várias  fases  e  teóricos,  destacamos  Christian  Metz  que,  utilizando‐se  das  reflexões  saussurianas, aborda o cinema de maneira peculiar, juntando, a este  campo,  perguntas  advindas  da  lingüística:  o  cinema  é  língua  ou  linguagem?  Existe  um  signo  fílmico?  Se  sim,  ele  é  natural  ou  arbitrário?  Haveria  uma  gramática  do  filme?  Por  este  motivo,  Stam  considerou importante a entrada de Metz nos estudos fílmicos, pois    Metz foi o exemplo de um novo tipo de teórico de cinema, que chegava ao  campo  já  “armado”  com  as  ferramentas  analíticas  de  uma  disciplina  específica,  assumidamente  acadêmica  e  desvinculada  do  mundo  da  crítica  cinematográfica.  Evitando  a  tradicional  linguagem  valorativa  desta  última,  Metz  deu  primazia  a  um  vocabulário  retirado  à  lingüística  e  à  narratologia  (diegesis, paradigma, sintagma) (Stam, 2003:129). 

  Todavia,  de  minha  parte,  não  gostaria  de  entender  o  lingüista  como  um  teórico  que  aborda  determinado  objeto  com  ferramentas  (ou armas) preestabelecidas, prontas, por assim dizer. O processo de  reflexão lingüística, estabelecido pelo filósofo da linguagem, dará os  contornos do objeto. Em outros termos, é no próprio ato de refletir  que o objeto se forma, se constrói. Assim, valoriza‐se o pesquisador  como  parte  do  processo e  não  como mero  aplicador  de  conceitos  a  um objeto já acabado.  Entender  o  cinema  como  linguagem  também  implica  em  considerar que este é uma ponte que se formaria entre um Eu e um  Tu. Essa metáfora, apresentada por Bakhtin em Marxismo e Filosofia  da Linguagem, acaba por valorizar não só o locutor como também o  locutário, dado que, se por um lado essa ponte tem por sustentação  o Eu, ela necessariamente precisa de um segundo ponto, o Tu. Logo,  o  autor  da  obra  fílmica  tem  importância  em  igual  medida  que  o  público,  pois  ambos  fazem  parte  do  processo  de  interação  verbal  e  contribuem diretamente para a produção de sentidos. 

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O  autor,  ao  elaborar  sua  obra,  tem  por  objetivo  um  determinado  público  e  isso  influenciará  o  modo  de  construção  e  conteúdo do enunciado. O filme é função deste interlocutor e variará  se  se  destinar  a  um  mesmo  grupo  social  ou  a  uma  pessoa  de  diferente  nível  de  hierarquia.  Desse  modo,  a  linguagem  fílmica  é  delimitada  conforme  seus  objetivos,  não  havendo,  de  certo  modo,  uma liberdade plena do criador. “A situação social mais imediata e o  meio  social  mais  amplo  determinam  completamente  e,  por  assim  dizer,  a  partir  de  seu  próprio  interior,  a  estrutura  da  enunciação”  (Bakhtin, 2004:113).  Além  disso,  a  obra  pode  ainda  ser  uma  contrapalavra  a  uma  outra  obra  (seja  ela  cinematográfica,  literária  ou  de  outro  gênero  distinto),  estabelecendo  diálogos  entre  obras  já  produzidas  e  motivando diálogos futuros. Penso aqui, a critério de exemplificação,  no  filme  Tropa  de  Elite  (2007),  de  José  Padilha,  que  poderia  ser  colocado  como  uma  oposição  à  romantização  do  criminoso  em  Carandiru  (2002),  de  Hector  Babenco,  ou  o  filme  recentemente  lançado, Rota Comando (2009), de Elias Júnior, que mantém o policial  herói,  mas  sem  as  características  fortemente  violentas  de  Capitão  Nascimento, personagem do filme de Padilha.  Ainda acerca da aceitação do cinema como linguagem, nota‐se  que  ele  adquire  um  caráter  bastante  interessante,  porque,  como  numa  espécie  de  jogo,  os  participantes  do  processo  de  interação  verbal  têm  a  intenção  de  agir  um  sobre  outro.  Logo,  a  linguagem  cinematográfica pode até ser ingênua, contudo nunca será inocente.  O autor fílmico procura agir sobre o público, mas a ideologia daquele  que chega até este, via signo, marca ora um encontro conflitante ora  consensual, pois o público pode aceitar em todo, em parte ou ter um  pensamento completamente distinto daquela ideologia.  A  importância  atribuída  ao  interlocutor  o  constitui  como  parceiro no ato criativo e, ao mesmo tempo, torna‐o responsável ou  culpado  pela  obra.  No  mesmo  grau  de  responsabilidade,  deve‐se  pensar a relação entre vida e arte. A esse respeito, gostaria de expor  um trecho do texto Arte e Responsabilidade, que acredito resumir de  maneira quase poética a questão:    

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A  vida  e  a  arte  não  devem  só  arcar  com  a  responsabilidade  mútua,  mas  também  com  a  culpa  mútua.  O  poeta  deve  compreender  que  a  sua  poesia  tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que  a  sua  falta  de  exigência  e  a  falta  de  seriedade  das  suas  questões  vitais  respondem pela esterilidade da arte. O indivíduo deve tornar‐se inteiramente  responsável:  todos  os  seus  momentos  devem  não  só  estar  lado  a  lado  na  série temporal de sua vida, mas também penetrar uns nos outros na unidade  da culpa e da responsabilidade (Bakhtin, 2003). 

  Ora, ao revisitar este lugar de  discussão, parece‐me que,  caso  se  priorize  no  conjunto  autor/obra/público  uma  das  partes,  abre‐se  mão  de  um  riquíssimo  diálogo  existente  no  processo  lingüístico.  Se  olharmos o autor, podemos nos perguntar sobre sua função na obra,  como ele pode aparecer no texto fílmico por meio de suas ideologias  ou  como  este  autor  se  relaciona  com  a  vida  ética  e  estética.  Se  nos  encontramos com a obra, nosso olhar poderia recair sobre como ela  foi construída, as falas de personagens, imagem, tomadas de câmera,  bem  como  os  efeitos  produzidos  pelos  recursos  estilísticos.  Por  fim,  se  damos  supremacia  ao  público,  da  mesma  forma,  restringimos  nosso campo de visão a perguntas parciais do problema.  Stam  (2003)  observa  que  com  o  pensamento  estruturalista  sobre  o  cinema,  era  bastante  provável  que  essa  poderosa  corrente,  que  sustentava  que  a  linguagem  fala  o  autor  e  a  ideologia  fala  o  sujeito,  asfixiasse  o  indefeso  e  solitário  autor  com  suas  amplas  e  impessoais estruturas. O que caminho a dizer, e talvez esteja pouco  claro em minha fala, é que se perguntar sobre o autor é se perguntar  sobre  a  obra,  o  público,  sobre  o  contexto  sócio‐histórico,  sobre  correntes de pensamento, sobre ideologia, sobre signo, enfim, sobre  o mundo. Isso porque uma coisa se relaciona com outra e assim por  diante. Todavia não penso numa ciência humana incapaz de estudar  um fenômeno por este se estender ao infinito, mas sim numa ciência  que  admita  sua  incompletude  e  considere  o  assunto  não  finalizado,  com diversas pontas para novos diálogos.  Lembro‐me  de  uma  metáfora  bem  interessante  realizada  por  Geraldi, em uma visita à disciplina Filosofia da Linguagem, em 2008,  na  UFSCar.  Interpreto‐a  tanto  para  compreender  melhor  os  fenômenos  ideológicos  quanto  para  exemplificar  o  trabalho  do  pesquisador  nas  ciências  da  linguagem.  Como  neste  momento  não 

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nos  cabe  a  primeira,  passo  a  representar  a  segunda  possibilidade.  Consideremos  o  mundo  como  um  imenso  mar  e  o  estudioso  como  um mergulhador. Ao se propor a investigar um fenômeno particular,  o mergulhador afunda no mar e nada até um ponto específico. Mas  este  mergulhador  não  pode  esquecer  que,  ao  seu  redor,  em  constante contato com ele e seu objeto de estudo, está todo um mar.  Caso  esqueça,  nosso  mergulhador  se  perderá,  não  retornará  à  superfície e morrerá.  A passagem do Cinema mudo para o Cinema falado, ao contrário  do  que  se  temeu,  trouxe  novos  significados  ao  filme  e  forçou  o  refinamento do investigador cinematográfico, que teria que lidar com  uma nova linguagem que se incorporava ao campo.  Se por um lado,  em  determinada  época,  temos  um  cinema  tido  como  de  Montagem,  não é menos verdade que ainda podemos encontrar tais resquícios em  filmes  atuais.  E  não  me  espantaria,  apesar  de  não  ter  conhecimento  aprofundado sobre cinema de Montagem, se encontrasse neste, pistas  de outras correntes que ainda estavam por vir.  Já que falamos sobre história, é válido lembrar que o cinema é  uma  arte  relativamente  nova,  se  comparada  com  anos  de  textos  literários. Assim sendo, e fundindo a questão com os apontamentos de  Mikhail  Bakhtin,  em  Epos  e  Romance  (1998),  a  arte  cinematográfica  ainda  está  em  plena  evolução,  incorporando  e  re‐significando  outros  gêneros  como  a  própria  literatura.  Tal  incorporação  traz  novos  problemas,  pois  uma  obra  como  o  Primo  Basílio,  de  Eça  de  Queirós,  quando  passa  para  as  telas  do  cinema,  deixa  de  ser  literatura?  O  estudo dessa problemática leva os teóricos a propor categorias como  “adaptação”, “releitura”, “transposição”, “baseado em”.  Por outro lado, as categorizações não parecem condizer com o  processo a ser estudado. Quando uma obra literária não está em seu  campo,  mas  sim  no  cinema,  ela  deixa  de  pertencer  àquele  gênero.  Isso  porque  o  gênero  está  relacionado  à  atividade  humana.  Uma  receita de bolo não é um “gênero receita de bolo” só pelo fato de ter  em sua composição termos do campo semântico culinário ou verbos  predominantemente no imperativo. Receita de bolo é gênero quando  vou  à  casa  de  um  amigo,  por  exemplo,  provo  um  pedaço  de  bolo  e  digo:  “que  delicia”  e  ele  diz:  “É  bem  fácil  de  fazer.  Você  pega  três 

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ovos...”  A  mesma  estrutura  poderia  estar  num  livro  de  literatura  e,  neste caso, não ser mais uma “receita de bolo”.  Envolto  em  tais  pensamentos,  direciono  meu  olhar  para  o  conceito  de  “transcriação”  literária  para  o  cinema.  O  ato  de  criar  reúne  um  conjunto  de  elementos  interessantes  para  a  reflexão,  passando  desde  os  problemas  de  autoria  até  a  compreensão  que  o  público  tem  da  obra.  Reveste‐se  de  diferentes  questionamentos,  dentre  eles  os  que  já  apontei  no  decorrer  deste  texto.  Mas,  “transcriar”  coloca  todos  estes  elementos  em  um  movimento  vital  para  a  compreensão  do  processo  de  produção  de  sentidos.  O  autor  fílmico  não  reproduz  meramente  uma  obra  literária  para  o  cinema,  ele  cria  uma  nova  obra  que  mantém  laços  dialógicos  com  um  outro  texto, mas, além disso, ultrapassa os limites da adaptação mecânica e  re‐significa o texto literário em um campo distinto.  Por  fim,  concluo  que  a  filosofia  bakhtiniana  nos  faz  um  belo  convite  ao  pensamento  dialógico,  um  pensamento  que  não  delimitaria  fronteiras.  Ao  considerar  não  só  aquilo  que  vive  numa  certa  oficialidade,  Bakhtin  nos  ensina  a  olhar  o  marginal  como  necessário e complementar ao não‐marginal. É esse pensamento que  faz  Robert  Stam  mergulhar  na  arquitetônica  bakhtiniana.  É  essa  vontade de se livrar de uma reflexão estrutural de mundo. Acredito  que  seguir  tal  pensamento  é  de  fato  recusar  rótulos,  não  escolher  apenas A ou B, demonstrar afinidade com alguns autores, mas buscar  dialogar e se constituir de outros. Nas palavras de Stam    Recuso‐me a acreditar que sou o único no campo capaz de ler com prazer  tanto Gilles Deleuze como Noel Carroll, ou, para ser mais preciso, ler tanto  com prazer como com desprazer. Recuso‐me a escolher entre abordagens  que  com  freqüência  percebo  muito  mais  como  complementares  que  contraditórias (Stam, 2003:16).  

             

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Referências    Livros e artigos    BAKHTIN,  M.  M.  Marxismo  e  filosofia  da  linguagem:  problemas  fundamentais  do  método  sociológico  na  ciência  da  linguagem.  Trad.  Michel  Lahud  e  Yara  Frateschi  Vieira. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1986.  ______.  Epos  e  Romance.  In:  Questões  de  literatura  e  de  estética:  a  teoria  do  romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. 4 ed. São Paulo: EdUnesp, 1998.  ______.  Arte  e  Responsabilidade.  In:  Estética  da  criação  verbal.  4  ed.  Tradução  de  Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.  STAM,  R.  Introdução  à  teoria  do  cinema.  Tradução  de  Fernando  Mascarello.  Campinas: Papirus, 2003.  ______. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Tradução  de José Eduardo do Moretzsohn. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.  ______.  Bakhtin:  da  teoria  literária  à  cultura  de  massa.  Tradução  de  Heloísa  Jahn.  São Paulo: Ática, 1992.  ______. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Revista Ilha  do Desterro A Journal of English Language, Literatures in English and Cultural Studies,  América do Sul, 0 12 03 2009.    Filmes    BABENCO, H. Carandiru. São Paulo: Columbia; Globo filmes, 2002.  FILHO, D. O primo Basílio. São Paulo: Globo filmes, 2007.  JUNIOR, E. Rota Comando. São Paulo: HDVStudio, 2009.  PADILHA, J. Tropa de elite. São Paulo: Universal, 2007. 

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