Belém: Música e Identidade na Cidade Plural

July 19, 2017 | Autor: Henry Burnett | Categoria: Historia Cultural, Música Popular
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Belém: Música e Identidade na Cidade Plural 2ª versão Henry Burnett* para o Ernani Resumo:

Quando se está imerso na própria identidade normalmente não sabemos do que somos feitos. A identidade não é uma questão, ou um tema, quando não precisamos discutir quem somos ou quando essa interrogação é vã. Só quando a dinâmica cultural se impõe é que nossa marca precisa ser impressa e às vezes defendida, porque já não basta pertencer a este

ou aquele lugar, mas

fundamentalmente devemos mostrar do que somos feitos “de verdade”. Talvez em outras circunstâncias esse conflito se desse entre países, entre religiões em conflito com seus diversos deuses e concepções políticas; no Brasil a identidade é uma questão doméstica, uma querela entre regiões distantes que mal se comunicam e que se nutrem de suas próprias culturas. Se quisermos radicalizar ainda mais, para chegar ao tema deste ensaio, às vezes precisamos entender quem somos dentro de uma única cidade. É o caso de Belém e de sua musicalidade plural. Palavras-chave: Música Paraense; Identidade; Canção Popular; Tecnobrega. Abstract:

When we are immersed in our own identity, normally we do not know who we are. When we know who we are or when this is an empty question, identity is not a question or a theme. Only when dynamic cultural are imposed we need to leave such a mark, that

Revista Estudos Amazônicos • vol. X, nº 2 (2013), pp. 46-74

sometimes must be held, because belonging to a certain place it is not enough anymore, but we fundamentally need to show who we are. Maybe in other circumstances, this conflict takes place between countries, between religions in conflict with their various gods and political concepts; in Brazil, the identity is a local issue, a quarrel between distant regions that promote their own cultures and can barely communicate themselves. If we want to achieve the aim of this essay, we need to understand who we are inside a single city. It is the case of Belem and its plural musicality. Keywords: Music in Pará; Identity; Folksong; Tecnobrega. Temos, portanto, dois sentidos negativos da palavra “povo”. O primeiro, mais evidente, é o que blinda uma identidade fechada – e sempre fictícia – de tipo racial ou nacional. A existência histórica desse tipo de “povo” exige a construção de um Estado despótico, que engendra violentamente a ficção que o fundamenta. O segundo, mais discreto, porém em grande escala ainda mais nocivo – por sua flexibilidade, e pelo consenso que alimenta –, é aquele que subordina o renascimento de um “povo” a um Estado que se supõe legítimo e benfeitor exclusivamente em virtude de organizar a expansão, quando pode, e, em todo caso, a persistência de uma classe média, livre para consumir os produtos vãos com que o Capital a empanturra, e livre também para dizer o que quiser, contanto que esse dizer não tenha nenhum efeito no mecanismo geral. (Alain Badiou, 24 anotações sobre a palavra “povo”, Revista Serrote nº 17, p. 29)

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I Gostaria de começar esta reflexão de modo atípico: eu acredito em um paradigma na música popular do Brasil e não sei se este ponto de partida é o mais adequado para se falar em um produto comercial como a música popular pós século XX. Este paradigma pode ser chamado, na falta de outro nome melhor, de canção de arte, ou canção estética ou o mais simples e preciso: de canção brasileira. Acredito, hoje, que a canção no Brasil alcançou o estatuto do paradigma, apesar de suas infinitas faces. Sua força estética diferencial é a aliança entre a rítmica popular e a poesia culta. Dito isso, deixo claro que não pretendo fazer uma “análise de conjuntura”, uma crítica musical ou algo parecido, antes quero esboçar algumas ideias, em certa medida pretenciosas apesar de iniciais, na direção de uma reconstrução estética de um material musical quase esquecido: a canção paraense. Para tanto, o dito paradigma precisa ser considerado a partir do tema da identidade musical, ou ainda, do que eu chamaria aqui, tomando de empréstimo uma referência pessoal, de uma “estética das águas”, que a meu ver sintetiza a produção desse cancioneiro urbano, mormente do que se produziu em Belém e no seu entorno. Tentarei explicar melhor essa aparente anomalia crítica convidando o leitor menos para uma reflexão teórica sobre a questão da cena musical recente do que para a audição memorialística de um recorte estético-musical daquilo que ficou de fora no que podemos chamar de marcha triunfal da história da música do Pará, ou seja, trata-se aqui de um posicionamento que caminha no espaço deixado entre vencidos e perdedores, famosos e esquecidos. Talvez fosse possível se resguardar de um tema complexo como este permanecendo no âmbito dessa questão da identidade, tratando de origens e cronologias, nascimentos e representações, mas isso tornaria esta reflexão frágil na medida em que os argumentos mais visíveis a favor do 48 • Revista Estudos Amazônicos

atual cenário e de seus artistas vitoriosos giram precisamente em torno desse tema, quer dizer, resguardados numa defesa exacerbada da representação considerada arquetípica, amparada num processo de afirmação oficialesco, os defensores da causa abusam da identidade como princípio. Sabemos bem que quando se está imerso na própria identidade, ou no que imaginamos ser essa definição quando aplicada sobre nosso próprio ambiente, normalmente não sabemos do que somos formados; a identidade não chega a ser uma questão quando não precisamos entender nossas origens ou quando essa interrogação é vã porque nada acrescenta em nossa vida comum. Somente quando os conflitos culturais se impõem, quase sempre no âmbito comercial, uma “marca” precisa ser impressa e às vezes até mesmo defendida, porque já não basta pertencer a este ou aquele lugar, mas fundamentalmente mostrar do que somos constituídos verdadeiramente. O tema e as discussões sobre a identidade nacional são recorrentes em diversos níveis nos estudos sobre o Brasil desde o final do século XIX. No âmbito deste texto, tratarei principalmente do modo como a escolha identitária, ou sua invenção, é consumida no interior do mercado de bens culturais. Em outras circunstâncias este choque entre o real e o imaginado, ou entre o verdadeiro e o falso de nossas representações, esse maniqueísmo que está em pano de fundo aqui quando se pensa naquilo que deve nos identificar social e culturalmente ou não, poderia se dar entre países ou entre religiões em conflito; no Brasil, entretanto, a identidade é uma questão doméstica, uma querela entre regiões que mal se comunicam e que se nutrem de suas próprias culturas. Se quisermos radicalizar, para chegar ao tema deste texto, às vezes é preciso entender quem se é dentro de uma única cidade – é o caso de Belém e da recente exposição nacional de parte significativa de seus bens culturais, da culinária à fotografia, do cinema à literatura, mas, sem dúvida, num movimento de reconhecimento que tem a música como porta de entrada, apresentada a partir de um recorte Revista Estudos Amazônicos • 49

estético-ideológico específico da sua produção. A necessidade de se autocompreender, no momento em que sua música passou a ser executada em nível nacional, e justamente no que há de mais estabelecido no quadro de certas instâncias da indústria de bens de consumo, isto é, nas novelas globais, nos programas de auditório, nas rádios de massa tem causado, a uma cultura até então semi isolada, inúmeras indagações, veladas ou não. A intenção é pensar sobre algumas delas de modo mais calmo do que aquele que levou parte da nossa música para o centro das atenções, principalmente a partir do momento em que o aparato estatal foi mobilizado como uma espécie de mecenas oficial de um grupo determinado de músicos, chegando ao ponto de tornar aparentemente indiscerníveis extratos distintos dessa produção, igualando músicos, fotógrafos, cozinheiros e dançarinos dentro de um mesmo espectro. Um momento que permite inúmeras reflexões sobre questões que não estão na superfície da festa.

II Como um micro país, Belém tem uma história antiga e razoavelmente bem conservada, pelo menos no âmbito da memória, já que sua degradação urbana pode ser constatada por qualquer um que tenha vivido nela nos últimos 30 anos. Essa imagem memorialística cada vez mais dissipada mantém-se graças ao seu isolamento geográfico, reconhecido por todos ora como um atraso, ora como uma virtude para sua auto conservação. Mas essa distância nem sempre foi tão espaçosa, e é cada vez menor, graças a uma descoberta sem precedentes pelo chamado mainstream do show business nacional, que se voltou para uma suposta “estética amazônica”. Grandes empresas de comunicação nacionais, principalmente 50 • Revista Estudos Amazônicos

as redes abertas, alimentam parte dos seus cenários novelísticos, auditórios e programas de entrevistas com essa estética e, enfim, com o que podemos chamar de cena paraense. Tudo, como não poderia deixar de ser, travestindo a disputa por audiência fazendo crer que o que está em jogo é uma suposta descoberta da cultura amazônica e sua valorização, embora em alguma medida isso também esteja em jogo, apesar da padronização estilística que vem a reboque dessa boa intenção. É sobre esse interesse repentino das grandes cadeias de comunicação e suas consequências domésticas que podemos tecer algumas considerações. Para isso, precisamos recuar algumas décadas e retomar, ainda que em linhas gerais, parte da história da canção e da música paraense ainda no século XX. Houve um momento, nos idos dos anos 70, que um poeta, um compositor e uma cantora, respectivamente Ruy Barata, Paulo André Barata e Fafá de Belém tornaram a atmosfera paraense conhecida massivamente nos grandes centros de distribuição de bens culturais. Naquele momento, versos da canção “Foi assim” (Paulo André e Ruy Barata), pertenciam ao que chamamos comumente de MPB, isto é, à tradição da música popular comercial urbana brasileira, ou ainda, a um estilo bem definido pelo par letra/música, já consagrado àquela altura, a canção brasileira em sua forma mais avançada – ressalto isso porque acredito que o termo popular utilizado na sigla nem sempre foi utilizado no sentido de uma música massivamente conhecida ou mesmo reificada ou industrializada, mas como um espelho ou eco de sua origem, quer dizer, esta canção é uma junção da rítmica popular com a poesia culta. Uma das provas desse vínculo do cancioneiro paraense com a MPB tradicional é a resistência desta canção ao tempo, sua permanência na memória dos ouvintes estéticos –definição forjada por Nietzsche ao imaginar um ouvinte concentrado, para quem a música servia como arrebatamento e triunfo da vida –, para os quais ela permanece, ainda hoje, como um retrato instantâneo da Belém de outra época: Revista Estudos Amazônicos • 51

Foi

assim

Como

um

Como

resto

a

Nós

de

sol

brisa

no

da

chegamos

preamar

ao

fim

Foi

assim

Quando

a

flor

Quando

o

mundo

Tu

te

Volta

ao

luar era

fostes meu

Volta há

Nem Horas, Ver-te

quase

meu mim

murmurei

bem,

repeti

nos

teus

manhã

dias,

nesse

deu

bem,

canção



se

de

meu

Não

E

mar

nesse

meses

passar,

olhos adeus

se

uma

passando

ilusão

novamente

na

guardei varanda

A

voz

sumida

em

quase

pranto

A

me

dizer,

meu

bem,

voltei

Hoje E

essa a

ilusão

se

fez

te

beijar,

outra

Vi

no

seu

olhar

O

mesmo

olhar

do

E soube então, que te perdi.

52 • Revista Estudos Amazônicos

em

mulher

nada eu

vi

envenenado meu

passado

Isso se aplica ainda a outra canção da dupla, cujos versos são ainda mais entranhados do ambiente amazônico. O clima de “Pauapixuna” (Paulo André e Ruy Barata) não é desses que se lembre fácil, ou que remeta um público afeito ao ambiente urbano – mesmo o belenense, ao qual o ambiente da canção é refratário – diretamente ao seu universo úmido e silencioso; quer dizer, a canção é muito amazônica, mas no sentido de ser uma representação de um tempo e de um lugar bem delimitado, que eu, como ouvinte, remeto aos campos da Ilha do Marajó. Nessa dificuldade de imprimir imagens que só fazem pleno sentido para quem as vivencia, é igualmente admirável sua força de arrebatamento e de perenidade no ambiente de consumo letrado fora do seu estado de origem. A canção popular paraense pode não ter nascido pelas mãos de Paulo André e Ruy Barata, mas foi com eles que se deu sua integração à história da música popular urbana. Uma história comercial e estética breve, não fosse justamente seu atual pertencimento ao cânone do cancioneiro nacional. Aqui a letra de “Pauapixuna”: Uma

cantiga

de

Uma

tapuia

Um

pedacinho

amor

no

se

porto de

mexendo a

lua

cantar nascendo

Uma cachaça de papo pro ar Um Uma Uma

não

sei

quê

saudade

de

sem

saudade

saudade tempo

querendo,

ou

doendo lugar

querendo...

Querendo ir e querendo ficar Uma Uma Um

leira, beira cavalo

uma de no

esteira, rio pasto,

Uma

égua

no

cio

Um

princípio

de

noite

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Um

caminho

Uma

leira,

vazio uma

esteira,

Uma beira de rio E,

no

silêncio,

Uma

batida

Um

candeeiro

uma

de

folha

caída

a

passar

remo

de

manga

comprida

Um cheiro bom de peixada no ar Uma

pimenta

Outra

lambada

Uma

viola

Nessa

sofrida

Uma

no

prato

depois de

do corda

sofrência

leira,

espremida

uma

jantar curtida

de

amar esteira,

Uma beira de rio E o vento espalhado na capoeira A lua na cuia do bamburral A vaca mugindo lá na porteira E o macho fungando pelo curral O tempo tem tempo de tempo ser O tempo tem tempo de tempo dar Ao tempo da noite que vai correr O tempo do dia que vai chegar.

Antes desse momento, isto é, antes que Fafá de Belém e a música paraense circulassem livremente no eixo Rio-São Paulo, o nome do compositor Waldemar Henrique pertencia a um domínio não menos conhecido, mas certamente mais distante dos canais de mídia de massa; sua obra era, e talvez ainda seja, estudada por famílias “cultas” dos mesmos centros que um dia acolheriam Fafá e seu sotaque. No entanto, Waldemar 54 • Revista Estudos Amazônicos

Henrique pertencia ao domínio da música dita clássica, era um compositor frequentado, sobretudo nos conservatórios e nas escolas de música – tudo isso antes das apropriações posteriores, como a da própria Fafá, mas também de Mônica Salmaso, Zizi Possi, Nilson Chaves e Vital Lima, entre outros, que o aproximariam do ambiente popular ao qual ele também pertencia, ainda que de modo menos nítido. São dois momentos importantes, que mostram o primeiro lance dessa inserção nacional gerada dentro dos limites de uma capital com nítido conteúdo cosmopolita e, ao mesmo tempo, profundamente apartada pelo tempo e pelo espaço, resultando de muitos modos num ambiente provinciano que perdura ainda hoje em instâncias distintas, como no jornalismo e na política, quase sempre irmanados. Dentro desse mesmo patamar de penetração talvez sejam os únicos exemplos de generalizado reconhecimento nacional de massa; únicos, até a chegada do tecnobrega, mais de 30 anos depois da primeira aparição.1

III Esse longo hiato é diretamente proporcional ao lugar ocupado pela canção no cenário midiático nacional, quer dizer, o interesse por compositores como Paulo André, Ruy Barata e Waldemar Henrique pertence ao passado mais ou menos recente, e coincide com o ápice da penetração do estilo no espaço da televisão e dos meios de comunicação de massa em geral na década de 1960 e 1970, que criou os mitos que ainda hoje alimentam a tradição canônica dos compositores urbanos. Podemos dizer que esse espaço “vazio” é apenas um espelhamento de uma mudança que ocorreu em todo país, e talvez em todo mundo, e que pode ser resumido na ideia de uma fragmentação incontornável da experiência perceptiva em relação às artes de modo geral, uma mudança, como Revista Estudos Amazônicos • 55

sabemos, ligada ao novo espaço virtual de consumo, que não deixa de ser uma extensão do modelo anterior, sob outras plataformas, mas como novos ícones – em resumo: mudou a plataforma, mas não mudou o espectador, apenas os mitos se modificaram. Com isso, a canção se tornou um produto similar a um poema, que exige habilidades de apreensão sensível que só se mantém nos espectadores/leitores/ouvintes que reagem ao ambiente fragmentário e procuram desesperadamente a sensação de arrebatamento estético perdido e só a muito custo reencontrado, e mesmo assim deixando margem a uma sensação de anacronismo incontornável. Foram décadas de silêncio midiático entre aquele momento e este em que nos encontramos – entenda-se: quando falo em silêncio penso no isolamento da produção local, a distância que durante décadas manteve esta produção quase proscrita. Ocorre que esses anos nutriram de canções mais de uma geração, sem que se soubesse, fora de Belém e de cidades de médio-porte no interior do Pará, quem eram esses artistas e que música eles faziam, na medida em que permaneciam consumidos em âmbito restrito; e mesmo esse conceito de consumo deve ser amainado, porque não havia exatamente o que chamamos de produção musical, a não ser em casos isolados – encontro-me portanto, cronologicamente, exatamente nesse lugar onde o esquecimento é a palavra-chave. Foram três décadas de algo que podemos chamar de auto sustentação cultural. Houve tentativas de reação, e eu citaria o movimento encabeçado pelo compositor Ronaldo Silva, um dos líderes do grupo Arraial do Pavulagem, que ousou entrincheirar-se contra a avassaladora presença dos movimentos musicais ainda ditados pela poderosa indústria fonográfica que inundavam o país de Norte a Sul e que aqui durante muitos anos tiveram lugar cativo em diversos festivais com produção milionária. O resultado da mudança estilística em suas canções resultou na popularização do Arraial do Pavulagem, que extrapolou a dimensão da apreciação musical, ao que chamo 56 • Revista Estudos Amazônicos

de audição estética, tornando-se um movimento de grande força de massa. Como se vê, o mercado de música local reagiu, mas sem a extensão midiática das aparelhagens de onde nasceria o tecnobrega. Não é por acaso que um dos pontos altos do disco Treme, de Gaby Amarantos, seja justamente uma canção de Ronaldo Silva, “Merengue latino”, aliança clara entre o passado e o presente da produção belenense. No mesmo compositor, a síntese de duas épocas, que podemos divisar ouvindo “Porto dos apaixonados” antes da faixa supracitada. Quero exatamente pensar no centro dessa mudança, na “impossibilidade” de se ouvir esta canção contra a “facilidade” de se ouvir aquela. Qual a razão dessa cesura entre a canção tradicional e a canção de impacto? Entre o ouvir e o dançar? Essa diferença entre o ouvir e o dançar, hoje infelizmente apartadas pela história, é um ponto elementar desta reflexão e não uma polarização maniqueísta – estamos no campo minado da crítica, é preciso lembrar. A música paraense se dividia entre o popular estilo musical conhecido entre nós como brega, que ocupava os bares e as “sedes” na periferia da capital e no interior, e um sem número de compositores ditos tradicionais, que desenvolviam obras sem impacto midiático nacional ou sequer regional, permanecendo dentro de um círculo ínfimo de consumo – o brega era muito popular e autossuficiente do ponto de vista de sua produção em toda a região, e era consumido por todas as classes sociais, num processo muito distinto daquele que é discutido no livro Eu não sou cachorro não, de Paulo César de Araújo, que diagnostica justamente o preconceito contra o qual compositores ditos bregas lutaram no eixo de consumo intelectualizado do resto do país; no Pará, não raro, compositores considerados cultos, escreveram para cantores e compositores bregueiros, é o caso do poeta Edson Coelho, autor do clássico “Cansei de esperar”, parceria com o cantor Luiz Guilherme e que se tornou um tema de referência do estilo. No intervalo entre a década de 1970 e a década de 2000, nada parecia capaz de alterar aquela convivência Revista Estudos Amazônicos • 57

pacífica que, salvo engano, não era dividida entre cultos e populares, antes se interpenetrava de maneira irônica e não excludente. Mas então algo muito distinto ocorreu no ambiente do chamado brega paraense, e que muitos consideram o desenvolvimento do tradicional estilo, agora rebatizado de tecnobrega e alçado à categoria de representação cultural oficial, juntamente com toda uma estética genericamente chamada de “caribenha”. Tal movimento se deve, fundamentalmente, ao forte aparelho estatal mobilizado quase integralmente para projetar diversos nomes em cadeia nacional, numa cooptação sem precedentes na história das relações entre Estado e Cultura no Pará. Uso o termo cooptação porque o Estado e seu aparato de comunicação não inventou o tecnobrega, que já havia se imposto quando da associação, mas o absorveu e o reprogramou com uma função bem distinta do que ele era na origem: a divulgação propagandística de uma imagem do Estado filtrada por um recorte de suas identidades múltiplas, com uma clara opção pelo que podemos chamar de recorte popular, ou ainda, de recorte padrão, dando a entender que, falsamente, Belém era uma capital isolada e plena de seus valores culturais regionalistas, um equívoco sob vários aspectos, entre eles o fato de que se há um movimento claramente identificável nas últimas décadas é o movimento rock. Com isso, o Pará estava integrado ao consumo cultural de massa nacional, algo que considero sem espanto, pois me parece inevitável que a multiplicidade rítmica da região um dia fosse descoberta e assimilada pelo mercado de consumo; o dado inédito é que essa assimilação se organizou pelas mãos do Estado, para só depois ser absorvida pelos grandes canais de comunicação, numa reativação da aliança entre estética e política que tem antecedentes nada honrosos, como é o caso do aparato propagandístico do Terceiro Reich e a utilização das canções populares como substancialização do que chamava na época do ser alemão; tomadas as abissais proporções políticas e culturais, e incluindo 58 • Revista Estudos Amazônicos

o possível desconhecimento histórico de quem acha essa jogada política normal, estamos diante dos mesmos argumentos, agora zombeteiramente explicados através de uma ideia de pureza regional capaz de nos destacar como ímpares e únicos em meio à saturação das produções musicais populares no Brasil. Gaby Amarantos, uma cantora com grande potencial e dotada de forte presença de palco, tornou-se a porta-voz da cultura do Estado, mormente encerrando seus shows empunhando a bandeira do Pará e bradando louvores ufanistas ao Estado. Foi quando os ouvintes se dividiram entre um misto de orgulho e vergonha ao ver suas idiossincrasias domésticas em rede nacional. Por todas essas razões, e muitas outras que arriscarei apresentar adiante, não se deve estranhar a surpresa que pode acometer um espectador menos atencioso, o chamado ouvinte médio, que não vai além da audição despretensiosa do que lhe surge na TV, no Rádio ou na internet, seja de Belém, do interior do estado ou mesmo de fora, ao passar sem conexão de “Tamba-tajá” (Waldemar Henrique) para “Ela tá beba doida (Beba doida)” (Gaby Amarantos) como se vira uma página. Mesmo este ouvinte não especializado, pode sentir a modificação, de resto, como vimos, absolutamente previsível. “Tamba-tajá” (Waldemar Henrique) Tamba-tajá me faz feliz Que meu amor me queira bem Que seu amor seja só meu de mais ninguém, Que seja meu, todinho meu, de mais ninguém... Tamba-tajá me faz feliz... Assim o índio carregou sua macuxy Para o roçado, para a guerra, para a morte, Assim carregue o nosso amor a boa sorte... Tamba-tajá Tamba-tajá-a

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Tamba-tajá me faz feliz Que meu amor me queira bem Que seu amor seja só meu de mais ninguém, Que seja meu, todinho meu, de mais ninguém... Tamba-tajá me faz feliz... Que mais ninguém possa beijar o que beijei, Que mais ninguém escute aquilo que escutei, Nem possa olhar dentro dos olhos que olhei. Tamba-tajá Tamba-tajá-a “Ela tá beba doida (Beba doida)” (Gaby Amarantos) Ela tá beba, doida Ela tá beba, doida Ela tá beba, doida Tá beba, tá doida. Ela chegou Ela é um perigo Só sai da mesa Quando ela seca o litro. Começa na cerveja, Bebe a noite inteira Mistura tudo E vai pra cima da mesa. Começa na cerveja Bebe, à noite inteira

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Mistura tudo E vai pra cima da mesa. Ela tá beba, doida Ela tá beba, doida Ela tá beba, doida Tá beba, tá doida. (Ela só sai carregada, querida)

Creio ser possível afirmar que estamos diante de um problema novo, ou seja, a discussão a respeito dessa herança musical que passa hoje pela afirmação do que é e do que não é paraense tem a ver com o problema enunciado no início deste texto: a questão da identidade. Salvo engano, esse tema nunca esteve presente no horizonte dos paraenses. Ninguém nunca perguntou se Pinduca, o “Rei do Carimbó”, era mais paraense que Walter Bandeira, que foi o grande intérprete da cidade, com um repertório que ia de Caetano a Edith Piaf, de Waldemar Henrique a Frank Sinatra. Dito isso, do que se trata o misto de orgulho e repulsa que acomete os paraenses toda vez que artistas populares da região aparecem em cadeia nacional? A resposta não tem nada de simples e envolve um complexo esquadro onde podem entrar tanto valorações de gosto quanto elementos psicanalíticos, ambos igualmente arriscados para quem se propõe comentar essas questões no calor da hora. Isentando-me da condição de analista, me resguardo na dimensão estética. Embora o tema da identidade paraense só tenha sido digno de observação depois de sua hiper exposição, não se pode dizer o mesmo do momento de estabelecimento da música urbana brasileira, a passagem do século XIX para o século XX, quando isso tudo foi discutido com profundidade. Voltemos rapidamente às primeiras décadas do século XX, quando o terreno da música brasileira era um campo movediço e Revista Estudos Amazônicos • 61

impreciso. Comecemos com a retomada de um projeto nuclear dentro dos estudos etnográficos e musicológicos brasileiros, a Missão de Pesquisas Folclóricas, organizada por Mário de Andrade em 1938. Em linhas gerais, a Missão tinha como tarefa capturar em gravações, fotos e filmes as manifestações populares que todos julgavam ameaçadas pela penetração das novas tecnologias e pelos processos iniciais de veiculação comercial da música; um temor expresso principalmente por Mário de Andrade, o grande idealizador do projeto de registro.2 Não é por acaso que retomamos esse projeto como exemplo. Os discos 5 e 6, respectivamente dedicados a Paraíba e Maranhão, Pará e Minas, guardam um dado curioso, se os confrontamos hoje a partir das especificidades de dois Estados vizinhos: o registro de carimbó foi feito em São Luiz do Maranhão e o registro de boi-bumbá foi gravado em Belém. Deixando de lado a ausência de fronteiras estanques, e desconsiderando o já citado grupo Arraial do Pavulagem e suas toadas – por ser uma tradição de pouco mais de uma década, e mesmo assim com um sotaque muito distinto daquele que se consolidou no Maranhão – e tirante não se saber de nenhum cantador de carimbó maranhense que tenha levado adiante aquele passado ligado ao estilo registrado pela equipe da Missão, seria estranho pensar que o documento que pretendia revelar e conservar identidades hoje não representasse bem – pelo menos oficialmente – nem os paraenses nem os maranhenses; tudo, claro, sem descuidar do registro irônico: “O carimbó é nosso, a tradição do boibumbá é deles” – poderia ser o mote de uma campanha de resgate cultural do Governo do Estado do Pará. Esse é um bom ponto de partida para pensarmos sobre o que é paraense? É uma grande obviedade reafirmar isso hoje, mas a música representa, desde sempre, a sociedade onde ela se produz. Por isso muitos estudam a música de algumas épocas quando querem entender dinâmicas 62 • Revista Estudos Amazônicos

econômicas, políticas e culturais próprias a determinados períodos. Se, ao que tudo indica, quando se ouvia Ruy Barata e Waldemar Henrique havia reconhecimento e quando se ouve Gaby Amarantos esse reconhecimento desaparece, ou é escamoteado, é porque a sociedade onde Gaby se projetou artisticamente é outra, ou sua face atual é conflituosa ou preconceitos de classe e cor permanecem vivos, ou tudo isso junto. Ou talvez possamos pensar que havia uma crença defasada em certa homogeneidade cultural, provavelmente equivocada, e que hoje desapareceu. Mas como essa perda de auto identificação pode ter acontecido em tão poucos anos? São várias as possibilidades de responder a esta questão, nenhuma dotada de objetividade. Minha base é, ainda uma vez, a identidade musical que nos distingue no domínio da canção, i.e., o que foi produzido à margem, e que hoje pode ser considerado esquecido, um paradigma que recebeu coloração paraense por uma geração numerosa e hoje quase esquecida. A produção dos cancionistas paraenses se desenvolveu na absoluta proscrição, ou ainda, exposta de modo tímido em shows organizados pelos autores, em alguns casos com apresentações uma vez ao ano e com público reduzido. Esse trabalho crítico sobre a história e a dinâmica da canção paraense nas últimas décadas ainda não foi feito, ainda que seja algo essencial que ainda exige um esforço nosso. Se tomo a canção paraense aqui como um paradigma, é porque reconheço nela uma contribuição essencial ao estilo. Por isso, minha intenção não é e nem poderia ser frear a marcha da lógica mercadológica que cerca a música há mais de um século, mas assegurar que os movimentos musicais de fachada não oprimam a história, ou uma parte dela, já que não há redenção possível dentro do sistema vigente. Logo, não se trata de “salvar” aquele ambiente musical esquecido nem de condenar o atual, algo que seria tão ingênuo quanto reconstruir Belém. Indicar que aquilo que foi derrotado não desapareceu como acontecimento estético já seria uma contribuição importante. Revista Estudos Amazônicos • 63

IV Não é simples explorar fenômenos midiáticos contemporâneos servindo-se de aparato clássico, sequer podemos assegurar a viabilidade dessa transposição, mesmo nos apropriando de análises mais próximas, como as que se originaram da crítica estético-musical de traço filosófico da primeira metade do século XX, principalmente aquela elaborada por seu maior nome: Theodor Adorno, em seus textos da fase estadunidense, quando esteve mais próximo das questões que ora nos ocupam. Embora a percepção da música tenha um mesmo ponto de apoio, ditado por cada momento histórico e por suas formas de lidar com os materiais sonoros, já não parece possível tomar essas categorias como universais, nem mesmo como balizas seguras, porque as formas que determinavam padrões de consumo naquela época, hoje são consideradas extintas. Claro que as questões vitais da audição musical não se extinguiram com as grandes gravadoras, quer dizer, o que se ouve hoje nas rádios e programas musicais pouco difere daquilo que as multinacionais ditavam nesse terreno, o que só prova que aquele padrão se impôs mesmo na ausência do controle rígido dos produtores; esse alcance perene do tipo de ouvinte/espectador resignado é o mais importante legado do mundo fonográfico administrado. Mas, os tais conceitos estéticos foram pensados de acordo com a observação de alguns filósofos a partir de problemas estéticos bem definidos: é o caso de catarse, utilizado por Aristóteles como um modo de compreensão dos efeitos da tragédia grega sobre o público. Assim também se deu em Kant com os conceitos de belo e sublime, num momento em que a percepção da beleza exigia uma compreensão para além das distinções 64 • Revista Estudos Amazônicos

entre sensível e suprassensível, elevando o filósofo o nível da discussão para a compreensão fundamental sobre o juízo de gosto estético. Se passarmos da Grécia e da Alemanha para os Estados Unidos da primeira metade do século XX, encontraremos o filósofo alemão Theodor Adorno forjando os conceitos de fetichismo e regressão da audição para um entendimento das novas formas de se ouvir música, ditadas a partir do advento do capitalismo e das formas de captação e audição técnicas da música comercial que vinham a reboque. Foi preciso novamente que um filósofo pensasse com novas categorias um fenômeno novo, gerado pelo presente mutante e inexplicável à luz dos conceitos clássicos – que, embora importantes, exigiam novas formulações, ainda que como desdobramentos

das

reflexões

anteriores.

Sirvo-me

deles

aqui

marginalmente, não para ilustrar a reflexão com lances de erudição, mas para indicar que, em nossas discussões sobre a música, o mercado, o Estado e tudo o que cerca as produções atuais, um elemento fundamental permanece excluído, como se não existisse; estou falando da análise estética, i.e., do que afinal a música causa, do que ela pode exercer sobre os ouvintes. É preciso apontar de antemão que, ao invocar a estéticamusical, não significa que se esteja propondo a manutenção de uma pretensa crítica de gosto, distintiva, hierárquica, mas que essa reflexão sobre as sensações poderia servir não apenas para reavivar a força perdida da canção amazônica, mas também para ajudar a entender o poder de arrebatamento coletivo daquilo que chamamos de cena paraense, cada vez mais notória no ambiente de alto consumo, mas não neutralizada em suas fontes por conta disso. A rigor, o fato de não ter sido gerado dentro de um esquema pré-concebido, como o eram os das grandes gravadoras até bem pouco tempo atrás, não significa que o aporte performático dessa cena seja diferenciado; antes pelo contrário, sua penetração na TV aberta, significa, sem sombra de dúvida, uma adesão natural aos padrões de consumo, um recíproco espelhamento. Talvez nem fosse preciso dizer Revista Estudos Amazônicos • 65

isso, mas sem tal adesão esse material não seria veiculado – mas é essencial reiterar à essa altura mesmo o óbvio. Dito isso, me resta introduzir este elemento que, até onde se percebe, em nenhum momento foi introduzido nos acalorados debates sobre a produção recente: o dado estético. Os conceitos não andam à solta na filosofia da arte recente. Talvez a tentativa de Rodrigo Duarte seja a mais próxima que temos ao nosso dispor, e que ele chamou de “construto estético-social”, apontando para a importância de se analisar com novas categorias o vasto material produzido nas margens da sociedade de consumo organizada, ou seja, entre os excluídos social e economicamente.3 Por isso, não basta dizer que a música paraense em destaque é uma versão “modernizada” dos antigos temas do estilo musical conhecido como brega paraense – como se isso pudesse salvaguardar seu sucesso de críticas, se críticas houvesse. Afinal, fazer sucesso não é o ponto da questão, antes é preciso perguntar o porquê desse sucesso repentino ter acontecido de modo tão arrebatador. Opto então em interpretar isto a partir da ideia de cesura entre uma cidade que existiu e que não existe mais, ou que existe de forma diminuta, e que é justamente essa tentativa desesperada de manter o passado hoje reduzido que promove o choque; estamos diante de uma clara escolha, que infelizmente parece definida não pelos artistas, mas pelo mecenato estatal que os catapultou para fora do Estado vestidos em trajes finos. Hoje, alguns deles adquiriram autonomia e seguem com suas carreiras aparentemente desconectados do Estado, mas ainda seguindo seus preceitos de identidade tais como definidas no projeto designado não por acaso Terruá Pará, quer dizer, aquilo que só pode nascer graças à uma origem terral única e bem definida – uma curiosa ironia, quando pensamos o quanto as influências caribenhas são exaltadas quando se quer defender a riqueza do material. É um instantâneo do que Belém hoje sintetiza e que até há pouco não exigia mais que um riso irônico – as bases do que hoje 66 • Revista Estudos Amazônicos

se chama de tecnobrega, e inúmeros artistas que se projetam colados ao estilo, tem ramificações em uma história longa para nossos moldes, isto é, falamos de algumas décadas quando o brega exigia o riso, ria de si, algo muito distinto da cena atual, onde precisamos discutir se o estilo renovado e readaptado é ou não a vanguarda da música popular do Brasil. Essa ideia de que nossos ritmos são novos, únicos, revigorados, puros, inéditos, tudo inventado por decreto, serve bem aos ouvintes e produtores de fora, mas está longe de corresponder à história vista sob outro ângulo menos festivo e mais caricato que o oficialesco. Sabemos muito bem que o que se vende como novo é um velho produto repaginado, adaptado, cooptado, e como talvez seja obrigatório afirmar, purificado de sua origem terral, limpo, repaginado. Por isso é um anomalia misturar o fotógrafo Luiz Braga com um neo-bregueiro, um equívoco que confunde os resultados, ocultando os pontos essenciais em que cada um toca com seus esforços de representação. Talvez fosse possível conjecturar sobre o isolamento que acometia o estado até bem pouco tempo, e que talvez ainda exista de algum modo. A hipótese mais segura não deixa de ser simples: Belém foi incluída entre as “grandes capitais” porque agora fornece bens de consumo nacionalmente reconhecíveis – em que pese um necessário ajuste desse conteúdo a certos moldes, como vimos. Hoje, por conta de intervenções politicas de grande impacto, o Estado fornece modelos que podem ser consumidos por todos, já que não estão mais restritos ao universo local. Não vejo com surpresa o impacto que a rítmica e os modos da região causam nos ouvintes do sudeste: não é um ritmo, uma roupa, são dezenas de variações que caem como uma luva num ambiente de consumo hiper saturado, que exige renovação constante de novos produtos. A indústria cultural é onipresente e onipotente a ponto de não precisar, ou não poder mais ser identificada, eis um dos grandes gargalos da crítica adorniana. É pirata, logo não é indústria? É um arremedo pasteurizado das Revista Estudos Amazônicos • 67

vivências, logo não é cultura? São questões quase insolúveis e sobre as quais ainda vamos gastar muita reflexão. É preciso pensar nas razões que levaram o disco Treme de Gaby Amarantos ser lançado pela Som Livre, gravadora ligada à Rede Globo, que por sua vez insere a cantora em todos os programas de auditório de sua grade, ou isso já seria desnecessário, afinal não estamos diante de um sistema que, em sua estratégia consagrada, foi diagnosticado por Adorno há quase 100 anos quando ele estudou o fenômeno radiofônico estadunidense? Não há nada de novo no cenário da indústria da música, sem essa certeza nenhuma análise avança. Sem dúvida o conceito forjado por Adorno e Horkheimer em 1947 é difuso hoje, mas os motivos são mais interessantes. Gaby Amarantos talvez seja um dos principais explicadores dessa impossibilidade de conceituar, de comentar, de problematizar ou contextualizar corretamente seu próprio lugar em meio à produção comercial de música no Brasil. Seria simples e fácil ignorá-la em nome de afirmações de bom gosto, bastando para isso elencar uma dezena de compositores brasileiros, e seu lugar estaria logo nesse limbo onde jazem artistas populares de forte apelo midiático. Eu deixaria isso para o que eu chamo de “críticos musicais sociais”, ou “antropólogos globais”, para quem o tecnobrega é uma revolução cultural, cujo núcleo ideológico irradiador seria, pasmem, a liberdade das amarras da opressão econômica e política do Estado – sim, do mesmo Estado que o financiou e o projetou nacionalmente; sinceramente, é uma visão tão esdrúxula quando analisada a partir da aliança entre cultura e uma política provinciana e autoritária como a paraense, que não cabem comentários. É por isso que insisto num desvio mais do quem numa crítica musical que seria ineficiente se fosse apenas uma confrontação de discos ou de músicas: a discussão sobre o que é motivo de orgulho e de ressentimento nos ouvintes paraenses, ou nos compositores paraenses, oculta a certeza de que há dentro do hiato de 30 anos ao qual me referi acima, a chave de 68 • Revista Estudos Amazônicos

nossa contribuição para um estilo que me interessa antes de qualquer outra coisa, a canção amazônica. A meu ver, jaz sobre um manto de esquecimento uma outra história, proscrita, derrotada e inaudita. Isso não pode ser julgado a partir de maniqueísmos entre bom e mal, pobre e rico; estou dizendo que precisamos distinguir estilos que, avaliados de dentro de uma certa crítica estética, mostram claramente duas intenções em suas construções, e é de efeitos que a arte moderna sobrevive. A canção amazônica clama por uma crítica que não vem, o tecnobrega dispensa a crítica. Tudo isso que irradia desde o Pará hoje, por mais importante que seja do ponto de vista social, como muitos defendem – mas no qual eu não creio – nunca é tratado a partir do que há de mais elementar na questão da percepção musical, e talvez não seja mesmo o caso. Sobre a questão social, vale lembrar a alegação daqueles que retomam, por exemplo, a origem humilde da cantora para legitimar seu trabalho como uma “voz dos oprimidos”, uma voz revolucionária e periférica. Essa defesa do conteúdo ideológico é na verdade um argumento falho, porque o que está em pano de fundo é a defesa não do suposto conteúdo perturbador, de resto inexistente, mas dos aspectos mercadológicos da cena musical. Os Racionais de Mano Brown nunca vão tocar numa novela da Globo, porque o conteúdo ideológico causaria um curto-circuito imediato; a música paraense padronizada pela mão dos produtores importados toca porque não representa um enfrentamento ideológico. Mas vejam, ela não precisa representar isso, ela não se presta ao discurso politico, afinal ela é sua aliada. Musicalmente, se quiserem, podemos dizer que isso nada tem a ver com ouvir, assimilar, memorizar, ensinar, antes se relaciona com ver, conduzir, arrebatar e extravasar. Por isso a luz pop orgulha seus fiéis, mas é por isso também que o lado sombrio do Estado e a decadência da cidade de Belém permanecem esquecidos diante desse orgulho ufanista tolo e, para falar claramente, despolitizado. Isso tudo, notemos, acaba por ocultar Revista Estudos Amazônicos • 69

esse outro ouvinte envergonhado, que ouso diagnosticar como sendo aquele para quem a música ainda é da ordem da contemplação, da tranquilidade e do silêncio. Eu poderia elencar, de memória, duas dezenas de compositores, cada um com sua especificidade e valor lítero musical próprio dentro do que chamo aqui de canção amazônica – e que não deve ser confundido com algo puro, isolado, antes como um espelho dos cruzamentos culturais ocorridos naquele ambiente através dos séculos – mas fico com um emblema, o protótipo do que chamei no inicio desta fala de paradigma: o compositor Walter Freitas, que ousou forjar uma obra que é, ao mesmo tempo, integralmente amazônica e um dos maiores experimentos musicais que o Brasil já produziu. A crítica estético-musical de origem filosófica jamais compreenderia como, de dentro do ambiente popular, uma forma musical dependente do mercado como é a canção, pudesse ser um antídoto contra seus efeitos. É um fenômeno ibérico e, em sua face propriamente brasileira, uma construção formal sem paralelos na história da música urbana. Walter Freitas é um antídoto porque é o ponto mais alto da música popular amazônica, e paradoxalmente é, ao mesmo tempo, o dispensável, aquilo de que ninguém precisa. É uma questão política, não esqueçamos. O Estado deveria mobilizar parte de seu aparato para que obras como a deste compositor fossem veiculadas e estudadas, não por favorecimento, mas por seu empenho e liberdade criativa. Muitos de nós ainda fazemos e pensamos a música paraense com os olhos voltados para sua contribuição, como uma forma de emular sua hombridade, ainda que nunca possamos alcançá-lo em sua radicalidade e racionalidade composicional. Não se trata, como espero deixar claro, de uma defesa da permanência das formas ultrapassadas, de um elogio do antigo, porque o que chamam hoje de futuro é uma construção falsa, não uma ruptura, Walter Freitas foi uma ruptura e esta possibilidade de reinvenção teve seu 70 • Revista Estudos Amazônicos

momento de efetivação através dele, mas foi um momento, e ele passou. A paráfrase de Benjamin aqui não é um enfeite: “Insensatos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo já passou” (Rua de mão única, “Estas áreas são para alugar”). Cerquemos a questão “esquecendo” a música – que já está, de algum modo esquecida e resignada, e pensemos sobre o ambiente que gerou a cena recente e que é um espelho do nosso tempo. Quem é este espectador-ouvinte que chamo de estético e que se resguarda na audição de canções e temas antigos ou que remetem a esse tempo mais recuado? Por quê diferenciar esse consumidor daquele que chamamos de ouvinte médio? Certamente não é para recolocar a velha questão entre arte séria e ligeira, afinal sequer entramos no domínio da dita arte séria, estamos imersos no ambiente popular. A resposta é simples: o ouvinte de canções (amazônicas ou não) é hoje o mesmo que lê a poesia de Max Martins, que enxerga o que está por trás de uma fotografia de Paula Sampaio ou de Luiz Braga, os leitores de Dalcídio Jurandir e Haroldo Maranhão, os que leem Benedito Nunes para além do movimento funesto de incensá-lo como um totem do patrimônio da cidade. A humanidade destruiu mais do que criou, mas entre suas contribuições mais importantes, a arte ocupa um lugar exemplar, e a canção brasileira deve ser alocada entre essas contribuições, contra qualquer tipo de hierarquia. É preciso ousadia para caminhar na direção contrária aos movimentos dessa história monumental onde não nos sentimos integrados. Não precisamos apenas de tempo livre, tempo de sobra, estamos falando de outro tempo, e que podemos chamar de tempo de dentro. Esse tempo quase perdido, que podemos dividir com um outro ou com outros, é o tempo que se impacienta com a velocidade, com a lepidez do trânsito, com a agonia dos ruídos, com a invasão do espaço sonoro, com a ruidosa exposição de ultrajes autoindulgentes expostos no mero ato de se colocar a caixa de som na janela, só que virada para a rua. Revista Estudos Amazônicos • 71

É certo que esse ouvinte ainda existe, mas também é certo que a comiseração de alguns deles por aqueles que considera estúpidos tem muito de intolerância e de hierarquia social. O bom gosto não é uma conquista da civilização, eis uma frase lapidar que serve bem para a ocasião. Mas insisto que é um tipo de ouvinte que não pode ser ignorado por seu aparente anacronismo, por julgar que ele não acompanha o presente, o que está em voga, enfim, nosso sucesso nacional. A música não deve ser ditada apenas por sua capacidade de venda e popularidade, como parecem acreditar especialistas em economia.4 Não existe nenhuma forma de negar que tantas esferas distintas da produção musical paraense são frutos do meio social, i.e., a experiência da cidade não gerou algo uniforme, homogêneo e idêntico. Pares tão distintos como este que tomamos por extremos aqui sempre foram comuns, sempre conviveram em silenciosa harmonia. Talvez a força midiática do tecnobrega e seus derivados cause espanto, inveja, ressentimento, talvez seja apenas recalque dos que se incomodam com sua projeção, mas isso não pode guiar nossas reflexões. Tudo isso que movimenta o debate recente carece, a meu ver, de algo essencial, e que está além até mesmo do plano estético: tentar pensar a cidade que gerou essa música sôfrega que tanto se difere daquele ambiente perdido do qual muitos lamentam o fim. E um alerta: o que está na superfície não representa o todo do que se faz e do que existe, isto é, os vencidos e sua música não estão sepultados na proscrição da incapacidade de ouvir; muitos estão vivos e produtivos, ainda que soterrados. Obras inteiras podem se desenvolver sob este manto da obscuridade e, ainda assim, pertencerem ao mundo, ao que existe, à criação. Claro que no mundo da hiper fetichização é cada vez mais difícil acreditar em algo que não se vê, e no nosso caso, em algo que não se ouve. Permitam-me garantir que essas obras existem, e nem sempre a história

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dos fracassos midiáticos sobre a qual elas se assentam as torna menos importantes. Belém mudou junto com o mundo, o que só comprova seu antigo traço cosmopolita, oculto pela distância e pela ignorância. Essa mudança muitas vezes não é percebida por quem vive nela – podemos fazer uma analogia com a impressão que os outros tem das crianças quando as encontram depois de um breve intervalo de tempo e as julgam diferentes, muito modificadas, enquanto os pais nada perceberam de tão radical. Sair de Belém e depois voltar é encontrar a criança maior e mais agitada, enquanto os parentes acham que está cada vez mais viva, mais intensa, mais desenvolvida. Os que teimam na contemplação dos grandes feitos estéticos da humanidade, onde se resguarda parte da nossa música, da nossa fotografia, da nossa literatura e do nosso teatro não são intolerantes, mas apenas reticentes à essa mudança irrefreável travestida de futuro. São minoria e inofensivos. Não podem acompanhar o frenesi e o delírio, tampouco desacelerar os que já andam a léguas de distância da calmaria do ler, do ver e do ouvir. É um embate vão. É tentar retroceder a um momento de serenidade no contra fluxo da multidão arrebatada. A música mudou e fez do ato de ouvir um puro choque, uma cesura que partiu ao meio a sensibilidade. Artigo recebido em julho de 2014 Aprovado em setembro de 2014

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NOTAS *

Professor de filosofia da EFLCH/UNIFESP e pesquisador do CNPq. Este ensaio constitui a 2ª versão deste texto, publicado originalmente na revista ArteFilosofia, Ouro Preto, n. 14, julho 2013. 1 Este texto se utiliza de um material musical reduzido. Para que os leitores possam ampliar o foco, julgo fundamental mencionar alguns nomes, indispensáveis aos não familiarizados com a produção musical do Estado do Pará: Nilson Chaves, Walter Freitas, Ronaldo Silva, Edir Gaya, Almino Henrique, Paulo Uchôa, Alfredo Reis, Mário Moraes entre dezenas de outros, são artistas centrais para o entendimento da história da música popular do Pará. Um livro com muitos problemas de precisão das informações, mas que pode ser consultado como uma boa listagem é A música e os músicos do Pará, de Vicente Salles (Belém, Secult/Seduc/Amu, 2ª ed., 2007). Esta ponderação é fundamental, na medida em que, alguns mais outros menos, vários desses compositores conseguiu projeção fora do Estado, ainda que uma projeção restrita a certos círculos de consumo. Outros, como o compositor Walter Freitas, são desconhecidos mesmo nos circuitos alternativos, mas criaram obras de grande significado para o que se poderia chamar de uma estética musical popular amazônica, ainda que no caso deste estejamos falando de apenas um disco, Tuyabaé Cuaá. Recentemente, foi defendida uma Dissertação de Mestrado na PUC/SP sobre sua obra, com uma pesquisa da musicista e pesquisadora Marlise Borges: Do Registro ao Documentário: uma tradução verbo-visual-sonora na Amazônia, orientada por Jerusa Pires Ferreira, e que dá bem a dimensão de seu único registro fonográfico, Tuyabaé Cuaá, (Outros Brasis, 1987). 2 Hoje podemos acessar parte desse material num conjunto de CDs lançados pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo em parceria com o SESC-SP: Mário de Andrade, Missão de Pesquisas Folclóricas, caixa com 06 CDs, São Paulo, 2006. E também no DVD Missão de Pesquisas Folclóricas: cadernetas de campo. Prefeitura de São Paulo, 2010. 3Sobre este conceito, remeto para dois textos do autor: “O critério adorniano” (http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/3156,1.shl) foi publicado num dossiê sobre audição musical organizado por mim para a revista eletrônica Trópico: ideias de norte a sul, do site UOL; sugiro também o artigo original onde o conceito foi explicitado: Rodrigo Duarte, “Sobre o construto estético-social”, in Revista Sofia – vol. XI – nº 17 e 18 – 2007. 4 Ver Ronaldo Lemos e Oona Castro. Tecnobrega. O Pará reinventando o negócio da música. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. Neste completo estudo sobre a comercialização do Tecnobrega não existem fatores artísticos em jogo, quando muito se fala em novo estilo; o movimento se explica por sua capacidade de disseminação mercadológica. O livro é o estudo mais completo sobre o ritmo, rico em informações e farto de estatísticas e gráficos para consulta. Pode-se ainda encontrar dados históricos sobre os antecedentes do ritmo, o chamado brega paraense. Estudos como este demonstram que são necessários critérios alheios à audição e apreciação musical para dar conta de sua dinâmica atual, ou mais, de que é dispensável discorrer sobre questões de ordem qualitativa, a essa altura, julgam eles, inúteis. Nesse ponto, o estudo supracitado é quase um divisor de águas nos estudos de economia da cultura.

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