BETTI, M. - GÊNERO E CONSUMO NO MERCADO DE MODA PLUS-SIZE

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GÊNERO E CONSUMO NO MERCADO DE MODA PLUS-SIZE Marcella Uceda Betti - Mestranda do PPGAS-USP Resumo: Nos últimos anos, o mercado de moda plus-size, especializado em tamanhos grandes, vem crescendo e ganhando uma relativa visibilidade no Brasil, especialmente na cidade de São Paulo. Constituindo-se enquanto um segmento específico e diferenciado com relação à moda mais geral, propõe-se a atender um público consumidor de mulheres que se identificam como gordinhas, que a princípio não se sentem contempladas pelo mercado convencional. O objetivo deste artigo é analisar as disputas e negociações envolvidas em seu processo de constituição, problematizando de que modo a própria categoria plus-size é construída e operacionalizada, discutindo quais são seus efeitos. Palavras-chave: Gênero e consumo. Um dos objetivos de minha pesquisa de mestrado1 é analisar, a partir de uma perspectiva antropológica, de que maneira um mercado de moda plus-size vêm se constituindo nos últimos anos no Brasil, mais especificamente, na cidade de São Paulo, local de meu trabalho de campo. Este mercado, segundo as próprias profissionais2 que trabalham nele, é direcionado a um público que veste tamanhos maiores, cujo foco são as mulheres que se identificam como gordinhas3: embora não haja um consenso sobre quais numerações a grade plus-size deve englobar, no Brasil o plus-size é em geral definido como manequins a partir do 44 ou 46, que dificilmente estão incluídos nas grades de numeração da maior parte das lojas e marcas de roupas. A existência de lojas e marcas especializadas não é exatamente uma novidade, já que, na cidade de São Paulo, algumas delas existem há décadas e são bastante conhecidas entre o público que veste tamanhos maiores. A novidade está no fato de que só vem sendo possível falar em um mercado de moda plus-size apenas de pouco anos para cá. Se lojas e marcas dedicadas a este segmento já existiam, isso não significa que existia todo um aparato mercadológico e midiático para tal, pois eventos como ensaios fotográficos, desfiles, concursos de beleza e lançamentos de coleções de moda plus-size são muito recentes. O relativo destaque que estes eventos e que os trabalhos e carreiras de modelos plus-size vêm recebendo da mídia em geral também é algo novo. O surgimento de mais marcas especializadas e a presença de coleções para tamanhos grandes na grade de marcas comuns confirmam uma espécie de boom do segmento. Desde o início de minha pesquisa venho etnografando eventos de moda plus-size e visitando lojas especializadas, como a Palank, a Kauê, a Etiketa e a Milanina. Com exceção da Kauê, que também produz roupas para homens, todas comercializam roupas destinadas a mulheres. Estas lojas 1

Pesquisa em andamento, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Coloco “as profissionais” porque grande parte das pessoas que trabalham no segmento são mulheres. 3 Gordinha é a categoria de autodefinição mais empregada por minhas interlocutoras. 2

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costumam explicitar seu direcionamento, pois é comum encontrar em sua fachada ou vitrine expressões como plus-size, tamanhos grandes ou ainda a numeração vendida pela loja, como, por exemplo, “do 46 ao 56”. As lojas especializadas costumam contar com algumas diferenças em relação a lojas comuns, para além da questão dos tamanhos vendidos: os provadores de lojas plussize costumam ser mais amplos e mais arejados (muitas vezes têm aparelho de ar condicionado); suas vendedoras são treinadas para atender as clientes de modo atencioso, incentivando-as a experimentar roupas que normalmente não provariam, como, por exemplo, saias e vestidos curtos. Além das lojas físicas, também existem lojas virtuais4, como a Loja Mulherão, a Best-Size e a Flaminga. Segundo as profissionais do segmento, lojas virtuais têm feito sucesso por dois motivos: consumidoras de cidades do interior de São Paulo e de outros estados teriam um acesso mais facilitado aos produtos, uma vez que nestes locais a presença de lojas especializadas costuma ser muito pequena; lojas virtuais diminuiriam o constrangimento das consumidoras, pois eliminariam a tarefa de experimentar roupas na presença de vendedoras e outras clientes, como acontece em lojas físicas. Todas as lojas plus-size que conheci pessoalmente ou através de minhas interlocutoras são lojas de rua, dificilmente estando presentes em shoppings direcionados às classes médias e altas. Ainda não sei o porquê disto, mas é certo que, se tais shoppings costumavam ser locais onde as consumidoras gordinhas encontravam muitas barreiras na hora de comprar roupas, como elas mesmas me informaram, isto vem mudando, já que lojas de departamento – muito presentes em shoppings de classe média e também em ou outro shopping de classe alta – começaram a vender coleções especialmente dirigidas a elas. Atualmente, tamanhos grandes podem ser encontrados não apenas em lojas especializadas, mas também em algumas lojas convencionais, como as lojas de departamento. Renner, Marisa, Riachuelo e C&A, presentes em shoppings centers e também nas ruas da cidade, recentemente passaram a produzir coleções especialmente destinadas ao público plus-size. De modo geral, isso vem sendo bem recebido por minhas interlocutoras, que destacam que a presença de tamanhos maiores nessas lojas facilita seu cotidiano: seja porque não precisam recorrer a uma loja especializada para encontrar roupas, seja porque as peças vendidas em lojas de departamento costumam ter um preço mais acessível. As lojas de departamento, porém, abraçaram a ideia de produzir tamanhos grandes com reservas. Uma consumidora que use tamanho 50, por exemplo, não conseguirá comprar exatamente 4

http://lojamulherao.com.br/. Último acesso em 25/06/13, 20h51; http://www.bestsize.com.br/. Último acesso em 25/06/13, 20h51; http://www.flaminga.com.br/. Último acesso em 25/06/13, 20h52.

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a mesma peça de roupa que uma consumidora tamanho 38 compra. As coleções já produzidas não tiveram sua grade de tamanhos estendida. As peças em tamanhos maiores encontradas nestas lojas não são iguais ao restante das roupas vendidas: constituem uma coleção específica, à parte da coleção normalmente exibida na loja. Os produtos dirigidos ao público que usa tamanhos maiores são diferenciados do restante da loja, ocupam araras separadas, onde em geral se lê “coleção plussize” ou “tamanhos especiais”, e raramente são expostos ou anunciados nas vitrines: a consumidora gordinha precisa entrar na loja para saber que há tamanhos maiores ou ao menos precisa ter essa informação de antemão. A expansão do segmento plus-size O que explica o crescimento e a maior visibilidade do segmento? Que tipo de processo está em jogo neste cenário? Estes questionamentos não são apenas objeto de interesse desta pesquisa, mas também para as próprias profissionais da moda plus-size: elas são frequentemente incitadas a dar explicações sobre o assunto e parecem perceber que este é um ponto crucial para sua própria legitimação. Uma das justificativas dadas por estas profissionais para explicar o crescimento do segmento se apoia na percepção de que a população brasileira engordou. Elas citam dados estatísticos do Ministério da Saúde5 que apontam que quase metade (49%) da população adulta está acima do peso. Isto teria como resultado uma crescente demanda por roupas de tamanho maior, que precisa ser atendida pelo mercado. Outra justificativa é a de que as consumidoras gordinhas se tornaram mais exigentes com relação às roupas. Um discurso muito presente no campo argumenta que estas mulheres, assim como “qualquer mulher”, também gostam de moda e querem usar roupas que sigam as tendências do momento. A vontade destas consumidoras seria a de usar as mesmas roupas que as “magras” usam, a de encontrar as peças desejadas em seu tamanho. De fato, um dos principais problemas enfrentados por minhas interlocutoras é a dificuldade de comprar roupas que lhes agradem, que sejam semelhantes às roupas encontradas em outras lojas, que correspondam a diferentes estilos e ocasiões sociais. Elas contam que as roupas para gordinhas sempre foram “feias”, largas, com tecidos e modelagens pouco diversos e de baixa qualidade, pouco apropriadas a mulheres jovens e “fora de moda”, não acompanhando variações de tendências: costumavam comprar não as peças que lhes agradavam, mas as que lhes cabiam. Em sua visão, este problema 5

Disponíveis em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,metade-dos--brasileiros-esta-acima-do-peso,859616,0.htm. Último acesso em 12/06/13, 15h17.

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tem sido amenizado nos últimos anos com o desenvolvimento do mercado plus-size. Como disse uma interlocutora, a respeito de uma peça de roupa comprada em uma loja plus-size: “Há anos atrás eu jamais poderia ter uma saia bandage6. Agora eu posso!”. As justificativas são desenvolvidas tanto para combater a ideia de que “não há mercado” para roupas maiores que se aproximem das tendências de moda - como se as consumidoras gordinhas não quisessem ou não pudessem usar esse tipo de peça - quanto para confrontar o preconceito de algumas marcas que hesitam ou se recusam a associar sua imagem a um corpo “gordo” com receio de “perder mercado” ou de desagradar consumidores7 – como se o mercado, visto aqui quase que como uma entidade homogênea, fosse constituído apenas por consumidores “magros” que não se identificariam mais com uma marca que também produz tamanhos maiores. A segunda justificativa, como se pode notar, é permeada por uma questão de gênero, já que reforça não apenas a tradicional visão do consumo como uma esfera feminina (ALMEIDA, 2002), mas, mais especificamente, a associação entre mulheres e determinadas práticas de consumo - como o consumo de moda. Apesar disso, ambos os argumentos utilizados para explicar o fenômeno pressupõem a existência de uma suposta demanda crescente. A existência desta demanda, longe de ser um dado neutro, precisa ser problematizada a partir de uma perspectiva antropológica sobre o consumo. Douglas e Isherwood (2009) procuraram se distanciar de análises que colocavam o consumo como mera questão individual e utilitarista. Indo além da teoria da demanda elaborada por economistas, colocaram em cena a dimensão social do desejo por bens, argumentando que os padrões de consumo, longe de serem estabelecidos por necessidades e caprichos individuais, são determinados por meio de pressões e expectativas coletivas. Como Appadurai (2008) reforça, a demanda por bens não é algo independente da cultura, não se tratando de uma reação racional e automática à quantidade de bens e de renda disponíveis, mas sim de um impulso gerado e regulamentado socialmente. Os bens que consumimos, segundo Douglas e Isherwood (2009), são usados para mediar significados, para estabelecer classificações e marcações hierarquizantes, para transmitir informações socialmente compartilhadas – seu conjunto constitui um sistema de comunicação. Precisamos de bens para tornar visíveis as categorias culturais, as diferenciações e estratificações. 6

Um tipo de saia bastante justa, como se uma bandagem tivesse sido enrolada no corpo da pessoa. Caso da marca Abercrombie & Fitch, cujo CEO afirmou que a marca não produzia tamanhos maiores porque não queria pessoas “gordas” comprando em sua loja, e sim pessoas “magras” e “bonitas”, seu real público consumidor: http://epocanegocios.globo.com/Inspiracao/Empresa/noticia/2013/05/para-afastar-gordas-abercrombie-se-recusa-fazerroupas-largas.html. Último acesso em 19/06/13, 15h40. 7

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As escolhas de determinados bens não são triviais, mas constituem um processo ativo, onde relações, posições e categorias sociais são continuamente (re)definidas. Mais que olhar para o consumo por meio de uma perspectiva antropológica, que se atente para seu aspecto simbólico e coletivo, é preciso deixar para trás certos preconceitos teóricos. Os trabalhos de Miller (2004 e 2007), ao apontarem que alguns estudos sobre consumo estariam impregnados por uma visão moralista e conservadora da atividade - como se ela fosse algo maligno e antissocial, que não produz nada e que apenas destrói -, propõem um olhar que humanize o consumo e o consumidor, que se atente para a riqueza simbólica envolvida e que não se prenda ao que ele qualifica como um “utilitarismo ordinário”. Meu olhar sobre o mercado de moda plus-size e sobre a maneira como os profissionais desta área procuram justifica-la e legitima-la não parte do princípio de que uma maior demanda das consumidoras gordinhas seja fruto de meros desejos ou impulsos individuais nem da ideia de que há uma manipulação perversa do mercado sobre as escolhas destas consumidoras. Trata-se de uma questão social, de algo que engloba necessidades coletivas, de um determinado grupo, e não de indivíduos isolados. Está em jogo também uma dupla construção: na medida em que este mercado específico está construindo seu público consumidor, ele também está se constituindo por meio deste. As justificativas dos profissionais da moda plus-size passam a impressão de que uma maior demanda e uma maior exigência por parte das consumidoras são fenômenos dados, insinuam que apenas estão correspondendo às expectativas de um grupo cuja existência precede sua própria. Fry (2002), ao fazer uma leitura de Sahlins (2000), aponta que o mercado, antes de suprir uma demanda ou uma necessidade, na realidade as cria, contribuindo também para a própria produção de grupos e categorias de consumidores. O objetivo, ao mostrar como o mercado produz demandas e constitui grupos de consumidores, não é minimizar os problemas cotidianos enfrentados pela maioria de minhas interlocutoras: mais que o desejo por roupas “da moda”, elas têm a necessidade de se vestirem para o trabalho, para o lazer e outras ocasiões sociais, e encontram muitas dificuldades para satisfazer estas necessidades que podem ser consideradas banais. Mesmo com todas as dificuldades, ainda que aparentemente sejam excluídas do universo da moda, de uma forma ou de outra, as consumidoras gordinhas sempre tiveram que comprar roupas. Segundo a fala bem-humorada de uma de minhas interlocutoras, “Nós gordinhas não andávamos peladas até então!”: como foi dito no início, a existência de marcas e lojas especializadas não é novidade.

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A novidade é que as gordinhas estão sendo reconhecidas como consumidoras, transformadas em consumidoras. É neste momento que o mercado plus-size está produzindo seu público consumidor próprio, constituído por mulheres gordinhas que desejam roupas iguais a das “magras”, que querem estar bonitas e se vestir de acordo com as tendências. É neste momento específico que a moda plus-size começou a ser definida, de maneira mais generalizada, como um mercado, como um campo de moda específico, isto porque, ao mesmo tempo em que produz um público consumidor, também é constituído por este. Trata-se de um processo dialético, onde não há uma preponderância dos produtores ou dos consumidores, mas uma correspondência entre um produto e uma categoria social (SAHLINS, 2000), entre um mercado e seus compradores. Problematizando a categoria plus-size Uma questão essencial é a problematização da própria categoria plus-size. O termo quer dizer “tamanho grande” e é bastante usado no campo para adjetivar a moda dirigida as mulheres gordinhas, sendo mais recorrente que expressões semelhantes como “tamanhos grandes”, “tamanhos especiais” ou “GG”, pois aparece no nome de lojas, marcas e eventos, está na fala de profissionais e consumidoras e é usado pelas próprias modelos do meio, que são definidas e se autodefinem como modelos plus-size. Acredito que seja o mais usado porque transmite uma ideia de sofisticação e porque não é tão “direto”: é comum que algumas pessoas, ao saberem o tema de minha pesquisa, mesmo tendo alguma familiaridade com a língua inglesa, me perguntem o que é plus-size. Qualificar um segmento de mercado dirigido a um determinado público com um adjetivo específico pode trazer uma maior visibilidade e legitimidade, configurar uma estratégia comercial para atrair determinadas categorias de consumidores e constituir um modo de diferenciar-se frente a um mercado mais geral. Quando a moda dirigida às pessoas que vestem tamanhos maiores é qualificada como plus-size, está se destacando a singularidade deste segmento com relação ao que até então era produzido para este público: roupas com tecidos e modelagens pouco apreciadas pelas consumidoras, peças consideradas “fora de moda” e de má qualidade. Está sendo sublinhada também a diferenciação do segmento com relação à moda convencional, que dispensa quaisquer adjetivos para se legitimar, não precisando ser marcada ou diferenciada em relação a outro campo. Chamo-a dessa maneira justamente para marca-la em relação à moda plus-size, meu objeto de pesquisa.

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Se a moda convencional é chamada apenas de “moda”, a moda plus-size é qualificada desta maneira porque se apresenta como um campo à parte, porque sua diferença com relação ao contexto mais geral precisa ser enfatizada. Se as mulheres gordinhas se sentem, a princípio, excluídas do universo da moda, a moda especialmente dirigida a elas pode representar uma possibilidade de inclusão em uma esfera onde inicialmente não tinham espaço, através de um mecanismo específico: trata-se de uma inclusão via mercado, por meio do reconhecimento de sujeitos alvos de discriminação como consumidores em potencial. Um discurso muito comum no campo é o da autoestima: profissionais do meio, como modelos, produtoras e fotógrafas, bem como as próprias consumidoras, costumam afirmar que as gordinhas devem amar a si mesmas e a seus corpos, cuidando da própria aparência e do vestuário. Como Mira (1997) aponta, é comum que nichos de mercado específicos, cujos focos são grupos socialmente discriminados, se utilizem de uma linguagem da autoestima e da realização pessoal por meio do consumo. Fry (2002), ao estudar o mercado de beleza e estética direcionado aos negros, mostra como este nicho se apoia em um discurso de autoestima dos sujeitos em questão. Em sua análise a respeito da constituição de um mercado GLS, França (2007a, 2007b) explica de que maneira este mercado procurou se expandir ao enfatizar não um discurso de vitimização dos sujeitos, mas um aspecto positivo de orgulho e visibilidade. Em ambos os casos, assim como no mercado plus-size, não se trata de propostas que procuram eliminar as características que marcam cada um destes grupos frente a outros, mas de propostas que procuram reforça-las de maneira positiva, que tentam reverter o estigma e a desvalorização dos quais são alvos. Todavia, enquanto que o mercado GLS e o mercado de beleza dirigido aos negros possuem, ainda que de maneira parcial e não livre de tensões, alguma conexão com o movimento LGBT e com o movimento negro, o mercado plus-size parece não estabelecer nenhum diálogo desta natureza. Pelo menos no campo que venho explorando, posso afirmar que não existe um movimento de pessoas “gordas” organizado, que faça demandas junto ao Estado, que reivindique direitos e leis anti-discriminação. Parte de minhas interlocutoras inclusive rejeita o termo “movimento”, não aceitando que suas atividades sejam qualificadas como “movimento plus-size”. Quando questionada sobre isso, uma profissional da área explicou que não gostava do termo porque ele remetia a movimentos sociais, como o MST (Movimento dos Sem-Terra), e que isso não tinha nada a ver com seu trabalho. Em outra ocasião, uma produtora de eventos explicou que o segmento plus-size é um

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mercado, um trabalho “profissional” e “sério”, acrescentando que não se tratava das “gordinhas discriminadas”, e sim de “negócios”. Entretanto, uma dimensão política também não é excluída dos discursos produzidos no campo. As profissionais do segmento sempre enfatizam a desvalorização social e os preconceitos que as mulheres gordinhas enfrentam em seu cotidiano, não ignorando o quanto isto é prejudicial e procurando estimular a construção de uma imagem mais positiva destas mulheres – até porque uma parte significativa destas profissionais, que atuam como produtoras, organizadoras de eventos, consultoras, fotógrafas e maquiadoras, também se identificam como gordinhas. Algumas delas também dizem acreditar que participam de uma democratização da moda, dado que, com seu trabalho, estariam promovendo a inclusão de pessoas que antes não tinham acesso ao mundo da moda. Este discurso que valoriza o consumo como um meio de incluir é bastante presente, e acredito que ele se apresente como uma estratégia comercial mais efetiva que a linguagem da vitimização e da discriminação. Não há uma concordância absoluta sobre o que ou quem é plus-size: embora a maioria das profissionais deste segmento definam que o plus-size engloba manequins a partir do 44 ou 46, não há uma única definição sobre onde a grade plus-size deve começar e terminar, sobre quais numerações devem ou não ser contempladas. Grande parte das lojas especializadas produzem peças a partir dos tamanhos mencionados, mas dificilmente estendem sua grade para além do número 56 ou 58. As profissionais da moda plus-size afirmam que no Brasil não há uma padronização para numeração de roupas, e que no caso dos tamanhos maiores essa situação é mais séria, dado que cada marca do segmento estabelece suas próprias numerações, sem que haja uma regulação geral para todas. Isto dificultaria mais ainda o cotidiano das mulheres que usam tamanhos maiores, pois a numeração usada varia segundo a modelagem e as medidas da marca: uma reclamação comum entre minhas interlocutoras é que se em uma dada loja elas compram calças tamanho 46, em outra precisam comprar tamanho 48 ou 50. Além disso, há marcas que dividem a numeração de certas peças, como blusas, entre P, M e G, estabelecendo um tamanho plus-size “pequeno”, “médio” e “grande”. A ausência de uma definição única, entretanto, não significa que não haja certas convenções mínimas: dificilmente algum sujeito do campo diria que os manequins 40 e 42, por exemplo, são plus-size, ou, ao contrário, que números como 50 ou 52 não são plus-size. Pode-se dizer que os primeiros, segundo as visões nativas, são manequins convencionais, facilmente encontrados em

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qualquer loja, usados por pessoas “magras”, enquanto que os últimos são usados por pessoas “maiores” ou mais “gordas”, que precisam recorrer a marcas ou lojas diferenciadas para encontrar roupas. A definição de onde o plus-size começa e até onde ele vai é um ponto de disputas internas, de conflitos de interesses, ponto este que pode ser expresso pela seguinte questão: a numeração plus-size inicia-se em qual tamanho? O manequim 44, definido por muitos profissionais como este início, pode ser de fato considerado um tamanho grande? Tal questão é muito presente no campo e é alvo de intensas discussões. Uma parte das interlocutoras defende que o manequim 44 não é plus-size, argumentando que se trata de um tamanho convencional, que não é tão difícil de ser achado em lojas comuns. Quase sempre aparece a ideia de que uma mulher que usa este manequim não é alguém que pode ser considerada gordinha, mas no máximo uma mulher “curvilínea”: é como se quem usa 44 não fosse “gorda” o suficiente para se enquadrar na categoria plus-size. Outra parte das interlocutoras, argumentando justamente o contrário, acredita que o tamanho 44 é sim plus-size, porque quem o usa já encontra dificuldades para achar roupas em lojas convencionais. Segundo elas, dizer que o 44 não é plus-size seria na realidade um “preconceito” contra as mulheres que não são tão “gordas”. Se, aparentemente, todas compartilham o mesmo problema, o de não achar sua numeração, todas se enquadrariam no plus-size: dizer então que 44 não é plus-size seria, segundo suas falas, excluir uma parte das consumidoras do segmento. Considerações Finais A categoria plus-size, uma das principais categorias “nativas”, e que também adoto em meu texto, não é então uma categoria estável, de sentido unívoco. Ela está sempre num contexto de disputa e negociação, é permanentemente manipulada por minhas interlocutoras. Estas, de modo geral, parecem estar cientes que o ato de nomear e estabelecer categorias é algo importante, que as posiciona em relação a outros sujeitos, que define quem pode ser considerada ou não parte do grupo. Acredito que análises sobre a construção de diferenças e de identidades, como as de Brah (2006) e Butler (2003), são interessantes para pensar esta problemática em torno do termo plus-size. Ao analisar como grupos são definidos a partir da construção de diferenças, Brah argumenta que a diferença pode ser usada tanto para afirmar a diversidade quanto para reforçar práticas excludentes, a depender do modo como é manipulada politicamente. Butler explica que não se pode

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compreender identidades coletivas em termos estáveis ou permanentes, chamando a atenção para seu caráter produtivo e contingente, mostrando como sua construção política é guiada por certos objetivos de legitimação e de exclusão. Não quero dizer que tomo a categoria plus-size como uma identidade das gordinhas, pois meu objetivo não é essencializá-la, mas ao contrário, mostrar como ela é construída e operada pelos sujeitos do campo. O contexto de disputa, negociação e manipulação da categoria plus-size não mostra uma definição permanente e homogênea, mas se assemelha aos processos de construção de identidades, pois se trata de legitimar uma demanda coletiva específica, de marcar diferenças, de estabelecer pertencimentos e exclusões, de determinar fronteiras: é preciso justificar a existência de um mercado especializado, diferenciando-o do mercado mais geral, sublinhando sua peculiaridade, definindo quem pode ou não ser considerado como parte dele. A defesa da segmentação e da diferenciação é particularmente interessante para as profissionais da moda plus-size, pois é uma maneira de legitimarem seu campo de atuação, de mostrarem sua pertinência. Embora a moda plus-size possa ser entendida como um mecanismo “democrático”, de “inclusão via consumo/mercado”, que procura contemplar uma diversidade que a moda convencional em geral não contempla, a disputa em torno da própria definição do que é plus-size, a discussão em torno do manequim 44 - se ele é ou não um manequim “grande” - revela que o segmento, ao definir a inclusão de certos sujeitos, determina também as exclusão de outros, estabelecendo normatizações. Ou seja: na medida em que o mercado de moda plus-size estabelece fronteiras e definições, ele também normatiza8. Referências: ALMEIDA, Heloisa Buarque de. “Melodrama Comercial – reflexões sobre a feminilização da telenovela”, Cadernos Pagu, Campinas, nº 19, 2002. APPADURAI, Arjun. “Introdução: mercadorias e a política de valor”, in: A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008. BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação”, Cadernos Pagu, Campinas, n.26, 2006. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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Para uma problematização mais cuidadosa da ideia de que o mercado pode ser visto como um lugar que produz normatividades (e também transgressões), ver FRANÇA (2010) e GREGORI (2012).

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FRANÇA, Isadora L. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: Homossexualidade, consumo e produção de subjetividades da cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). IFCH-Unicamp. Campinas, 2010. _________________.“Identidades Coletivas, consumo e política: a aproximação entre mercado GLS e movimento LGBT em São Paulo”, Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n.28, jul./dez. 2007a. _________________. “Sobre “guetos” e “rótulos”: tensões no mercado GLS na cidade de São Paulo. Cadernos Pagu, Campinas, n.28, jan./jun. 2007b. FRY, Peter. “Estética e Política: relações entre “raça”, publicidade e produção da beleza no Brasil”, in: Goldenberg, Mirian (org.), Nu & Vestido. Rio de Janeiro: Record, 2002. GREGORI, Maria Filomena. “Erotismo, mercado e gênero: uma etnografia dos sex shops de São Paulo”, Cadernos Pagu, Campinas, n.38, jan./jun.2012. MILLER, Daniel. “A pobreza da moralidade”. Antropolítica, Niterói, n.17, 2º sem. 2004. MILLER, Daniel. “Consumo como cultura material”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n.28, jul./dez.2007. MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: o caso da Editora Abril. Tese (Doutorado em Antropologia Social). IFCH-Unicamp. Campinas, 1997. SAHLINS, Marshall. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Gender and Consumption in plus-size fashion market Abstract: In the last years, plus-size fashion market, specialized in larger sizes, has been growing and gaining a relative visibility in Brazil, especially in the city of São Paulo. As a specific segment, different in relation to traditional fashion, its purpose is to serve a consumer public of women who identifies themselves as “fat”, who does not feel included by conventional market. The aim of this article is to discuss the disputes and negotiations involved in this process, the way how the category plus-size is constructed and operated, and what are their effects. Keywords: Gender and consumption.

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