BIOPODER E AUTOIMUDIDADE: O COLAPSO DA SEGURANÇA NO RASTRO DA DESCONSTRUÇÃO – FOUCAULT E DERRIDA EM DEBATE

October 3, 2017 | Autor: Isabela Costa | Categoria: Sovereignty, Giorgio Agamben, Jacques Derrida, Biopower and Biopolitics
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BIOPODER E AUTOIMUDIDADE: O COLAPSO DA SEGURANÇA NO RASTRO DA DESCONSTRUÇÃO – FOUCAULT E DERRIDA EM DEBATE1 Isabela Costa2 Manoel Uchôa3

Resumo: Na biopolítica, Foucault refuta o modelo da soberania como discurso de legitimação. Para tanto, propõe duas formas de analisar o Estado. Primeiro, o poder estatal sustenta-se por dispositivos não derivados dele. Contudo, encontramos, na forma estatal, uma organização desses mecanismos difusos e heterônomos atualizados numa homologia. Segundo, a guerra é o princípio de sua análise política. O poder só se exerce na luta. Nessa medida, o biopoder é assunção da vida biológica dos corpos individuais e populacionais: “fazer viver, deixar morrer”. Numa contrapartida suplementar, Jacques Derrida propõe um novo tratamento à soberania. Na salvação (saúde) de seu corpo artificial, a soberania constitui-se num processo de imunização de si mesma, construindo defesas para o “Eu” soberano contra si: “fazer viver, fazer morrer”. Essa é a aporia radical da biopolítica. Sendo assim, o objetivo deste artigo é analisar a relação entre biopoder e auto-imunidade na constituição de uma nova perspectiva de soberania. Palavras-chave: Biopoder; Auto-imunidade; Soberania

Introdução: duas genealogias do poder. A análise tradicional do poder é balizada principalmente pela categoria de legitimidade. Por um lado, a produção da crença de um fundamento do poder permite afirmar sua justiça e validade. Por outro, as formas que regulam esse processo precisam se instalar nas instâncias mais específicas da sociedade. Nesse sentido, dois modos de tratar o funcionamento do poder se sobressaem. Um pretende encontrar a justificação da estrutura de dominação; outra desloca o problema da fundamentação em virtude de uma ramificação das relações de dominação. Embora não se possa resumir o poder à questão da legitimação, as análises daquele provem das construções dessa. 1

Trabalho preparado para sua apresentação no 1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos: governamentalidade e segurança, organizado pelo Departamento de Ciências Sociais e pelo Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 13 a 15 de maio de 2014; 2 Isabela Maria Bezerra Costa. Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: [email protected] 3 Manoel Carlos Uchôa de Oliveira. Doutorando no PPGCJ-UFPB. Professor Assistente I na Unicap. E-mail: [email protected]

A posição de Michel Foucault surge enquanto uma negação do paradigma da legitimidade na medida em que desloca a questão do fundamento para o problema do funcionamento do poder. Foucault pretende redefinir a pergunta pelo poder justamente na negação da legitimidade, logo, negação do modelo de soberania vigente na modernidade. A genealogia enquanto estratégia de estudo evoca a emergência dos mecanismos de poder a partir das relações de força. Em contrapartida, Jacques Derrida assume o problema da tradição a fim de desconstruir os pressupostos da fundamentação do poder. Sua estratégia não é menos genealógica, porém lida com as forças que sustentam a própria autoridade legitima e soberana. O ponto de partida desse trabalho assume a dificuldade em decidir pela negação ou afirmação do fundamento de poder e da soberania. O que chama a atenção é que entre uma posição e outra há um limiar de negociação oferecendo novas perspectivas para o estudo do poder. Não é à toa que referências contemporâneas, como Agamben, Negri, Laclau, Esposito, tentaram lidar com o choque dessas duas formas de conceber o poder. Por isso, pretende-se tomar a posição limítrofe na mediada em que um espaço de contaminação possibilite às duas genealogias um debate em torno do problema da Soberania. Tomando a obra de Foucault primeiramente, o binômio “morrer-viver” está no cerne da discussão deste trabalho. No modelo de soberania, há o postulado do “fazer morrer, deixar viver”; enquanto no paradigma biopolítico, “fazer viver-deixar morrer” é o contraponto de uma nova maquinação das relações de poder. A primeira parte é dedicada a essa exposição. Por outra via, o poder ao tentar marcar a conservação de seu corpo segue em uma autodestruição que, antes de ser um acidente, é fator constitutivo de sua legitimação. Por isso, entre a soberania e o biopoder foucaultianos, haveria um terceiro elemento transversal e intrigante: a auto-imunidade, cujo funcionamento é uma repetição infernal, “fazer viver, fazer morrer”. Nesse sentido, pode-se pensar um desvio dessa maquinação no intuito de pensar um poder de liberação que signifique um “deixar viver, deixar morrer”, o verdadeiro sentido da liberdade derridiana. Mesmo assim, não tão distante da proposta ética de Foucault. 1 A genealogia foucaultiana do poder; a descontinuidade entre soberania e biopoder Michel Foucault, no seminário “Em Defesa da Sociedade”, preocupa-se em delimitar uma analítica do poder. Sua pretensão é oferecer uma genealogia a partir das forças que constituem mecanismos de produção da verdade e da dominação. Para tanto, é necessário pensar

na instância da guerra permanente como ponto emergência das formas jurídicas modernas: o poder só se exerce na luta. O mecanismo de poder é fundamentalmente o mecanismo de combate: Primeiramente isto: que as relações de poder, tais como funcionam numa sociedade como a nossa, têm essencialmente como ponto de ancoragem uma certa relação de força estabelecida em dado momento, historicamente precisável, na guerra e pela guerra (FOUCAULT, 1976. p 15).

Numa inversão do aforisma de Clauzewitz4, a política é pensada como a continuação da guerra. Nesse sentido, o poder político insere essas relações de força, e as perpetua dentro das instituições, na própria linguagem, na economia, em suas desigualdades, e principalmente na normalização dos corpos individuais e coletivos: “A repressão nada mais seria que o emprego, no interior dessa pseudopaz solapada por uma guerra contínua, de uma relação de força perpétua” (FOUCAULT, 1976. p 17). Se, na modernidade primeira, a segurança tem seu escopo no interior da escatologia pacificadora do soberano, a biopolítica, ao contrário, atua na estabilização do fluxo metabólico da sociedade. O edifício jurídico de toda a Idade Média for construído em torno do poder régio. Com isso, o poder soberano era tratado sobre duas óticas: como era perfeitamente encaixado e legitimado pelas normas jurídicas, sendo efetivamente o corpo vivo da soberania, e como, para conservar sua legitimidade, ele teria seu poder limitado e enquadrado em regras de direito. “O papel essencial da teoria do direito, desde a Idade Média, é o de fixar a legitimidade do poder: o problema maior, central, em torno do qual se organiza toda a teoria do direito é o problema da soberania” (FOUCAULT, 1976. p 23). O corpo vivo se legitima em uma dupla injunção: a maquinação jurídica permite operar a morte materialmente, ao mesmo tempo, inclina a salvação do corpo mortal (ainda que vivo) no etéreo corpo real (KANTOROWICS, 1998). Tal técnica terá como finalidade mascarar o mecanismo principal de governo: a dominação, a obrigação legal de obediência. O direito é quem instaura e vincula as relações de dominação. Sua dinâmica se constitui em uma tática de regressão em que o ato normativo mais concreto é subsumido em uma cadeia que se encerra e sustenta na vontade soberana. Num contraponto, Foucault observa a descontinuidade nessa forma tradicional, ao passo que não

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Foucault, em pensamento baseado no princípio de Carl von Clausewitz: “A guerra não é mais que a continuação da política por outros meios”; Ela não é somente um ato político, mas um verdadeiro instrumento da política, seu prosseguimento por outros meios” (Vom Kriege, liv. I, cap. 1).

apenas a dominação centralizada e descendente do rei para seus súditos, mas a funcionalidade de uma rede mais complexa e abrangente, de relações de força e dominação dentro da própria sociedade, semeada dentro das próprias relações recíprocas entre os indivíduos. Essa é a nova característica atuação do poder. O poder se exerce em cadeias dentro dessas relações interpessoais. A análise do direito deve ser feita, primordialmente, a partir dos constantes processos de sujeições que ele instaura. Enquanto a lei pretende ser entendida como sinônimo de paz, ao contrário, a norma é a ritualização guerra para a produção constante das verdades. Essa “paz” da lei é onde, surdamente, acontece a guerra. É uma guerra é silenciosa. A ritualização da guerra depende de uma estratégia histórica que Foucault explicita: o racismo. A guerra racial é o paradigma da nova configuração do poder. Na luta entre as raças, o biopoder encontra sua emergência. A genealogia da biopolítica está ligada a “genética” dos indivíduos e populações. Desde sua formação, a soberania moderna construiu-se baseada principalmente na centralização do poder. Evidenciada pelo surgimento de unidades políticas resistentes ao tempo, como as grandes dinastias, criou-se assim solidas instituições burocráticas de governo e o mais importante: o consenso sobre a necessidade de existência de um soberano e sobre o dever básico de obediência e submissão completa a esse poder. A noção da soberania moderna conclui-se efetivamente na noção do Estado possuir direitos absolutos, incondicionais e indiscutíveis. Com isso, o poder soberano era exercido justamente no poder de decisão sobre vida e morte de seus súditos. Porém, o contexto e fundamento das relações de soberania, a partir do século XVII, sofreriam mudanças essenciais em suas fórmulas de governo. Métodos de disciplina e regulamentação surgiram como novos aparatos de governo visando maior controle e regulação social. Tal mudança foi a revolução da biopolítica na forma de atuação do Estado e da soberania. Onde antes reinava o “deixar viver, fazer morrer”, típico do poder absoluto do soberano sobre os corpos de seus súditos, agora a ordem é o “fazer viver, deixar morrer” dentro de uma assunção da vida biológica dos corpos individuais e populacionais. A biopolítica da espécie humana, trabalhada por Foucault, consiste em um conjunto de processos de controle da natalidade, de mortalidade e longevidade de uma população. A biopolítica nada mais é do que a inclusão da vida propriamente dita na política. O que se instaura

agora é uma mudança na forma de dominação, que irá se dar em duas formas e em dois momentos que se conectam e prescindem um do outro: o da disciplina e o da regulamentação. O primeiro trata-se de uma organização individual do sujeito, de técnicas de como aprimora-lo, dentro de uma rede complexa onde o poder iria se exercer visando a uma “tecnologia disciplinar do trabalho”. “Mais precisamente eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que deve ser vigiados, treinados, utilizados e eventualmente punidos” (FOUCAULT, 1976. p 204). Já a segunda ultrapassa os limites de uma disciplina. Ela preocupa-se com o homem na multiplicidade e pluralidade, na sua “massa global”. É a “biopolítica da espécie humana”: o interesse no indivíduo, mas como membro de uma coletividade. Dentro desse biopoder irá surgir outro mecanismo de controle: a questão do Estado de Segurança. O policiamento, a higienização, o discurso da necessidade da preservação da segurança social e o controle dos contingentes sociais são técnicas de subjetivação e governamentalidade usadas pelo Estado. A questão central da análise de Foucault será onde e como os mecanismos de segurança vão atuar dentro das questões sociais e biológicas das espécies. O mecanismo da disciplina necessita da segurança. Segundo Foucault: Porque, afinal de contas, para de fato garantir essa segurança é preciso apelar, por exemplo, e é apenas um exemplo, para toda uma série de técnicas de vigilância, de vigilância dos indivíduos, de diagnóstico do que eles são, de classificação da sua estrutura mental, da sua patologia própria, etc. Todo um conjunto disciplinar que viceja sob os mecanismos de segurança para fazê-los funcionar. (FOUCAULT, 2008. p 11)

Tais técnicas de segurança consistem em boa parte na transformação e remodelagem de técnicas jurídicas-legais e de disciplina já existentes em busca de uma nova justificativa para sua aplicação. “A segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina” (FOUCAULT, 2008). Ou seja, o soberano estará constantemente criando novas medidas para assim criar novas justificativas para o exercício do controle da população. É recriação de justificativas de dominação clamando por uma maior e constante necessidade de segurança social. 2 A genealogia de Jacques Derrida: da crítica da violência à auto-imunidade. Nesse sentido, Jacques Derrida, em Força de Lei, tece um contraponto ao argumento da ordem pacificadora do Direito. Enquanto Foucault expõe o índice das formas jurídicas na guerra,

Derrida reativa a crítica da violência de Walter Benjamin. O conceito de violência no sentindo

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Gewalt é introduzido: é sempre uma força estatal autorizada e legitima. O conceito de violência (Gewalt) pertence à ordem simbólica do direito, da política e da moral – de todas as formas de autoridade ou autorização, ou pelo menos de pretensão à autoridade. O Estado, e por tanto o direito, agem sempre dentro da dimensão do enforciability, que Derrida (2003, p. 12) qualifica como a força intrínseca do direito: “Ela é a força essencialmente implicada no próprio conceito de justiça enquanto direito, da justiça na medida em que ela se torna lei, da lei enquanto direito. ” A justiça só pode tornar-se justiça quando recorre à violência desde seu início, para assim adentrar à lei e ao direito Isso nos permite analisar a relação da violência no direito em sua homogeneidade. “A violência não é exterior ao direito, ela ameaça o direito no interior do direito” (DERRIDA, 2007. p 81). Ela não consiste, essencialmente, em exercer sua potência ou uma força brutal para obter específicos resultados, mas em ameaçar ou destruir específica ordem do próprio direito. Numa contrapartida suplementar, Derrida propõe um novo tratamento à soberania dento do aspecto do biopoder. Na salvação (saúde) de seu corpo artificial, a soberania constitui-se num processo de imunização de si mesma, construindo defesas para o “Eu” soberano contra si: o “fazer viver, fazer morrer”. Numa linha paralela ao que Derrida propõe, é interessante anotar a reflexão de Roberto Esposito enquanto paradigma da imunização na superação da concatenação da biopolítica em relação ao poder soberano. Na tentativa de reconciliar esses dois processos modernos, Esposito admite o trabalho do negativo entre vida e poder no processo de subjetificação da modernidade. O paradigma da imunidade desenvolvido por Roberto Esposito possibilita um entremeio na leitura entre a biopolítica e a desconstrução: A imunidade não é apenas a relação que liga a vida ao poder, mas o poder de conservação da vida. Ao contrário, de tudo que pressupõe o conceito de biopolítica entendido como resultado do encontro que em certo momento se dá entre dois elementos componentes - deste ponto de vista não existe poder externo à vida, assim como a vida não se dá nuca fora das relações de poder. Olhada nessa perspectiva, a política não é senão a possibilidade, ou o instrumento, de conservar viva a vida. (2010, p. 74)

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Termo Gewalt – Walter Benjamin “Por uma crítica da violência”: Frequentemente traduzido por “violência”, mas possui um significado mais amplo. Significa também poder legítimo, autoridade, força pública. Pode significar o domínio ou soberania do poder legal, a autoridade autorizante ou autorizada: a força de lei.

O soberano seria a primeira figura imunitária no cerne da conservação da vida. Ao passo que não antes ou depois do soberano em relação ao biopoder, para o filosofo italiano, não haveria uma presença fantasmagórica do soberano, porém, em virtude disso, a relação entre vida e morte passa a ser borrada. Na verdade, a condição espectral não é um pressuposto, mas aquilo mesmo que sustenta a dinâmica biopolítica do soberano. Não é à toa que esta demanda o sacrifício e edifica a lei e o direito em torno desse rito. Mesmo a guerra não é senão uma exigência soberana para que o corpo mortal dos súditos verte seu sangue. Por isso, opera-se por dentro, nem antes nem depois, na possibilidade efetiva da auto-imunização. A questão da auto-imunidade é tratada onde a razão do Estado, ao mesmo tempo que torna-se ameaçante, teria o poder de ameaçar a si própria, constituindo uma aporia radical da biopolítica. Hora é ameaça, hora ameaça-se. Ela ataca-se para proteger-se: De se perder a si própria, de naufragar por si própria, eu preferiria dizer de se autoimunizar para designar uma estranha lógica ilógica pela qual um vivente pode espontaneamente destruir, de forma autônoma, aquilo mesmo que, nele, se destina a protegê-lo contra o outro, a imunizá-lo contra a intrusão agressiva do outro. (DERRIDA, 2009)

Não pode existir soberania que não alimente sua própria auto-imunidade. Mesmo tendo em vista que o princípio da autodestruição auto-imunitária causará a ruína de outro princípio, proteção de si (integridade intacta de si), ele se faz necessário por ter sempre em vista uma “sobre-vida invisível e espectral” (DERRIDA, 2003). Essa é a grande aporia do auto-imune. Essa aporia tem necessidade fundamental, pois será a forma que o Soberano poderá abrirse, para assim, poder decidir sobre o outro, ao futuro, à incerteza, às variações, à morte, em fim, ao que é distinto e ainda fora de seu controle e previsão. Esse será o constante processo do reenvio auto-imunitário. Em Vadios, Derrida propõe essa análise a partir do conceito de Democracia porvir. O processo auto-imunitário, portanto, é a própria democracia que consiste sempre no reenvio. Esse reenvio consiste em sempre enviar a algum lugar a democracia. Ela se expulsa ou se rejeita, se exclui a pretexto de se proteger e para isso, deve se rejeitar, expulsar, alocar ou suspender, colocando para fora seus inimigos domésticos. O reenvio, nesse ponto, já dificulta a condição do poder e do político, pois no discurso interna a cidadania democrática não há pressuposto teórico imediato para distinguir o amigo e o inimigo enquanto cidadãos. Todo cidadão é ao mesmo tempo potencialmente amigo e inimigo. Uma repetição constante do incluir e excluir:

Este duplo reenvio (reenvio de - ou ao - outro e adiamento) é uma fatalidade autoimunitáia inscrita mesmo [à même] na democracia, mesmo no conceito de uma democracia sem conceito, mesmo numa democracia desprovida de mesmidade e de ipseidade, de uma democracia cujo conceito permanece livre, sem embraiagem determinada, em roda livre, no livre jogo da sua indeterminação, mesmo nesta coisa ou nesta causa propriamente o que é, nunca ela mesma. (2009, p. 94)

Não se pode perder de visa que ao tratar do corpo democrático ou da soberania está-se tratando de uma multiplicidade de corpos. Não se pode não falar em corpos, isto é, na articulação imanente que esse reenvio produz até mesmo no instante em que se calcula e, principalmente, se decide “cortar a própria carne”. Essa dinâmica carnívora é a instância “cruel” da violência mítica (aquela que funda e conserva do direito). A crueldade é a condição de expor a carne viva ao osso do processo de violência legítima. Cortar, ainda que a suture posteriormente, mantém o corpo soberano a capacidade de reorganizar a si mesmo na mesmidade, mesmo que nunca coincida consigo mesmo. O corpo mortal do soberano está à disposição da violência que o sacrifica a fim de que sacraliza seu corpo etéreo. A violência que submete a vida para assegurar a vida possui seu discurso na geração de uma teologia política, segundo Derrida. É o poder de todo uma cultura e mentalidade de “cortar na própria carne”, propriedade da carne auto-imunizada. Em suma, o carnofalologogocentrismo: Na nossa cultura, o sacrifício carnívoro é fundamental, dominante, regulado pela mais ala tecnologia industrial, tal como é também a experimentação biológica sobre o animal - tão vital a nossa modernidade. [...], o sacrifício carnívoro é essencial à estrutura da subjetividade, quer dizer, também ao fundamento do sujeito intencional e, senão da lei, pelo menos do direito, permanecendo aqui a diferença entre a lei e o direito, a justiça e o direito, a justiça e a lei aberta sobre um abismo. (2003, p. 32)

A marca disso é a excepcionalidade constitutiva da soberania, desde Carl Schmitt (AGUILAR, 2004) que Derrida assume enquanto problema a desconstrução. É o processo que o soberano pode ferir ou até suspender o próprio direito, justificando a necessidade de proteção do ordenamento ou de preceitos fundamentais, como a segurança nacional. Constantemente os direitos dos cidadãos são feridos e usurpados visando tal “sobre-vida invisível e espectral”. Aqui, tal ato de quebra remeterá sempre ao processo de reenvio desse direito visando a remodelação das estruturas sociais. A relação entre soberania, representada pelo Poder Legislativo, como o governo, Poder Executivo, será sempre fadada à destruição. A própria necessidade de existência de um Poder Executivo para garantir e afirmar sua própria soberania já mostra sua subjetivação. Essa é a

própria característica constitutiva e originária do corpo político: uma característica de autoimunidade. Num constante ato de opressão, o soberano acabará sempre por usurpar o poder do Legislativo ao quebrar com a lei. 3 Valorização da vida e clamor à morte 3.1 O racismo É dentro dessa análise que pode-se entender como o Soberano atua nessa lógica do biopoder. A análise a ser feita é como, nesse cenário de valorização da vida, a partir dos mecanismos de segurança, disciplina e regulamentação, o Estado irá clamar a morte e decidir sobre quem irá morrer. Foucault mostra claramente qual será o critério para tal seleção: O racismo. Mas não apenas o biológico, evolucionista ou étnico, e sim em relação aos criminosos, doentes mentais, adversários políticos, etc. Ele será justamente a representação da auto-imunidade. Será o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. A construção social e hierarquia de raças mediante sua qualificação como boa ou ruim vai permitir o Estado fazer cesuras, divisões, no interior do biológico ao qual o biopoder se dirige. Outra característica do racismo irá aparecer na relação guerreira de “o quanto mais você matar, mais viverá”, mas agora será um enfrentamento não guerrilheiro, mas biológico. A exterminação do grupo inferior, da parcela degenerada da população, trará à parcela boa e saudável fortalecimento. A morte do outro acarreta na segurança pessoal dos demais. É a criação de um inimigo por seu biótipo para exterminá-lo clamando à segurança social. A busca é pela eliminação do perigo biológico e o fortalecimento da própria espécie. Nesse sentindo, em duas obras como “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex e “A Ralé Brasileira” de Jessé de Souza, é possível fazer análises iniciais relacionando como o racismo do biopoder pode ser, e foi, aplicado durante toda a história brasileira. O primeiro fala de um verdadeiro holocausto dentro de um hospício Colônia, na cidade mineira de Barbacena, com cerca de sessenta mil mortos. A grande maioria, estimada em 70% da população que residia ali, não tinha doenças mentais, mas eram ditos diferentes da sociedade e ameaçadores da ordem pública, os chamados “Ignorados de Tal”. Por isso, o Colônia tornou–se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoólatras, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos. Mas eram apenas vítimas do

poder político e social (…). Muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais haviam perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado inadequado para um Brasil, à época, dominado por coronéis e latifundiários. Esposas trocadas por amantes acabavam silenciadas pela internação no Colônia. Havia também prostitutas, a maioria vinda de São João del-Rei, enviadas para o pavilhão feminino Arthur Bernardes após cortarem com gilete os homens com quem haviam se deitado, mas que se recusavam a pagar pelo programa. (ARBEX, 2013. p 25)

As internações, assinadas por delegados e concretizadas por viaturas policiais, mostra como o manicômio Colônia, assim como os campos de concentração nazistas, é a representação clara do Estado de Exceção como norma e como desejo. Desejo não só governamental, mas social. E, dessa forma, segundo uma perspectiva de Giorgio Agamben (2010.p 166), quando a exceção, a quebra com o próprio direito, é desejada, inaugura um novo paradigma jurídicopolítico, onde a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer medição. Por isso o campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se biopolítica (AGAMBEN, 2010. p 167)

Esse é a verdadeira face do racismo: a tentativa de eugenização da sociedade por uma aniquilação propriamente dita justificada por uma situação fictícia de perigo que tais “Ignorados” supostamente oferecem. Seja em hospícios, como o Colônia, ou nos presídios brasileiros, onde um inimigo penal de características físicas e econômicas precisas são tratados como escória social. 3.2 Os presídios brasileiros e o inimigo do direito penal Esse será o ponto chave do livro “A Ralé Brasileira”. A discriminação de uma parcela da sociedade dentro de uma visão “economicista”, onde haverá uma cesura entre quem “nasceu para o sucesso” e quem já “nasceu para o fracasso” (SOUZA, 2009). Tal visão economicista, baseada na divisão de classes, leva em conta apenas a renda como critério de divisão dos indivíduos e será o argumento de decisão de qual será o lugar dele no sistema social. Porém, tal critério camufla fatores e precondições sociais, emocionais, morais e culturas que constituem a vida de cada cidadão. Esses são os grandes fatores que permitem compreender como é a desigualdade social no Brasil ontem e hoje. A classe denominada como “ralé” não tem essa denominação apenas por não ter dada renda mensal, mas principalmente por não se encaixar nos padrões éticos e comportamentais

compartilhados pelas classes alta e média. O estilo de vida, a educação e o comportamento perante a sociedade é o primeiro choque e divisor do “homem bom” para o “homem ruim”. Esse processo de distinção é reiteradamente reproduzido no seio social constituindo uma legitimação da desigualdade tão enraizada no pensamento social. Sobre isso Jessé de Souza argumenta: Na realidade, a “legitimação da desigualdade” no Brasil contemporâneo, que é o que permite a sua reprodução cotidiana indefinidamente, nada tem a ver com esse passado longínquo. Ela é reproduzida cotidianamente por meios “modernos”, especificamente “simbólicos”, muito diferentes do chicote do senhor de escravos ou do poder pessoal do dono de terra e gente, seja esta gente escrava ou livre, gente negra ou branca. (SOUZA, 2009)

Tal ato de escolha de uma parcela social como ruim, típica do racismo, será a escolha de um inimigo do direito penal. E essa escolha sempre será uma escolha política, seja em âmbito nacional ou internacional. As decisões estruturais (dos governos) atuais assumem, na prática, a forma pré-moderna definida por Carl Schmitt, ou seja, limitam-se ao mero exercício do poder de designar o inimigo para destruí-lo ou reduzi-lo à impotência total (ZAFFARONI, 2011). E cisão do inimigo acarretará no tratamento diferenciado: o direito lhe nega a condição de pessoa. Ele é visto tanto para o governo, tanto para sociedade, apenas como um ser perigoso que fatalmente causará danos em qualquer local que esteja, e com isso é justificada a privação de certos direitos fundamentais supostamente inalienáveis. Essa qualificação “coisificou-os sem dizê-lo, e com isso deixou de considerá-los pessoas, ocultando esse fato com racionalizações” (ZAFFARONI, 2011). A privação do caráter de pessoa e da abstenção aos direitos que os ditos inimigos sofrem é a primeira e mais clara incompatibilidade com os princípios básicos do Estado de Direito que se apresenta: Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente como um ente perigoso (ZAFFARONI, 2011).

A tática preponderante para justificação de todas essas relações de exclusão será o medo. Se a população tem medo, ela apoiará qualquer discurso e medida que acabe com o perigo, seja o assassinato em massa - visto claramente nas “pacificações” em favelas brasileiras - seja a perda da privacidade, tudo em nome do reiterado discurso de segurança.

O mais denso, entretanto, virá depois disso: a tendência de despersonalização de toda a sociedade. A precisão e cautela dos atos cotidianos torna-se extremamente necessária para evitar confrontos com os interesses políticos governamentais. Uma sociedade que vive em torno da necessidade de segurança como primordial e a leva até suas últimas consequências - como segregar, enjaular e indiretamente matar pessoas no cárcere ou legitimamente por ações de “pacificação” policial - de certa forma, autoriza e clama o aumento do controle punitivo do Estado, assim como a diminuição da sua própria liberdade em função de uma preservação de sua segurança. A política, nacional ou internacional, constitui-se no constante movimento de definição entre amigo e inimigo. Tal movimento será a justificativa para a aplicação de futuras retaliações. O movimento de escolha do inimigo nacional mostra-se ao excluir a parcela frágil da sua própria sociedade, e em caráter internacional, quando coloca como inimigo a nação que contraria seus interesses. A partir do momento que alguém é tratado como perigoso têm-se argumentos que legitimem a retirada de direitos, segregação destes e a aplicação de qualquer medida necessária para conter o mal que esse ser pode causar, em nome de um bem posto como superior: a segurança social. Conclusão A auto-imunidade é constitutiva da soberania ao mesmo tempo que é o limiar do biopoder. Ao incorporar a negação da vida para afirmar sua conservação, o soberano lida com seu corpo múltiplo oscilando práticas que são balizadas do ciclo da vida e da morte. Na produção do seu corpo vivo, há a estruturação de um corpo etéreo que trabalha a negatividade no seu interior. Por um lado, “fazer morrer, deixar viver” é condição para negar a vida na morte a partir de uma distinção interna de seu próprio corpo. Isto é, produzindo seus corpos estranhos como um estranhamento de si mesmo. Por outro lado, “fazer viver, deixar morrer” consiste no reenvio do estranhamento para adiar sua aniquilação total. A fim de sobreviver, gera práticas difusas que reorganizam e suturam as escaras soberanas. Contudo, se até mesmo as escaras são soberanas, á o risco iminente de autodestruição de si. Não há uma reconciliação simétrica e identitária na relação de um com o outro, pois a auto-imunidade é o que impossibilita a ipseidade do soberano, embora, ao mesmo tempo, seja ela a condição de sua possibilidade. A capacidade de decidir

sobre si mesmo na vida e na morte é o fundamento da própria soberania. A auto-imunidade é o traço de um poder que encontra seu não-poder enquanto uma forma de transgressão de si mesmo.

Referências ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro / Daniela Arbex - 1˚ ed. - São Paulo: Geração Editorial, 2013 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2 ed. - Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. AGUILAR, Héctor Orestes. Carl Schmitt - teólogo de la política. 2.reimpr. México: FCE, 2004. CHEAH, Pheng; GUERLAC, Suzanne. Derrida and the time of the political. Durhan and London: Duke University Press, 2009. DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni (org.). A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação da Liberdade, 2000. _____. Força de lei: O “fundamento místico da autoridade”. Porto-Portugal: Campo das Letras, 2003. _____. Vadios: dois ensaios sobre a razão. Coimbra-PT: Palimagem, 2009. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 - 1976). 2˚ ed. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. _____. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. KANTOROWICS, Ernst. Os dois corpos do rei. São Paulo: Cia das Letras, 1998 KRITSCH, Raquel. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo: Humanitas FFLCH/UPS: Imprensa Oficial do Estado, 2002. MATTHES, Maíra. A soberania fraca. Revista Direito e Práxis, vol.3, n.5, 2012, p. 138-151. SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo do direito penal. 3.ed. São Paulo: Editora Revan, 2011.

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