“Bitch I’m from Recife”: A influência do programa \"RuPaul\'s Drag Race\" na cena drag pós-moderna da cidade de Recife

May 27, 2017 | Autor: Lívia Pereira | Categoria: Gender Studies, Queer Studies, Drag Performance : Kings & Queens (Culture, RuPaul's Drag Race
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE COMUNICAÇÃO, CULTURA E ARTES DEPARTAMENTO DE JORNALISMO CURSO DE JORNALISMO

LÍVIA MARIA DANTAS PEREIRA

“BITCH I’M FROM RECIFE”: A INFLUÊNCIA DO PROGRAMA "RUPAUL'S DRAG RACE" NA CENA DRAG PÓS-MODERNA DA CIDADE DE RECIFE

JOÃO PESSOA 2016

LÍVIA MARIA DANTAS PEREIRA

“BITCH I’M FROM RECIFE”: A INFLUÊNCIA DO PROGRAMA "RUPAUL'S DRAG RACE" NA CENA DRAG PÓS-MODERNA DA CIDADE DE RECIFE

Monografia apresentada ao Curso de Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba como requisito final para a obtenção do grau de bacharel. Orientadora: Prof. Dra. Margarete Almeida Nepomuceno

JOÃO PESSOA 2016

LÍVIA MARIA DANTAS PEREIRA

“BITCH I’M FROM RECIFE”: A INFLUÊNCIA DO PROGRAMA "RUPAUL'S DRAG RACE" NA CENA DRAG PÓSMODERNA DA CIDADE DE RECIFE

Esta monografia foi submetida à avaliação da banca examinadora, em cumprimento às exigências da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso, como um dos requisitos para obtenção do Grau de Bacharel em Jornalismo, na Universidade Federal da Paraíba.

Aprovado em: ____ de _______________ de _____

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________ Prof. Dra. Margarete Almeida Nepomuceno Orientadora - UFPB

____________________________________________________ Prof. Ms. Alan Mangabeira Mascarenhas Examinadora – UFPB

____________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Francisco Guedes do Nascimento Examinadora – UFPB

Aos meus pais pelo o apoio incondicional.

Agradecimentos Às drag queens de Recife, principalmente às que me ajudaram durante essa pesquisa: Envy Hoax, Karma Mahatma, Dahlia Mayfair e Mia Rhomba. Vocês são arte! Sem a disposição de vocês essa pesquisa não teria o mesmo valor. Aos meus pais por me ensinarem o valor da educação e por estarem ao meu lado incansavelmente em todas as minhas aventuras, mesmo as que vocês não entendiam o propósito. Por terem me incentivado a ler e a estudar sob todas as circunstâncias da vida e me ensinado que nossa liberdade é conquistada através da educação. Ao meu pai, agradeço por todo o ―paitrocínio‖ para as idas à Recife, sem ele esse trabalho não seria possível. À minha orientadora cheia de afeto, Margarete Almeida Nepomuceno, por ter aceitado embarcar nessa pesquisa louca e ter me incentivado a ir sempre além, pelas conversas feministas, pelas aulas ministradas desde o primeiro semestre e por compartilhar o amor pelas drags, camp e Harry Potter. Aos professores que me deram aula durante a graduação e que me incentivaram a continuar na pesquisa acadêmica. Em especial, ao professor, hoje da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Thiago Soares, pelas orientações (de vida) e por ter sido aquele que plantou a sementinha da pesquisa científica em mim e por ter pegado na minha mão e me ajudado a escrever meu primeiro artigo acadêmico. Aos meus amigos mais próximos que me aguentaram falando por um ano falando sobre esse trabalho, especialmente a Mariana Lima e Júlia Falkenberg, que não se conhecem e podem não saber, mas me ajudaram nos momentos de falta de inspiração. À Juily Manghirmalani que me ouviu falando de todas as etapas da pesquisa, artigos e ideias loucas que apareciam e que compartilha alguns ídolos. Às músicas das ―RuGirls‖ que embalaram madrugadas a fio enquanto esse trabalho era escrito. À Madonna, Beyoncé, Rihanna, Lady Gaga: todas na melhor playlist do meu Spotify. Às mulheres drag queens, mas especialmente às minhas irmãs do coletivo Riot Queens, minhas fontes de inspiração e orgulho: Pamella Saphicc, Lucy Fur, Cherry Pop, Lekhisha Glan, Greta Dubois, Milka, Medusa Pandemonium e Ginger Moon. Aos que se deixam viver uma vida cheia de glitter e cores!

“Gay men don’t do drag to mock women, we do drag to mock the cultural concept of identity. If you don’t get irony, you don’t get drag.” (RuPaul)

RESUMO O presente trabalho busca compreender como se dá a influência midiática do reality show ―RuPaul‘s Drag Race‖ na (des)construção dos estereótipos e vivências de gênero e sexualidade dentro da ―nova cena drag‖ da cidade de Recife (PE). A partir da vivência da pesquisadora ao ocupar um espaço que tradicionalmente está reservado a homens homossexuais, a pesquisa apresenta a drag queen como sujeito das variáveis de gênero e enfatiza sua força de atuação na desconstrução da normatividade destas interpretações de identidade, revelando a farsa do binarismo de gênero. Através do mapeamento das festas frequentadas por drag queens na cidade, a pesquisa ressalta esses espaços como lócus territoriais de desconstruções. A fim de analisar a potência do reality dentro da cena foram realizadas entrevistas semiestruturadas com quatro drag queens ativas da cena recifense (Envy Hoax, Karma Mahatma, Mia Rhomba e Dahlia Mayfair), escolhidas principalmente pela proeminência na cena e pelo discurso político subversivo que estas demonstram através das suas performances identitárias. As observações necessárias para as conclusões da pesquisa foram feitas dentro das festas Monamu, que acontece na boate Miami Pub, percebida pela pesquisa como o ápice da cultura drag pós-moderna influenciada por RuPaul e pela cultura pop. Através da experiência etnográfica na festa e das entrevistas com as drag queens foi possível estabelecer como se dá a subversão das identidades das novas drags queens que surgem como resultado da popularização desta cultura na mídia. Palavras-chave: drag queen; teoria queer; performance de gênero; cena drag; RuPaul‘s Drag Race.

ABSTRACT The following work aims to understand the influence of the reality show ―RuPaul‘s Drag Race‖ on the de(construction) of the stereotypes and experiences of gender and sexuality within the ―new drag scene‖ of Recife (PE). Based on the researcher‘s experience to occupy a space that is traditionally reserved for homosexual men, this research presents the drag queen as a subject of gender variables and emphasizes its force in the deconstruction of the normativity of these identity interpretations, revealing the farce of gender binarism. Through the mapping of the parties frequented by drag queen in the city the research highlights these spaces as territorial locus of deconstruction. In order to analyze the power of the reality within the scene, semi-structured interviews were made with four active drag queens from Recife (Envy Hoax, Karma Mahatma, Mia Rhomba and Dahlia Mayfair), chosen principally because of their prominence within the scene and for the subversive political discourse they demonstrate through their identity performances. The necessary observations for the research conclusions were made inside the party called Monamu, which takes place in the nightclub Miami Pub, perceived by the research as the apex of the postmodern drag culture influenced by RuPaul and pop culture. Through the ethnographic experience at the party and the interviews it was possible to establish how these new drag queens who arise as a result of the popularization of this culture on the media subvert its identities. Key words: drag queen; queer theory; gender performance; drag scene; RuPaul‘s Drag Race.

LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Divine em ―Pink Flamingos‖............................................................................. 36 FIGURA 2 – Divine em ―Hairspray‖....................................................................................... 37 FIGURA 3 – Site oficial de Divine ......................................................................................... 38 FIGURA 4 – Cartazes de ―Hello, Dolly!‖ .............................................................................. 38 FIGURA 5 – Contracapa de ―RuPaul is: Starbooty‖ .............................................................. 41 FIGURA 6 – Elton John e RuPaul .......................................................................................... 42 FIGURA 7 – Vera Verão ........................................................................................................ 43 FIGURA 8 – Isabelita dos Patins e Fernando Henrique Cardoso ........................................... 44 FIGURA 9 – Tutorial de maquiagem no YouTube ................................................................ 46 FIGURA 10 – Pabllo Vittar e Glória Groove ......................................................................... 48 FIGURA 11 – RuPaul para MAC Cosmetics ......................................................................... 53 FIGURA 12 – Flyers da festa Monamu .................................................................................. 66 FIGURA 13 – Fotos da festa Monamu ................................................................................... 69 FIGURA 14 – Fotos da festa Monamu ................................................................................... 70 FIGURA 15 – Fotos da festa Monamu ................................................................................... 71 FIGURA 16 – Envy Hoax ....................................................................................................... 73 FIGURA 17 – Karma Mahatma .............................................................................................. 75 FIGURA 18 – Mia Rhomba .................................................................................................... 77 FIGURA 19 – Dahlia Mayfair ................................................................................................ 79

SUMÁRIO “Anus-thing is possible”: O universo drag e suas possibilidades identitárias ....................................20 Gênero como performance: Nascemos pelados e o resto é drag .......................................................17

Teoria queer ..................................................................................................................... 28 Ser drag é pop: cultura midiática e as identidades em (des)construção .............................................32

A drag na cultura pop: um atravessamento histórico ......................................................... 34 Telas de glitter: o poder das drags na cultura da mídia ...................................................... 38 RuPaul é pop: a supermodelo drag .................................................................................... 42 Drag-se aqui e agora ......................................................................................................... 47 ―RuPaul‘s Drag Race‖: a porta de entrada das drags para o mundo pop ............................ 50 A construção de identidades pós-modernas através da mídia ............................................. 55 “Há novas meninas glamurosas na cidade”: o território e as drag queens pós-modernas ................60

―Go back to party city‖: Recife, a cidade que brilha .......................................................... 63 Monamu: feita por e para drag queens .............................................................................. 67 ―The best night ever‖: uma noite como drag queen ........................................................... 69 As ―cover girls‖: drag queens pós-modernas e empoderamento ........................................ 74 Envy Hoax: “mother monster” das drags recifenses..............................................................74 Karma Mahatma: girl power ..................................................................................................76 Mia Rhomba: a puta que ri .....................................................................................................78 Dahlia Mayfair: a diaba do bem .............................................................................................80

(Des)montando: analisando o discurso das drag queers ..................................................... 82 1.

“We’re all born naked and the rest is drag”: a arte drag ..............................................83

2.

“You better work”: influência de “RuPaul’s Drag Race” na cena drag ........................86

3. “If you can’t love yourself, how in the hell are you gonna love somebody else?”: empoderamento e vivências de gênero e sexualidade .............................................................89 4.

“Category is…”: old school .............................................................................................92

“Sashay Away!‖: Saindo de cena .....................................................................................................93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................................95

“Anus-thing is possible” : O universo drag e suas possibilidades identitárias

“When in doubt, freak them out!” (Sharon Needles)

12

Salto alto, boca marrom, saia de tule rodada e corset colado ao corpo, olhos rodeados de glitter, cabelos loiros desgrenhados, unhas em formato de garras de felinas, um sorriso maroto, uma confiança no andar. A luz pulsa, em cima do palco ela brilha e solta a voz, o corpo, seus afetos e transgressões. Todos os presentes ficam atônitos com o poder enigmático de sua sedução, seu olhar magnético, a respiração é rápida. A performance provoca delírios. O show termina, mas a personagem deixa sua marca em quem assistiu. Sob questionamentos e atração, ninguém sai imune. A cena acima é uma das centenas repetidas nas noites quentes das apresentações das drag queens em diversas partes do mundo, mas descreve minha experiência enquanto drag queen na noite recifense ao me apresentar pela primeira vez. Ela – Maddie Killa – é a persona que habita meu corpo e me transporta para um universo de glitter e cores, de afetos e transgressões, de fervo e luta. Nesta pesquisa recorro à teórica Butler (2016), que em sua obra ―Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade‖ apresenta a noção do conceito de identidade de gênero como uma performance para explicar porque eu, mulher, também posso atuar como drag queen. De acordo com Butler (2016, p. 69) ―o gênero é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos, no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.‖ Neste caso, a performatividade seria o processo de constituição do gênero, da internalização das normas heterossexuais apontadas por Butler (2016), sendo a performance de gênero parte deste processo de criação do ―eu‖. Seguindo este pensamento não existe gênero verdadeiro, mas uma performance continuada baseada nos códigos culturais que reproduzimos. Uma mulher drag queen denuncia esses estereótipos e seu caráter construído. A partir da minha vivência ocupando um espaço que tradicionalmente está reservado a homens homossexuais – o da arte drag – pretendo nesta pesquisa apresentar a drag queen como sujeito das variáveis de gênero e enfatizar sua força de atuação na desconstrução da normatividade destas interpretações de identidade, revelando a farsa do binarismo de gênero. Poderia escolher não me apresentar como sujeito inscrito no território da pesquisa, mas a temática que proponho o debate é de caráter indissociável de quem sou. A cena drag da cidade de Recife, campo dos embates e performances descritos no terceiro capítulo desta monografia, é parte do meu cotidiano, o que torna minha escrita íntima e cheia de ―rastros‖ da minha personalidade. Coloco-me como sujeito ativo, me afastando da tradicional ―escrita acadêmica‖ a fim de potencializar o poder de transformação política do texto aqui impresso, tanto para quem o lê, quanto para mim. Acredito que esta experiência da ―escrita de si‖,

13

conforme nomeia Foucault (2004), potencializa a pesquisa ao mesclar objetivação e subjetivação durante a análise. De caráter qualitativo, essa pesquisa visa analisar de que formas o reality show ―RuPaul‘s Drag Race‖ visibiliza a figura da drag queen através da mídia e influencia no crescimento e atual configuração da cena cultural drag em Recife, Pernambuco. A pesquisa permeia por questões sobre a identidade de gênero na performance das drags. O homem que aparece em roupas ―de mulher‖ é essencialmente um homem de fantasia aparentando no seu exterior o que é dito ser uma mulher? De que forma esta representação performática denuncia que o gênero é um produto da cultura e não um dado biológico? De que maneira a cultura drag é absorvida pela sociedade pós-moderna e por que hoje ela é mais aceita por uma geração de jovens entusiasmados com a fluidez dos gêneros? E como se dá produção de drag queens como um elemento cult dentro da cultura pop? A partir destas indagações, vamos percorrer a desconstrução da normatividade de gênero proposta por Butler (2016) e outros autores, como também a inserção da cena drag na cultura midiática pop. Apesar de toda resignificação sociológica e política sobre a drag queen em nossos dias, ela era até o final do século XX, marginalizada até mesmo dentro da cultura LGBTQIA1, espaço teoricamente dito ser aberto às ―feminilidades‖ e desconstruções de gênero. A despeito de ser uma figura que evoca glamour hollywoodiano, a drag continua(va) restrita aos pequenos palcos de boates obscuras, guetos, precarizadas em suas apresentações, vistas como aberrações e fetiche, desvalorizada a sua expressão artística e com pouca ocorrência na mídia, com exceção da mais famosa delas, a Isabelita dos Patins, sucesso nos anos 1990 no Brasil, interpretada pelo argentino Jorge Omar Iglesias e que hoje sofre pela falta de reconhecimento e abandono da cena artística. Para realização da pesquisa foram feitas entrevistas semiestruturadas com quatro drag queens ativas da cena recifense, Envy Hoax, Karma Mahatma, Mia Rhomba e Dahlia Mayfair, escolhidas pela proeminência na cena e pelo discurso político subversivo que estas demonstram através das suas performances identitárias. Minha imersão em campo se deu de forma que pude ter acesso às instâncias privada e pública da vida das drags, fato que muito contribuiu para minhas análises e relatos. Por ter tido a possibilidade de conviver durante 1

Variação para a sigla LGBT, considerada mais inclusiva por contemplar as identidades queer, intersexual e assexual, que vem ganhando espaço nas ciências sociais e discussões de gênero. Para o professor e autor do livro ―Gaga Feminism: Sex, Gender and the End of Normal‖, Jack Halberstam, há na nova geração muitas pessoas com diferentes concepções de gênero e sexualidade. ―Quando você vê um temo como LGBTQIA é porque as pessoas estão percebendo todas as coisas que fogem do binarismo e exigindo que elas sejam nomeadas‖. (Tradução minha). Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2016.

14

alguns meses com as personagens, pude me conectar com sentimentos e acontecimentos que extravasaram a escrita do trabalho, mas que muito ajudaram na escolha das palavras e na sensibilidade de traduzir as histórias de vida que a mim foram confiadas. Vale-se explicitar aqui que dentro deste trabalho, utilizei a narração dessas histórias de vidas como metodologia para legitimar os relatos dos entrevistados dentro do contexto pesquisado. Justifica-se a utilização do termo ―história de vida‖, pois os relatos que explicitaremos na pesquisa tem o objetivo de dar ―atenção total ou parcial às narrativas sobre as vidas de indivíduos ou de grupos sociais, visando humanizar um tema, um fato ou uma situação‖ (VILAS BOAS, 2003, p. 17), analisando um episódio específico da trajetória de um personagem. As observações necessárias para as conclusões da pesquisa foram feitas dentro das festas Monamu, que acontece na boate Miami Pub, respeitando o ambiente natural como fonte de coleta dos dados. Por ser parte ativa dentro da cena analisada, a minha experiência dentro das festas se tornou artifício para a narração do imaginário de uma noite como uma drag queen, feita no segundo capítulo do presente trabalho. A experiência etnográfica 2 me permitiu uma série de insights que foram registrados em um diário etnográfico, transformando-o em parte importante na hora da elaboração do texto final. O diário etnográfico me permitiu destacar comportamentos em campo que se repetiam em diferentes sujeitos, anotações estas que não se referem apenas ao que era de fácil percepção ao observador, mas que na condição de pesquisadora e também participante me proporcionou um enquadramento dos acontecimentos. Como explica Malinowski (1976, p. 25):

O Etnógrafo no terreno tem o dever de destacar todas as regras e normas da vida tribal, tudo o que é permanente e fixo; deve dar conta da anatomia da sua cultura e da constituição da sua sociedade. Mas estas coisas, embora cristalizadas e estabelecidas, não estão formuladas em lado algum. Não há um código de leis escrito ou explícito de qualquer outra forma, e toda a tradição tribal, toda a estrutura da sociedade está inscrita no mais escorregadio de todos os materiais: o ser humano.

A partir dessa experiência em campo e das entrevistas realizadas, busco compreender como se dá a construção desta cena como resultado da cultura midiática pop e traçar um perfil das drags queens e suas desconstruções de gênero e identidade através de sua performance. No primeiro capítulo deste trabalho proponho uma revisão dos conceitos-chave para o entendimento do objeto, como teoria queer e performance de gênero, na tentativa de 2

A etnografia que aqui me refiro foi baseada na metodologia proposta por Bronislaw Malinowski (1976) na introdução de ―Os Argonautas do Pacífico Ocidental‖, levando em consideração a observação participante acerca dos comportamentos de uma tribo.

15

compreender a participação da drag queen dentro das (des)construções pós-modernas de identidades. Discorro também sobre a estética camp, onde encaixamos o exagero e espalhafatoso das montações das drag queens, refletindo sobre como a superficialidade estética do camp pode também ser política e artifício para a reafirmação de identidades até mesmo dos sujeitos que encontram na estética uma forma de expressão, mesmo quando não propõem a uma montação drag ―de verdade‖. No segundo capítulo busquei na antiguidade a origem da drag queen. Como surgiu? Que caminho percorreu? Deixei, portanto, transcorrer a pesquisa de Amanajás (2014) através da sua obra ―Drag queen: um percurso histórico pela arte dos atores transformistas‖ para que pudesse traçar um fio condutor da construção dessa histórica. Ao narrar o ―nascimento‖ da drag queen dentro do teatro grego busco desmistificar a ideia pré-concebida de que drag queens devem ser interpretadas apenas por homens, elevando a montação ao status de arte e desconstruindo a figura da drag como algo essencialmente gay. Esta subversão do pensamento comum é de importância vital para compreender questões pós-modernas da performance de gênero e do por que mulheres cisgênero também são drag queens legítimas. Destrincho ainda nesta segunda parte do trabalho a presença das drag queens na mídia, começando pelo cinema transgressivo de John Waters nos anos 1970. A drag queen Divine, presente na maior parte da produção de Waters, proporcionou que nas décadas seguintes a cultura drag fosse usada abordada como tema central de outras produções ou apenas que drags participassem de filmes e programas de televisão. A partir dessa visibilidade discorro sobre a ascensão de RuPaul nos anos 1990, como a drag queen mais midiática e mainstream da época, estrelando campanhas de cosméticos e lançando músicas. RuPaul se tornou a drag por trás do produto midiático que é fio condutor para esta pesquisa, o reality show ―RuPaul‘s Drag Race‖. A partir da escalada de RuPaul ao topo da hierarquia da cultura pop midiática analiso como acontece a produção de drag queens atualmente e de que forma a propagação da cultura drag pela mídia possibilita o avanço da cena drag na pós-modernidade. No terceiro capítulo, analiso mais especificamente o impacto de ―RuPaul‘s Drag Race‖ no território escolhido para a pesquisa, buscando compreender como se dá a construção desta cena como resultado da cultura midiática pop. Localizo o território e narro as particularidades que permeiam a cena drag da cidade de Recife e extraio quatro participantes para analisar suas desconstruções de gênero e identidade através da performance drag. Por ter mesclado a subjetividade dos sentimentos com a objetividade do exposto nos corpos das drag queens proponho que a leitura dos resultados dessa pesquisa seja feitas com ressalvas, pois as verdades aqui expostas são percepções e análises de um momento e

16

localidade específica, são singulares e refletem apenas poucas facetas dos múltiplos aspectos da realidade pesquisada.

1

Gênero como performance : Nascemos pelados e o resto é drag

“I don't care if you are a boy who used to be a girl or a girl who used to be a boy all I care about is you right now cause are we all something a little in between? I love hearts not parts.” (Alaska Thunderfuck)

18

Nossos corpos são sempre forçados a encaixar-se em padrões, mesmo quando ainda não sabemos disso. O ser humano teme o que não conhece e o que não pode identificar e enquadrar em uma categoria. Esse processo de adequação às normas começa cedo, quando ainda somos um feto no útero de nossas mães. Mesmo que ainda não saibamos sequer falar, precisamos suprir uma expectativa que vem do exterior, dos pais, do médico, da sociedade. Será que é uma menina? O médico vai conseguir decifrar qual a cor do enxoval do bebê? Para muitos a identificação biológica do feto (macho ou fêmea) também define uma identidade de gênero dentro do sistema binário feminino/masculino. A partir da definição do órgão (pênis ou vagina), o sujeito passa a ter que ir de encontro ao papel social e cultural atribuído ao gênero que lhe foi designado. Essa noção de gênero binário está intrinsecamente ligada à necessidade de satisfazer a matriz heterossexual, que assegura a reprodução da espécie. Segundo Butler (2016, p. 52) ―essa concepção do gênero não só pressupõe uma relação causal entre sexo, gênero e desejo, mas sugere igualmente que o desejo reflete ou exprime o gênero, e que o gênero reflete ou exprime o desejo.‖ Para entender como funciona essa relação entre gênero, sexo e sexualidade é preciso compreender os conceitos de cada uma das categorias supracitadas. De acordo com Piscitelli (2009, p. 119) o termo gênero foi elaborado por pensadoras feministas a fim de desconstruir a ideia de que existem diferenças inatas entre o comportamento de homens e mulheres de forma que delimita seus espaços de atuação. O conceito de gênero surge em uma época em que essas pesquisadoras buscavam quebrar essa naturalização das diferenças entre homem e mulher para que fossem eliminadas as distinções e desigualdades na forma de tratamento entre os sujeitos. Como na linguagem do dia a dia a palavra sexo também é utilizada para referir-se a essas supostas diferenças naturais, ―as autoras feministas utilizaram o termo gênero para referir-se ao caráter cultural das distinções entre homens e mulheres e entre ideias sobre feminilidade e masculinidade.‖ (ibidem, 2009, p. 119). Apesar do termo gênero ter sido inovador e se difundido entre os pesquisadores, em 1963, quando Robert Stoller apresentou a teoria de ―identidade de gênero‖ (HARAWAY, 2004, p. 216), o conceito de sexo passou a ser tão importante quanto o de gênero dentro das pesquisas. De acordo com a teoria, sexo representaria o aspecto biológico (hormônios, morfologia, genes) do sujeito, enquanto gênero está ligado ao caráter cultural das distinções entre homem e mulher (psicologia, sociologia e todo o aprendizado desde o nascimento). Para Stoller, identificar um sujeito como homem ou mulher é resultado da cultura trabalhando em cima dos aspectos biológicos de cada pessoa. De acordo com Piscitelli (2009, p. 124), para Stoller ―há uma diferença sexual ―natural‖, no corpo fisiológico. Embora o sentido que isso

19

assume em diferentes contextos seja muito variado, em cada lugar se estabelecem maneiras apropriadas de ser homem e mulher‖. A partir dessa reflexão podemos entender que Stoller compreendia que, apesar de sermos identificados quando nascemos de acordo com os órgãos genitais como menina ou menino, podemos nos identificar como homens ou mulheres de formas variantes de acordo com o lugar, a classe social e momento histórico. Pensando a partir da teoria de identidade de gênero, como identificaríamos sujeitos masculinos e femininos? O que seriam características femininas e masculinas? No final do século XIX e começo do século XX o que chamamos hoje da ―primeira onda‖ do movimento feminista começava a questionar padrões da sociedade que separavam homens e mulheres em categorias distintas, significando que haveria atividades e coisas ―de homens‖ e outras destinadas às mulheres. Entre as reinvindicações das feministas estavam o direito ao voto (já que na época só os homens votavam nas eleições), acesso à educação da mesma forma que os homens e poder ter posses e bens. Estas reinvindicações acabaram por criar uma dúvida generalizada, importante para as formulações posteriores do feminismo: ―se a subordinação da mulher não é justa, nem natural, como se chegou a ela e como ela se mantém?‖ (PISCITELLI, 2009, p. 127). É a partir desta indagação que surge a teoria dos papeis sociais, em busca de compreender o que influenciava o comportamento humano. Após o estudo de diversas sociedades foi possível demonstrar a arbitrariedade da divisão das tarefas em função do gênero, já que estas eram móveis dependendo da sociedade observada. ―Em algumas sociedades indígenas, por exemplo, a atividade de tear é vista como feminina; noutras, como masculina. Isso acontece porque não há nada naturalmente feminino ou masculino.‖ (ibidem, p. 127). A teoria dos papeis sociais dá ao sujeito uma atribuição de tarefas de acordo com as categorias que ele se encaixa, seria como escalar um elenco para um filme e distribuir papeis de um personagem de avô para o ator mais velho. Uma das categorias que poderiam ajudar na definição desses papeis é o sexo. ―Nesse caso, homens e mulheres desempenham papéis culturalmente construídos: os papéis sexuais. Os termos "papel sexual", "papel masculino" e "papel feminino" se difundiram rapidamente, da década de 1930 em diante.‖ (PISCITELLI, 2009, p. 128). Neste aspecto, a antropologia foi uma das disciplinas centrais para teorizar sobre a diferença sexual. A americana Margaret Mead se tornou conhecida após documentar ―as diversas maneiras em que ―outras‖ culturas lidam com a diferença sexual‖ (ibidem p. 128),

20

problematizando a ideia do que seria feminilidade e masculinidade e demonstrando que estes conceitos variavam entre as culturas. Com base nos resultados da pesquisa, a autora afirmou que a crença compartilhada na sociedade estadunidense da época - de que haveria um temperamento inato, ligado ao sexo, não era universal. A sociedade dos Estados Unidos da sua época (e até hoje, no senso comum), pressupunha que as mulheres fossem mais dóceis e afetivas, como uma decorrência da maternidade, e que os homens fossem mais dominadores e agressivos. Essa diferença [masculinidade/feminilidade] era vista como natural, como se resultasse das diferenças nos corpos masculinos e femininos. Mead, ao contrário, foi pioneira ao mostrar que esses traços de caráter são aprendidos desde que uma criança nasce. Segundo ela, toda cultura determina, de algum modo, os papéis dos homens e das mulheres, mas não o faz necessariamente em termos de contraste entre as personalidades atribuídas pelas normas sociais para os dois sexos, nem em termos de dominação ou submissão. (PISCITELLI, 2009, p. 129)

Já no final dos anos 1980, pesquisadoras da ciência, antropólogas, historiadoras e filósofas feministas questionavam a distinção entre sexo e gênero e ―o processo histórico ao longo do qual se passou a pensar que o "sexo" e a ―natureza" seriam elementos fixos, anteriores à cultura.‖ (ibidem, p. 143). Ainda pensando de maneira oposta à perspectiva biológica de que o órgão sexual também caracterizaria um gênero, estas teóricas feministas no campo da antropologia e sociologia chegaram a conclusão que a identidade de gênero de um indivíduo não deveria ser predeterminada pelo sexo dito ―natural‖ de seu corpo, mas pelo discurso que esse corpo produz. Para Butler (2016, p. 26) a hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito. Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino.

Desta forma, ao defender o afastamento da noção de gênero como decorrente do sexo, a perspectiva teórica também coloca em pauta a arbitrariedade da distinção entre eles e sugere que o sexo também não é natural, mas discursivo e cultural, assim como o gênero, indo de encontro à teoria de Stoller em que sexo e gênero estariam em dois pontos opostos do espectro.

Haveria uma história de como se estabeleceu a dualidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as opções binárias como uma construção variável? Se

21

o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado ―sexo‖ seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula. Se o sexo é, ele próprio uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como uma interpretação cultural do sexo. [...] Na conjuntura atual, já está claro que colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas. (BUTLER, 2016, p. 2728)

É pensando nesse discurso que embasa o sistema binário de gênero e sexo que entramos no conceito de sexualidade. Para Butler (ibidem, p. 52), o gênero só pode significar uma ―unidade de experiência, de sexo e desejo‖ quando o sexo exige um gênero e um desejo, sendo este culturalmente imposto como o desejo pelo gênero oposto – o desejo heterossexual. É por isto que

a instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o gênero como uma relação binária em que o termo masculino diferenciase do termo feminino, realizando-se essa diferenciação por meio de práticas do desejo heterossexual. O ato de diferenciar os dois momentos oposicionais da estrutura binária resulta numa consolidação de cada um de seus termos, da coerência interna respectiva do sexo, do gênero e do desejo. (ibidem, p. 53).

Assim Butler (ibidem, p. 42) questiona o que seria a ―identidade‖ a qual Stoller se refere em sua teoria de identidade de gênero. O que caracterizaria uma identidade e o que suportaria a ideia de que as identidades são as mesmas, idênticas, ao longo da história da humanidade? ―Se a ―identidade‖ é um efeito de práticas discursivas, em que medida a identidade de gênero – entendida como uma relação entre sexo, gênero, prática sexual e desejo – seria o efeito de uma prática reguladora que se pode identificar como heterossexualidade compulsória?‖ (ibidem, p. 45)

Anteriormente aos questionamentos de Butler, a antropóloga Rubin (1993) teoriza3 sobre as motivações que induziriam a espécie humana a esta heterossexualidade dita natural. No conceito que denominou ―sistema sexo/gênero‖, Rubin aponta um conjunto de arranjos pelos quais a sociedade ―transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana.‖ (PISCITELLI, 2009, p. 137). Apoiando-se na teoria do parentesco de Lévi-Strauss4, Rubin explica que o desejo heterossexual começa quando as famílias precisam ser constituídas, mas são impedidas 3

RUBIN, G. O tráfico de mulheres: Notas sobre a economia política do sexo. Recife: S.O.S. Corpos, 1993. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2016. 4 LÉVI-STRAUSS, C. Estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982.

22

culturalmente pelo que Lévi-Strauss chama de ―tabu do incesto‖, ou seja, ―a proibição de se manter relações sexuais com parentes muito próximos.‖ (Piscitelli, 2009, p. 137). Essa regra social institui uma aliança entre as famílias, que passam a ―trocar‖ as mulheres para que estas casassem com os homens de outras famílias. Como Piscitelli (ibidem, p. 138) ressalta, ―a proibição do incesto estabelece uma mútua dependência entre famílias, obrigando-as, com o fim de se perpetuarem, à criação de novas famílias‖. Ainda para Lévi-Strauss, um outro aspecto explica a aliança entre estas famílias e neste estaria centrado a explicação da heterossexualidade: a divisão sexual do trabalho, que varia entre as culturas, mas essencialmente institui funções diferentes a homens e mulheres. Partindo desse pressuposto, Rubin (apud Piscitelli, 2009, p. 138) afirma que a divisão sexual do trabalho cria o gênero já que para garantir o casamento, ―instaura a diferença, a oposição, entre os sexos‖. Essa necessidade de tarefas femininas diferentes das masculinas ressalta, culturalmente, as diferenças ditas naturais entre homem e mulher. Além de suportar o binarismo de gênero, para Rubin (ibidem, p. 138), a divisão sexual do trabalho também deve ser vista como ―um tabu contra outros arranjos sexuais que não aqueles que tenham pelo menos um homem e uma mulher, o que obriga ao casamento heterossexual.‖ Dessa maneira, o tabu do incesto prescreve outro tabu: o da homossexualidade. Para Butler (2016, p. 44), restringir o desejo ao heterossexual institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre ―feminino‖ e ―masculino‖, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de ―macho e ―fêmea‖. A matriz cultural por meio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de ―identidade‖ não possam ―existir‖ – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em que as práticas do desejo não ―decorrem‖ nem do ―sexo‖ nem do ―gênero‖.

Nesta perspectiva, Butler (2016) então introduz a noção de performatividade de gênero. Segundo a ―teoria performática‖ de Butler, o gênero seria um efeito discursivo do corpo e o sexo um efeito do gênero. Segundo a teórica, cotidianamente construímos a nossa performance de gênero a partir do momento que afirmamos e repetimos certos comportamentos, desta forma dando ênfase às realidades e diferenças entre os gêneros. A filósofa Tiburi (2016), refletindo sobre Butler (2016) em uma reportagem à revista CULT 5, afirma que ―o que ela chama de performatividade do gênero [...] diz respeito ao caráter ativo da relação entre o sujeito e a sociedade, enquanto esta última é organizada dentro de normas e de leis que funcionam pelo discurso.‖ Partindo desta noção, gênero não é o que se é, mas o 5

TIBURI, M. Judith Butler: feminismo como provocação. CULT – Edição especial. São Paulo, n. 6, p. 8-11. jan. 2016.

23

que se faz e, portanto inexistente sem discurso, já que é este o dispositivo que legitima o gênero.

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. (BUTLER, 2016, p. 69).

Se o gênero é uma performatividade construída pela cultura, o que podemos entender como drag? Drag revela a farsa do gênero como uma atuação dada pela cultura de acordo com o tempo histórico e as mudanças sociais. Na sua encenação do que é ser mulher ou homem, drags expõem que não existem verdades essencializantes sobre o gênero, que não passa de um construto. Assim, a drag queen expõe o gênero como um código cultural que se baseia em imitações.

Os atos e gestos, os desejos articulados e postos em ato criam a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero, ilusão mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora. (ibidem, p. 235)

A paródia da performance drag acentua a radicalização das normas da performance de gênero. Dessa forma, ela permite o reconhecimento do mimetismo em qualquer estrutura de identidade e a ausência de qualquer fonte autêntica. A drag é uma importante forma de resistir às estruturas de poder que regulam nossas vidas e identidades ao ridicularizar das expressões culturais normativas e performances. A performance drag visa desestabilizar a ―verdade‖ da identidade sexual e de gênero apontando para o fato de que não há nenhuma razão que exige constante mimetismo das identidades performadas. Drag, portanto, expõe a coerção social na base da natureza performativa da identidade. Além disso, a paródia da drag, para Butler, aponta para o fato de que, uma vez que não existe uma base essencial ou inicial da identidade de gênero, ela pode ser confundida, desfigurada, transformada e ser um assunto que causa algum ―problema de gênero‖. Butler (ibidem, p. 237) ressalta que a drag ao imitar o gênero revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero - assim como sua contingência. [...] No lugar da lei da coerência heterossexual, vemos o sexo e o gênero desnaturalizados por meio de uma performance que confessa sua distinção e dramatiza o mecanismo cultural da sua unidade fabricada.

24

Nesta imitação do gênero desnaturalizado, as drags encenam esta performance através do uso do exagero, do artifício, da teatralidade e do deboche. Para compreender melhor esta atuação, recorremos ao conceito camp, introduzido por Sontag (1966) que apresenta o camp como uma expressão cult para a sensibilidade ―inequivocamente moderna‖, uma forma de sofisticação, porém não idêntica a sensibilidade. Para Sontag (ibidem, p. 275, tradução nossa), a essência do camp ―é sua predileção pelo inatural: pelo artifício e pelo exagero‖, sendo ele uma maneira estética de ver o mundo que não se refere à beleza, ―mas ao grau de artifício, de estilização.‖ Apesar de o camp poder ser encontrado em diversas formas de artes, a autora ressalta que há uma afinidade maior com algumas expressões artísticas, podendo também ser usado para descrever uma pessoa. Sontag (ibidem, p. 279, tradução nossa) explica que ―como gosto pessoal, o Camp responde em particular ao marcadamente atenuado e ao fortemente exagerado‖, e exemplifica o uso do camp para descrever uma estética pessoal com a andrógina. ―Todos os objetos camp e pessoas contém uma grande quantidade de elementos artificiais. Nada na natureza pode ser camp.‖ (ibidem, 1966, p. 279, tradução nossa). Nesta mesma linha de pensamento, Lopes (2002, p. 95) escreve que ―como comportamento, o camp pode ser comparado à fechação, à atitude exagerada de certos homossexuais, ou simplesmente à afetação‖, mas que, apesar de estar vinculado a essa sensibilidade gay, não necessariamente deve ser associado apenas a pessoas gays (2002, p. 97). Dessa forma o camp seria ―uma invasão e subversão de outras sensibilidades, trabalhando via paródia, pastiche e exagero.‖ (Dollmore apud LOPES, 2002, p. 97). Sontag (1966) ressalta o camp em pessoas e objetos como sendo a capacidade de compreender que ser é, na verdade, representar um papel. ―É a maior extensão, em termos de sensibilidade, da metáfora da vida como teatro. Camp é o triunfo do estilo epiceno. (A conversibilidade de "homem" e "mulher", de "pessoa" e "coisa".).‖ (SONTAG, 1966, p. 280, tradução nossa). Embora as ideias de Lopes (2002) sobre a artificialidade do camp repercutam as reflexões de Sontag (1966), ele contesta o caráter apolítico que a autora aponta. Para Sontag (ibidem, p. 277, tradução nossa), a ênfase do camp no estilo e na estética causa uma atitude ―neutra‖ em relação ao conteúdo, tornando-o ―descompromissado, despolitizado ou ao menos apolítico‖. Na visão de Lopes (2002), essa valorização da afetação não seria uma simples ―reedição de um dandismo esteticista e paródico‖, mas um jeito de formar ―uma sociabilidade

25

sustentada por códigos específicos de uma ética do estético em contraponto a uma moral universal.‖ (LOPES, 2002, p. 95).

Esta capacidade de perceber o mundo como teatro não faz do camp apenas uma percepção frivolamente desimportante e alienante, um riso fácil e nervoso incapaz de lidar com as diferenças, um gosto excludente e depreciativo, apenas uma ―forma de humor declinante, produto da opressão, segregação e auto-ódio‖ (Edmund White apud BERGMAN, D.: 1993, 6), perpetuador do estereótipo afeminado do homossexual, ―negação de especificidade de um desejo homoerótico‖, na medida em que é definido a partir de um modelo hétero (TYER, C. A.: 1991, 35) e, ao mesmo tempo, misógino (idem, 41). (ibidem, p. 96-97)

É nesta possibilidade política que encaixamos a performance das drag queens dentro da estética camp, já que essas artistas surgem em um contexto de desconstruções das identidades de gênero e sexualidade fixas. Se entendermos o camp como ―decorrente da condição de oprimido do homossexual‖ (MACRAE apud LOPES, 2002, p. 97), é possível que isso torne o sujeito passível de enxergar a artificialidade das categorias sociais e padrões comportamentais. Surge, então, um grupo que busca desestabilizar essas normas, e vê no camp

[...] uma estratégia corrosiva da ordem, no momento em que políticas utópicas e transgressoras parecem ter se esvaziados de qualquer apelo, e para os que não querem aderir à nova velha ordem global do consumismo, em que diferença é oferecida a todo momento, em cada esquina, em cada propaganda (LOPES, 2002, p. 103).

Essa ampla oferta do ―diferente‖ transforma o contexto social e produz o sujeito pósmoderno, que já tendo vivido uma identidade estável, entra em colapso como consequência das mudanças ―estruturais e institucionais‖ as quais Hall (2006) se refere. A primeira concepção de identidade é a do ―sujeito do Iluminismo‖, baseada na ideia de que o ser humo é um ―totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ―centro‖ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia.‖ (ibidem, p. 10). Esse centro, sendo ele a identidade, seria fixo e permaneceria a fundamentalmente o mesmo ao longo da vida do sujeito. Considero a noção do ―sujeito sociológico‖ mais como um complemento às ideias do Iluminismo de identidade, já que levava em consideração ainda a ideia do núcleo interior do sujeito. Entretanto, essa segunda concepção de identidade leva em consideração que essa identidade não era autônoma e autossuficiente, mas ―formado na relação com ―outras pessoas importantes para ele‖, que

26

mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultural – dos mundos que ele/ela habitava‖ (HALL, 2006, p. 11). Dessa forma, a identidade ―costura o sujeito à estrutura‖, a ponto de estabilizar ―os sujeitos e os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis‖ (ibidem, p. 12). Entretanto, para entender e analisar estas postulações, precisamos olhar para o contexto histórico no qual cada uma delas foi produzida. Hall (ibidem, p. 14), com amparo em textos de Marx e Engels (1973), explica que a principal diferença entre as sociedades ―modernas‖ e as ―tradicionais‖ são que as primeiras estão sempre em mudança constante e de forma rápida. Além disso, uma característica particular da modernidade é o que Hall chama de ―forma altamente reflexiva de vida‖, onde ―as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações recebidas sobre estas mesmas práticas.‖ (GIDDENS apud HALL, 2006, p. 15). Dessa maneira, a terceira e última concepção de identidade apontada por Hall (2006) é a mais recente e a qual buscamos inserir as identidades pós-modernas e nosso objeto de estudo, as drags queens. Baseada na descentração do sujeito e sua fluidez entre gênero e sexualidade, as identidades pós-modernas têm o sujeito cultural inscrito nessa nova realidade e, portanto, multifacetado, ―composto não só de uma única, mas de várias identidades‖ (ibidem, p. 12). O teórico explica que isso se dá porque à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (ibidem, p. 13)

Suscetíveis aos estímulos externos – às mudanças da modernidade, em especial à globalização –, acabamos nos livrando ―de todos os tipos tradicionais de ordem social‖ (GIDDES apud HALL, 2006, p. 16), enquanto deslocando a identidade, mas não a substituindo por outra ideia fixa, mas por ―uma pluralidade de centros de poder.‖ (LACLAU apud HALL, 2006, p. 16).

As sociedades modernas, argumenta Laclau, não têm nenhum centro, nenhum princípio articulador ou organizador único e não se desenvolvem de acordo com o desdobramento de uma única ―causa‖ ou ―lei‖. [...] As sociedade da modernidade tardia, argumenta ele, são caracterizadas pela ―diferença‖; elas são atravessadas por diferentes visões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes ―posições de sujeito‖ – isto é, identidades – para os indivíduos. (HALL, 2006, p. 16-17)

27

De acordo com Hall (2006, p. 34), cinco grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas ocorrem na modernidade tardia (segunda metade do século XX), causando uma série de rupturas nos ―discursos do conhecimento moderno‖. O maior efeito dessas mudanças é este descentramento do sujeito cartesiano, apontado agora como o ―sujeito pós-moderno‖ de múltiplas identidades. Dentre essas mudanças do conhecimento moderno, duas se destacam com mais importantes para o estudo das identidades de gênero. A primeira modificação ocorre com a teoria postulada por Freud de que

nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona de acordo com uma ―lógica‖ muito diferente daquela da Razão, arrasa com o conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada. (ibidem, p. 36)

A teoria de Freud gera leituras como a de Lacan, que contrapondo a ideia do ―sujeito do Iluminismo‖, teoriza que a identidade inteira é algo que aprendemos gradualmente. Para Lacan, essa identidade unificada não se desenvolve de forma natural a partir do interior do núcleo da criança ao nascer, ―mas é formada em relação com os outros; especialmente nas complexas negociações psíquicas inconscientes, na primeira infância, entre a criança e as poderosas fantasias que ela tem de suas figuras paternas e maternas.‖ (ibidem, p. 37). Dessa maneira, a identidade se torna algo que é formado ao longo de processos inconscientes, em vez de algo que inato e pré-existente no momento do nascimento. A partir dessas leituras, Hall (2006, p. 39) propõe que falemos em identificação, como um processo em andamento ao longo da vida do sujeito.

A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ―preenchida‖ a partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a ―identidade‖ e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude. (HALL, 2006, p. 39)

A segunda mudança relevante para o entendimento do sujeito pós-moderno que busco delimitar nesta pesquisa vem do impacto do feminismo, tanto quanto crítica teórica quanto como um movimento social. Assim como parte dos ―novos‖ movimentos sociais que emergiram no final dos anos 1960, o feminismo tinha ―ênfase e uma forma cultural fortes‖, de forma que ―abraçaram o ―teatro‖ da revolução‖ política, incentivando o enfraquecimento da

28

classe política. Além do viés claramente político, estes movimentos apelavam para a identidade social daqueles sobre quem eles falavam. Assim o feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para cada movimento. (HALL, 2006, p. 45)

Hall (ibidem, p. 45) aponta que o pensamento feminista contribuiu, de forma ainda mais direta com o descentramento do sujeito cartesiano e sociológico ao questionar os limites da esfera pública, já que seu slogan era ―o pessoal é político‖, de forma que abriu para contestação política ―arenas inteiramente novas de vida social‖, como a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão doméstica do trabalho e o cuidado com as crianças. Além de ter politizado a subjetividade, o movimento que surge em contestação à posição social das mulheres se transforma para incluir também a formação das identidades de gênero e sexualidades, questionando a identidade única de homens e mulheres – a Humanidade – e substituindo-a pela ―diferença sexual.‖ (ibidem, p. 45-46).

Teoria queer ―viado‖, ―sapatão‖6. Entretanto, o termo foi assimilado e ressignificado por uma vertente dos movimentos homossexuais para ―caracterizar sua perspectiva de oposição e contestação.‖ (LOURO, 2013, p. 39). Em 1960 a eclosão de novos movimentos sociais (movimento de luta pelos direitos civis da população negra do Sul dos Estados Unidos, movimento feminista da ―segunda onda‖ e o movimento homossexual), impulsiona um grupo de teóricos que em seus trabalhos já criticavam a ordem sexual contemporânea, exaltando o ―anormal‖ ao criticar os regimes de normalização dos comportamentos, em especial da sexualidade. Como cita Miskolci (2012, p. 6

Apesar das expressões ―viado‖, ―bicha‖ e ―sapatão‖, serem usados para designar homossexual terem culturalmente uma forte conotação negativa, há um movimento crescente, principalmente nas redes sociais, que busca subverter esses significados e tornar estas palavras em algo positivo para a comunidade LGBTQIA. Grupos de jovens gays e lésbicas se unem em campanhas e iniciativas audiovisuais distribuídas de forma gratuita na internet para desmistificar o lado negativo de ser ―bicha‖ ou ―sapatão‖. Como exemplos dessas ações podemos citar o documentário feito pelo publicitário pernambucano Marlon Parente, ―Bichas, o documentário‖ e o canal de vídeo ―Canal das Bee‖, ambos disponíveis na plataforma de vídeos YouTube. O primeiro, sendo uma narrativa documental sobre seis jovens gays e nordestinos contando, a partir do relato de suas experiências, como a palavra ―bicha‖ é utilizada de forma positiva por eles. E o segundo, um canal apresentado por Jéssica, lésbica, que semanalmente traz conteúdos novos e em seu discurso busca desmistificar o lado negativo da ―sapatão‖ e da ―bicha‖. Ver em: ―Canal das Bee‖: https://www.youtube.com/user/CanalDasBee. ―Bichas, o documentário‖: https://www.youtube.com/watch?v=0cik7j-0cVU&spfreload=10.

29

22), esse impulso originou diversas obras acadêmicas dispersa em diversos países, sendo esta uma produção teórica bastante diversificada, porém com bases similares. Seidman (1995 apud LOURO, 2013, p. 40) aponta que esses trabalhos se apoiam fortemente na ―teoria pósestruturalista francesa e na desconstrução como um método de crítica literária e social.‖ Apesar da origem da teoria queer ser dispersa geograficamente, sua política como conhecemos hoje toma forma a partir da metade da década de 1980, nos Estados Unidos, logo após o surgimento da epidemia de AIDS, o que ―gerou um dos maiores pânicos sexuais de todos os tempos.‖ (MISKOLCI, 2012, p. 22).

A epidemia é tanto um fator biológico como uma construção social. A aids foi construída culturalmente e houve uma decisão de delimitá-la como DST. Uma epidemia que surge a partir de um vírus, que poderia ter sido pensada como a hepatite B, ou seja, uma doença viral, acabou sendo compreendida como uma doença sexualmente transmissível, quase como um castigo para aqueles que não seguiam a ordem sexual tradicional. (ibidem, p. 23)

A AIDS foi um choque e tratada como uma ―resposta‖ à Revolução Sexual por parte da sociedade tradicional, que logo se voltou contra os grupos de vanguardas sociais. É por isso que, nas palavras de Miskolci (ibidem, p. 23), a doença foi um ―catalizador biopolítico que gerou formas de resistências mais astutas e radicais‖. É neste contexto revolucionário que surge a política e teoria queer como empoderamento de uma nação que foi posta de lado e rejeitada. Neste ponto é preciso ressaltar que o queer não necessariamente expressava as problemáticas do movimento homossexual da década de 1960, que prezava pela ―adaptação‖ dos homossexuais às demandas sociais. O que o queer preferia era o enfrentamento, o combate e a tentativa de mudar a sociedade de forma que suas identidades fossem aceitáveis.

Em resumo, o antigo movimento homossexual denunciava a heterossexualidade como sendo compulsória, o que podia ser também compreendido como uma defesa da homossexualidade. O novo movimento queer voltava sua crítica à emergente heteronormatividade, dentro da qual até gays e lésbicas normalizados são aceitos, enquanto a linha vermelha da rejeição social é pressionada contra outr@s, aquelas e aqueles considerados anormais ou estranhos por deslocarem o gênero ou não enquadrarem suas vidas amorosas e sexuais no modelo heterorrepodutivo. (ibidem, p. 25)

Os teóricos e teóricas queers se baseiam principalmente na ideia da sexualidade como uma construção discursiva. Essa noção, detalhada por Michel Foucault (1993) em ―A história da sexualidade 1: a vontade de saber‖, ultrapassa o sistema binário de sexualidades e foca na pluralidade e dispersão de discursos e sexualidades na pós-modernidade.

30

[Foucault] afirma que o sexo foi, na verdade, ―colocado em discurso‖: temos vivido mergulhados em múltiplos discursos sobre a sexualidade [...]. Foucault empenha-se em descrever esses discursos e seus efeitos, analisando são apenas como, através deles, se produziram e se multiplicaram as classificações sobre as ―espécies‖ ou ―tipos‖ de sexualidade. (LOURO, 2013, p. 42)

Os conceitos propostos pelos teóricos queer também utilizam a lógica da desconstrução para desestabilizar a lógica binária. Entretanto, desconstruir não significa destruir, mas se aproxima etimologicamente do conceito de desfazer. Louro (ibidem, p. 43-44) explica que a desconstrução como procedimento metodológico é a designação de ―um modo de questionar ou de analisar. [...] A desconstrução indica que cada polo carrega vestígios do outro e depende desse outro para adquirir sentido.‖ Dessa forma, a teoria queer abre espaço para a discussão do que Butler (2016) chama de corpos abjetos, ou seja, sujeitos que escapam da norma e não se ajustam. A premissa de que de um sexo biológico decorre um gênero e este, por sua vez, indica um desejo pode ser negada a qualquer momento. As normas que garantem essa sucessão necessitam, entretanto, de esforços constantes das instâncias de poder social e cultural, como as igrejas, leis, famílias, escolas e mídia para que não sejam subvertidas. As normas regulatórias voltam-se para os corpos para indicar-lhes limites de sanidade, de legitimidade, de moralidade ou de coerência. Daí porque aqueles que escapam ou atravessam esses limites ficam marcados como corpos – e sujeitos – ilegítimos, imorais ou patológicos. (LOURO, 2013, p. 84).

A drag queen dentro da teoria queer desempenha esse papel de subverter, ultrapassar os limites de gênero e parodiar a ideia de um gênero original feminino (ou masculino, no caso de drag kings) dentro do sistema binário heteronormativo. O discurso da drag perturba o conceito do gênero como natural a determinados corpos, ele subverte as marcas do corpo que designariam um gênero e/ou sexo e expõe a natureza cultural de ambos. Como explica Louro (ibidem, p. 88)

a drag assume, explicitamente, que fabrica seu corpo; ela intervém, esconde, agrega, expõe. A drag propositalmente exagera os traços convencionais do feminino, exorbita e acentua marcas corporais, comportamentos, atitudes, vestimentas culturalmente identificadas como femininas.

Ao se apropriar dos códigos e marcas do que se parodia, a drag queen é ―capaz de expôlos, de torná-los mais evidentes e assim, subvertê-los, criticá-los e desconstruí-los‖ (ibidem, p.

31

88). Dessa forma, a drag também pode ser considerada como uma paródia de gênero. O poder crítico dessa paródia reside no fato de que essa apropriação dos códigos é capaz de nos fazer ―repensar ou problematizar a ideia de originalidade ou de autenticidade‖ refletindo sobre seu caráter construído.

Sua figura estranha e insólita ajuda a lembrar que as formas como nos apresentamos como sujeitos de gênero e de sexualidade são, sempre, formas inventadas e sancionadas pelas circunstâncias culturais em que vivemos. [...] Nós também nos valemos de artifícios e de signos para nos apresentarmos, para dizer quem somos e dizer quem são os outros. (LOPES, 2013, p. 89)

No texto de Lopes (ibidem, p. 100) sobre camp, o autor entrelaça as categorias de ―travesti‖ e ―drag queen‖, unindo-as através da performatividade e do caráter construído que estas dão ao gênero, justificando esta característica no fato de saberem que ―a mulher a ser imitada é só uma aparência, produto da imaginação masculina‖. No travesti não habita uma dualidade homem/mulher, e sim uma ―pulsão de simulação‖ que constitui seu próprio fim (Sarduy, S.: 1981, 9). Mais do que copiá-la, tentar buscar uma identidade ou essência, o travesti busca na mulher a força de sua metamorfose (TERTO, V.: 1989, 59), mas que está para além da mulher (SARDUY, S. 1981, 16). [...] O travesti é o personagem alegórico de uma modernidade inconclusa e em crise, a que mais ―dramatiza, problematiza, distente e comenta a própria noção de vivência de papel social‖ (SILVA, H.: 1993, p. 13). (ibidem, p. 100-101)

Entretanto, ―tal qual como atravessadores ilegais de territórios, como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infratores e devem sofrer penalidades‖ (LOURO, 2013, p. 89). Um dos campos de produção de saber e conhecimento corporal e performático mais evidente dentro das lógicas e normas sociais é a sexualidade. Historicamente a sexualidade foi sempre alvo de constante vigilância e repressão quando expressada de forma desviante às normas sociais. As punições não aparecem (sempre) de forma física, mas podem tornar o sujeito vigilante de suas próprias atitudes. Para Foucault (2014, p. 167), a disciplina se torna um poder que carece de três instrumentos: ―o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.‖ Segundo o autor (ibidem, p. 135), o poder disciplinar produz corpos não apenas para que se faça o que se quer, ―mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‗dóceis‘.‖ Desta forma, os corpos dóceis

32

são corpos que tiveram suas forças aumentadas (treinadas) para utilidades econômicas, mas ao mesmo tempo diminuídas nas questões políticas de obediência. Para Foucault (2014, p. 153) os métodos disciplinares

permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de disciplinas. [...] As disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. [...] Têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo.

Drag queens, homossexuais, transexuais, travestis e outros sujeitos desviantes são submetidos a este processo constante de disciplina e punição e são rotulados como minorias, aceitos apenas quando estão confinadas aos seus guetos. Somos instruídos para que qualquer expressão de gênero e sexualidade que fuja da ―normalidade‖ em locais de visibilidade, como meios de comunicação, seja podada e suprimida, tratada como algo que não existe. Algo que não pode existir – um tabu.

2

Ser drag é pop: cultura midiática e as identidades em (des)construção

“When I first started going to balls it was all about drag queens who were interested in looking like Las Vegas showgirls, back pieces, tail pieces, feathers, beads and all that. But as the seventies rolled around the things started changing, it started coming down to just wanting to look like a gorgeous movie star like Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor. And now they're went from that to trying to look like models; like Iman and Christie Brinkley and Maud Adams and all those children.” (Pepper LaBeija, em ―Paris is Burning‖)

34

A drag na cultura pop: um atravessamento histórico Apesar de ter popularizado a drag queen, o reality show americano ―RuPaul‘s Drag Race‖ não é o único exemplo da massificação desta cultura. Antes mesmo do lançamento de RuPaul como cantora e apresentadora de TV, o cinema e o teatro já faziam as vezes da televisão, trazendo drag queens como personagens principais nos filmes, peças e musicais. As drags queens não são fenômeno de criação deste século, apesar de sua expansão na cultura do entretenimento na pós-modernidade, elas atravessaram a história desde o teatro grego aos palcos das boates mais badaladas do mundo. Portanto, acredito que se faz necessário um entendimento genealógico desta trajetória. O teatro grego é o ponto de partida para a análise histórica das origens da drag queen, em meados do século VI a. C., ao dar aos atores o poder de utilizar máscaras para performar personagens tanto masculinos quanto femininos.

Frínico de Athenas, que foi discípulo de Téspis, ampliou a função do ‗respondedor‘ (hypokrites), investindo-o de um duplo papel e fazendo-o aparecer com uma máscara masculina e feminina, alternadamente. Isto significava que o ator devia fazer várias entradas e saídas, e a troca de figurino e de máscara sublinhava uma organização cênica introduzida no decorrer dos cânticos. Um outro passo à frente foi dado, da declamação para a ‗ação‘ (BERTHOLD apud AMANAJÁS, 2014, p. 4).

No artigo ―Drag queen: um percurso histórico pela arte dos atores transformistas‖ (2014) Amanajás explica que, a partir de então, a função de interpretar os diferentes personagens era uma atividade exclusiva do homem, mas que ―o ator usava não somente a máscara para interpretar papéis femininos; roupas e enchimentos também eram adicionados para a composição da personagem‖ (AMANAJÁS, 2014, p. 5), algo parecido com as próteses que algumas drag queens utilizam atualmente para moldar seu o corpo. No livro ―Drag: The History of Female Impersonation in the Performing Arts‖ (1994), Baker (apud Amanajás2014, p. 5) aponta que, ao longo dos anos a artista drag queen continuou participando de apresentações culturais em basicamente dois viés: em rituais pagãos, ―exercendo a função satírica de blasfemas e dar voz ao indizível perante a sociedade‖ (AMANAJÁS, 2014, p. 5); e ao viver personagens trágicas na Grécia. Porém, foi assimilada pela Igreja quando esta, incapaz de conter as manifestações pagãs da sociedade, passou a investir em ―pequenas encenações sacras para melhor entendimento de seus fiéis sobre a mensagem a ser passada.‖ (AMANAJÁS, 2014, p. 5). Nestas encenações, a figura da drag

35

queen encontrou uma nova função, a cômica, chegando a caracterizar a mulher de forma grotesca (ibidem, p. 5). Séculos após a extinção da máscara e da dissociação com a Igreja, a mulher assume algumas funções artísticas no teatro europeu, embora nunca como personagem principal, sendo relegada ao papel de ―enamorada‖ (ibidem, p. 9). Especificamente no Reino Unido, na época do teatro Elizabetano (século XVI) surgia à dramaturgia de William Shakespeare, revolucionando a concepção de teatro no mundo ocidental. Nessa época os papéis femininos das peças escritas por Shakespeare e seus contemporâneos eram interpretados por adolescentes homens, com idade entre dez e treze anos. Especula-se também que foi no período de Shakespeare que surgiu o acrônimo ―DRAG‖, apesar de não haverem provas concretas, já que nenhum manuscrito do autor sobreviveu ao longo dos séculos. É dito que o autor ―ao conceber suas personagens femininas, ao rodapé da página em que descrevia tal papel, marcava-o com a sigla DRAG, o que seria uma abreviatura de dressed as girl (vestido como menina, em tradução livre), para sinalizar que aquela personagem seria interpretada por um homem‖ (ibidem, p. 10). Em 1671, Carlos II assume o trono na Inglaterra e reestabelece a vida nos palcos quase duas décadas após o período conhecido como ―protetorado‖, no qual um decreto governamental proibia qualquer manifestação teatral de ser realizada. Amanajás (2014) explica que, apesar do lado positivo no reestabelecimento do teatro, os atores drags viram seus destinos se tornarem incertos já que Carlos II permitiu que as mulheres interpretassem papeis femininos, por se sentir irritado em ter que ―presenciar homens adultos em trajes femininos ao invés de belas damas‖ (ibidem, p. 11). Apesar da presença da mulher no palco parecer ameaçadora para os atores drags, durante alguns anos ambos conseguiram coexistir até que a função da drag se tornou desnecessária e motivo de piada. No século XVII, o desaparecimento da sua atuação no teatro abriu portas para que esses atores procurassem novos locais para trabalhar e frequentar, dando início a interseção da drag queen com a homossexualidade.

Homens vestidos de mulher em suas mais luxuosas roupas da moda (aqui iniciase a concepção da vestimenta como moda nos parâmetros dos dias de hoje, pois, na era Elizabetana, o código de vestimenta era relacionado ao status social e ao gênero) passeavam pelas ruas da França, Itália e Inglaterra e, pela primeira vez, a drag queen começou a se relacionar com o que é o homem homossexual. [...] O teatro também estava mais atento a outras questões: o foco estava nas relações diárias das pessoas e não aconteciam em outros reinos, como algumas peças de Shakespeare, mas na atual Londres do século XVIII. Temas como infidelidade, estupro de inocentes, heranças, classes em ascensão, a caótica vida na cidade em

36

comparação à vida no campo e a relação matrimonial entre homens e mulheres foram postas em cheque. Se a sociedade apresenta, nesse momento, um outro modo de relacionamento possível entre homem e mulher, certamente começa a possibilitar o aparecimento do homem homossexual. (AMANAJÁS, 2014, p. 11-12)

A drag queen vislumbra nas mudanças sociais de comportamento cultural da época, uma oportunidade de satirizar e resgatar sua característica cômica e grotesca desta arte. Amanajás (ibidem, p. 12) explica que durante o século as mulheres conquistaram o direito de atuar como personagens mais significativas, e não mais apenas ―o habitual flerte com a plateia em um jogo de mostrar belas pernas e quadris‖. Dessa maneira, os homens acabavam se montando apenas por motivos cômicos. ―Nessa época, surgiram casas (bares) chamadas de Molly Houses, em que drag queens se encontravam vestidas de tipos sociais da época para se comportarem como mulheres.‖ (ibidem, p. 12).

No final do século XVII o ator feminino havia se tornado uma figura cômica, uma criatura do burlesco e da paródia. Suas aparições no palco durante os próximos 150 anos ou mais eram ocasionais, mas pelos meados do reinado Vitoriano sua reabilitação estava em andamento e ele entrou no século XX com largo sorriso, as mãos na cintura, vestindo roupas estranhas parodiado a alta moda, um ninho de pássaro como peruca e uma maquiagem descontroladamente exagerada. […] seu humor era robusto e terrenamente doméstico quando ele ganhou a confiança do publico e compartilhou as provações da vida conjugal. Ele se tornou a dama pantomímica; amplamente popular, habitada por todos os principais comediantes da época e críticos sérios de teatro lhes deram avaliações sérias. (BAKER apud AMANAJÁS, 2014, p. 13).

No início do século XX, a personagem da dama pantomímica se tornou uma das grandes atrações dos dramas teatrais por falar em sobre problemáticas pertinentes à mulher e à classe média da época. Ao se lamentar em monólogos, elas causavam um ―pathos na plateia e a imediata identificação.‖ As representações das damas pantomímicas eram ainda mais risíveis porque eram grotescas, exageradas e porque eram representadas pela ―dúbia figura da caricatura da imagem feminina personificada pelo homem.‖ (AMANAJÁS, 2014, p. 13-14). Enquanto isso, nos bares e clubes chamados Music Hall, homens se reuniam para encenar pequenas apresentações de comédia. A dama pantomímica, aos poucos, foi se inserindo neste contexto, entoando canções satíricas como parte do repertório das personagens e ―incluindo elementos do clown, da comédia stand up e do canto popular‖ numa grande variação de personas. Amanajás (2014, p. 14) explica que a dama pantomímica foi à única forma de drag queen durante os primeiros 50 anos do século XX, mas mais do que isso ―era

37

uma forma artística respeitada e aceita, personagem que todo o comediante eventualmente possuía em seu leque.‖ Após as duas grandes guerras mundiais (1914-1945), o mundo se reorganizou e a mulher passou a repensar a sua própria posição social, desta forma, a drag queen passou por uma profunda ressignificação de sentidos. Na década de 1920, surgia uma nova imagem feminina, ativa e independente, mas ao mesmo tempo preocupada com o glamour e a moda. Essa imagem afeta diretamente as drags queens, que também se mostraram interessadas em ― roupas da moda e com o glamour em um show de entretenimento em que não somente bastaria cantar, dançar e improvisar (como perceberam as jovens e glamorosas drags), mas personificar grandes mulheres da vida real como parte de seu repertório‖ (ibidem, 2014, p. 1415). A década de 1950 acabou se tornando um período de ―trevas‖ para os atores drag queens. Por toda a Inglaterra teatros fecharam as portas e surgia um movimento conservador anti-homossexual. Baker (apud AMANAJÁS, 2014, p. 15) exemplifica o movimento com um artigo publicado no jornal ―Sunday Pictorial‖ que se referia aos homossexuais como ―homens do mal‖, expondo a homossexualidade como abundante no teatro: ―eles possuem maneiras delicadas... chamam uns aos outros de nomes femininos abertamente... usam roupas de mulher‖. O que logo fariam associação também às drags e sua arte. Entretanto, em 1960, mudanças radicais aconteceram na sociedade, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos. Nas artes, a cultura de massa ou cultura popular era acolhida pela sociedade, seja por meio da música com The Beatles, seja no cinema com Marilyn Monroe e nas artes plásticas como Andy Wharol, sendo duramente criticados pelos críticos da época que definiram esses artistas da ―nova onda como ―novos vulgares‖, ―mastigadores de chiclé‖ e ―delinquentes‖ pela aparente falta de comentário e crítica social, rebaixando a pop art ao nível de não-arte‖ (AMANAJÁS, 2014, p. 16). No entanto, a cena drag expande e adquire um status de arte e cultura, influenciado pelo cinema, divas e moda, conforme acredita o autor:

Mediante essa avalanche cultural de diferentes possibilidades, os artistas drag queens possuíam um grande material para se comunicar com seu público. As inspirações eram muitas e as grandes divas hollywoodianas e da música pop alicerçaram um imaginário irreverente, fashionista e soberbo da imagem da mulher que é maior que o mundo. (AMANAJÁS, 2014, p. 17)

Neste cenário pluricultural, com forte influência de movimentos como contracultura, hippie e de variedades sociais, como o feminismo e o negro, os homossexuais e outras vivências de gênero e sexualidade começaram a mostrar suas identidades e lutar pelos

38

direitos. Entretanto, apesar da maior abertura social perante essa diversidade, ―os novos bares gays foram, a princípio, construídos nas áreas periféricas, longe das famílias de bons costumes‖ (ibidem, p. 16). É nesse cenário de bares e clubes destinados ao público homossexual que a drag queen, mais uma vez, ressurge. Porém, nada traz mais força do que a sua repercussão e ampliação de significados a partir da cultura midiática, como o cinema, grande janela de vitrine para problematizar e difundir as identidades das drags internacionalmente.

Telas de glitter: o poder das drags na cultura da mídia Em 1970, o cineasta norte-americano John Waters, que ficou conhecido por seus filmes transgressivos e por escalar artistas controversos, popularizou uma das drag queens mais importantes da história: Divine, que como drag queen teve participação ativa na obra do diretor, como observamos nos filmes ―Mondo Trasho‖ (1969), ―Multiple Maniacs‖ (1970), ―Pink Flamingos‖ (1972) e ―Female Trouble‖ (1974).

Fig. 1. Divine em cena icônica de ―Pink Flamingos‖, John Waters (1972)

Nomeada pela revista ―People‖ a drag queen do século 7, Divine se tornou culto de adoração, principalmente entre a comunidade LGBTQIA, por seu trabalho como atriz, mas também por sua tenacidade dentro do mundo artístico. Além de atuar, Divine trabalhou no teatro, aparecendo com as ―The Cockette‖ antes de performar em ―Women Behind Bars‖ e

7

DARRACH, B. Death Comes to a Quiet Man Who Made Drag Queen History as Divine. People, Los Angeles, 21/03/1981. Disponível em: . Acesso em 06 out. 2016.

39

―The Neon Woman‖, e embarcou em uma breve, porém significativa, carreira musical. A drag queen se tornou sucesso mundial com hits como ―You Think You‘re a Man‖, ―I‘m So Beautiful‖ e ―Walk Like a Man‖. A última contribuição artística de Divine ficou por conta do clássico cinematográfico ―Hairspray‖ (1988), também dirigido por Waters, que até hoje continua sendo um marco no mundo dos musicais do cinema, constantemente inspirando novas versões até mesmo para outros formatos midiáticos. Embora tenha sido encontrada morta em 1988 em Los Angeles, Divine continua inspirando os artistas da comunidade LGBTQIA, servindo como fonte de inspiração para diversos personagens fictícios, músicas, livros e filmes documentários sobre sua vida, como ―Divine Trash‖, dirigido por Steve Yeager (1998) e ―I Am Divine‖, do diretor Jeffrey Schwarz (2013).8

Fig. 2. Divine como Edna Turnblad/ArvinHodgepile, em ―Hairspray‖ (1988), de John Waters, o seu ultimo trabalho artístico

Como a lenda que se tornou, o legado artístico de Divine permanece vivo até os dias atuais. Um site oficial é mantido pela sua família, onde é preservada informações sobre sua carreira, suas músicas em formato digital e onde fãs podem comprar produtos licenciados com desenhos e fotos da drag queen. Isto comprova que a artista sobrevive na memória e fica imortalizada pela sua arte. Além de percebemos a influência que o cinema teve na propagação de sua personagem como da própria arte drag, reverberando na cultura pop.

8

Informações retiradas do site oficial da drag Queen Divine. Disponível em: . Acesso em 06 out. 2016.

40

Fig. 3. No site oficial de Divine, fãs e admiradores do trabalho artístico da drag queen podem comprar produtos oficiais como camisas e bottons.

Durante as décadas de 1970 e 1980, as drag queens passaram, então, a habitar diversas plataformas artísticas. Além dos shows em bares, ―alcançaram o rádio, a televisão, a Broadway – musicais como Alô, Dolly! e A gaiola das loucas – e o mundo do cinema‖ (AMANAJÁS, 2014, p. 17), participando não apenas como personagens, mas sendo também tema para as narrativas.

Fig. 4. À esquerda, cartaz da Broadway para o musical ―Hello, Dolly!‖ (1964). À direita, pôster da versão cinematográfica do musical, de 1969, estrelando Barbara Streisand.

De acordo com Baker (apud AMANAJÁS, 2014, p. 18), ao final da década de 1970, havia basicamente duas vertentes da drag queen: ―aquela que criava a personagem cômica e

41

as que se espelhavam nas grandes divas do pop‖. O caráter político da drag havia quase que se perdido completamente e suas performances eram puramente para o entretenimento e diversão do público. Entretanto, o cenário político e de repressão vivido pelos homossexuais e comunidade LGBTQIA em geral acendeu o viés político da drag queen, principalmente nos Estados Unidos. A segunda onda do movimento feminista e o movimento da contracultura acabaram por influenciar o movimento político de lésbicas, homossexuais, transexuais e drag queens em Nova York, culminando no que ficou conhecido como a Revolta de Stonewall 9 em 1969, com participação ativa das drag queens e transexuais que frequentavam o bar. Sobre a participação das drag queens no movimento social, Amanajás (2014, p. 28) explica que ―uma vez que ser artista é, em si, um ato político e social, mesmo que não intencional, a drag queen despontou como um dos maiores símbolos da luta pelos direitos gays.‖ Com a chegada da AIDS, em 1980, a comunidade LGBTQIA sofreu uma nova onda de repressão e as drag queens foram perdendo a visibilidade que haviam conseguido no final da década passada. Durante anos a drag ficou marginalizada chegando a temporariamente desaparecer da cena midiática, geralmente com apresentações em boates e guetos marginalizados. Entretanto, ao final da década de 1980, elas ressurgem nos clubes gays e para a comunidade que havia sobrevivido a Stonewall e a epidemia da AIDS, a drag queen tornouse algo essencialmente gay.

O recente consumo de ecstasy nos clubes gays e heterossexuais redefiniu, de certa forma, a vestimenta das drags em algo mais conceitual, mas, ainda sim, luxuoso. Jean Paul Gautier foi um dos estilistas que se inspirou nos trajes dos clubes e os transferiu para as passarelas. Mas Gaultier não foi o único que se apossou da cultura drag em seus trabalhos, a rainha do pop, Madonna, a partir das drags modelos, criou um tipo de dança chamada Voguing – trata-se de uma sequência de poses feitas por top models. (AMANAJÁS, 2014, p. 19)

Nos anos 1990 a drag queen é recebida novamente para o convívio em sociedade. Como forma de entretenimento nos clubes e bares, as drags surgem com os lipsyincs (dublagens) das 9

Com o fim da ―Lei Seca‖ nos Estados Unidos (1920-1933), as autoridades responsáveis pelo consumo de bebida álcoolica no país aprovaram diversas leis para controlar a venda de álcool nos bares e clubes. Uma dessas leis proibia que os estabelecimentos servissem bebidas alcoolicas para homossexuais. Em Nova York, bares gays ilegais eram comandados pela máfia, tornando o público ainda mais vulneráveis aos olhos da lei. O departamento de polícia de Nova York realizava constantemente batidas policiais nos bares e milhares de homossexuais foram presos no período até 1968. Entretanto, em 28 de julho de 1969, policiais a paisana entraram em um dos bares gay, o StonewallInn, forçando os clientes a saírem às ruas, mas ―ao invés de fugir, eles, liderados por travestis, trancaram os policiais nobar, incendiaram e atiraram pedras e garrafas enquanto os policiais tentavamsair. Houve quatro noites de confrontos violentos entre a polícia e homossexuaisnas ruas de Nova York‖ (OKITA, 2015, p. 63). No aniversário de um ano da rebelião do Stonewall, como ficou conhecida, aconteceu as primeiras marchas do orgulho LGBTQIA, em Nova York, Los Angeles, Chicago e São Francisco, e que até hoje acontecem anualmente em todo o mundo, geralmente na mesma época, para marcar o aniversário do motim que deu origem a diversos grupos militantes em prol dos direitos da comunidade LGBTQIA.

42

músicas de cantoras pop, o voguing e números cômicos com temáticas essencialmente da cultura gay. É nesta época que o cinema produziu os grandes clássicos cinematográficos com drag queens, como ―Priscilla, a rainha do Deserto‖ (1994), produção que até os dias de hoje reverberam em diversas formas plataformas midiáticas, como o teatro, ―Para Wong Foo, Obrigada por Tudo! Julie Newmar‖ (1995) e ―Birdcage – A Gaiola das Loucas‖ (1996). Além de serem tema e personagens centrais nessas produções, as drags também inspiraram documentários, como o clássico ―Paris is Burning‖ (1991), retrato da cultura gay novaiorquina nos bailes frequentados pelas drag queens que convergiam tipos célebres da moda e cultura pop, ainda nos guetos da cidade. Essas quatro produções audiovisuais dos anos 1990 são consideradas ainda hoje fontes imprescindíveis de referências tanto visuais quanto históricas para quem busca compreender o movimento artístico e político drag. ―Paris is Burning‖ e ―Priscilla, a rainha do deserto‖ reverberaram internacionalmente expondo o absurdo estético da drag queen e seus discursos, mapeando a relação e o pertencimento dos homossexuais com a música, a vida noturna e a cultura pop. Especificamente no documentário, é exposta aspectos da cultura drag que até então se mantinha escondida e inacessível para quem não participava dela, como as ―haus‖ – ―casas‖ de drag queens e travestis que possuíam uma mãe que dava um sobrenome para suas filhas – e o vocabulário cheio de trejeitos e gírias próprias, quase que soando como um novo idioma para quem ouve pela primeira vez. Além da produção permitir, pela primeira vez, que o público pertencente a outros contextos socioculturais conheça mais de perto a estética e cultura drag, também expõe suas histórias pessoais, como a luta de algumas personagens com a AIDS e a morte. Com mais de 20 anos desde sua estreia, ―Paris is Burning‖ é a fonte de cerca de 90% de tudo que percebemos no universo drag (e da cultura pop especificamente voltada ao público gay) da atualidade, como Lady Gaga, que nomeia sua equipe criativa como ―Haus of Gaga‖, e RuPaul, a grande diva drag dos anos 1990 que, nos anos 2000 resgata a cultura e mimetiza os bailes nova-iorquinos, só que desta vez na televisão.

RuPaul é pop: a supermodelo drag É nesse cenário que desponta RuPaul, uma drag queen negra, altíssima, esbelta e loira, levando a figura da drag ao seu, até então, ápice dentro da cultura pop. Entretanto, engane-se quem acha que RuPaul já nasceu como uma drag superestrela. Antes de se tornar conhecida por revolucionar a forma que a cultura pop enxergava as drag queens, RuPaul começou sua

43

carreira na cidade norte-americana Atlanta e se tornou conhecida na cena drag por atuar e dirigir diversos filmes de baixo orçamento nos anos 1980, como ―RuPaul is: Starbooty‖ (1987), além de aparecer em um grande número de programas televisivos e álbuns musicais.

Fig. 5. Contra-capa do álbum com a trilha sonora do filme ―RuPaul is: Starbooty‖ (1987), mostrando que todas as músicas foram assinadas e interpretadas pela própria drag queen RuPaul.

Quando lançou ―Supermodel of the World‖ (1993), seu álbum mais icônico e que lhe lançou ao estrelato, RuPaul foi indicada ao prêmio de ―Best Dance Video‖, com o single ―Supermodel (You Better Work)‖ e no ano seguinte gravou, com Elton John, um cover da música ―Don‘t Go Breaking My Heart‖. Juntos eles apresentaram a cerimônia da maior premiação de música pop do Reino Unido, o BRIT Awards, em 1994. Além da bem sucedida carreira na indústria fonográfica, RuPaul também lançou uma autobiografia, ―Letin‘ All Hang Out‖ (1995), estrelou campanhas de cosméticos e se tornou apresentadora de talk show na televisão e no rádio. Atualmente, apresenta o seu próprio reality show televisivo, ―RuPaul‘s Drag Race‖ e se tornou a primeira drag queen a ganhar um Emmy em 2016 na categoria de ―melhor apresentadora(a) de reality show‖ 10.

Sua

importância na cena drag mundial é de grande relevância por ser meio e produto cultural ao mesmo tempo, conforme analisa o pesquisador:

RuPaul elevou a arte das drag queens no mundo através de seus singles (Supermodel ficou em segundo lugar na Billboard, perdendo somente para I‘m Every Woman de Whitney Houston), filmes, trabalhos como modelo fotográfica e de passarela e, desde 2009, comanda seu próprio reality show na televisão. [...]RuPaul‘s Drag Race tem recebido grandes celebridades do 10

Disponível em: . Acesso em 08 out. 2016.

44

showbiz através dos anos e tem sido topo de audiência em vários países do mundo. Além de disseminar a cultura gay e a arte das drag queens, o show tem aberto possibilidade e espaço para vários artistas drags poderem ser vistos e reconhecidos por seus trabalhos. (AMANAJÁS, 2014, p. 19)

Fig. 6. Elton John e RuPaul na cerimônia do BRIT Awards de 1994.

Podemos dizer que, de alguma forma, através de sua presença constante na mídia e militância para desmistificar uma forma artística considerada marginal RuPaul tirou as drag queens da marginalidade. Hoje elas são cantoras, participam de filmes, seriados e peças de teatro com muito mais ocorrência, visibilidade, aceitação comercial do que acontecia na era pré-RuPaul. A partir do fenômeno do programa de RuPaul, a mídia investe na participação e aparição de várias outras drags que despontam no cenário da cultura midiática. A europeia Conchita Wurst é uma das drag queens que despontam no cenário musical, após ser vencedora da edição de 2014 do programa europeu festival Eurovision, além de ter uma particularidade estética: é uma drag queen barbada, ou beard queen11, que a primeiro momento pode parecer algo revolucionário por mesclar a figura feminina da drag com elementos do masculino – a barba. Entretanto, a beard queen não é uma estética tão nova como se pensa. No Brasil, o grupo teatral Dzi Croquettes já fazia a mistura dos elementos do convencionalmente masculino e feminino nos anos 1970.

11

―As beared queens são uma categoria de drag queens que baseiam sua estética em uma concepção da androginia muito utilizada pelos astros do rock da década de 70 em prol do movimento gay e de uma maior abertura de expressão‖ (AMANAJÁS, 2014, p. 19).

45

O grupo composto por artistas masculinos, barbados e de pernas peludas chocou a sociedade ao se apresentarem de salto alto, vestidos e glitter na maquiagem, tornando-se o escândalo e o deleite dos públicos do Brasil e de Paris. O Dzi Croquettes alcançou reconhecimento internacional por sua postura política e artística, o que destaca que o grupo formado por esses 11 artistas militantes da causa gay em paetês foram os precursores do que enxerga-se como dra gqueen no Brasil. (AMANAJÁS, 2014, p. 19-20)

No Brasil, a partir da década de 1990, as drag queens surgem no cenário das festas gays nas grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, assim como em eventos de ativismo em prol da causa LGBTQIA. Entre as artistas surgidas na época, podemos ressaltar Silvetty Montila, Salete Campari, Nany People e Dimmy Kier. Entretanto, na televisão brasileira, homens interpretando mulheres de um jeito satírico

apareceu muito antes. Durante sua

carreira, o ator e comediante Chico Anysio chegou a interpretar mais de 50 personagens femininas (AMANAJÁS, 2014, p. 20) e nos programas de humor havia a presença da sempre irreverente Vera Verão, personagem criada pelo ator, comediante e bailarino Jorge Lafond que se tornou popular nos anos 1990 no Brasil pelo seu apelo cômico. Como parte do programa ―A Praça é Nossa‖, do SBT, Vera brincava com os códigos de vestimenta e trejeitos típicos do feminino, quebrando alguns tabus de gênero ao se caracterizar sem perucas, deixando à mostra a cabeça raspada. Além da participação em programas televisivos, Vera Verão sempre era destaque nos desfiles das escolas de samba de São Paulo e Rio de Janeiro.

Fig. 7. Vera Verão em cena no programa humorístico do canal SBT, ―A Praça É Nossa‖.

Apesar de ser Vera Verão a drag queen mais icônica e ainda lembrada da década de 1990 no Brasil, talvez possamos dizer que a mais popular tenha sido Isabelita dos Patins, drag queen interpretada pelo argentino Jorge Omar Iglesias, conhecida por andar de patins montada pelo centro do Rio de Janeiro. Isabelita ganhou a mídia após ser fotografada com o ex-

46

presidente Fernando Henrique Cardoso, em um encontro enquanto ela patinava pela principal avenida do bairro de Copacabana, em 1993. Durante a década de 1990 passou a ser figura frequente nos programas de entretenimento, além de estrelar comerciais para grifes como Fórum e Duloren.

Fig. 8. Isabelita dos Patins e o ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso.

Hoje, esquecida pelo meio artístico carioca, hoje, a drag queen vive com uma aposentadoria de R$ 800 e os cachês dos eventos que trabalha. Em entrevista ao site de notícias Ego12, Isabelita diz que ―não recebe o devido valor que merece por ser uma personagem importante para o Rio de Janeiro‖ e que já foi ao gabinete do prefeito pedir trabalho, mas que nunca parou de se montar e patinar. A artista patina uma vez por mês na feira do Lavradio, no centro do Rio de Janeiro, onde vende produtos como ímãs de geladeira, garrafa artesanal e o livro ―Isabelita, a menina dos patins‖, sua biografia infantil ilustrada, que custam desde R$ 1 até R$ 20. ―De um em um real eu consigo pelo menos pagar meu táxi. É imprevisível saber quanto vou ganhar porque a feira é só uma vez por mês. Também recebo da associação da feira por estar lá performando como Isabelita. É uma maneira de sobreviver,‖ revela. Este é um lugar que nos faz refletir sobre a complexidade da carreira da drag, que apesar de viver um momento de expansão na cultura, também amarga o esquecimento e a não valorização da sua identidade.

12

GOMES, L. Isabelita dos Patins sofre dificuldades financeiras e pede: 'Quero trabalhar'. Disponível em: . Acesso em 13 out. 2016.

47

Drag-se aqui e agora Com a virada do século XXI e suas transformações tecnológicas, a sociedade se torna muito mais informada e conectada. A popularização da internet e suas ferramentas permitem que pessoas distantes geograficamente entrem em contato umas com as outras, troquem informações e descubram novas realidades que antes pareciam tão distantes. Uma geração totalmente conectada, formada pela cultura midiática e pop dentro da sociedade do consumo. Vemos ali também a potencialidade de novas identidades mais fluidas em relação a vivências de gênero e sexualidades.

A virada do milênio nos apresentou um globo totalmente conectado, promovendo enxurradas de informações por minuto, uma sociedade dinâmica e porosa. O pop, por incrível que pareça, conseguiu galgar mais um andar em direção à cultura de massa e se enraizar como parte intrínseca do dia-a-dia do cidadão. Novas divas foram coroadas, cada vez mais ousadas e inventivas, dando liberdade de expressão e reinvenção à cultura gay e jovem. Beyoncé, Shakira, Kylie Minougue, Britney Spears, Fergie, Nick Minaj e Lady Gaga serviram mais do que inspiração para as drag queens: tornaram-se um modo de vida. (AMANAJÁS, 2014, p. 20)

Com a expansão cultural da mídia massiva voltada para um público mais plural, vimos aparecer vários produtos voltados ao interesse e visibilidade das drags, Apesar destas estarem muito restrita à internet, com sites, páginas nas redes sociais, como Facebook e canais no YouTube, pode-se perceber que existe uma abertura de consumo midiático voltado a este interesse. Um dos exemplos desta nova produção são canais de vídeos específicos sobre este tema, onde ressaltamos a experiência do coletivo ―Drag-se‖,13 um canal do YouTube que desde 2015 publica conteúdos como tutoriais de maquiagem e documentários sobre um grupo de drag queens do Rio de Janeiro. Recentemente o ‗Drag-se‖ saiu da esfera da internet e passou a ser exibido semanalmente pelo Canal Brasil. 14 Em São Paulo, há também a produção da websérie ―Academia de Drags‖15, uma releitura brasileira do reality ―RuPaul‘s Drag Race‖, comandada pela drag Queen paulistana Silvetty Montila, e que já conta com duas temporadas exibidas também no YouTube. Além desse tipo de produção midiática mais elaborada, mesmo que apenas para o ambiente virtual, outra forma que está em alta entre as

13

Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. 15 Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. 14

48

drag queens são os canais com dicas e tutoriais de maquiagens, como podemos verificar as brasileiras: Vic Haila16, Rebecca Foxx17.

Fig. 9. Print screen de um tutorial de maquiagem disponível no canal do YouTube da drag queen Vic Haila.

Apesar das maquiagens serem a temática mais recorrente entre os canais das drags, algumas aproveitam o espaço ilimitado da internet para criar programas, tal qual em uma televisão, e também estabelecer discussões sobre temas mais aprofundados com o público. Este é o caso das paulistanas Rita Von Hunty e Lorealy Fox. Rita mantém o seu programa de culinária vegana, o ―Tempero Drag‖18, há cerca de um ano e vai além de apresentar receitas: em todos os episódios ela traz uma convidada especial – geralmente outras drag queens – e estabelece um bate-papo bem humorado, onde falam desde os acontecimentos da cena drag até sobre suas vidas pessoais. Guilherme Terreri, professor de inglês que dá vida a Rita Von Hunty, conta que a ideia do canal surgiu após um convite de uma produtora que queria criar um canal de vídeos humorísticos para o YouTube. ―A primeira coisa que me veio à cabeça foi um programa de culinária cômico apresentado por uma drag queen presa nos anos 50, mas que pudesse mostrar pras pessoas a cultura drag e a culinária vegana‖, explicou Terrieri em

16

Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2016. 17 Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2016. 18 Disponível em: . Acesso em 09 out. 2016.

49

entrevista à Folha de São Paulo 19. Já o canal da drag Lorelay Fox, o ―Para Tudo‖20, começou com os básicos tutoriais de maquiagem, até que ela despertou para um público que queria discutir temas mais abrangentes, mas ainda dentro do universo LGBTQIA e das próprias drag queens.

Lorelay Fox é personagem do publicitário Danilo Dabague, 29, dono do canal Para Tudo, que conta com mais de 170 mil inscritos. Ele conta que o foco inicial do canal seria maquiagem e a vida de drag, mas logo percebeu que outros temas chamaram bastante a atenção do público. Seu segundo vídeo, sobre gays afeminados, é até hoje um dos mais vistos do canal, com quase 180 mil visualizações. Dabague ainda produz tutoriais de maquiagem, sempre caracterizado como Lorelay, mas resolveu tornar o Para Tudo "um ponto de esclarecimento e compreensão de temas como diversidade, aceitação e empoderamento de minorias", conta. O público-alvo também mudou desde o início do canal. Se no início o objetivo era falar com meninos que queriam ser drag queen ou que gostam desse universo, hoje o público é bem mais diversificado. "Mulheres, crianças, famílias assistem para se divertir, professores usam meus vídeos como forma de esclarecimento em sala de aula, e as meninas amam os tutoriais de maquiagem". (GUARALDI, 2016)

Além dos programas criados por drag queens e voltando especificamente para este público, também é possível encontrar drag queens brasileiras em meios de comunicação mais tradicionais, como a Pabllo Vittar que já participou de anúncios de grandes marcas de cosméticos21 e acessórios esportivos22 e liderou a banda do programa ―Amor & Sexo‖23, da Rede Globo. Pabllo Vittar também vem consolidando sua carreia como cantora, com o sucesso do single ―Open Bar‖ e lançamento de um EP com mais quatro músicas na plataforma online e gratuita Sound Cloud24.

19

GUARALDI, B. Canais de drag queens no YouTube vão além de tutoriais de maquiagem. Folha de São Paulo, 28/09/2016. Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2016. 20 Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2016. 21 Drag Queen Pabllo Vittar estrela campanha da Avon. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. 22 Adidas Originals lança linha que celebra diversidade sexual. Disponível em: . Acesso em: 08 out. 2016. 23 Pabllo Vittar estreia como vocalista da banda do 'Amor & Sexo'. Disponível em: . Acesso em 08 out. 2016. 24 EP da drag queen Pabllo Vittar ―Open Bar‖. Disponível em: . Acesso em 09 out. 2016.

50

Outras duas drags também vêm ganhando espaço entre os fãs de música pop: Glória Groove, com o seu single ―Dona‖ 25 e influências do rap e a funkeira Lia Clark, que ganhou o público com o hit ―Trava Trava‖ e já lançou seu primeiro EP ―Clark Boom‖, também gratuitamente em diversas plataformas, como YouTube, Sound Cloud e Spotify26.

Fig. 10. Pabllo Vittar e Glória Groove: as mais novas ―drags pop‖ brasileiras.

A partir de então, percebemos como o uso das novas tecnologias junto à expansão do sistema comunicacional têm sido ferramentas políticas de visibilidade para as identidades drags, que aos poucos saem dos guetos e começam a ser fazer parte da cultura do entretenimento e das representações sociais na mídia. Deixam de ser instrumentos só da comicidade e são valorizadas pelo seu lugar de destaque frente às novas relações de gênero e portanto, ganham espaço no território do consumo midiático. São vozes, rostos, personalidades e atuações diferentes, mas que encontram formas de expressão e de significações deste lugar social. Ser drag hoje é pop.

“RuPaul’s Drag Race”: a porta de entrada das drags para o mundo pop Desde que o mundo conheceu (e se encantou) pela drag queen RuPaul 27, em 1993, quando se deu o lançamento de seu primeiro álbum solo, ―Supermodel of the World‖,

25

Gloria Groove chega metendo o salto na porta no clipe de seu primeiro single, "Dona‖. Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2016. 26 EP da drag queen Lia Clark ―Clark Boom‖. Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2016. 27 Culturalmente as drag queens são tratadas pelo pronome feminino quando estão montadas ou quando chamadas pelo nome artístico, independentemente da identidade de gênero da pessoa que está por ―baixo‖ da montação, justamente por, historicamente, representarem a figura feminina. Porém, ressaltamos que é sempre de bom tom

51

percorremos um longo caminho afim de naturalizar a presença das artistas drag queens dentro da cultura pop e em meios de comunicação de grande circulação. Chegamos ao ponto que podemos afirmar que ser drag é pop, mas o que mudou nas quase três décadas do reinado midiático de RuPaul? E de que forma artistas anteriores a ela abriram caminhos para a grande revelação da cultura drag para o grande público? Por que hoje aceitemos com mais ―naturalidade‖ um reality show com drag queens, mas, (ainda) olhamos com repulsa o filme ―Pink Flamingos‖ (John Waters), estrelando a infame drag queen Divine, em 1972? Para entender o papel que presença das drag queens na cultura pop midiática tem dentro das tessituras das identidades pós-modernas de gêneros e sexualidade, primeiro é importante ressaltar o valor do que se entende como cultura pop atualmente. O termo pop é a abreviação da palavra inglesa ―popular‖ que designa produtos produzidos para serem populares, ou seja, para as culturas de massas, ou grande público, dentro da indústria da cultura. Nesse contexto, são consideradas ―pop‖ produções cinematográficas, televisivas, musicais etc. Na língua portuguesa, entretanto, o termo adquire um significado para além do ―popular midiático‖, podendo ser usado para nos referimos também à cultura popular ligada ao folclórico, o que em inglês seria o folk. Temos, então, no contexto da língua inglesa, o ―pop‖ como o ―popular midiático‖ em consonância com os ecos das premissas conceituais da ―pop art‖. Estas aproximações norteiam o uso do ―pop‖ e também fazem pensar que a principal característica de todas as expressões é, deliberadamente, se voltar para a noção de retorno financeiro e imposições capitalistas em seus modos de produção e consumo. (SOARES, 2015, p. 20)

Neste trabalho me atenho à cultura pop com seu significado voltado para o consumo midiático, destacando seu ―papel como cultura dinâmica, produtora de novos significados e de novas sociabilidades.‖ (CASTRO, 2015, p. 36). Janotti (2015) explica que

Pensado sob o prisma de produtos de alto alcance, e portanto populares midiáticos, o pop foi associado ao que ―pipoca‖, ao que não se consegue parar de mastigar, devido a ―supostos‖ artifícios das indústrias culturais, uma cultura do bubblegum (chicletes) e da pop corn, guloseimas que se confundem com a fruição e o entretenimento pop. (JANOTTI, 2015, p. 45)

A partir deste conceito ressalto que, apesar de ser óbvio o fato de que os produtos em circulação dentro da cultura pop sejam profundamente enraizados na ótica capitalista, não posso torná-los algo esvaziado de significados, principalmente sabendo que geração atual perguntar o pronome de tratamento que a drag prefere, já que há uma pluralidade de estilos drag e nem todos se identificam com a figura feminina, como a estética clubkid e tranimal.

52

vivencia um momento de deslocamentos de identidades e a mídia pop está profundamente enraizada no processo de identificação destes sujeitos. Sabendo disso, percebo que o crescimento da cena drag teve um grande amparo nas desconstruções de gênero e sexualidade que os jovens da geração Z28 vivenciam. De acordo com uma pesquisa 29 da agência de publicidade J. Walter Thompson, 76% dos jovens brasileiros não se importam com a orientação sexual de outros e 82% concordam que as pessoas deveriam explorar mais sua própria sexualidade. Esse comportamento começa afetar diretamente produtos e serviços destinados a essa geração. Em uma reportagem para o site da revista Veja, a jornalista Allegretti (2016) expõe o caso das escolas que precisam incorporar nos planos educacionais, o debate sobre gênero e sexualidade a fim de atender às demandas dos alunos:

Para esses jovens na faixa de 15 anos, crescidos no universo digital, nunca foi tão normal ser diferente. Os adultos, ligeiramente atordoados, tentam acompanhar o ritmo das mudanças. Em colégios de grandes cidades brasileiras, discutir a diversidade de gênero virou assunto obrigatório. A aula magna do Pedro II deste ano foi sobre o tema. No Bandeirantes, em São Paulo, um grupo de discussão batizado de Bandiversidade reúne alunos para falar sobre homossexualidade, bissexualidade e pansexualidade.

Os sujeitos que participam ativamente da cena drag, seja como uma persona drag queen ou apenas frequentando as festas e eventos que ocorrem dentro desse contexto. Desta forma, é preciso olhar de forma crítica o que Kellner (2001) chama de ―cultura da mídia‖ na atualidade, pensando nela como uma maneira que moldamos nossas identidades. De acordo com Kellner (ibidem, p. 9):

As narrativas e as imagens veiculadas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a constituir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo de hoje. A cultura veiculada pela mídia fornece o material que cria as identidades pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultural global. 28

Termo adotado com frequência para designar os jovens nascidos entre 1990 e 2010. O ―Z‖ vem de ―zapping‖, termo em inglês que usado para telespectadores que mudam de canal televisivo constantemente. A chamada geração Z forma um grupo de pessoas que já nasceu na era digital e não têm lembraças de um mundo sem celulares, computadores e tablets, logo são extremamente conectados às tecnologias e são extremamente comunicativos. Freire Filho e Lemos (2008) explicam que a forma de pensar dessa geração ―foi influenciada desde o berço pelo mundo complexo e veloz que a tecnologia engendrou. Diferentemente de seus pais, sentem-se à vontade quando ligam ao mesmo tempo a televisão, o rádio, o telefone, música e internet.‖ Disponível em: . Acesso em: 06 jun 2016. 29 ALLEGRETTI, Fernanda. Amigues para Sempre. VEJA.com. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016.

53

Quando estreou em 2009, não era esperado que o reality show ―RuPaul‘s Drag Race‖ tivesse vida longa. Apresentado por uma das drag queens mais famosas do mundo, RuPaul, que teve o ponto alto de sua carreira nos anos 1990, o programa buscava a sucessora da apresentadora no posto da drag superestrela dos Estados Unidos. Segundo ela, para se tornar uma surperestrela a drag deve possuir quatro características fundamentais: carisma, singularidade, coragem e talento (ou em inglês, charisma, uniqueness, nerve e talent, constantemente abreviadas no programa pela sigla C.U.N.T.). O programa, entretanto, logo se tornou sucesso do canal de TV voltado para o público LGBTQIA, a Logo TV e hoje acumula oito temporadas, duas séries derivadas – Drag U30 e RuPaul‘s Drag Race All Stars31 – e um programa paralelo que mostra as competidoras interagindo nos bastidores do episódio principal de cada temporada. Embora tenha mantido praticamente o mesmo formato com o passar das temporadas o objetivo inicial de encontrar a sucessora de RuPaul acabou perdendo o sentindo, visto que anualmente era coroada uma nova drag superstar. O reality então passou a adotar o conceito de ―reinado‖ anual para cada uma das campeãs, sendo que no ano seguinte o legado deixado por ela era passado para sua sucessora. O sucesso do programa, transformado em franquia pop32, visibiliza a cena drag em todo o mundo e gera adeptos para uma nova geração de consumidores desta cultura. A partir do encantamento gerado, é perceptível o aumento exponencial de outros artistas drags que começam a fazer sucesso na cultura midática, a exemplo das americanas, saídas do próprio programa, Adore Delano 33, Sharon Needles34 e Alaska Thunderfuck 35, que hoje emplacam suas carreiras como cantoras drags e lotam boates com suas apresentações mundo afora.

30

Drag U foi uma série spin-off de RuPaul‘s Drag Race, onde ex-participantes do programa original ajudavam a fazer transformações em mulheres biológicas. Segundo o site da LOGO TV, o programa era uma ―escola para garotas, onde mulheres biológicas passavam por extremas transformações no estilo drag queen.‖(tradução nossa). Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2016. 31 RuPaul‘s Drag Race All Stars é um reality que mantém a mesma estrutura do programa original onde as participantes são ex-competidoras que se destacaram no original, porém acabaram não ganhando o grande prêmio. A primeira temporada foi exibida em 2012 e a segunda temporada estreou em agosto de 2016. 32 Partindo do conceito proposto por Jenkins (2008, p. 45) de franquia como ―empenho coordenado em imprimir uma marca e um mercado a conteúdos ficcionais‖, adotamos neste artigo a franquia pop como uma marca que se torna rentável mercadologicamente, capaz de produzir diversos produtos (sendo eles midiáticos ou não) e gerar engajamento de um grupo de pessoas em torno deste nome. De acordo com Massarolo e Alvarenga (2010), foi a partir da década de 1980, que ―o termo franquia começou a assumir um significado cultural e passou a ser usado para descrever tanto os processos de propriedade intelectual corporativa quanto à gestão das formas culturais serializados que dela resultam (linhas de produtos como a franquia Star Trek ou a franquia Star Wars, por exemplo).‖. 33 O álbum de estreia de Adore Delano ―Till Death Do Us a Party‖ chegou ao 3º lugar na categoria de ―Dance/eletronic Albums‖, estabelecendo um recorde entre as cantoras drag que tinham entrado para as listas

54

Nesse contexto, a cultura midiática se apropria da drag queen como produto para satisfazer os desejos do sujeito pós-moderno que tem sua identidade de gênero descentralizada e fluida, abalada por inúmeros movimentos e revoluções socioculturais do século XX (HALL, 2006, p. 34-46). Passo então a compreender a drag como um produto midiático a partir do momento que se torna agente dentro da cultura de entretenimento com orientações econômicas marcadas pela lógica do capital, retorno financeiro e do que Martel (2012) chama de mainstream. 36 Embora pense ―RuPaul‘s Drag Race‖ como um produto mainstream dentro da cultura pop nos moldes de Martel (2012), em diversas entrevistas 37 RuPaul nega esse caráter do programa ao salientar que mesmo com todo o espaço que a cultura drag vem recebendo da mídia a partir do programa, não há verdadeiramente uma abertura midiática para entender e expor a complexidade do que é a drag.

Eu não acho que o programa poderá ser mainstream algum dia porque drag é a antítese da matrix. A matrix diz ‗escolha uma identidade e se apegue a ela. Porque eu preciso vender para você algumas cervejas e shampoos e você precisa se apegar ao que você é, então eu saberei como vender isso para você‘. Drag é o oposto. Drag diz que a identidade é uma piada. Eu acho que eu não tenho sido aceito nos meios de comunicação mainstream como o ‗The Tonight Show‘ ou ‗Ellen‘ ou os programas de entrevista que passam tarde da noite porque a única forma que eles poderiam realmente ter uma conversa comigo é fazendo graça de mim ou fazendo piadas sobre o que eu faço. (RUPAUL, 2016, tradução nossa)

Entretanto, é inegável que o reality show é extremamente popular. Na entrevista supracitada, RuPaul explica a popularidade do programa devido à essência de sua narrativa, basicamente sobre a tenacidade do espírito humano. Ao abordar personagens que foram afastadas da sociedade, que precisaram trilhar um caminho difícil para serem reconhecidos através da arte e expondo suas histórias de vida, criamos um laço de identificação dentro das narrativas individuais e acabamos por projetar nossas próprias vivências nos relatos dos personagens. O telespectador cria um sentimento de pertencimento, o que gera a fidelização até 2014. Seu segundo álbum ―Afte rParty‖, ficou em 1º lugar na mesma lista em 2016. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2016. 34 Sharon Needles lançou seu primeiro álbum ―PG-13‖ em 2013 e chegou a ficar em 9º lugar na lista de Dance/Eletronic Albums. Seu segundo lançamento ―Taxidermy‖, chegou ao 11º lugar em 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2016. 35 Alaska Thunderfuck emplacou na lista ―Dance/Eletronic Albums‖ da Billboard em 3º lugar, com o seu debut ―Anus‖ em 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2016. 36 Para Martel (2012, p. 11), mainstream é ―a produção de bens culturais criados sob a égide do capitalismo tardio e cognitivo que ocupa lugar de destaque dentro dos circuitos de consumo midiático‖. 37 Entrevista concedida ao programa norte-americano Nightline, da emissora ABC. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2016.

55

do consumo deste produto: em vez de ser um simples programa de entretenimento, é algo que ele assiste por se identificar com o que é mostrado. Como produto mainstream dentro de um grupo específico, a cultura drag potencializada e vendida pelo reality ―RuPaul‘s Drag Race‖ atinge os sujeitos já deslocados da ideia da identidade unificada encontram na arte drag uma forma de exprimir suas vivências de gênero e sexualidades. Todavia, ao mesmo tempo em que o programa se propõe a apresentar a cultura drag ao mundo mainstream, com as diferentes vertentes, estilos e possibilidades que pode assumir, ao longo das oito temporadas do reality é perceptível observar o que chamo de higienização e padronização da arte drag através das escolhas das vencedoras dos desafios propostos nos episódios. Para julgar o desempenho das competidoras, RuPaul estabelece padrões baseados em sua visão do que é ser uma drag completa, com potencial para se tornar uma superestrela, da mesma forma que ela se tornara nos anos 1990 quando assumiu o título supermodelo ao ser a primeira drag a estrelar uma campanha mainstream de cosméticos, da marca canadense M.A.C.

Fig. 11. Campanha estrelada pela drag queen RuPaul para a marca de cosméticos M.A.C em 1994

O fenômeno em torno do reality cria uma nova demanda do público e na cultura midiática, podemos ressaltar que o interesse obriga a criação de novas produções culturais da cena drag que venham atender a este interesse, como músicas, filmes, seriados etc.

A construção de identidades pós-modernas através da mídia

56

Para compreender como a presença de drag queens na televisão influenciam a construção identitária do público, especialmente no que diz respeito às identidades de gênero e vivências de sexualidade, precisamos entender como os programas que trazem as drags como personagens políticos se tornam uma tecnologia de gênero e dispositivos discursivos (LAURETIS, 1994). Percebendo o reality show ―RuPaul‘s Drag Race‖ como um lócus da cultura pop que desconstrói conceitos a respeito da performatividade drag e as visibiliza dentro da cultura midiática, podemos classificar o discurso produzido pelo programa como uma tecnologia de gênero que vai compor práticas discursivas em relação às novas forças de significação que atribuem ―significado (identidade, valor, prestígio...) a indivíduos dentro da sociedade.‖ (ibidem, p. 212). A partir da tese defendida por Lauretis (1994) de que os discursos artísticos, como cinema e literatura, contribuem para perpetuar as diferenças estereotipadas consideradas inatas para diferenciar masculino e feminino, fazemos uma ponte com os apontamentos feitos por Kellner (2001, p. 304) ao analisar a forma que programas populares de televisão funcionam ao ―oferecer modelos de identificação no mundo contemporâneo‖. Ao argumentar que a televisão, assim como outras plataformas de cultura da mídia, desempenham ―papel fundamental na reestruturação da identidade contemporânea e na conformação de pensamentos e comportamentos‖, Kellner (ibidem, p. 304) acredita que a tecnologia exerce uma função que tradicionalmente era atribuída ao mito e ao ritual: ―integrar os indivíduos numa ordem social, celebrando valores dominantes, oferecendo modelos de pensamento, comportamento e sexo para imitação, etc).‖ Por se tratar de um local onde há fortemente o uso da imagem para formar um imaginário coletivo, que influencia a geração tecnológica, fluida no seu desejo e vivência de gênero, é possível comparar o ―RuPaul‘s Drag Race‖ com o cinema nas suas possibilidades de transgressão.

É imprescindível afirmar que este mesmo cinema que orienta e esquadrinha, define e conceitua, também é um espaço transgressor que abre brechas e dobras, que provoca e possibilita liberdades individuais e coletivas, arrebata desejos, re/cria novos corpos, sexos, gêneros e trans/forma pensamentos e afetos em imagens. Parto do pressuposto que estes discursos ideológicos das imagens terão significados subjetivos e individuais, embora sejam estes também construídos por uma afirmação coletiva patriarcal. No entanto, os fatores históricos, imaginários, afetivos e sociais particulares também podem afetar na percepção de recepção destas informações, atuando no processo da ―imagenação‖ destes valores e códigos, dando assim, lugar de sujeito-ação ao espectador diante da interpretação das imagens, re/apropriando novos

57

significados e novos processos de subjetivação. (NEPOMUCENO, 2010, p. 72)

A ideologia38 propagada pelo programa atinge os sujeitos e a drag surge como um agente que empurra em diferentes direções as identidades já confrontadas pela multiplicidade de ―sistemas de significação e representação cultural‖ (HALL, 2006, p. 13). A repetição do discurso do reality show cria uma nova realidade para seu público que, já propenso aos deslocamentos propostos pelo programa, se torna autoconsciente sua própria performance de gênero, passando a questionar suas realidades.

O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performatividade sociais contínuas significa que as próprias noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou permanentes também são construídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritas da dominação masculinista e da heterossexualidade compulsória. Os gêneros não podem ser verdadeiros nem falsos, reais nem aparentes, originais nem derivados. (BUTLER, 2012, p. 201).

Ao analisar o seriado norte-americano ―Miami Vice‖ (1984 – 1990) como exemplo de dispositivo midiático pós-moderno capaz de criar um pathos identitário no público, Kellner (2001, p. 304-317) analisa determinados personagens do programa cuja instabilidade de identidades seria um sintoma de uma intrínseca artificialidade.

Essas duplicidades dão indícios da artificialidade da identidade, de que a identidade é construída e não dada, de que é uma questão de escolha, estilo e comportamento, e não uma qualidade moral ou psicológica intrínseca. Também indica que a identidade é um jogo que se joga, que é possível trocá-la facilmente. A identidade pós-moderna, então, é construída teatralmente pela representação e papeis e pela construção de imagens. Enquanto o lugar da identidade moderna girava em torno da profissão e da função na espera pública (ou familiar), a identidade pós-moderna gira em torno do lazer e está centrada na aparência, na imagem e no consumo. (ibidem, p. 310-311).

Para Kellner (ibidem, p. 308) o seriado, como materialização da cultura da mídia, projeta de forma bastante específica modelos de papeis sexuais e sociais, assim como 38

Lauretis (1994, p. 212-213) discute o conceito de ideologia a partir dos apontamentos feitos por Althusser (1971): ―Ao afirmar que a ideologia representa ‗não o sistema de relações que governam a existência de indivíduos, e sim a relação imaginária daqueles indivíduos com as relações reais em que vivem‘ e que lhes governam a existência, Althusser estava também descrevendo, a meu ver, o funcionamento do gênero. [...] Continuando a ler Althusser, encontra-se a enfática afirmação de que ‗toda ideologia tem a função (que a define) de constituir indivíduos concretos em sujeitos‘ (p. 171). Se substituirmos a palavra ideologia pela palavra gênero, a afirmação ainda funciona, com uma leve mudança dos termos: o gênero tem a função (que o define) de constituir indivíduos concretos em homens e mulheres. É exatamente nessa mudança que a relação entre gênero e ideologia pode ser vista, e vista como um efeito da ideologia de gênero.‖

58

―posições de sujeitos bastante diferentes das imagens de sexo, raça e classe usuais no panorama típico da mídia e da televisão‖. Enquanto ―Miami Vice‖ reproduz ―imagens de riqueza e alto nível de consumo‖ fazendo com o que o espectador inveje o estilo de vida dos personagens, ―RuPaul‘s Drag Race‖ coloca o público em contato com os bastidores do estilo de vida da drag queen e através da projeção de imagens (no caso do seriado analisado por Kellner, ―imagens de uma sociedade próspera, consumista e tecnológica‖) positivas sobre a arte da montação drag e convida os espectadores a se identificar com um estilo de vida. A partir da análise de um seriado de TV, Kellner (2001, p. 312) enxerga um reflexo do que seria um dos aspectos mais proeminentes da pós-modernidade: a derrocada do ideal de uma identidade natural, centrada e única em decorrência de um novo modelo onde o indivíduo fabrica suas identidades de forma efêmera e fragmentada. Tal paradigma está diretamente relacionado ao conceito de cultura pop. Segundo Janotti Junior (2015, p. 45):

Como uma membrana elástica, o pop remodela e reconfigura a própria ideia de cultura popular ao fazer propagar através da cultura midiática expressões culturais de ordem diversas como filmes, seriados, músicas e quadrinhos. A compreensão inicial desses fenômenos como pop já atestava uma das contradições adensadas dessas vivencias culturais: de um lado seu aspecto serial, a produção massiva, de outro, o modo como os produtos pops servem para demarcar experiências diferenciadas através de produtos midiáticas, que nem por isso deixam de ser ‗populares‘.

Dentro desta perspectiva, a cultura pop é palco para as transformações propostas pela Geração Z, inclusive as que dizem respeito às questões de gênero. Verificam-se exemplos nas mais diversas plataformas, seja na música, com a cantora Liniker embaçando as fronteiras entre homem e mulher39, ou na televisão, com seriados como Transparent pautando os anseios da população trans40. Kellner (2001, p. 316-317) conclui:

Essa análise levaria a crer que aquilo que se pode chamar de identidade pósmoderna é uma extensão das identidades múltiplas livremente escolhidas do eu moderno que aceita e afirma uma condição instável e rapidamente mutável. [...] A identidade na sociedade contemporânea é cada vez mais mediada pela mídia que, com suas imagens, fornece moldes e ideais para a modelagem da identidade pessoa. Astros como os policias de Miami Vice ou certas megaestrelas como 39

A cantora, que pode ser lida socialmente como homem, incorpora à sua performance elementos considerados femininos como batom e saia. ―Eu tirei o gênero da minha vida‖, declarou Liniker. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. 40 Na série, a personagem principal Maura é uma mulher trans em processo de transição de gênero. Produzida por Rhys Ernst, um homem trans, Transparent já recebeu diversos prêmios. Disponível em:. Acesso em: 30 jun. 2016.

59

Michael Jackson ou Madonna também constituem modelos de identidade por meio da construção de uma aparência, de uma imagem e de um modelo de ser.

Nesse cenário, a arte drag possui importância central, propagada pela força da produção midiática, em especial pelo programa ―RuPaul‘s Drag Race‖. O sucesso do programa e esse apelo com o público expõe, então, o aparato pelo qual se dá o nascimento do que chamarei de drag queens pós-modernas. Estas estão nas cenas culturais, na TV, na internet, na publicidade, são as celebridades pop, mas existem as ―personas‖ dos palcos comuns, principalmente nas ruas, nas festas, no cotidiano de quem assume este lugar muito mais do que entretenimento, mas um ato político de contestação de gênero. É o que exponho no capítulo de análise a seguir.

3

“Há novas meninas glamurosas na cidade”: o território e as drag queens pós-modernas

“I know there’s weirdos out there that need people like me.” (Sharon Needles)

61

Usualmente quando falamos de drag queens ainda pensamos em apresentações de dublagem em bares e boates, principalmente naqueles voltados ao público LGBTQIA. Em outras épocas as drag queens ofereciam entretenimento que fugia do esperado pelo grande público, se tornando artistas com pouco alcance e visibilidade dentro das tessituras culturais de uma cidade. Olhar a cena drag de uma grande cidade brasileira era até alguns anos atrás, olhar para bons comediantes que ou estavam nos palcos dos teatros ou nas performances ―bate-cabelo‖41 das boates e dos guetos. Entretanto, nos últimos anos, a notoriedade que a arte drag vem ganhando na cultura mainstream e dentro do próprio meio LGBTQIA tem muito a ver com a popularidade do reality show ―RuPaul‘s Drag Race‖. O fenômeno midiático em torno do reality modificou a forma como os telespectadores que frequentam as cenas culturais de suas cidades ocupam os espaços públicos, passando a usar gênero e sexualidade como formas de resistência. Essa mudança no comportamento do público deu origem a uma nova configuração dos espaços e criou uma demanda de festas que nasceram junto com a nova cena drag, além de exigir que muitas destas já existentes, precisassem se adaptar às novas políticas sociais do grupo em questão. Hoje a cena drag está repleta de matérias positivas na mídia 42, além de gerar personalidades que viraram micro celebridades e uma produção permanente desta cultura no cenário jovem. Os fãs do programa, entretanto, não apenas admiram as drag queens, eles também querem fazer parte do movimento.

Isto quer dizer que, intencionalmente ou não, o reality provocou o gosto das massas numa aposta ao interesse tipicamente popular pela fantasia. E ao produzir celebridades que por momentos aparecem ―desmascaradas‖ do artifício drag, as torna mais humanas, estabelece uma relação de identificação, que acaba por dar invisibilidade a determinadas formas de preconceito. [...] Se antes as 41

Momento do show de uma drag queen que ela gira a cabeça freneticamente fazendo com que o cabelo, suspenso no ar, seja jogado de um lado para outro na cabeça. O ―bate cabelo‖ é uma das características principais dos shows de drag queens mais antigas da cena brasileira, como Marcia Pantera (SP), sendo essa estética cada vez mais deixada de lado pelas artistas mais contemporâneas que seguem cada vez mais a estética drag disseminada pelo programa ―RuPaul‘s Drag Race‖. 42 Cada vez mais é possível ver matérias sobre drag queens e a cultura drag nos meios de comunicação, até mesmo os mais tradicionais como o jornal. Selecionamos algumas que podem ser encontradas online para exemplificar: na versão online do jornal Diário de Pernambuco, foi publicada uma matéria sobre a ―Parada da Diversidade‖ e a relação com as artistas drags(http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2015/09/19/internas_viver,598762/parada-dadiversidade-luta-por-direitos-e-vitrine-para-artistas-locais.shtml); na Folha Online, uma matéria sobre um curso de drag queens ministrado pelo Sesc de forma gratuita, em São Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/12/1723089-expansao-do-universo-de-drag-queens-gera-seriefilme-e-curso-gratuito-em-sp.shtml); no Correio Braziliense, uma matéria sobre jovens que cada vez mais se especializam na arte e pretendem seguir carreira como drag (http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-earte/2013/07/14/interna_diversao_arte,376898/mercado-de-drags-do-df-renova-se-com-jovens-que-querem seguir-carreira.shtml). Acessos em: 15 maio 2016.

62

poucas (quase) celebridades drags eram meras coadjuvantes dos risíveis espetáculos de humor, RuPaul‘s Drag Race puxou o gatilho para toda uma virada iconográfica que as recoloca enquanto sujeitos em ascensão, ainda que com algumas ressalvas. (CANEDO et al., 2015, p. 3)

Em todo o Brasil observamos aumentar, após o boom do reality show no país, o número de jovens interessados em se ―montar‖ como drag queen, sem uma preocupação de desempenho profissional mas, exercer a ludicidade nos jogos das identidades de gênero, como também compactuar com as personagens drags midiáticas em ascensão. Nas grandes metrópoles do país todos os finais de semana ―nascem‖ novas drags, inspiradas pelo imaginário artístico trazido pelo programa até suas casas. A nova drag queen, entretanto, difere das que as gerações mais velhas estão acostumadas a ver: saem as piadas e entra a militância revestida de glitter e cola. Entretanto, apesar das drags pós-modernas nascerem, na maioria das vezes, inspiradas em RuPaul, elas não param por aí. A internet, como meio fundamental para difundir informações sobre maquiagem, figurino e colocar em contato artistas de todas as cidades do país, permite que as possibilidades do mundo drag se tornem ilimitadas. Em entrevista ao site iGay43, a drag queen carioca Ravena Creole afirma: ―Essa geração vem desmitificando a ideia de que quanto mais feminina, mais bonita é a drag. Não há mais regras, todos os estilos são bem-vindos‖. Sobre a cena do Rio de Janeiro, uma matéria do site O Globo 44 expõe as diferenças na estilística das drags da cidade:

Ursula Mon-Amourr, por exemplo, representa a tribo das drags barbadas e peludas. Ela é a personagem de João Marinho, um estudante de 21 anos do Leblon que faz sucesso na noite do Rio. [...] As drags barbadas são muitas — e a graça, dizem, é justamente borrar a fronteira entre homem e mulher. E, assim, pregar a liberdade. Mas drag não precisa ser feminina? Não necessariamente. Drag pode ser o que quiser, até bicho, planta, objeto, criatura alienígena. Basta ver a história de João Tapioca. Economista, 27 anos, durante o dia trabalha no gabinete de um vereador e, durante a noite, vira o diabo. Literalmente. Sua drag se chama Azazel e é um anjo caído de 10 mil anos que está de visita neste planeta. João costuma transitar entre duas estéticas: a club kid, com visuais surrealistas, cartunescos, punk; e a tranimal, com referências de outras espécies. Mas sempre com um ar meio diabólico. [...] Outra categoria, por exemplo, são as real queens — mulheres que se montam. É o caso de Marcela Campos, a Sirena Signus. A estilista é uma das pioneiras do movimento no Rio. (MEIRELLES, 2016) 43

Reality show americano inspira nova geração de drag queens no Brasil. iGay, 08/02/1016. Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016. 44 MEIRELES, M. Nova geração de drag queens toma conta da noite carioca. O Globo, 16/11/2016. Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016.

63

Assim como no Rio de Janeiro, no território desta pesquisa a expansão da cena drag também é possibilitada pela difusão do reality show ―RuPaul‘s Drag Race‖ a partir do momento que ―os sujeitos dentro do contexto da cultura pop negociam, se apropriam de artefatos e textos culturais ressignificando suas experiências‖ (SOARES, 2015, p. 22). Nessa tessitura da cultura pop, o território é importante para pensar não somente o imaginário da geografia de uma cidade pop45, mas do pertencimento que buscamos enquanto sujeitos construtores de nossas identidades. Confrontados com intermináveis possibilidades identitárias, buscamos fazer parte de um grupo e os locais que estes grupos ocupam também são importantes na construção do ―eu‖ e encontramos na cena, neste caso drag, uma infraestrutura para troca, interação e instrução. Como já dito na apresentação deste trabalho, escolhemos a cidade do Recife para a pesquisa por ser um território que desponta no cenário drag com promoção de festas e público variado, além de ser uma das únicas cidades do Nordeste a trazer as drags do programa de RuPaul para apresentações46. Além dessas questões, ressaltamos aqui que, dentro da minha abordagem etnográfica para realização desta análise, Recife passa a ser palco das minhas interpretações pessoais como drag queen – Maddie Killa – e por ser eu, uma frequentadora das festas específicas nesta temática, o que me possibilitou uma maior proximidade com os interlocutores desta pesquisa, como acesso aos territórios analisados, entrevistas das participantes bem como acesso ao background destas festas para observações e informações adicionais.

“Go back to party city”: Recife, a cidade que brilha Localizada na região Nordeste, Recife é capital do estado de Pernambuco. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Recife é a quarta mais populosa 45

Soares (2015, p. 28) descreve esse imaginário como um legado deixado pela cultura pop, dando destaque especial à música pop: ―Descortina-se o fascínio que a música pop nos lega diante de espaços, cidades e contextos que parecem, de alguma forma, traduzir o senso cosmopolita: percebamos o quanto a cidade de Nova York aciona um imaginário permeado pela Cultura Pop. Seja em espaços excessivamente fotografados e documentados como a Times Square, num certo senso de estar no ―centro do mundo‖ ao transitar pela Broadway, com todas as peças musicais em cartaz ou mesmo de estar em locais que já foram excessivamente filmados e exibidos nos cinemas ou na televisão, circular por aqueles espaços parece nos legar a premissa de que, de alguma forma, somos ―cidadãos do mundo‖, pertencemos, vivemos de forma comum atrelados a outros sujeitos também situados em outras partes do mundo.‖ 46 A boate Metrópole já trouxe diversas drags do programa para se apresentar em Recife, como Sharon Needles, Adore Delano, Kim Chi, Chi Chi DeVayne, Alyssa Edwards e Tatianna. Outra produtora recifense que também já produziu alguns eventos com drags internacionais foi a Golarolê, que trouxe Raja Gemini, Yara Sofia, Shangela e Katya.

64

concentração urbana do Brasil47, com 3,7 milhões de habitantes, e está entre as quinze capitais com maiores índices de PIB do país 48. A cidade desponta no cenário nacional tanto pelos seus índices de desenvolvimento quanto por sua conhecida contribuição à cultural popular brasileira. Berço de grandes artistas, como o dramaturgo Nelson Rodrigues, conhecido como o ―pai da dramaturgia brasileira‖, e de ritmos musicais marcantes como o frevo, símbolo do carnaval da região, se torna impossível dissociar a cidade de suas cenas e atores culturais. Falar de Recife é falar de um pouco da história cultural do país ou, como nos desdobramos nesta pesquisa, da produção da cena cultural LGBTQIA, especificamente das festas em boates e bares da cidade, locais onde se dão a (des)construção e atuação das nossas personagens analisadas: as drag queens recifenses. Para entender a cultura de festas e expressões artísticas em torno da comunidade de drag queens de Recife, faz-se necessário recorrer ao conceito de cena cultural de Straw (2013), que nos ajuda a mapear o território de uma cidade enquanto aponta para atividades as quais não relacionaríamos com o território facilmente. Além de designar um conjunto de atividade social e cultural, a cena pode ser definida como um meio de falar da teatralidade da cidade – da capacidade que a cidade tem para gerar imagens de pessoas ocupando o espaço público de formas atraentes. Nesse aspecto, a cena captura o sentido da efervescência e exposição que são as características consagradas de uma estética urbana. (STRAW, 2013, p. 12-13)

Neste contexto, o conceito de território se desloca do seu âmbito original geográfico e passa a ser apropriado pela sociologia, para que se faça clara a compreensão da ―dimensão espacial da sociedade.‖ Pensando pelo viés sociológico, a cena é primordial para entender o território como um lugar ―habitado socialmente e no qual as ações humanas produziam modificações fundamentais.‖ (AGUIAR, 2014). Para Straw (2013, p. 12) a ―as cenas adquirem a sua efervescência a partir da noção de que a ―informação‖ produzida dentro delas sempre constitui um excesso‖, portanto surgindo ―a partir dos excessos de sociabilidade que rodeiam a busca de interesses, ou que fomenta a inovação e a experimentação contínuas na vida cultural das cidades.‖ (ibidem, p. 13). Pensando desta maneira, me aproprio dos 47

NUNES LEAL, L. Após São Paulo, maiores concentrações são Rio, BH e Recife. O Estado de S.P., São Paulo, 25/03/2015. Disponível em: . Acesso em 15 out. 2016. 48 De acordo com dados da pesquisa mais recente feita pelo IBGE, em 2012, Recife está em 11º no ranking do produto interno bruto das capitais brasileiras, sendo a primeira colocada entre as capitais do Nordeste e atrás de grandes metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. Disponível em: . Acesso em 15 out. 2016.

65

conceitos propostos por Straw (2013) e Aguiar (2014) e forjo o conceito da ―cena drag‖ associada a um grupo de atores culturais conectados por identidades compartilhadas 49. De forma a ilustrar a cena drag de Recife e compreender as tessituras urbanas que moldam a cidade e como se comportam seus atores culturais, busco recortar o território por meio das festas, principalmente nas voltadas ao público LGTBQIA, palco das interações entre as drag queens e da maioria de suas apresentações. Durante a coleta de dados para esta pesquisa me deparei com uma grande quantidade de festas e locais inscritos na cena, territórios que as drag queens costumam frequentar como público e trabalhar. Porém, em uma análise mais aprofundada foi possível perceber que embora haja quantidade de locais ―drag friendly‖ muitos dessas festas estão inscritas em diferentes tessituras históricas do desenvolvimento da cena noturna da cidade, de forma que não seria justo colocar todas em um mesmo nível e estabelecer um paralelo quantitativo sobre a presença das drag queens. Como exemplo da discrepância histórica das festas frequentadas por drags posso citar a Maledita, criada em 2011, em um contexto completamente diferente da cidade e de como se davam as performances identitárias do ser gay na noite. É importante, entretanto, contextualizar os dados encontrados acerca da ocupação do território pelas drags de Recife e para isso irei rapidamente citar algumas das principais festas destinadas ao público LGTBQIA.

1. Maledita: Criada em 2011, em um contexto completamente diferente no que se diz respeito às performatividades de gênero e sexualidade, a Maledita é uma festa realizada pela produtora de eventos Golarolê e acontece em um final de semana de cada mês trazendo sempre diferentes temáticas relacionadas à cultura pop. Grande parte das edições foi realizada nas casas de show Vapor 48 e Catamaran, no bairro São José – considerado o ―centro da cidade‖ –, embora tenha havido algumas edições mais recentes em outras boates como a San Sebastian e Estelita, estas localizadas na Zona Sul da cidade. A primeira edição da Maledita a ter, oficialmente, a temática drag queen foi a edição de abril de 2014, cujo tema era ―RuPaul‘s Drag Race‖. 49

É possível usar o conceito de ―cena drag‖ para agrupar indivíduos de diversas formas. Embora a noção do grupo seja forjada em conjunção com o conceito de territorialidade espacial, podemos fazer recortes não apenas no que concerne à identidade do lugar, mas também ao gênero e à estilística drag. A territorialidade se torna flutuante quando analisamos a questão de forma mais ampla e inserimos artifícios de conexão entre indivíduos, como a internet. Como exemplo podemos citar a cena drag formada pelas mulheres que fazem drag queen no Brasil. Apesar de nem todas estarem próximas geograficamente, nada as impede de se agruparem por interesses em comum e formarem uma cena com suas características próprias. Como por exemplo, o coletivo de drag queens mulheres ―Riot Queens‖, que existe virtualmente, com artistas de São Paulo, Rio de Janeiro e João Pessoa, mas ocasionalmente se encontram para performances conjuntas. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2016.

66

Embora a cena drag na festa seja pontual, quatro ex-participantes do reality show já se apresentaram na Maledita e algumas drags locais tocaram em edições da festa. O público que ali frequenta é composto de jovens, de 20 a 35 anos em média, com nível escolar superior e pertencente a uma classe média alta. Na maioria, se identificam como gays. 2. Carola: De 2013 para cá a Carola, de Nuno Pires e Orlando Dantas, não mudou: continua sendo uma festa para os aficionados em cultura pop e músicas como rap, r&b e hip hop. Talvez por ser sempre temática, a festa atraiu as drags e hoje elas são presença garantida nas edições, que traz um lineup composto não apenas por DJs profissionais: a festa costuma dar oportunidade para os próprios frequentadores. Ela acontece em vários bares na cidade, não fixos, com o mesmo perfil de público dos frequentadores da Maledita. 3. 99 (lê-se: nine nine): A 99 é uma festa para quem não tem medo de ousar. Surgida em 2014 e comandada pelos residentes Pepa Puke e Teen Maya, a festa acontece desde então no Santo Bar, no bairro da Boa Vista, e tem feito sucesso na noite recifense. A proposta ―queer‖ da festa celebra as subculturas urbanas e não limita o som à música pop. Por ser um local onde o público é convidado a abraçar suas ―estranhezas‖, a festa se tornou uma das favoritas entre as drags da cidade, onde elas podem ousar no look e dar vazão à criatividade na hora das montações. O público é mais ousado, aberto a novas experiências da sexualidade e de gênero, não gostam muito de determinações fixas das identidades. A idade também transita entre 20 e 30 anos. 4. Fritz: Comandada pelo DJ Vini V, a Fritz surgiu em 2014 convidando o público a se jogar na pista até o amanhecer. Com uma estética bem definida – o preto e branco se faz presente nos flyers e nas fotos de todas as edições – a festa faz parte do roteiro das drags, já que costumam abrir espaço para performances e escalar muitas delas como DJs. Também não tem local fixo para acontecer e o perfil de público contenta mais adolescentes e jovens, de classe média alta. 5. Aloha: Criada pelos DJs Erick Ferreira e Thomas Henry, a Aloha é uma festa open bar que ocorre a cada dois meses em diferentes casas noturnas da cidade. De acordo com Erick e Thomas, a festa surge com o intuito de ―enaltecer a arte drag local e trazer novidades ao cenário recifense‖. Por sua proposta de acolhimento à arte, a festa é uma das mais divertidas, segundo as drags, para se frequentar na noite. É um público mais específico de drags contemporâneas.

67

6. Cool: Criada por Hugo Neves e Thiago Rocha, desde 2015 a festa ganhou a noite recifense com suas incomparáveis decorações em adequação ao tema proposto na edição. E de novo, o apelo da cultura pop está sempre presente. A ideia é que as drags idealizem seus looks pensando na temática. Elas também fazem parte do lineup e fazem apresentações incríveis em todas as edições. Também são itinerantes, frequentadas por jovens e com muita presença de drags. 7. PAM: Apostando na comunicação visual moderna, com muitos emojis, cores e referências da internet, a PAM é criação de Marlon Parente e da drag queen Envy Hoax. A festa chegou em 2014 na cidade e se propõe a ser um espaço de celebração da diversidade, expressão e aceitação. Acontece também em locais diversos, com o mesmo público da Cool.

Em meio às sete festas citadas acima, existe a Monamu, produzida pela drag queen Envy Hoax e que se parece como um ápice da exaltação da cultura drag dentro da cidade: toda a festa é organizada pensando nas drag queens e só elas fazem parte do lineup (djs, performers e participações especiais) das edições. Ela geralmente é realizada no bar Miami Pub, no bairro da Boa Vista, sem periodicidade fixa. O público é de classe média, estudantes e profissionais, entre 20 e 30 anos, com um perfil bem aberto de vivências das sexualidades e de gênero. Escolhi então esta festa por ser potencializadora da cena drag em comparação com as outras. Neste caso, a Monamu é palco territorial que abriga as personagens drags que iremos aprofundar o conhecimento sobre suas performances identitárias mais adiante. Portanto, a cena drag analisada, funciona com dois objetivos: estudar a potência da cultura de gênero e sexualidade na própria construção do espaço urbano e, existencial, como território das subjetividades e lócus das vivências pessoais da fluidez do gênero.

Monamu: feita por e para drag queens Produzida pela drag queen pernambucana Envy Hoax, a Monamu fez sua estreia na noite recifense em novembro de 2015 e desde então foram realizadas quatro edições, todas temáticas: Burlesco, Lady Gaga, Madonna e Britney. A festa é a única na cidade feita por e pensando nas drag queens, já que desde a produção até o lineup é formado inteiramente por este público específico. Segundo o catálogo de festas independentes voltadas para o público

68

LGBTQIA ―Recife Independente‖50, a proposta da Monamu é ―valorizar e dar espaço à arte drag local, gerando renda e estimulando a criatividade dessas artistas através de competições de looks e performances, baseadas no tema proposto em cada edição‖. Todas as edições da festa foram realizadas no bar/boate Miami Pub, com exceção da última edição, que aconteceu em parceria com a festa de música pop ―Carola‖, no Bar Brasil. Os dois ambientes ficam localizados no bairro da Boa Vista, em Recife, na Rua das Ninfas, local onde existem quatro bares/boates tradicionalmente frequentadas pelo público LGBTQIA e alternativo.

Fig. 12. Flyers das edições já realizadas da festa Monamu, além do flyer da edição especial em conjunto com a festa de música pop ―Carola‖, esta realizada no Bar Brasil, também no bairro da Boa Vista.

Desde sua primeira edição a Monamu chegou com uma proposta especial para as drag queens: um concurso de looks, no qual as duas melhores receberiam a oportunidade de participar do lineup da edição seguinte. Essa prática, talvez, seja uma tentativa de mimetizar as passarelas no reality show de RuPaul, onde os looks fazem parte das críticas que as drag queens recebem e afetam diretamente seus desempenhos no programa. Para Envy, em entrevista a mim concedida, esta é uma forma de incentivar a criatividade das drags que precisam elaborar seus looks de acordo com o tema da edição que estão concorrendo. O preço 50

Catálogo realizado pelo estudante do curso de designer da Universidade Federal de Pernambuco, Marcelo Rodrigues. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2016.

69

dos ingressos da festa varia de edição para edição, mas fica em torno de R$20 e R$25 se comprado antecipadamente, através de uma plataforma online, R$25 e R$30 na porta da boate e, como forma de incentivar a participação das drags, R$5 e R$10 para quem está montado e enviou antecipadamente o nome para a lista de convidados na fanpage do Facebook. A partir da segunda edição a festa passou a adotar o valor do ingresso das drags para pessoas transexuais que enviaram o nome para a lista de convidados, mas na última o acesso passou a ser gratuito. Participei de duas edições da Monamu, onde observei como se dá construção da performance drag no ambiente. A primeira ida foi na segunda edição da festa, que teve como temática Lady Gaga, e a segunda na edição seguinte, cujo tema era Madonna. Em ambas fui montada, reproduzindo um dos looks das cantoras-tema, sendo que na segunda vez também fiz parte do lineup, em uma apresentação de lipsync. Por não ser minha primeira aventura dentro da cena drag, pude transitar entre as drags com familiaridade, além de conhecer algumas das pessoas ―não-drags‖ que completavam o público da festa, o que me facilitou o contato e as observações diretas e indiretas.

“The best night ever”: uma noite como drag queen Todos os finais de semana o quarteirão compreendido entre a Rua das Ninfas e a Manoel Borba, no bairro da Boa Vista, é tomado por um grupo de pessoas, independentemente da idade, que procuram diversão. O chamado ―complexo de entretenimento de Maria do Céu51‖ atrai um público majoritariamente composto por gays, lésbicas e transexuais. Festas acontecem simultaneamente nos três estabelecimentos principais que fazem parte do ―complexo‖, mas fora as atrações principais, vendedores com bebidas, lanches e cigarros nos tabuleiros encontram na multidão que se forma nas ruas mais uma opção de ganhar dinheiro. À porta do Miami Pub grupos de jovens, entre 18 e 30 anos, socializam entre si, alguns bebendo, enquanto a festa não começa. Quando desço do carro que me trouxe até ali, usando apenas uma jaqueta de couro inteiramente personalizada com spikes e alfinetes, um sutiã com glitter, uma saia de couro e uma grande peruca cacheada loira, vejo os olhos se direcionarem a 51

Maria do Céu é a empresária e dona dos estabelecimentos Club Metrópole, Miami Pub e Santo Bar. Em minha experiência de campo com as drag queens da cidade, descobri que o apelido ―complexo de entretenimento Maria do Céu‖ foi dado pelo público que habitualmente produz e participa de festas e eventos nas casas. Também é usado para designar de forma genérica, o entorno dos locais que são realmente propriedade de Maria do Céu, passando a compreender também outros bares das duas ruas citadas.

70

mim. A nós. Ao meu lado está a produtora da festa e uma das drags mais famosas da cidade, Envy, que usa um vestido longo azul royal, uma peruca igualmente longa ruiva e mede quase 2 metros de altura com seu salto ―a la Lady Gaga‖ de 25cm. O nosso público sorri, acena, conversa enquanto passamos. Eles sabem que a chegada de Envy é sinal que a pista da Monamu está para abrir. Como o Miami Pub é dividido em dois ambientes (o primeiro – onde fica o bar – é como um lounge, com mesas altas e bancos; o segundo é a pista de dança propriamente dita, com luzes negras e completamente revestido de espelhos, com um pequeno palco elevado onde fica o DJ), nas duas edições que fui a interação do público que não estava ―montado‖ com as drags e delas entre si mesmas me chamou atenção em dois aspectos: 1. Afetos da pista de dança: Na pista de dança todos se misturavam para dançar, para ―rebolar a bunda‖ como diria o público da festa, independentemente do grupo de amigos que os acompanhavam. A escuridão propiciada pela iluminação da pista parecia um estímulo para as trocas de olhares, toques e beijos que aconteciam enquanto os maiores hits de Lady Gaga, Madonna, Rihanna e outras cantoras pop tocavam. Entretanto, alguns desses afetos não eram transferidos para o exterior – representado, momentaneamente neste caso, pelo primeiro ambiente do Miami Pub, o bar, onde a luz era mais intensa e a música mais branda. Ao sair da pista para comprar bebida, as fantasias – e neste caso falo do imaginário e não da montação das drag queens que permeavam o ambiente – eram deixadas para trás e vez ou outra um grupo de amigos se formava nas mesas para conversar amenidades. Poucos foram os casos que observei casais que haviam se formado na pista trazerem a interação para o lounge. 2. As ―panelinhas‖ drag: Apesar das drags transitarem e interagirem com facilidade com o público, seja na pista de dança ou no bar, entrando em diversos grupos e estabelecendo diálogo com facilidade até com pessoas que não eram seus amigos, percebi que existia no território de afetos da pista de dança uma política implícita de ―panelinhas‖. Quando não estavam interagindo com o público, algumas drags se ―fechavam‖ no próprio círculo de amigos, resultando em pouca interação com as outras drags ali presentes. Esse comportamento era muito mais comum de identificar entre as drags menos famosas, talvez as que aquela festa fosse uma de suas primeiras experiências montadas. E essa reclusão talvez seja resultado das ―panelinhas‖ aparentemente intimidantes criadas pelas drags mais famosas da cidade. O

71

relacionamento ali me pareceu quase que uma mimetização dos estereótipos de high school americano perpetuados pela cultura pop, como no famoso filme ―Meninas Malvadas52‖ (2004).

Fig. 13. Público e drag queens se misturam e socializam em espaços do ambiente onde ocorre a festa. Fotos: Kaline Ximenes.

Por ser uma festa produzida especialmente para o público drag, percebi que ela também se organiza de uma forma diferenciada. Durante toda a noite a pista é animada por DJs, mas há um momento de pausa na música frenética para assistir apresentações de algumas drag queens. Na edição de Lady Gaga, Envy Hoax performou (se apresentou, na linguagem típica das drags) a música ―Life on Mars‖, de David Bowie, e na edição de Madonna, eu – como Maddie Killa – performei ―Like a Virgin‖ e ―Til It Happens to You‖, de Madonna e Lady 52

O filme retrata uma escola americana em que um grupo de garotas descoladas e populares é idolatrado pelos outros estudantes. As ―the plastics‖ são loiras, magras e ricas, são tratadas como verdadeira realeza dentro da escola, com direito a uma mesa reservada no refeitório e tratamento especial por parte dos outros alunos, que desejam ser e ter tudo que elas são e têm. Ao trazer esse contexto para a cena drag recifense, é como se o grupo das drags mais famosas representasse tudo o que as novatas gostariam de ser, tornando-as de alguma forma ―inalcançáveis‖.

72

Gaga respectivamente. O espaço para a performance foi feito no improviso, já que não há palco para apresentações no local. Abrimos espaço no meio da pista de dança, onde o público formou uma meia-lua para assistir às performances. Durante o tempo da performance a maior parte do público que estava presente na pista dirigiu sua atenção para à drag queen em destaque, gritavam em apoio e entravam no sentimento da performance junto com ela. Público e artista se mantiveram conectados por alguns minutos, até que como um ―encanto‖ a música frenética do DJ voltou a tocar e todos voltaram ―aos seus lugares‖. Tanto a minha performance quanto na de Envy tinham apelo emocional, no meu caso por falar sobre a violência contra a mulher, e no dela por ser uma música interpretada por um cantor que havia recentemente falecido e ter sido um dos grandes representantes da cultura LGBTQIA na mídia, alguém que o público da festa conhecia e se identificava. Por este caráter emotivo, após ambas as performances algumas pessoas – talvez as que se sentiram mais tocadas pelas apresentações – vieram até nós conversar, abraçar ou comentar a apresentação.

Além das apresentações programadas para acontecer na festa, notei que as drags costumam performar também na pista de dança. Enquanto se divertem, elas promovem entretenimento do público, dando piruetas e segurando as notas musicais imaginárias dos falsetes de Ariana Grande, se garantindo na dublagem ou batendo-cabelo. Essas mini-performances acontecem o tempo inteiro durante a festa e provocam o público a interagir com a drag que está, naquele momento, no spotlight. Também foram diversas as vezes que vi o público não-drag performar suas coreografias e interpretações das músicas, colocando para fora seu lado drag queen. (Trecho do meu diário etnográfico, 18 de julho de 2016)

Fig. 14. Drags e público comum dominam a pista de dança com suas performances ―não programadas‖ para a noite. Fotos: Kaline Ximenes.

Na primeira experiência com a Monamu, Envy me contou, ao voltarmos para casa, que observou um empenho diferenciado por parte das drags para se adequarem ao tema, algo além do que ela já havia presenciado em outras festas na cidade, talvez por Lady Gaga – o tema da

73

festa – ser uma cantora que explora seu lado performático, beirando muitas vezes o absurdo, dando possibilidades quase que infinitas para os looks das drags. Notei também que não houve um look repetido sequer, o que poderia ter acontecido, já que alguns looks de Lady Gaga são mais famosos que outros.

Voltamos ao apartamento de Envy pela manhã, por volta das 7 horas, depois de fechar a pista de dança do Miami Pub. O sol de Recife não dá descanso, a maquiagem drag queen – que tenho para mim ser parte maquiagem, parte concreto – ainda estava no rosto, a peruca coçava, aumentando o calor. Depois de um processo silencioso de ―desmontação‖, conversamos sobre a noite deixada para trás. Envy confidencia um número recorde de drag queens naquela noite – cerca de 40, já que ela havia deixado 50 pulseiras destinadas às drags na entrada na festa e só sobraram 10. ―Eu nunca vi tanta drag junta e tanta drag com montações ótimas e dentro do tema da festa! Quem tu acha que deveria ganhar pra tocar na próxima edição? Vai ser bem acirrado dessa vez‖, Envy comenta comigo. (Trecho do meu diário etnográfico, 13 de março de 2016)

Fig. 15. Drag queens na segunda edição da festa Monamu com o tema Lady Gaga. A maioria das drags presentes reproduziram looks icônicos da cantora pop. Fotos: Kaline Ximenes.

Nas duas edições da festa que compareci notei algo que talvez não transpareça para as outras festas de música pop da cidade: mesmo quando não são drag queens, o público busca adereços que remeta à estética drag. Seja com um laço exagerado na cabeça, uma peruca, cílios postiços gigantescos, paetê ou muito brilho no próprio corpo o público ―comum‖ busca elementos da drag para se expressar, sem necessariamente ser uma drag queen, quase que

74

como na famosa frase dita por RuPaul: ―todos nascemos pelados e o resto é drag‖. Nas reflexões de gênero, notei que a estética camp e os elementos drags não são pertencentes a uma ―categoria‖ específica, mas na pós-modernidade são indicadores de uma geração que vê no artifício da ―montação‖, uma forma de subversão do gênero dado pela ―natureza‖, desconstruindo os elementos de uma narrativa normativa. Assim, pude perceber que nas edições da festa Monamu, ser drag é mais do que elemento estético ou artístico, mas corresponde a um desejo de embaralhamento do feminino e do masculino, em sua hipérbole, exaltação e ludicidade que só as drags permitem.

As “cover girls”: drag queens pós-modernas e empoderamento Com o território delimitado e conhecendo as performances que nele habitam, escolhi quatro drag queens frequentadoras de diversas festas em Recife, e em especial da Monamu, para analisar suas performances identitárias no que concerne a arte drag, gênero e sexualidade. Para tanto realizei entrevistas semiestruturadas, abertas ao diálogo aprofundado, onde conversamos sobre vida pessoal, relacionamento com a cena drag, percepções políticas de atuação de gênero e a influência da cultura midiática pop, em especial o programa ―RuPaul‘s Drag Race‖. A escolha das personagens entrevistas para análise se deu pelo recorte a diversidade estilística drag, consciência da performance de gênero que atuam, diversidade nas vivências identitárias, destaque no cenário local e envolvimento com a festa Monamu, além de que, todas são jovens, pertencentes ao que venho chamar da geração de drags pósmodernas. Todas são conhecidas por mim, o que muito facilitou se sentirem a vontade às questões levantadas e a confiança estabelecida entre a pesquisadora e elas. Aqui apresento um breve perfil de cada uma. Envy Hoax: “mother monster” das drags recifenses

Magra, alta, quase sempre ruiva, unhas longas sempre pintadas, olhos levemente sonolentos e voz branda: Envy Hoax é contida, segura o ―carão‖ na balada e parece nunca perder o controle do que está fazendo. Alexandre Gonçalves, o publicitário de 22 anos que dá vida à Envy, poderia ser descrito quase que da mesma maneira. A linha entre criador e criatura é quase inexistente e ele/ela faz questão de deixar isso claro: Envy sempre existiu, mesmo que em sua cabeça. Ela é sua plataforma para se expressar artisticamente e sem

75

limites. Tem uma variação de interpretações, podendo ir de uma supermodel feminina ao bizarro. Por ser uma das drags mais conhecidas no cenário de Recife da nova geração, tem como característica ser aglutinadora e chamada – às vezes ironicamente – de ―mãe‖ da cena, por incentivar e valorizar as participações das iniciantes. Fã da cantora americana Lady Gaga, muitos brincam com esta similitude com o público, por isso, como a artista pop internacional, também é conhecida carinhosamente como a ―mother monster‖.

Fig. 16. Considerada por muitos uma drag ―enjoada‖ e fechada, Envy Hoax é a persona artística do publicitário Alexandre Gonçalves. Foto: Fernando Cysneiros.

Quando começou a assistir o programa de RuPaul, através do Netflix, Alexandre se apaixonou pela forma criativa da transformação que a drag proporcionava. ―Você usar cores e produtos para transformar e criar uma coisa completamente nova no seu rosto... Isso me fascinou e a partir disso eu senti vontade de começar a me montar,‖ explica. Influenciado pelo reality show ele resolveu colocar Envy nas ruas no começo de 2014, em uma edição da festa Maledita e relembra que foi tudo na base do improviso, com roupa emprestada de uma amiga e peruca de 10 reais do centro da cidade, mas se sentindo uma verdadeira diva. ―Fui com roupa emprestada e me sentindo o máximo sabe? Só com uns cílios e um lápis de olho preto

76

na cara, nem base tinha direito, nada. Mas foi incrível e a partir disso eu já fui deslanchando pro resto,‖ relembra. Dentro da cena drag recifense, a atitude blasé e o ―carão‖ de Envy Hoax lhe rendeu a fama de chata, abusada e esnobe, mas não é isso o que sinto quando me sento com ela – com Alexandre, para ser mais específica – para conversar sobre sua arte. A partir da minha experiência como drag queen dentro da cena de Recife percebo que, às vezes Envy, pode parecer inalcançável para quem a encontra na festa, já que seu comportamento não se assemelha aos das drags mais desinibidas e espalhafatosas. Alexandre conta que por ser míope e usar lentes de contato sem grau enquanto montado tem dificuldade em reconhecer rostos de longe e isso somado à sua timidez em interagir com desconhecidos faz com que ele receba mensagens dizendo que ―ignorou‖ alguém nas festas. ―Mas nunca de propósito‖, ri. A verdade é que o carão é parte da personagem. Envy faz o tipo supermodelo, maquiagem impecável, nunca vista com o ―batom esfumado‖, como chamamos quando as drags beijam de batom, no fim da festa. Apesar de poder ser descritas com inúmeros adjetivos que exaltem o quanto Envy parece sempre estar ―polida‖ e, na linguagem drag, fishy, Alexandre ressalta que não gosta de se prender aos rótulos: ―Eu sempre busquei me transformar demais e nunca ficar estagnado numa coisa sabe? Então eu realmente sempre busquei me desafiar e eu sempre acreditei que eu tenho uma alma muito camaleoa. Se a pessoa tá acostumado a me ver fazer uma maquiagem extremamente ―feminina‖ e bem clean, quando as pessoas estão acostumadas com aquilo eu já penso em fazer uma coisa totalmente diferente disso, totalmente o oposto.‖ Ao que me parece, Alexandre é extremamente dedicado no que se propõe a fazer artisticamente com Envy e por levar a sério sua drag, sem perder o foco, possa parecer ―profissional demais‖ para as drags mais novas na cena, se é que tal coisa exista. Apesar disso, Envy continua como um hobby, mais do que uma profissão fixa para ele. ―Eu levo a drag como um hobby, como uma extensão do que eu gosto de fazer que é trabalhar como o gráfico,‖ conta.

Karma Mahatma: girl power Maria Eduarda – ou como é chamada pelos amigos, Madu – é extremamente tímida, mas transformou seu corpo na morada de Karma Mahatma, que não poderia ser mais diferente de quem Madu é. Karma não tem medo de ser ousada, gosta de mostrar o corpo e abusar das cores e do glitter na maquiagem e do delineador, sua marca registrada dentro da cena drag

77

recifense. Mas, o que levou Madu, quando tinha apenas 19 anos, dar vida a uma persona tão diferente de si mesma?

Fig. 17. Karma Mahatma é tudo que Madu não é no seu cotidiano, e isso a ajuda a se empoderar e quebrar padrões de gênero e de beleza. Foto: Fernando Cysneiros.

Karma nasceu oficialmente em outubro de 2015, depois de um encontro inesperado de Madu com um amigo da época da escola em uma festa com uma das drag queens de RuPaul na Maledita, em Recife. Feminista convicta, Madu explica que Karma surgiu como uma forma de auto-empoderamento da sua feminilidade e ―porque na época não tinha nenhuma drag mulher em Recife, então foi meio que uma ideia revolucionária de começar a quebrar esses padrões, a desconstruir e começar realmente a fazer arte com meu corpo e quebrar esses padrões de que só pode ser drag quem for homem‖ – além de ter sido incentivada pelo encantamento que ela tinha com o universo drag queen através do reality ―RuPaul‘s Drag Race‖. ―Eu busco representar algo novo e através da militância trazer o feminismo para dentro da cena e desconstruir o pensamento das pessoas real, porque eu acho que tá mais do que na

78

hora da gente se desprender de padrão, de tudo isso, de todas essas coisas que só fazem atrasar a gente sabe?‖, explica. Como mulher cisgênero, Madu tem uma abordagem diferente sobre a arte drag do que geralmente é visto na cena. Para ela ser drag é parte de um processo de desconstrução, de resistência dos corpos e de representatividade. Por mais que as drag queens estejam inscritas no contexto da comunidade LGBTQIA, suas performances são geralmente exclusivamente destinadas ao público composto por homens homossexuais, excluindo aí as mulheres lésbicas, transexuais e uma gama infinita de identidades de gênero. Hoje, Madu se define como pansexual, ou seja, alguém que pode sentir atração por qualquer gênero. Mas nem sempre foi assim, apesar dela ter sempre percebido ser ―diferente‖, pelos 13 ou 14 anos, quando passou a sentir atração também por meninas e não entender o que aquilo significava. Neste ponto, viver como Karma ajudou Madu a se libertar e se encontrar sexualmente, apesar de deixar claro que se definir como pansexual não é algo que lhe agrade, pois ainda acha limitante tentar enquadrar a forma de amar e o sexo em caixas. ―Eu não gosto muito dessa caixinha, eu saio do meio e tendo boca vamos beijar,‖ comenta rindo.

Mia Rhomba: a puta que ri Conhecida por ostentar looks que vão desde o extremo feminino burlesco até visuais conceituais livres de gênero, piadista, caricata, intelectual e sensata. Rumores também apontam que Mia Rhomba costuma se envolver com o mundo das drogas e prostituição, além de ser aspirante a DJ e sexóloga nas horas vagas. Mia Rhomba personifica uma mulher bem resolvida e que parece estar sempre de bom-humor, mas é tudo ficção e parte da persona criada por Oscar Cavalcanti, que na verdade não trabalha com prostituição nenhuma: quando não está dando vida à Mia, ele é analista de importação. Oscar tem 24 anos e é drag queen oficialmente desde julho de 2015, mas desde antes se montava nos carnavais recifenses com um de seus amigos, Pedro, que também faz drag. ―A gente sempre se montava nas virgens e pegava vários boys. Eu amava. No primeiro ano eu não tinha nome, no segundo ano meu nome era Matilda e a minha profissão era derrubar os espetinhos com o meu cabelo,‖ explica.

79

Fig. 18. Mia Rhomba é conhecida pelo seu bom humor e irreverência dentro da cena recifense. Foto: Fernando Cysneiros.

Oscar morava na China e já assistia ―RuPaul‘s Drag Race‖ quando percebeu o movimento da cena drag em Recife. Incentivado por seu amigo Pedro, ou melhor, a drag Miu Miu, resolveu colocar Mia Rhomba na noite assim que voltou à cidade. O seu début na noite, entretanto, foi marcado por alguns atropelos e quase não aconteceu: o sapato que Mia deveria usar não cabia no pé, já que Oscar calça 44. ―Eu fiquei muito triste porque eu não tinha levado nenhum sapatinho mais afeminadinho assim que pudesse caber no meu look, não tinha rolado aquela proposta porque eu só tinha ido de sandália e não ia dar,‖ comenta. E como um bom virginiano ele quase desistiu da saída por causa do contratempo, mas depois mudou de ideia e decidiu que iria sair, mas não para qualquer balada: tinha que ir para a boate MKB, porque segundo ele ninguém o conhecia lá. ―Aí como foi que eu fui? Eu botei uma cortina, a gente rasgou uma cortina que virou minha saia e eu fui pra balada com uma Crocs branca. A minha saia tava amarrada com uma fita durex. Eu me achei igual uma Patrícia Poeta nesse dia. Eu não fiquei pra baixo, gata! Só quando minha saia rasgou um pouquinho eu disse ‗amiga, tá na hora da gente ir‘,‖ relembra rindo.

80

Mia Rhomba é carismática e bem-humorada, com uma personalidade cativante que encanta as pessoas por onde passa e abriu as portas para uma mudança na vida de Oscar, que até então trabalhava apenas na sua área de formação acadêmica. A partir de Mia, Oscar percebeu desabrochar um desejo antigo, mas que nunca havia encontrado a forma apropriada para colocar pra fora: o de trabalhar com música. ―Eu sou extremamente apaixonado por música, minha família inteira é de músicos, só que eu não me encaixava na minha família. Eu tinha um desejo musical que não me encaixava,‖ explica. Até que ele entendeu que seu lado musical não estava em nenhum instrumento ou no vocal – ele tentou tocar piano e odiou –, mas em ser DJ. ―Hoje eu não me considero DJ ainda, eu estou estudando para isso, eu realmente fui fazer um curso porque eu gosto muito da coisa da música e eu quero entrar nessa área. E eu gosto muito da drag porque é uma plataforma que me deixa próximo disso‖.

Dahlia Mayfair: a diaba do bem Com muito sangue, chifres de diabo e um visual que remete a rituais satânicos, Dahlia Mayfair é a drag queen que transforma a cidade de Recife no verdadeiro ―Hellcife 53‖. Dahlia é hiperativa, gosta de conversar e fazer referências religiosas de forma irônica e cômica. ―Eu me inspirei, acho que de uma forma meio negativa, em mim e no meu contexto familiar que é muito religioso. E eu queria fugir disso por motivos pessoais, pelo que a religião representou na minha vida e tudo, eu quis a partir de uma coisa drástica transformar isso em arte,‖ explica de onde vem à inspiração para sua persona. Apesar das conotações satanistas e de se definir como ―filha de satanás‖, a personalidade de Dahlia e de Daniel Cardoso, o professor de inglês de 23 anos que está por trás dessa criatura da noite, não é nem de longe demoníaca no sentindo negativo da palavra. ―Porque demônio? Eu poderia ter simplesmente dito que minha drag não era religiosa, mas eu disse minha drag é filha de satanás. Era pra quebrar, pra chamar atenção sabe? Que ao mesmo tempo, juntando com a minha personalidade, com o que eu tento passar de energia positiva pro mundo, era meio que tipo, não é religião que vai fazer uma drag ser incrível.‖

53

―Hellcife‖ é um trocadilho comum feito com a sonoridade da palavra e o calor da cidade. ―Hell‖, em inglês, significa inferno.

81

Fig. 19. Dahlia Mayfair só sai s for para ―chocar‖ com suas montações macabras. Foto: Fernando Cysneiros.

Uma das coisas mais marcantes sobre Dahlia é que por trazer referências que fogem dos estereótipos do que é convencionalmente descrito como feminino, quando está montado Daniel não sente que está representando nem homem nem mulher, mas um ser que pode ser os dois ou nenhum deles. Daniel é formado em artes visuais e tenta colocar nessa criatura quase mitológico que é Dahlia todas as referências visuais que ele se sente de alguma forma atraído. ―Eu tento colocar o que tem dentro para fora. O que eu sinto, o que eu recebo do mundo de imput visual, de coisas que eu vejo na rua, de outros artistas, eu acabo juntando tudo numa caixinha dentro de mim, dentro da minha cabeça, e as vezes que Dahlia sai na rua ou nas festas são pedaços dessas coisas que estão dentro da minha cabeça,‖ explica. Sempre muito irreverente, algo que também ajudou Dahlia a se tornar conhecida na cena de Recife por ser uma das drag-repórteres do canal do YouTube DRAGR TV54 durante 54

O DRAGR TV é um canal de entretenimento voltado para o público drag queen local. O canal realiza cobertura de festas que acontecem na cidade nas quais as drags são as repórteres e entrevistam o público e outras drags, além de apresentar quadros com drags em específico e entrevistar as drags queens internacionais que fazem

82

as coberturas das festas que acontecem na cidade e pelo seu recém-estreado quadro ―Dahlia Tenta‖. A carreira de ―drag-repórter‖ parece ser algo que encaixa com a personalidade de Dahlia, que apesar de parecer assustadora e macabra, é alguém que tem facilidade em se comunicar com o público. Nas festas, suas entrevistas sempre fazem sucesso e o público parece deslumbrado pelo ―ser místico‖ e sem limites que Daniel incorpora. E o encantamento gerado por Dahlia não se restringe a sua cidade: ela já viajou para João Pessoa (PB) e Natal (RN), contratada para fazer cobertura de festas junto com o canal DRAGR TV. Apesar do sucesso, Daniel afirma que a drag não é sua principal fonte de renda, explicando que o que ganha como Dahlia é todo usado para investir em novas montações, enquanto seus trabalhos de professor de inglês e fotógrafo freelancer são seu sustento. ―o que eu ganhar é lucro. Eu vou tá me expressando, eu vou tá vendo pessoas que eu gosto, eu vou tá super feliz e ainda vou tá ganhando dinheiro,‖ explica.

(Des)montando: analisando o discurso das drag queers Quando sentei para conversar com essas quatro drag queens recifenses sobre suas vivências, pude perceber que apesar de estarem circunscritas em uma mesma cena artística e serem da mesma faixa etária (entre 20 e 25 anos), cada uma delas possuíam opiniões e apontamentos diversificados sobre os mesmos temas abordados nas entrevistas. Entretanto, uma constante em todos os discursos delas – e que a partir da minha própria convivência com outras drag queens da ―nova cena‖ posso falar que é algo que se estende coletivamente e tende a ser unanimidade – é a do discurso militante que todas parecem embasar sua arte. Muito mais do que um ―close‖, a drag se tornou artifício de empoderamento e auto-afirmação para a geração atual, que resgatou o discurso político da drag queen e trouxe para dentro da comunidade LGBTQIA uma nova onda de militância embasada na desconstrução das performances de gênero e sexualidade. Para esta geração, ser drag, hoje, é sinônimo de se libertar das amarras da sociedade que oprime a mulher, o gay, a lésbica, o negro e essa mensagem é fortemente difundida através das apresentações e das montações das próprias drags, que buscam rir e parodiar de todas as formas de tradições conservadoras as quais somos impostos socialmente.

show na cidade. No ar desde 2014, várias drags já trabalharam como repórteres ou tiveram quadros de humor no canal, entretando hoje o time é formado por Alexia Tarantino, Dahlia Mayfair, Condessa Cabalista, Mia Rhomba e Lara Beckney. Disponível em: . Acesso em 31 out. 2016.

83

É possível, portanto, analisar um determinado empoderamento que cresce gradualmente, e que já se mostra em partes da cultura drag no Brasil. É claro que devemos notar que a discursividade da série coloca a aceitação a partir de, paradoxalmente, uma prescrição da autenticidade, o que deve ser criticado e levado a peso de análise. No entanto, é inegável a consequência, intencional ou não, de identificação que a série gera, especialmente se levarmos em consideração uma sociedade que valoriza a originalidade ou autenticidade enquanto ética da personalidade. Muitas drags agora se montam e se mostram em locais públicos, vivenciando uma maior aceitação num contexto menos apartado. E não se trata somente da aceitação de outrem, pois por vezes é difícil aceitar a si próprio, e esse fato é destacado e incentivado às drags participantes do reality. Em uma de suas letras mais famosas, como já colocado aqui, RuPaul diz ―if you can’t love yourself, how in the hell you gonna love somebody else?‖ (se você não ama a si próprio, como diabos vai amar outra pessoa?). (CANEDO et. al, 2011, p. 8)

A seguir analiso as conversas que tive com as quatro drags escolhidas para esta pesquisa a partir de quatro eixos: arte drag, a influência do programa de RuPaul na cena, as vivências de gênero e sexualidade e, os relacionamentos intergeracionais das drags. Meu objetivo se dá na busca de compreender as (des)construções identitárias na pós-modernidade e como o consumo midiático da figura da drag queen afetam essas percepções e vivências. 1. “We’re all born naked and the rest is drag”: a arte drag

Definir o que é ser drag não é fácil, ainda mais quando estamos inseridos em um contexto repleto de ambivalências identitárias. Especialmente no que concerne ao Brasil, a drag queen foi associada à figura da travesti, uma identidade de gênero ambígua e ainda pouco compreendida pela sociedade em geral. Em tentativas de explicar e elucidar um único conceito para o ser drag recaímos em contradições, já que ao mesmo tempo que buscamos explicitar que a drag não é uma identidade de gênero, ainda nos pegamos reduzindo-a ao ato de ―se transformar em mulher‖. Nesta perspectiva, não seria a drag uma forma de travestismo também? Porém, a travesti é uma forma limitadora de conceituar tudo que parece entrar, hoje, no conceito de drag. Na tentativa de diferenciar a travesti da drag queen, Vencato (2002) explica que em sua pesquisa de campo realizada em Santa Catarina lhe foi apresentado um conceito de que a travesti seria uma figura ―mais mulher‖ do que a drag queen, já que a primeira está associada a características de feminilidade que perpassam o discurso biológico. Essa observação foi feita a partir de uma situação em que a pesquisadora perguntou a um homem sobre uma travesti que seria sua amiga.

84

Ele respondeu-me ―Não tenho falado muito com ela, ela anda meio estranha, meio irritada... Sabe como é travesti, né? Elas tomam aqueles hormônios e ficam meio loucas...‖. Essa fala me fez pensar um pouco que o fato do corpo da travesti estar sendo modificado no sentido masculino → feminino pode ser suficiente para dar a ela uma atribuição de feminilidade, principalmente porque o fato da travesti estar tomando hormônios femininos justifica que ela tenha um comportamento mais agressivo, beirando o fora do controle, assim como à mulher são dados esses atributos na fase pré-menstrual, sendo os responsáveis também por tal comportamento os hormônios. (VENCATO, 2002, p. 13)

Vencato (2002) também observa que esse discurso poderia abrir espaço para um embate entre esses sujeitos em busca da feminilidade, mas, assim como eu observei no território pesquisado, não existe ou se existe não foi expresso pelas drag queens entrevistadas ou observado em minha experiência em campo. Ao contrário do que podemos presumir, travestis e drag queens convivem entre si dentro da cena noturna de Recife, tanto quanto público diverso quanto como profissionais (DJs, performers, etc.). ―Nas entrevistas que realizei, todas as drags disseram que uma drag não quer se parecer com uma mulher pois, caso se parecesse, não seria uma drag e sim, uma travesti. [...] É difícil encontrar na literatura sobre o assunto uma definição objetiva do que seja uma travesti. De qualquer modo, é possível, nessa literatura, levantar alguns traços que os caracterizem. De acordo com travestis, sujeitos da pesquisa de Silva (1993), ―... travesti não é quem se veste de mulher, é quem toma hormônio e silicone‖ (p. 117), mesmo que não seja somente isso que produza o feminino (p.95). A produção do feminino seria um processo contínuo, uma luta cotidiana contra os traços/excessos masculinos, que sempre ―dão um jeito de aparecer‖. (ibidem, p. 13-14)

A maneira que encontramos para evitar essas ambiguidades conceituais é em elevar a drag ao status de arte e parece que é neste campo que a drag potencializa a figura de liberdade que realmente representa, em vez de estar aprisionada em conceitos fixos como identidade de gênero. A drag abre suas asas e alça voos como expressão artística e é neste aspecto mais extravagante da arte de ser drag que se debruçam minhas personagens. Para Envy Hoax, ser drag queen é rir da ideia da existência de um gênero único e verdadeiro. ―É você tentar quebrar os estereótipos e dizer que gênero não é nada disso [que as pessoas pensam], gênero é o que eu quiser ser, gênero é transitório. É usar coisas extremamente exageradas e quebrar todas essas coisas que a sociedade impõe‖, explica. A visão de Envy vai de encontro ao que explica Lopes Louro (2013, p. 89) sobre a capacidade da drag em nos fazer questionar a autenticidade de gênero e sexualidade: ―A drag queen repete e subverte o feminino, utilizando e salientando os códigos culturais que marcam esse gênero. Ao jogar e brincar com esses códigos, ao exagerá-los e exaltá-los, ela leva a perceber sua não naturalidade.‖ Dahlia Mayfair compartilha da opinião de Envy, acrescentando que a

85

drag é, antes de tudo, um ato político e libertador social. Ela observa ainda que quando está montada não se sente homem ou mulher justamente por estar ―longe de todas as regras atribuídas ao seu gênero‖. Lopes Louro (2013, p. 88) dilucida sobre o papel crítico da drag enquanto vitrine dos padrões de gênero:

O que faz pode ser compreendido como uma paródia de gênero: ela imita e exagera, aproxima-se, legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia. Na pós-modernidade, a paródia se constitui não somente numa possibilidade estética recorrente, mas na forma mais efetiva de crítica, na medida em que implica, paradoxalmente, a identificação e o distanciamento em relação ao objeto ou ao sujeito parodiado.

Por ter essa característica ambígua em relação ao gênero, a drag pode dar margem a interpretações dos mais diversos tipos. Fagner dos Santos (2011, p. 72) explica que ―ao se montarem, as drag queens atribuem um sentido metafórico ao seu corpo‖ e dessa forma passa a vivenciar um ―ser/estar masculino/feminino ao mesmo tempo, dividindo o mesmo corpo‖. Esse caráter híbrido, entretanto, vai além da transformação corporal: ―A identidade do performista passa pelo mesmo processo, ao mesmo tempo em que a identidade do personagem vai se incorporando e se apropriando de voz e códigos gestuais que, embora performativos, podem definir uma relação com o seu intérprete‖. (ibidem, p. 72). Essas assimilações identitárias e culturais aparecem das mais diversas formas nos sujeitos que são drag queens. No caso de Karma Mahatma, a quem Maria Eduarda considera uma terceira pessoa – ela conta que depois de começar a se montar passou a incorporar gírias e modos de falar típicos do ―mundo drag‖ e pesar mais na maquiagem diária, mas que a maior mudança foi em relação ao seu comportamento diante situações cotidianas e na sua militância como feminista. ―Karma trouxe muita coisa maravilhosa pra mim e eu levo isso pra minha vida sabe? O modo de me portar na sociedade e nas coisas que eu penso, em questão de militância que eu aprendi com ela, eu levo tudo pra minha vida,‖ explica. Assim como Karma, muitas drags queens assumem que suas personas artísticas diferem completamente de quem são na ―vida real‖. Mia Rhomba, entretanto, ressalta que isso pode dar margem à compartimentalização dos comportamentos, como se a drag e o eu fossem pessoas autônomas distintas. Ela explica que algumas drags colocam a culpa de suas atitudes na persona drag. ―Isso foi um conflito que a minha psicóloga colocou em mim. Ela disse: você e a sua drag são duas personalidades separadas? Primeiro eu disse que sim e ela respondeu: e se ela fizer alguma coisa, quem vai ser responsabilizar é ela? Ela tem onde ser

86

cobrada?,‖ explica Mia. ―Foi aí que eu percebi que somos ainda a pessoa que somos mesmo montados. E a drag é você externando sua arte,‖ conclui. 2. “You better work”: influência de “RuPaul’s Drag Race” na cena drag

“Eu, RuPaul, nasci uma criança negra e pobre no conjunto de casas populares em San Diego, Califórnia. Mas baby, é melhor você arrasar55! Olhe para mim agora!‖, anuncia RuPaul nos primeiros segundos do primeiro episódio do seu reality show enquanto fotos da sua infância passam na tela. O hit musical ―Supermodel (You Better Work)‖ começa a tocar, imagens de RuPaul, agora uma drag queen loira, alta e que está em capas de revistas aparecem e a voz anuncia: ―Como a original supermodelo do mundo todos os meus sonhos se tornaram realidade e agora é hora de dividir o amor.‖ É dessa forma que a drag queen veterana apresenta, pela primeira vez, seu programa de TV focado na busca da próxima drag superestrela. Foi assim também que RuPaul catapultou uma geração para o mundo drag. Quando ela anuncia, no começo da segunda temporada do reality que há novas garotas glamorosas na cidade ao começar a apresentar as novas drags queens que irão competir pelo prêmio, RuPaul poderia muito bem estar fazendo alusão ao nascimento de novas drag queens por todo o mundo por sua causa. ―Ele popularizou o babado né?‖, Mia Rhomba me indaga de volta quando a questionei sobre a influência de RuPaul na cena drag recifense. ―Querendo ou não voltou a ser rentável até certo ponto a drag por causa de RuPaul, porque ele colocou na mídia‖, explica Envy sobre a mesma questão. Uma das hipóteses que trabalho nesta pesquisa é a da expansão da cena drag a partir da notabilidade que a drag queen ganhou através da popularização do reality show comandado por RuPaul. Antes guetificada, restrita aos espaços marginalizados de socialização dentro da comunidade LGBTQIA, a figura da drag queen foi resignificada. ―RuPaul‘s Drag Race‖, com ares de requinte e luxo próprios do mundo das supermodelos e celebridades, ―redimensiona a construção de subjetividades em torno da dita estética camp e reapropria seu quê de subversão política, fazendo das drags, parte da rentável indústria do mainstream‖ (CANEDO et. al, 2015, p. 2).

Diferente do documentário Paris is burning, que mostra o brilho das drags na guetificada cena nova-iorquina do final dos anos 80 em contraponto com a violência e a marginalização externa, RuPaul propõe, por meio do estrelato e de 55

Da gíria inglesa, comum entre as drag queens, ―you better work‖. RuPaul usa a frase na música ―Supermodel (You Better Work), de 1992, e ela é repetida durante o programa em diversas situações.

87

suas adaptações conceituais no camp, redimensionar o valor não apenas da identidade drag, como também da profissão. O transformismo ganha mais hipermontagem, mais hiper-feminismos e mais hiper-glamour, numa estetização máxima do kitsch e do trash. (CANEDO et. al, p. 3)

As consequências da popularização do programa são vistas diariamente em Recife, onde ser drag se tornou cool e oportunidade de ganhar, mesmo que pouco, algum dinheiro com uma expressão artística. ―Com as viagens das RuGirls a gente tem essa oportunidade de trabalhar porque os produtores viram que era um potencial agora e eles começaram a dar valor, espero que comecem, às drags locais,‖ Envy reflete. Após a massificação do programa dentro do seu público específico, a quantidade de drags ativas na cena se tornou algo que até o IBGE teria dificuldade de mesurar: todos os dias, em todas as festas, nascem e morrem drag queens. O que estas têm de diferentes? Para Mia Rhomba o programa humanizou a drag queen, a tornou algo do cotidiano e acessível para qualquer pessoa que quisesse se montar. ―Antes era algo mantido separado. Com a humanização veio o entendimento de drag como arte e das diversas formas que ela pode assumir‖, explica. Karma também ressalta como uma das principais mudanças pós-RuPaul ser a diversificação no estilo das drags, extinguindo ―regras‖ de como deve ser uma drag queen. ―Eu acho que o que mais mudou foi os vários estilos diferentes que o programa apresentou e que atualmente é tudo misturado, não tem uma definição hoje, real, do que é ser drag. De como eu tenho que me vestir, de como eu tenho que me portar, se eu uso salto, se eu não uso, se eu não usar peruca se isso vai interferir em alguma coisa, ou se eu não uso salto eu serei menos drag do uma drag que usa salto‖, complementa. Dahlia observa outra variante importante que a fama do programa agregou à cena drag: a idade das drag queens – elas estão cada vez mais novas – e as diferentes classes sociais que emergem essas artistas. ―Tem drags muito mais jovens começando porque é o tipo de mídia que eles são expostos, porque atualmente a gente vê muita série no computador, muita coisa no YouTube. [...] Em Recife eu vejo muito drags de todas as classes sociais e eu acho fantástico. Drag é uma coisa que aqui era muito associado a quem não tinha instrução, só quem não tinha um trabalho fixo... Era visto como uma coisa muito ruim, uma coisa pouca. [Agora] Tem gente de todo tipo. A diversidade tá sendo incrível ultimamente‖, comenta. ―Acho que hoje em dia todo mundo é um pouco de tudo e RuPaul meio que facilitou isso, não só facilitou pra gente criar coragem pra sair montada na rua e afrontar, mas também nos estilos de drag, saber que não existe só um estilo. Existem vários estilos e até mulher pode ser drag!‖, Karma complementa e ri.

88

Apesar do aspecto positivo que as drags ressaltam sobre a influência de RuPaul na cena, algumas têm ressalvas com outros direcionamentos que o reality show traz para o meio. Envy aponta que o programa faz uma higienização do que é ser drag queen, ofertando apenas uma pequena parcela da arte drag para o público. Ao mesmo tempo em que o reality incentiva o nascimento de novas drags, também prejudica, pois, segundo ela ―tem pessoas ali que não procuram aprender mais sobre a drag [...], ter um estudo maior sobre isso e entender o que você tá fazendo parte, do movimento que você tá fazendo parte‖. Dentro das problemáticas trazidas pelo programa para a cena, Karma levanta a própria bandeira: mulheres que fazem drag queen. ―RuPaul ajudou muito, mas quem? Drags homens né?‖, fala ironicamente. ―Tou falando agora aqui do meu espaço. Me ajudou também a criar coragem no quesito arte, mas no quesito militância a gente sabe os closes errados 56 que ela deu né? Dizendo que drag mulher já tinha o próprio programa que é o Miss Universo 57. Eu achei ridículo, honestamente. Pra mim a referência não é RuPaul em si, o que ele fez foi incrível, foi, mas pra mim não acrescenta em nada porque ele demonstra ser uma pessoa que não apoia o que eu faço,‖ desabafa. Por mais que não encontre apoio de RuPaul, as mulheres que fazem drag não são excluídas da cena – apesar de Karma relatar ter visto ―caras‖ quando ela começou a sair montada, mas não especificamente de drag queens e sim do público em geral. Hoje a comunidade drag parece abraçar todas as formas de drag, independentemente do gênero de quem está por baixo da montação. ―Eu acho de um empoderamento incrível e maravilhoso você fazer drag quanto mulher sabe? Porque tipo é uma coisa muito do amar o seu corpo e amar você e fazer o que você quiser e foda-se o que a sociedade tá pensando sabe? Poder exagerar na make, exagerar em tudo que você quiser... Eu acho que é ser uma super-mulher, você entra num exponencial que você se torna muito mais segura e fazer tipo porra, vou fazer o que eu quiser e botar isso pra fora e me tornar forma mais exagerada e caricata do que eu quero ser sobre mulher sabe?‖, reflete Envy que tenta de todas as maneiras possíveis apoiar as drags mulheres que conhece, como Karma, eu – Maddie – e Aurora Boreal, um dos mais novos nomes da cena recifense.

56

―Close‖ é uma gíria do meio drag/LGBTQIA que pode se referir a uma atitude que chama atenção. Geralmente é utilizado como ―close certo‖ para atitudes que chamam atenção de forma positiva ou ―close errado‖ para as negativas. Também pode ser usada a variante ―closeira‖ para uma pessoa que gosta de chamar muita atenção. 57 Em março de 2016 RuPaul respondeu, em sua conta pessoal no Twitter, sobre quando o reality show aceitaria participantes mulheres: ―Esse programa já existe. Se chama Miss Universo‖.

89

3. “If you can’t love yourself, how in the hell are you gonna love somebody else?”: empoderamento e vivências de gênero e sexualidade

Desde que comecei a frequentar mais ativamente as festas voltadas para o público LGBTQIA e conviver dentro do meu círculo de amigos próximos com homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis passei a perceber que vivemos um momento crucial no que diz respeito ao empoderamento dessas (e outras) minorias. O movimento começa dentro dos grupos de amigos, com ressignificações de termos que outrora foram pejorativos e do vestuário, passando para a forma de agir em sociedade e enfrentar as lutas diárias. Pensar coletivamente abre espaço para o debate sobre as opressões e limitações que esses grupos sofrem e o discurso mais comum é a indignação de ter que sofrer apenas por existir. O que chamamos de militantes, sejam eles do movimento homossexual, negro ou feminista, nascem do ímpeto de findar as diferenças sociais e extinguir o sentimento de vergonha de ser quem é. Essas pessoas estão ávidas para ajudar seus semelhantes e retirá-los da sombra social que os persegue constantemente. Como fazem isso? Muitos podem chamar de ―ativismo de sofá‖, mas no último ano vemos o movimento pelos direitos humanos crescendo no ambiente online das redes sociais, onde o espaço não é (geralmente) pago e todos são livres para expressar suas opiniões, além de propiciar debates não apenas dentro do seu círculo de amigos. Se nos tornamos conhecidos como a geração que reclama demais ou que não sabe ouvir uma piada depreciativa sobre negros, gays ou mulheres sem tomar como ofensa é porque decidimos agir contra o conservadorismo e escancarar o preconceito contra o diferente. Não toleramos mais racismo, homofobia ou misoginia e não é porque ―sempre existiu‖ que deva continuar. Esse é um discurso que transborda as barreiras do que me proponho a analisar neste trabalho, mas a drag queen é uma das ferramentas que essa geração encontrou para denunciar abusos e preconceitos velados. A drag queen pós-moderna, querendo ou não, está imersa no discurso da sua geração e ela parece já nascer politizada. Extremamente influenciadas pela cultura pop58, as novas drag queens são empoderadas e ―se montam e se mostram em locais 58

Estamos vendo crescer nos últimos anos o debate sobre empoderamento dentro das mídias que constituem o que chamamos de cultura pop: música, cinema, televisão, literatura e teatro. Refletindo um desejo da geração que mais consome essas mídias (ou até mesmo pautando e implantando nessas pessoas a necessidade desses debates), os sujeitos participantes das indústrias que fabricam o que é pop endossam um discurso de inclusão e empoderamento. Como exemplo é possível citar o caso das atrizes de cinema de Hollywood que se uniram para denunciar a diferença salarial entre elas e os homens atores quando realizando o mesmo trabalho nas produções cinematográficas. Essas denúncias pressionam a indústria que é cada vez mais cobrada para igualar os salários e apresentar personagens femininas complexas nas suas produções, entre outros aspectos. Uma jovem atriz de visibilidade como Emma Watson é embaixadora da Boa Vontade na ONU Mulheres e grandes atrizes como

90

públicos, vivenciando uma maior aceitação num contexto menos apartado. E não se trata somente da aceitação de outrem, pois por vezes é difícil aceitar a si próprio, e esse fato é destacado e incentivado às drags participantes do reality.‖ (CANEDO et. al, 2015, p. 8). Nesta perspectiva, ―RuPaul‘s Drag Race‖ como parte da cultura pop também tem poder de influência sob seu público, especialmente no que concerne às expressões de gênero e sexualidade. O programa pode ser visto apenas como forma de entretenimento, mas também propaga uma mensagem de aceitação e libertação das amarras sociais quando toca em temas sobre transsexualidade, masculinidade e doenças sexualmente transmissíveis, permitindo que esses temas sejam pautados no cotidiano. A relevância de RuPaul enquanto performer/celebridade contribui para que as drags tenham mais visibilidade, política, inclusive. Mesmo estando em uma competição, elas demonstram que enquanto classe é importante que se unam à frente do preconceito e se estabeleçam como um setor de entretenimento importante tanto culturalmente como em termos mercadológicos. Ademais, o programa de ―mamma Ru‖ -apelido carinhoso dado pelos fãs à RuPaul-contribui para o empoderamento individual das telespectadoras mulheres ao melhor estilo ―girl power‖. (ibidem, p. 8)

No caso das drag queens dessa pesquisa, todas apontaram para uma desconstrução das concepções que tinham sobre gênero e sexualidade após entrarem em contato com a arte drag. Mia Rhomba conta que depois de começar a se montar passou a conviver com diferentes realidades, principalmente com pessoas transexuais, que ela não tinha contato antes, fazendo com que ela repensasse o conceito de gênero. ―Muitas barreiras foram quebradas, principalmente pelo fato da gente se colocar do lado de lá e agora os dois mundos estarem meio que se misturando, mas também porque a gente entra em contato com diversas realidades, outras pessoas que a gente conhece na noite faz a gente repensar gênero em todas as instâncias. Você realmente se pergunta se existe realmente gênero de verdade ou se é só uma construção social. Até que ponto a gente vai estender essa definição? Se você me perguntar hoje eu digo bicha, acaba com essa conversa, tchau gênero, vamos todo mundo ser o que a gente quer,‖ explica Mia. Enquanto homens gays, Oscar (Mia), Daniel (Dahlia) e Alexandre (Envy) me contam que mesmo antes de ser drag já tinham sua sexualidade definida, mas o que aconteceu após a drag foi que eles se abriram para novas configurações de relacionamentos, não significando que deixaram de ser gays. Daniel explica que suas novas percepções do que é ser homem ou Meryl Streep, Mila Kunis e Viola Davis denunciam machismo e racismo dentro da indústria hollywoodiana. Esses nomes são ícones pop para a nossa geração e por endossar determinados discursos se tornam também ícones de militância. Elas ensinam a não baixar a cabeça, enfrentar e denunciar os abusos e nós tendemos a replicar esse comportamento.

91

mulher afetou a forma como ela escolhe com quem namorar. ―Eu me atraio por pessoas do sexo masculino, mas eu acho que de certa forma abriu a minha cabeça pra o que eu enxergo como sexo masculino. Eu tinha na minha cabeça bem padrãozinha de ser sexo masculino e isso me frustrava porque eu não me encaixo nesse padrão,‖ comenta. ―Eu acho que eu continuo gay, homossexual, mas eu diria que isso engloba mais pessoas agora. Eu olho muito menos como a pessoa tá vestida, se a pessoa tá usando isso ou aquilo... E ao mesmo tempo me fez me sentir muito mais atraído por pessoas muito mais desconstruídas, por pessoas que respeitam mais, por pessoas que pensam seu privilégio, por pessoas que entendem ou que pelo menos buscam entender, que tem esse esforço. Em termos de sexualidade eu continuo homossexual, mas aberto a novas possibilidades. Isso só me deu mais opções de pessoas, vários tipos de pessoas,‖ revela. Já Karma me conta que antes de começar a drag ela sequer pensava sobre as questões de gênero e desconstrução, apesar de sempre ter se considerado uma pessoa ―mente aberta‖. ―Quando eu comecei a me montar eu fui abrindo os olhos para perceber que existem um universo de pessoas que se identificam de n maneiras diferentes e que não cabe a mim querer interferir nisso. Cabe a mim respeitar as pessoas pelo que elas são, então ser drag me ajudou muito nisso, de desconstruir meu próprio gênero também, de quando eu tou montada, e de abrir os olhos para pra perceber que tem um universo de gente aí e todo mundo só tá tentando ser quem eles são,‖ explica. Quando perguntei sobre sua sexualidade, Karma explica que sempre se sentiu ―diferente‖, mas que foi o meio drag que a fez se descobrir e experimentar novas formas de relacionamentos e não apenas o heterossexual ou homossexual. Se houver necessidade de se encaixar em algum rótulo, hoje, ela se descreveria como pansexual. ―É trazer a desconstrução também para a maneira de amar sabe? Eu não me atraio pela parte íntima que a pessoa tem, pra mim isso é o que menos importa até porque eu vejo muito mais do que isso,‖ conclui. Além da desconstrução de gênero mudar a forma de se relacionar com outras pessoas, ela também muda outros aspectos da vida das drags. Envy, por exemplo, conta que passou a dar menos importância ao ―gênero‖ da roupa que está vestindo. ―Você vai percebendo que mesmo nas roupas e na vaidade que vai aumentando para você se arrumar sabe? Tipo, ah, vou usar esse look aqui que eu uso na minha drag pra ir ali trabalhar, pra ir ali comprar umas coisas na padaria, pra ir passear... Tipo hoje eu não me importo mais com as roupas que eu uso se tão ditando como ser masculino ou feminino. Quando eu vou nas lojas eu já tenho costume de ir na ala feminina sabe? [...] A gente conhece muita gente através da drag, em

92

cada festa é uma pessoa diferente e vivências diferentes e você vai aprendendo um pouco mais do mundo com isso,‖ reflete. 4. “Category is…”: old school

Quando RuPaul apresentou um novo estilo de drag e novas drag queens entraram em cena nas cidades um grupo de artistas que já existia se sentiu ameaçado, acuado e – talvez ultrajado. Quem eram aquelas novas meninas que agora brilhavam nos palcos mais prestigiados? As antigas drags estavam abandonadas, isoladas em poucos territórios onde podiam se montar: alguns bares e boates, animação de festas e concursos de beleza gay, como o Top Drag e Miss Beleza Gay. Em Recife, as drags que fazem o estilo ―old school‖, com muito brilho, pedra, plumas e quase que um manual de como ser drag, são populares na boate MKB, localizada no bairro de Soledade. Diferentemente da maior parte do território das drag queens pós-modernas, na MKB toca músicas muito mais populares, como pagode e samba, em vez das divas da música pop. Claro que tem sempre um hit ou outro de Britney ou Beyoncé saindo das caixas de som, mas o que comanda a casa é a brasilidade e o bate-cabelo das drags, ou seja, performances ―normativas‖ do que se esperam de uma drag tradicional. Talvez seja nessa diferenciação estética, o bate-cabelo como principal signo dela, que esteja pautada a ―rixa‖ entre as duas tribos: hoje, para ser drag queen, não há nenhum manual a ser seguido. Enquanto as drags old school aprenderam a arte drag umas com as outras, as novatas tem nas pontas dos dedos acesso aos tutoriais de maquiagem e peruca no YouTube; enquanto as antigas precisavam bater cabelo para se destacar, estarem em cima do salto mais alto que estivesse a venda e destruir numa performance de dublagem, hoje existe drag sem salto, drag sem peruca, drag que faz a linha top model e drag que se monta com short jeans. Sai de cena a obrigação das plumas e paetês e entra a liberdade no fazer drag. É compreensível que a mudança na demanda do público tenha assustado as drags antigas. Na cabeça delas existia apenas uma forma de ser drag queen e as novas estavam fazendo errado – e ainda sim estavam se dando bem. Muito mais do que apenas birra, a divisão entre os dois estilos pode ser feita de uma maneira histórica: estamos em outra época, com novas influências e vivências diferentes. Ser drag queen voltou a estar na moda, mas ela voltou repaginada. ―A demanda original era para essas drags que estavam fazendo isso antes da gente. Eu acho que por influência de ver outras festas em outros estados e ver as drags se montando em RuPaul e entender que existe outra demanda que poderia ser suprida fez com a

93

gente fizesse isso aqui, tanto que a gente criou uma nova demanda, entendeu?,‖ me explica Mia. Por serem dois mundos distintos, entretanto, não quer dizer que não exista respeito. Envy conta que já foi algumas vezes na MKB ver as drags old school e inclusive acompanha o trabalho de alguns nomes mais proeminentes da cena. ―É maravilhoso também sabe? Você ver ali o drag de onde veio, das raízes e tudo mais, mesmo que sejam raízes diferentes e momentos diferentes, você tem umas novas perspectivas e conhece novas histórias,‖ reflete. Karma explica que essa nova demanda acontece porque depois do ‗boom‘ da cultura drag no meio LGBTQIA a partir da popularidade de ―RuPaul‘s Drag Race‖ a ideia de o que é ser uma drag queen foi desmistificado. ―A ideia era de que drag era aquela drag ―velha‖, old school, que tá nas ―festas hétero‖, geralmente, pra entreter, pra ser um palhaço. Então hoje em dia não é mais assim. O povo tá se utilizando da drag justamente pra se desconstruir e descobrir um lado diferente. Tem muita gente que se monta por close? Tem. Tem muita gente que se monta porque acha legal? Tem. Mas eu acho que cada um com seu motivo, drag é arte e é libertador,‖ finaliza.

“Sashay Away!‖: Saindo de cena

“Do you have the charisma, uniqueness, nerve and talent?” (RuPaul) “Drag is becoming more and more mainstream. You have to be marketable, and you have to be smart about it. I think being palatable definitely helps in mainstream culture. As horrible as that is to say, I think when RuPaul was doing her genderfuck thing, she didn’t have any visibility. And then she became a palatable drag queen, someone that could be accepted in mainstream media. And she hit it big.” (Violet Chachki)

95

Quando as luzes da boate acedem é sinal de que a festa chegou ao fim. Lá fora, o céu claro espera pelo público que por uma noite foi tocado pelo glamour e irreverência das drag queens. O efeito da maquiagem não é o mesmo na luz do dia e como em um estalar de dedos a maioria de nós tiramos os saltos que machucam os pés e entramos nos táxis que esperam à rua. Há um prazer distorcido por parte do público em ver uma drag queen ―desmontando‖ pela manhã na saída da boate. É como bisbilhotar a intimidade de alguém pela fechadura de uma porta e vislumbrar a fragilidade da artista, demonstra uma humanidade que até então era ―desconhecida‖ pelas pessoas da festa. Quando a drag se desmonta o público se vê nessas falhas, em uma maquiagem borrada ou no salto alto que incomoda. Em vez de quebrar o encantamento da montação, esses acontecimentos permitem um momento de identificação na mente de quem observa. É este tipo de relacionamento público  drag que o reality show ―RuPaul‘s Drag Race‖ possibilita ao televisionar não apenas a atuação da drag queen na passarela ou nos palcos, mas também os bastidores. Durante meses estive imersa na cultura drag da cidade de Recife (PE) para a realização desta pesquisa, entre ida as festa, convivência com as drags em ambientes que, a priori, não eram considerados parte do campo estudado. Conheci pessoas de todas as raças, identidades de gêneros e sexualidade, vindas dos mais diferentes panoramas sociais e cada qual com suas vivências distintas, mas no meio de toda essa diversidade existia um fator em comum: todos eram telespectadores de ―RuPaul‘s Drag Race‖. A partir dessa constatação compreendi que o programa era a porta de entrada de muitos daqueles sujeitos para o convívio com a arte drag, seja apenas como admirador ou atuando como drag queen. No curso da minha pesquisa percebi que o programa tinha se tornado mais do que um entretenimento, mas um importante vetor para subversões nas questões de gênero e sexualidade do seu público. Através das vivências de Envy Hoax, Karma Mahatma, Mia Rhomba e Dahlia Mayfair apreendi que as (des)construções de gênero e sexualidade que a comunidade LGBTQIA vivencia na pós-modernidade está fortemente pautada pela mídia a que os sujeitos são expostos. Portanto, um reality show transgressor que mostra drag queens como seres humanos passíveis de falhas e que enfrentam problemas em suas vidas pessoais, assim como nós, e não apenas como entretenimento em cima de um palco se torna ponto de partida para maiores subversões. Compreendo que nem tudo que é mostrado no programa é revolucionário para essa desconstrução que a teoria queer propõe, e muito do conteúdo apresentado ao longo dos episódios ainda pode ser interpretado como perpetuadores do sistema binário de gênero, mas as contribuições da presença das drag queens na mídia mainstream – pelo menos dentro do seu público-alvo – é inegável. Através das 10 temporadas do programa, RuPaul criou um

96

legado midiático sem precedentes, que exalta a cultura drag e possibilita que gerações atuais descubram e se encantem com as possibilidades quase que infinitas que atuar como drag queen ou conviver com esse mundo proporciona. ―RuPaul‘s Drag Race‖ é o que chamarei de jardim da infância da educação drag. A ponta do iceberg para algo maior, já que, pelas inúmeras limitações sistemáticas, – o programa está, para o bem ou para o mal, inserido no sistema do capital – uma vez encantado com o universo das drags podemos nos permitir conhecer tudo que escapa do roteiro do programa. Consciente de que a pesquisa sobre as configurações da cena drag e possibilidades da atuação como drag queen escapam os objetivos primordiais deste trabalho, proponho que outras áreas de conhecimento se debrucem em cima do mundo extasiante das drag queens e colham dessas experiências etnográficas ainda mais considerações para a compreensão das identidades de gênero e sexualidade. Reitero que todos os apontamentos feitos neste trabalho são locais e individuais, verdades que posteriormente podem ser contestadas e repensadas sob outros vieses e com outras vivências, mas que, por hora, bastam para compreender o impacto da mídia na geração pós-moderna de drag queens.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, M. L. S. R. Territorialidades: deslizamentos conceituais e tramas sonoras. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 37, 2014. Foz do Iguaçu. Anais... São Paulo: Intercom, 2014. Disponível em: < http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2014/resumos/R9-1708-1.pdf>. Acesso em: 25 maio 2016.

ALLEGRETTI, Fernanda. Amigues para Sempre. VEJA.com. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016.

ALVARENGA, M. V. T., MASSAROLO, J. C. Franquia Transmídia: O Futuro da Economia Audiovisual nas Mídias Sociais. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 33, 2010, Caxias do Sul. Anais... São Paulo, Intercom, 2010. Disponível em: < http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2010/resumos/R5-3023-1.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2016.

AMANAJÁS, I. Drag queen: um percurso histórico pela arte dos atores transformistas. Revista Belas Artes, São Paulo, n. 16, set-dez/2014. Disponível em: . Acesso em 06 out. 2016.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. CANEDO, J. et al. A Construção de Celebridades Drags a Partir de RuPaul’s Drag Race: Uma Virada do Imaginário Queer. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 38, 2010, Rio de Janeiro. Anais... São Paulo, Intercom, 2015. Disponível em: < http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-3777-1.pdf>. Acesso em: 18 out. 2016.

CASTRO, F. F. de. Temporalidade e quotidianidade do pop. In: CARREIRO, R., FERRAZ, R. SÁ, S. (Orgs.). Cultura Pop. Salvador: EDUFBA, 2015. FAGNER DOS SANTOS, J. Meu nome é ‗Híbrida‘: corpo, gênero e sexualidade na experiência drag queen. Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad, Córboba, n. 9, ano 4, agosto-novembro 2012. Disponível em: http://www.relaces.com.ar/index.php/relaces/article/view/160. Acesso em: 18 out. de 2016.

FOUCAULT, M. A Escrita de Si. In: MOTTA, M. B. Michel Foucault: política e sexualidade. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2004.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

GUARALDI, B. Canais de drag queens no YouTube vão além de tutoriais de maquiagem. Folha de São Paulo, 28/09/2016. Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2016.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.

HARAWAY, D. "Gênero" para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu, Campinas, n. 22, pp. 201-246, 2004. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/cpa/n22/n22a09.pdf>. Acesso em: 18 set. 2016.

JANOTTI, J. Cultura Pop: entre o popular e a distinção. In: CARREIRO, R., FERRAZ, R. SÁ, S. (Orgs.). Cultura Pop. Salvador: EDUFBA, 2015.

JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008. KELLNER, D. A Cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001.

LAURENTIS, T. A tecnologia do gênero. In HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (org.). Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LOPES, D. Terceiro manifesto Camp. In: ______. O homem que amava rapazes. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, pp. 89-120.

LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. MALINOWSKI, B. Argonautas do pacifico ocidental: Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanesia. São Paulo: Abril Cultural, 1976.

MARTEL, F. Mainstream: a guerra global das mídias e das culturas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

MEIRELES, M. Nova geração de drag queens toma conta da noite carioca. O Globo, 16/11/2016. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/sociedade/nova-geracao-de-dragqueens-toma-conta-da-noite-carioca-18044858>. Acesso em: 18 out. 2016.

MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

NEPOMUCENO, M. A. A Película do desejo: a subversão das identidades queers no cinema de Pedro Almodóvar (Tese). Programa de Pós-Gradução em Sociologia (PPGS): João Pessoa, 2010.

OKITA, H. Homossexualidade: da opressão à libertação. São Paulo: Sundermann, 2015.

PISCITELLI, A. Gênero: a história de um conceito. In: BUARQUE DE ALMEIDA, H., SZWAKO, J. (org.). Diferenças individuais e igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009, pp. 118-148.

RUBIN, G. O tráfico de mulheres: Notas sobre a economia política do sexo. Recife: S.O.S. Corpos, 1993. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2016.

SOARES, T. Percursos para estudos sobre música pop. In: CARREIRO, R., FERRAZ, R. SÁ, S. (Orgs.). Cultura Pop. Salvador: EDUFBA, 2015. SONTAG, S. Notes on ―Camp‖. In: ______. Against Interpretation and Other Essays. Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1966. p. 275-292.

STRAW, W. Cenas culturais e as consequências imprevistas das políticas públicas. In: JANOTTI, J. J., SÁ, S. (Orgs.). Cenas Musicais. Guararema: Anadarco, 2013. TIBURI, M. Judith Butler: feminismo como provocação. CULT – Edição especial. São Paulo, n. 6, p. 8-11. jan. 2016.

VENCATO, A. P. Fervendo com as drags: corporalidades e performances de drag queens em territórios gays da ilha de Santa Catarina (Dissertação). 2002. Departamento de Antropologia Social do Centro de Filosofia e Ciências Humanas: Ilha de Santa Catarina, 2002. Disponível em: < https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/84381>. Acesso em: 25 out. de 2016.

VILAS BOAS, S. Perfis: e como escrevê-los. São Paulo: Summus, 2003.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.