BONAVITA, Renan. Pequenas Cooperativas de Seguros no Brasil, 2012

July 7, 2017 | Autor: Renan Bonavita | Categoria: Regulation And Governance, Insurance Law, Cooperatives, Insurance, Asymmetric Information
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Tese de Láurea

PEQUENAS COOPERATIVAS DE SEGUROS NO BRASIL: UMA

ANÁLISE

JURÍDICOS

DOS

DA

FUNDAMENTOS

COOPERAÇÃO

DOS

SEGURADOS NO SETOR DE SEGUROS PRIVADOS NO BRASIL

Renan Peppe Bonavita Nº USP 6489174 Aluno Orientando

Prof. Doutor Carlos Pagano Botana Portugal Gouvêa Professor Orientador

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Departamento de Direito Comercial 20 de setembro de 2012

2

Tese de Láurea

PEQUENAS COOPERATIVAS DE SEGUROS NO BRASIL: UMA

ANÁLISE

JURÍDICOS

DOS

DA

FUNDAMENTOS

COOPERAÇÃO

DOS

SEGURADOS NO SETOR DE SEGUROS PRIVADOS NO BRASIL

Renan Peppe Bonavita Nº USP 6489174 Aluno Orientando

Prof. Doutor Carlos Pagano Botana Portugal Gouvêa Professor Orientador

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Departamento de Direito Comercial 20 de setembro de 2012

3

SUMÁRIO Introdução, p.5 Parte I – A Evolução da Política Legislativa das Cooperativas de Seguro no Brasil

1

Introdução, p.6

2

Origem das Formas de Organização do Seguro, p.7

3

2.1

Origem e Evolução das Companhias de Seguro, p.10

2.2

Evolução das Cooperativas de Seguro, p.13

2.3

Antagonismo e Complementaridade das Tradições Securitárias, p.24

2.4

Evolução das Cooperativas de Seguro na Alemanha, p.26

2.5

Evolução das Cooperativas de Seguro nos EUA, p.28

Evolução das Cooperativas de Seguro no Brasil; p.34 3.1

Introdução, p.34

3.2

Antecedentes: 1808-1901, p.35

3.2.1 Período Colonial: A Vinda da Coroa Portuguesa, p.38 3.2.2 Período de Formação e Consolidação: 1822-1889, p.42 3.3

Primeira República: 1889-1930, p.53

3.4

Era Vargas: 1930-1945, p.61

3.5

Terceiro Período: 1945-1964, p.70

3.6

Quarto Período: 1964-Dias Atuais, p.78

Parte II – A Cooperação: Dos Jogos ao Mercado, e do Mercado ao Direito

1

A Cooperação na Teoria Econômica: Aplicação de Teoria dos Jogos a Teoria

Econômica, p.79 1.1

Conclusões de Robert Axelrod: As condições Favoráveis à Cooperação,

1.2

Competição e Cooperação: Duas Faces de uma mesma Moeda, p.79

1.3

A Cooperação em Outras Áreas do Conhecimento, p.81

1.4

A Teoria Econômica: A Análise Econômica dos Custos da Cooperação,

p.79

p.82

4

2

A Cooperação no Direito Societário, p.85 2.1

3

A Teoria do Contrato-Organização, p.87

Cooperação no Setor de Seguros: Eliminação de Falhas de Mercado e Defesa do

Consumidor, p.88 Parte III – As Cooperativas de Seguro: Estrutura e Funcionamento

1

Os Custos no Mercado de Seguros, p.92 1.1

Os Custos das Companhias de Seguros, p.92

1.2

Os Custos das Cooperativas de Seguros, p.95

1.2.1 Vantagens Econômicas das Cooperativas, p.96 1.2.2 O Problema de Acesso ao Capital, p.98 2

Grandes e Pequenas Cooperativas de Seguro, p.99

3

O Interesse Social: Diferentes Interesses e Distintas Soluções, p.102

4

Porque a Vantagem Econômica não é Suficiente, p.105

5

6

4.1

Mercado Concentrado ou Monopolizado, p.105

4.2

O Papel da Política Econômica, p.106

O Mercado de Seguros na Atualidade, p.109 5.1

Microsseguros, p.109

5.2

Desregulamentação do Mercado, p.110

5.3

A Crise Atual das Cooperativas de Seguro, p.110

Formas Jurídicas das Cooperativas de Seguros, p.111 6.1

A Questão da Nomenclatura, p.112

6.2

Forma Mútua e Cooperativa de Seguro, p.113

Considerações finais, p.114

Bibliografia, p.117

5

INTRODUÇÃO Na história do mercado segurador europeu e norte-americano, as cooperativas de seguro exerceram importante papel na mutualização de riscos pelos próprios consumidores, como uma forma de organização, por vezes, mais eficiente econômica e socialmente do que as companhias de seguro. No Brasil, entretanto, estas cooperativas de seguro não só não detêm, atualmente, participação significativa deste mercado, como também são escassos os relatos que apontam ter essa forma societária subsistido na história da evolução do mercado segurador brasileiro. Nesse sentido, o presente estudo buscará, na primeira parte desta monografia, investigar a história das cooperativas de seguros no mercado de seguros brasileiro, especialmente a partir da evolução do seu regime jurídico, de modo a, ao final, poder-se apontar quais foram as principais razões para o desaparecimento desta forma de organização das seguradoras. Dando continuidade, provar-se-á, na segunda parte desta monografia, se as cooperativas são realmente mais eficientes econômica e socialmente do que as companhias de seguro, analisando-se, à luz da teoria dos jogos e da teoria econômica, sob quais circunstâncias esta maior eficiência se conserva. Ainda nesta parte, atentou-se para como o Direito Societário pode dar respaldo a atuação das cooperativas, ocasião na qual a teoria do contrato-organização mostrou-se muito útil; e, ainda, em que medida a constituição de um regime jurídico para as cooperativas de seguro se coaduna com as diretrizes constitucionais de nossa ordem econômica. Na última parte deste estudo, buscou-se expor, na medida do possível, a estrutura e o funcionamento das cooperativas de seguro, investigando com maior precisão as suas propriedades e vantagens sobre as companhias de seguro.

6

PARTE I - A EVOLUÇÃO DA POLÍTICA LEGISLATIVA DAS COOPERATIVAS DE SEGURO NO BRASIL

1

INTRODUÇÃO O escopo desta parte do estudo é realizar uma exposição crítica da evolução da

política-normativa e regulação em matéria de cooperativas de seguros pelo Estado brasileiro desde meados do século XIX. Quando mostrar-se proveitoso a este desígnio, realizar-se-á um estudo mais aprofundado das companhias de seguro, pois que sua evolução está intimamente relacionada à das cooperativas, seja porque são formas que concorrem diretamente, ou porque são igualmente afetadas pela política estatal. Nota-se que o presente estudo não provará realizar uma análise comparada da evolução histórica das cooperativas de seguro no Brasil com alhures, pois que alargaria por demais seu escopo; de todo modo, faz-se uma breve consideração sobre a evolução das cooperativas de seguro nos EUA e na Europa de modo a reforçar a utilidade desta forma societária. Esclarece-se que, considerando a insuficiência de dados e estudos sobre o tema e, conforme se notará, a inconstância e incoerência da política estatal para o setor, esta perquirição histórica, por vezes, especulará as causas e os motivos, não sem embasamento adequado, no sentido de introduzir questões relevantes ao tema. Por fim, a presente seção desta monografia provará responder se o declínio das cooperativas de seguro decorreu sobremaneira da política-legislativa historicamente adotada para o setor de seguros privados.

7

2

ORIGEM DAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DO SEGURO “A eventualidade de fatos danosos aos interesses do homem sempre existiu. O risco é inerente à luta de integração dos seres vivos ao meio ambiente. A expectativa de sua ocorrência acabou gerando a atitude permanente de vigilância que constitui um dos privilégios do espírito humano.”1

O homem, a fim de amenizar esse estado de contínua cautela, paulatinamente desenvolveu mecanismos de prevenção e redução dos efeitos danosos à sua vida e ao seu patrimônio – atividade denominada previdência. Como os vínculos de solidariedade há muito tempo já se prestavam largamente à sobrevivência dos homens, especialmente na forma de auxílio mútuo, as primeiras formas de organização contra riscos que atingiam indistintamente toda uma comunidade fundamentaram-se exatamente neste princípio. “Cedo se percebeu (...) ser de pouca valia o esforço individual, como acontece com a maioria dos seres irracionais. Sentiu-se que a união faz a força. Mais fácil era suportar coletivamente as ameaças e os efeitos dos riscos que atingiam isoladamente os elementos do grupo. A solidariedade gerava maior poder de superação das dificuldades que assoberbavam a vida de cada um ou da própria comunidade”2 Assentava-se, portanto, a partir do princípio da solidariedade – que move a cooperação entre os homens, o fundamento essencial dos seguros, qual seja, a mutualidade – que implica a redistribuição dos prejuízos de poucos a todos os membros da comunidade, perfazendo-se na viga mestra do instituto do seguro. A evolução das formas de seguro, conforme veremos, está intrinsecamente ligada à história, em sentido amplo, de toda sociedade, pois que os sistemas de prevenção ou reparação dos danos, que inexoravelmente tornaram-se mais complexos ao longo dos tempos, apresentaram diversas vertentes de evolução, consoante às 1

ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, p.01; ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro: Esboço Histórico. Cadernos de Seguros: Edição Especial (20 anos), Vol. 02. Rio de Janeiro: Editora Fundação Escola Nacional de Seguros, 2001, p.08. 2

8

particularidades de cada povo, em conformidade com a sua dinâmica econômica, política, social e cultural. Não à toa, em seus primeiros estágios, o seguro – então já fundado na mutualidade que lhe é indispensável - imperou sob a lógica da solidariedade, da qual havia se originado, ou mais precisamente, limitou-se à cooperação mútua de homens sujeitos aos mesmos riscos e que guardavam um vínculo em comum. “Foi a família, sem dúvida, o primeiro núcleo organizado de cooperação mútua de seus membros. (...) Os laços de consanguinidade e a afinidade de sentimentos mantinham viva a solidariedade do grupo na busca do interesse comum de abrigo, de alimento e de defesa, conferindo a essa instituição social o papel relevante que sempre desfrutou e que ainda conserva em nossos dias.” (ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. p.02)3

Em um segundo estágio, em sede de uma organização político-social mais complexa e, portanto, dotada de novos riscos próprios, as comunidades humanas, então integradas especialmente pelo meio profissional, social e religioso, constituíram organizações de amparo exatamente com base nestes vínculos extrafamiliares. Nestas, a solidarização dos prejuízos sofridos por um dos membros é apenas uma das muitas atribuições da entidade, sendo a noção de seguro e sua organização ainda pouco desenvolvidas, de modo que tal atividade operava-se essencialmente com base na mutualidade, por meio da constituição de um fundo comum ou mesmo da assistência direta aos necessitados. “A história registra a existência dessas sociedades desde remota antiguidade. Segundo Plínio, funcionavam na Ásia ad sustinendam tenuiorum inopiam. Esclarece o citado autor Fernando Emygdio da Silva que os gregos deram um largo desenvolvimento ao princípio associativo em todas as suas formas, religiosa, política, comercial, marítima – e como tal criaram, sob o nome de sinedrias, hetairos ou eranos, sociedades do tipo do socorro mútuo. Boeckh, caracterizando um eranos, 3

ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, p.02.

9

cataloga-o francamente como uma sociedade de socorro mútuo e que o socorrido em caso de necessidade voltava a ser socorrente se os seus negócios o permitissem. O mesmo faz Laurent. Aparecem, também, em Roma, sob a denominação de sodalitia ou collegia. Reuniam, em geral, os indivíduos mais pobres ou pertencentes a classes humildes, com o propósito de angariar meios para a assistência médica aos doentes, despesas de funerais, sepultura honrosa etc. Posteriormente, os collegia adquiriram maior importância no meio social romano.”4

Curiosamente, foi apenas com o advento da Idade Média que as associações mútuas de seguro se tornariam mais complexas. Na verdade, em face de uma conjuntura de insegurança decorrente das invasões bárbaras, e do abuso e da exploração dos senhores feudais, mostrou-se imperioso o seguimento e desenvolvimento das associações de auxílio mútuo no sentido de amparar todos aqueles que constituíam a base da pirâmide feudal. Ainda, o desenvolvimento comercial fez “[s]urgiram as associações de classes. Floresceram incentivadas pela importância das autoridades no exercício de seu papel econômico e social. Eram de variado gênero. Confrarias religiosas. Associações de comerciantes. Corporações de arte e ofícios. Comunas.” 5 Estas associações medievais continuaram, em linhas gerais, a tradição anterior de mútua cooperação entre seus membros, mas gozavam de melhor organização e maior poder econômico, bem como apresentavam maior variedade, pois que, a despeito do contínuo abuso e exploração da população, estas associações operavam em razão de arranjos sociais mais complexos. As guildas foram indubitavelmente as associações cooperativas mais presentes e importantes do período, porque serviam aos comerciantes e religiosos para a prática, defesa, e desenvolvimento de interesses comuns, servindo, por vezes, ainda que secundariamente, para mutualização de prejuízos decorrentes da atividade dos seus membros.

4 5

ALVIM, Pedro. Op. Cit., 1999, p.03. ALVIM, Pedro. Op. Cit., 1999, p.02.

10

Grande parte dos estudiosos aponta que essa sequência de associações mútuas, que praticavam o seguro, ainda que em sua forma mais primitiva, com base nos princípio de cooperação e solidariedade - tradição esta denominada por alguns de “norte-europeia”, ou “alpina” por outros - deu origem as modernas cooperativas de seguro. “Desta tradição descende toda uma filiação de organismos comunitários de seguros e de previdência: guildas, corporações, sindicatos profissionais, movimentos mutualistas. Esta tradição mutualiza os riscos: cada indivíduo suporta um custo relativamente independente da probabilidade de ocorrência dos riscos que lhe é própria. De tal maneira que existe uma e finalmente uma transferência no interior da comunidade. Esta tradição conservou sua marca na área geográfica em que nasceu: a Suiça, a Alemanha... e, para além, nos países de sensibilidade comparável sobre este ponto, como por exemplo, o Japão.”6

2.1

ORIGEM E EVOLUÇÃO DAS COMPANHIAS DE SEGURO O comércio marítimo, em razão de algumas peculiaridades, não foi capaz de dar

seguimento à tradição “alpina” de seguros, de modo que acabou por vertê-la em um novo braço de organização securitária que, em razão da prevalência e consolidação do livre mercado, tornar-se-ia hegemônico na época moderna. Esta forma competitiva de exploração da atividade seguradora se originou no território que hoje compõe a Itália, provavelmente ainda antes da Baixa Idade Média, motivo pelo qual alguns estudiosos alegam ser esta a primeira forma de seguro. Ocorre que esta afirmação é, de certo modo, uma meia verdade, porque a tradição “marítima” de seguro realmente inaugurou o seguro como conhecemos – sob o aspecto da gestão técnica dos riscos - mas a prática da mutualidade, que é fundamento do seguro, antecede em muito o sistema “marítimo” de cobertura de riscos.

6

ALBERT, Michel. Capitalismo versus Capitalismo. Tradução de Peter Nadas. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p.107.

11

Um forte indício desta asserção é que a tradição “alpina” vigorou nos estágios iniciais de evolução do comércio marítimo, período no qual “(...) prosperaram sociedades de contribuição mútua entre os navegantes, parecidas com as de beneficência. Quando algum proprietário de barco sofria sua perda, os outros componentes do grupo acorriam com a sua contribuição para compra de outro.”7 Ocorre que a atividade marítima-comercial, ainda em seus estágios iniciais, desvelou propriedades frontalmente contrárias à cooperação e solidariedade típicas das associações mútuas, pois que não conseguia conservar vínculos estáveis e duradouros entre seus membros. “A convivência entre eles durava o tempo da viagem. Não havia, pois, condições psicológicas para formação de uma sociedade ligada por laços mais afetivos, de onde brotasse a generosidade do auxílio mútuo. Dominava o interesse egoísta do lucro, como elemento fundamental da atividade comercial. Reunidos no mesmo barco ou na mesma caravana, não tinham outro objetivo senão vencer as dificuldades da expedição e tirar o maior proveito possível de seus negócios.”8

A despeito destes óbices, a atividade marítima-comercial estava particularmente sujeita a riscos elevadíssimos e consideravelmente homogêneos que recaiam indistintamente sobre todos os mercadores, mostrando-se imprescindível algum mecanismo de proteção. A primeira forma de adaptação da tradição das associações mútuas ao comércio marítimo deu-se com os comboios marítimos, que eram nada mais que uma forma muito mais tênue de cooperação mútua, que prestava ao socorro de naufrágios e à proteção contra pilhagens, corsários e inimigos. Noutro momento, em que se pesem os interesses egoísticos dos mercadores, o vulto (que arruinaria um mercador num só sinistro), a gravidade e a homogeneidade dos riscos fizeram com que aqueles que compunham o empreendimento – o proprietário da embarcação, afretador, os donos da carga, e passageiros – mutualizassem entre si os eventuais prejuízos advindos do malfadar da empreitada.

7 8

ALVIM, Pedro. Op. Cit., 1999, p.07. ALVIM, Pedro. Op. Cit., 1999, p.06.

12

Esta prática foi positivada pela Lei de Rodes, a qual estendeu a responsabilidade dos prejuízos a todos os beneficiários do dano, sendo sucessivamente reproduzida pela legislação posterior, inclusive pelo nosso Código Comercial. A prolongada prática marítima-comercial permitiu aos mercadores avaliarem cada vez melhor os riscos do empreendimento, os quais, na medida em que representavam mais fielmente a frequência dos sinistros, passaram a ser traduzidos em custos repassados às mercadorias. Esta materialização dos riscos, ao lado da evolução da matemática probabilística, possibilitou a criação de um sistema de cobertura – notadamente por meio dos contratos de câmbio marítimo e de dinheiro a risco – que levaria, após um longo processo de evolução (que foge aos propósitos desta monografia), a conformação completa do contrato de seguro em todos os seus elementos. No que toca ao presente estudo, o importante é verificarmos que estas circunstâncias históricas levaram à consolidação de uma forma de operação e organização do seguro muito diversa da “alpina”, designada de tradição “mediterrânea” ou “marítima”.

Esta filiação é diferente da tradição : tratase menos de segurança e mais de uma gestão especulativa e de desempenho

do

risco.

Não

há,

aqui,

preocupação

de

redistribuição e de solidariedade de risco de cada um.”9

Na verdade, esta modalidade vai além da gestão especulativa e de desempenho dos riscos, pois que “(...) tende (...) a diluir a solidariedade através da precariedade dos contratos e, sobretudo (...) através da hiper-segmentação dos prêmios.”10 Estas notas constituem, em essência, uma imposição extremada da lógica de funcionamento desta tradição, que é quase o reverso da solidariedade alpina, porque no sistema “marítimo” os sócios forneciam capital à companhia seguradora para que fosse aplicado na atividade securitária e por meio desta realizar o lucro a ser distribuído entre os mesmos.

9

ALBERT, Michel. Op. Cit., p.107. ALBERT, Michel. Op. Cit., pp.107-108.

10

13

Não por coincidência, esta forma de seguro corresponde atualmente às seguradoras organizadas sob a forma jurídica de Sociedade de Capitais, especialmente na forma de Sociedades Anônimas. Ressalvamos que, a despeito de as cooperativas de seguro, ao inverso das companhias, se assentarem sobre valores extremamente caros à comunidade, não se pode, de modo algum, demonizar a tradição “mediterrânea”. Na verdade cada forma tem o seu lugar, porque - estruturadas, na origem, segundo princípios então prevalentes no seu seio social - exerceram, cada qual, distintos e igualmente importantes papéis ao longo da história, ora competindo, ora se complementando. A evolução das companhias de seguro está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento da técnica atuarial, do contrato de seguro, bem como tornou o seguro habitual nas relações econômicas. Mas o seu significado é mais profundo, pois o seguro – na modalidade “mediterrânea” – constitui-se em um dos pilares de estruturação do sistema capitalista, ao lado do direito – notadamente sob as figuras do contrato, da liberdade de contratar e da propriedade – conferindo maior segurança e previsibilidade ao fluxo de relações econômicas. Seu valor reside na liberação dos homens da insegurança dos riscos mais dispendiosos, permitindo a concentração de recursos no aprimoramento do seu bemestar. O desvirtuamento desta estrutura – no sentido de alijar a base da sociedade de seus benefícios – não decorre da forma em si, mas do espírito dos homens que, por vezes, conferem ao seguro uma função perversa.

2.2

EVOLUÇÃO DAS COOPERATIVAS DE SEGURO Talvez as cooperativas de seguro sejam um grande exemplo de que as criações

humanas não tem uma origem determinada no tempo, e são, na verdade, uma sequência de circunstâncias históricas que tem por procedência os instintos e impulsos mais próprios do homem – no caso, a cooperação e solidariedade. Os estudiosos do futuro, então imbuídos por conceitos pré-estabelecidos, dispõem como origem de tal criação o momento em que a mesma apresenta as feições

14

tidas pelos mesmos como essenciais, identificando tal modelo a alguma região da cultura ocidental. Ocorre que as cooperativas de seguro descendem de uma sorte de organizações humanas tão antigas quanto nossa civilização, e de ocorrência tão dispersa que tornam impossível precisar os primeiros meandros de sua evolução. É pacífico, entretanto, que as cooperativas de seguro advêm de arranjos sociais com o propósito de prestar o auxílio mútuo entre os seus membros, seja por meio do auxílio direto ou constituição de um fundo comum. Estes teriam sido inaugurados pela família, e, com o avanço da civilização, passaram a englobar organizações cada vez maiores e mais complexas, de tal sorte que, no sentido de congregarem interesses comuns, segmentaram-se dentre os diversos grupos profissionais, políticos, religiosos, econômicos, sociais e culturais que afloraram. Embora presentes desde tempos remotos em diferentes civilizações do mundo, tais organizações não exerciam operações de seguro, na acepção moderna, mas sim o mero auxílio mútuo entre os seus membros. Rigorosamente, desempenhavam os primeiros passos no sentido da construção do fundamento do seguro: a mutualidade – que impõe a distribuição dos prejuízos sofridos por poucos em razão da superveniência de um evento danoso por todos os demais membros do grupo. O processo de consolidação do mutualismo, assim como do seguro, não foi simples e fugaz, isto é, avançou por diversos estágios, grande parte dos quais marcados pelas notas da solidariedade e cooperação das quais tem origem. Nesse sentido, tal fundamento aflora do seio familiar, onde o mutualismo aparece como que consequência natural das obrigações dos indivíduos para com a pequena comunidade, pois que a família se constituía em uma unidade própria que dependia do exercício de funções especificas por cada um dos seus membros. Ainda na antiguidade, é inegável a constituição de formas continuamente mais evoluídas de organização coletiva ao lado do progresso intelectual e material da civilização, sendo consequentemente irrefreável a criação de mecanismos cada vez mais complexos de proteção a riscos. “The earliets available reference to some formo f insurance is found in the codes of Hammurabi and Manu. The term ‘Yogakshema’ is

15

used in the Rig-Veda suggesting that some form of community insurance was practiced by Aryan in India over 3000 years ago.”11 “Além do agrupamento familiar que sempre foi o reduto de proteção ao indivíduo, outras associações, de caráter mais amplo, se organizaram para prestação de socorro mútuo a seus membros. Estimuladas pela solidariedade ou pela religião, tais sociedades são conhecidas desde tempos remotos. Chamavam-se “SHRENI”, na antiga Índia, segundo os textos védicos do Código de Manú. Existiram também no Egito com denominações diversas. Entre os regos apareceram as “KOINONIA”. E os romanos criaram os “COLLEGIA TENUIORUM”, os “COLLEGIA FUNERATICIA” ou os “SODALITIA.”12

Um pouco adiante, já na Idade Média, conformaram-se as entidades precursoras, por excelência, das Cooperativas de Seguro, porque detinham uma organização e um modus operandi consideravelmente mais evoluídos, por vezes muito semelhante a algumas modernas sociedades de auxílio mútuo. Esta expressiva evolução das sociedades mútuas durante o período medieval parece ser decorrência, em um primeiro momento, da instabilidade enfrentada. Destarte, em resposta a insegurança e ao sofrimento trazidos pelas invasões bárbaras, guerras, pela fome, peste, e ainda pelo abuso dos senhores feudais, e refletindo a estrutura socioeconômica do período – que se distinguia, em linhas gerais, pela prevalência da nobreza, clero e burguesia nascente, afloraram as confrarias religiosas, irmandades, e outras sociedades mútuas. Quanto às Confrarias Religiosas, “[t]he earliest known (…) focused on the prevention and elimination of heresy through structured programs of religious devotion.(…) Another important purpose of confraternities was to provide a network of social support for their members, beyond the guild and the family.”13 Mais importantes do que as sociedades de auxílio mútuo organizadas sob o liame da religião foram as Irmandades, que existiam ao lado e por causa das guildas, 11

TRIPATHY, Nalini Prava e PAL, Prabir. Insurance Theory and Practice. PHI Learning Pvt. Ltd, 2005, p.40. 12 ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro: Esboço Histórico. Cadernos de Seguros: Edição Especial (20 anos), Vol. 02. Rio de Janeiro: Editora Fundação Escola Nacional de Seguros, 2001, p.03. 13 KLEINHENZ, Christopher. Medieval Italy: An Encyclopedia. vol. 02. Routledge, 2004, p.244.

16

motivo pelo qual era vedado, grande parte das vezes, o ingresso nestas de membros de fora das respectivas associações de mercadores, a exceção dos familiares dos mesmos. “Segundo Marti Bufill, citado por Arnaldo Sussekind (Previdência Social Brasileira, ed. 1955, pág. 18) constituíram [as irmandades] autênticas sociedades, organizadas com tal perfeição técnica que para Romeu de Armas nada tinham a dever às mutualidades modernas do Século XX. O benefício já não era ajuda discricionária, senão autêntico direito adquirido por sistema de cotização, bem estruturado e regulado por um regime de prestações estabelecidas.”14

As Irmandades eram, em linhas gerais, associações cooperativas de comerciantes de socorro mútuo, que visavam auxiliar os membros da guilda, bem como os seus familiares, por ocasião de sorte de dificuldades, notadamente nos casos de doença e morte, por meio de prestação direta ou renda proveniente de fundo comum. “It is certain that the guilds, which throughout Europe became so numerous and influential from the eleventh to the eighteenth

centuries,

possessed

very

many

of

the

characteristics of the modern mutual benefit association, and, as such, carried on a primitive kind of insurance against the misfortunes incident to sickness and old age.”15

Leo Huberman, em a História da Riqueza do Homem, destaca de um Estatuto, de 1346, de uma Corporação de Curtidores de Couro de Londres, o item [1], que dispõe os seguintes termos: “(...) se qualquer pessoa do dito ofício sofrer de pobreza pela idade, ou porque não possa trabalhar terá toda semana 7 dinheiros para seu sustento, se for homem de boa reputação”. 14

ALVIM, Pedro. Op. Cit., 2001, p.03. VANCE, W. R. The Early History of Insurance Law. Columbia Law Review, vol. 08, nº. 01, janeiro de 1908, p.04. 15

17

O autor ainda pontua que este dispositivo “(...) mostra que as corporações se preocupavam com o bemestar de seus membros. Era uma espécie de irmandade que tomava conta dos membros em dificuldades. Muitas corporações provavelmente começaram com esse objetivo - o da ajuda mútua em períodos difíceis. Incidentalmente, é interessante notar que a assistência ao desempregado e a aposentadoria que constituem notícias hoje eram proporcionadas pelas corporações artesanais a seus membros há quase seiscentos anos!” 16

Em sendo as guildas um fenômeno típico da Europa Continental, as Irmandades se concentraram nas regiões urbanas desta, onde predominava o intercâmbio comercial das corporações, ao passo que no Reino Unido se desenvolveram, via de regra, sociedades mútuas que, desempenhado propósitos semelhantes, não estavam vinculadas às associações de mercadores, permanecendo mais abertas ao ingresso de novos membros. É consideravelmente expressiva, ainda no período medieval, a extensão de atividades sobre as quais as sociedades mútuas podiam operar; veja que “[n]a Itália (...) os agricultores criavam cooperativas agrícolas para proteger uns aos outros contra as intempéries; os agricultores de áreas com uma estação de boas colheitas concordavam em indenizar as vítimas de um clima menos favorável. O Monte dei Paschi, que se tornou um dos maiores bancos da Itália, foi fundado em Siena em 1473 para servir de intermediário em tais acordos.”17

Sob a mesma lógica de mutualização dos riscos, temos o

16

HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 17ª ed.. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, pp.55-56. 17 BERNSTEIN, Peter L. Desafio aos Deuses. 6ª ed. Tradução de Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991, p.93.

18

“(...) clássico caso dos comerciantes da Babilônia (século XIII) que, preocupados com os riscos da perda de camelos na travessia do deserto, firmaram contratos de garantia com outros mercadores da região, de forma que o prejudicado tivesse direito a outro animal, a ser reposto pelos demais criadores, participantes daquela convenção.”18 “It seems that these guilds, in addition to providing, by contribution of the members, aid for the sick and burial of the dead among their number, also furnished indemnity to those who had suffered loss by fire.”19

Surgia aí, com o objeto de proteção contra riscos de incêndio, e em oposição às sociedades que prestavam apenas o auxílio mútuo, na Inglaterra ao final do século XVII, as primeiras cooperativas de natureza verdadeiramente securitária em âmbito privado, que operavam distribuindo os custos das indenizações entre os seus associados ou constituindo fundo para fazer frente aos mesmos. E este pioneirismo não foi à toa. “O risco de incêndio era muito temido, pois os acidentes eram bastante frequentes e tinham efeitos extremamente danosos sobre as cidades e seus moradores. Mas não apenas esses fatores fizeram com que esse tipo de risco passasse a ser combatido sob a forma de guildas: é preciso lembrar que um incêndio tem o poder de afetar indistintamente a vida de muitas pessoas. Aí está o fundamento para que elas se associassem e procurassem se proteger coletivamente contra os riscos de incêndio, ao invés de adotar formas individuais de proteção.”20

Observa-se que, já partir da Idade Média, as sociedades mútuas, quer fossem mais próximas de sociedades de auxílio ou seguro mútuos, por vezes tinham como 18

BORGES, Nelson. Os Contratos de Seguro e sua Função Social. A revisão Securitária no Novo Código Civil. Revista RT n.º 826. São Paulo: RT, 2004, p.02. 19 VANCE, W. R. The Early History of Insurance Law. Columbia Law Review, vol. 08, nº. 01, janeiro de 1908, p.04. 20 RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de Seguros: Resseguro, Seguro Direto e Distribuição de Serviços. São Paulo: Editora Atlas, 2006, p.08.

19

objeto atividades ainda não muito bem definidas, isto é, embaraçavam operações de assistência, auxílio, pecúlio, socorro, capitalização e de seguro (ou mera mutualidade). Bem verdade, esta confusão de atividades era também muito natural aos fundamentos de cooperação e solidariedade, no sentido de que os membros da sociedade não tinham outro escopo senão o proveito coletivo, sendo menos importante a natureza da assistência conferida. Esta situação perduraria por muitos anos até que a história, a evolução da técnica, ou ainda o Estado e os agentes econômicos competitivos acabassem por separalas, desenvolvendo cada atividade em apartado. Afirmar que os riscos de incêndio genuinamente inauguraram as cooperativas de seguro pode ser um tanto leviano, sobretudo para aqueles que consideram que o seguro não pode subsistir sob operações que não dispõe de uma complexa avaliação dos riscos. Parece certo, entretanto, que foi este o momento em que muitas sociedades mútuas, então substancialmente de socorro ou auxílio, passaram a ter como objeto principal a mutualização de prejuízos advindos de riscos privados, quaisquer fossem os seus beneficiários, bastando para tanto a homogeneidade dos riscos. Assim, nos EUA “[t]he first insurance company established in the American colonies was a mutual [fire] insurance called the Friendly Society (…) later, Benjamin Franklin and other prominent Philadelphians established a

mutual

insurance

organization

called

the

Philadelphia

Contributionship for the Insurance of Houses from Loss by Fire, the oldest continuously operating insurance company in the country.”21 E também na Alemanha“[t]he first mutuals were organized during the sixteenth century, and they typically provided fire insurance to members of specific groups such as guild members (called Brandgildesn).”22 Tão logo surgiram as primeiras mútuas de incêndio, afloraram sociedades mútuas de seguro para proteção contra uma sorte de riscos, especialmente riscos de morte. 21

CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Handbook of International Insurance: Between Global Dynamics and Local Contingencies. Springer, 2007, p.26. 22 CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Op. Cit., p.305.

20

“In 1759, the Presbyterain Ministers Fund, an organization financed initially by donor contributions and later by policy premiums – became the first life insurance company in the [American] colonies by providing a form of life insurance for Presbyterian ministers.”23

Ainda ao final do século XVII, as cooperativas de seguro, então atuando primariamente em nível local, começam a ganhar maior amplitude de atuação, mas não sem amparo do Estado. A ampliação da extensão territorial de operação das cooperativas de seguro guardava severas restrições em razão da incapacidade de organização e de gestão adequada dos riscos, limitações que apenas um ente suficientemente forte economicamente como Estado seria capaz de enfrentar. “The first public insurer in Germany, the Hamburger GeneralFeuercasse, was formed as a merger of many Brandgilden in 1676. Following this example, other public insurers providing fire insurance to homeowners, who were often required by the authorities to insure their property, were formed in nearly all other German states during the eighteenth and nineteenth centuries”24 “O exemplo da “General-Feuercasse” logo foi seguido em diversas outras localidades, entre elas Londres (1680) e Copenhague (1681). (...) Cidades e outros entes públicos começaram a organizar e gerir seguradoras que funcionavam sob as mesmas bases cooperativas dos contratos associativos privados.”25

O contínuo alargamento das funções exercidas pelo Estado no sentido de fazer valer um rol evolutivo de direitos sociais fez as seguradoras públicas, então ocupadas com riscos de natureza privada, paulatinamente erigirem mecanismos voltados à seguridade social. 23

CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Op. Cit., p.26. CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Op. Cit., p.305. 25 RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de Seguros: Resseguro, Seguro Direto e Distribuição de Serviços. São Paulo: Editora Atlas, 2006, p.09. 24

21

“Whatever their form, mutual benefit societies were the forerunner of the welfare states. Mutual societies detected first the main social risks, sickness, disability and old age, that were covered later by a public social insurance scheme in Continental European countries and by a National Health service and pension funds in Anglo-saxon and Nordic countries.”26

A história das sociedades mútuas, entretanto, nem sempre foi de contínuo progresso. Muito pelo contrário, estas sociedades enfrentaram uma sorte de adversidades, sendo que, quando em declínio, tiveram, por vezes, que se reinventar, adaptando-se às novas estruturas econômicas e sociais. Ainda no século XVIII praticamente todas as modalidades de sociedades mútuas entraram em declínio, muito em razão da desorganização dos arranjos sociais que lhes davam respaldo, notadamente as guildas, do parco conhecimento da técnica securitária, também por expressa determinação do Estado, como no caso da Revolução Francesa de 1789, e mesmo pelo intuito especulativo dos seus fundadores, no caso das tontinas. Mas as sociedades mútuas sobreviveriam, adaptando-se ao livre mercado pós Revolução Industrial. Nesse sentido, “(…) mutual benefit societies flourished during the 19th Century in Europe, when industrial revolution and rural depopulation pauperized the working class and broke the traditional solidarity of the family or the village. They were inspired by ideological currents such as utopist socialism (Owen, Proudhon), the Fabian movement or solidarism (Bourgeois, Durkheim). Some of these mutuals were linked with the emerging labor-unions and other were more middle-class oriented. Depending on the countries, the period and the degree of recognition of the labor movement, they were either repressed or encouraged by the state.” 27

26

ARCHAMBAULT, Edith. Mutual organizations, mutual societies, International Encyclopedia of Civil Society, Anheier H. e Toepler S., 2009, p.01-02. 27 ARCHAMBAULT, Edith. Op. Cit., p.01-02.

22

Foi apenas na segunda metade do século XIX que as cooperativas de seguro se expandiram e tornaram vigorosas, passando, inclusive a competir com as companhias de seguro em muitas modalidades de seguros. Curiosa é a origem deste fortalecimento. Até então as cooperativas de seguro eram pequenas, e no máximo médias, quando o arranjo social que lhe desse respaldo fosse suficientemente grande, estável e organizado. Isto porque o ímpeto cooperativo e solidário que lhes movia não era ilimitado, na verdade, acabava nos próprios interesses individuais que cada membro guardava perante a sociedade, o que impunha um expressivo limite ao sofrimento individual em prol da coletividade. Assim, ainda que a natureza não-lucrativa e solidária das cooperativas lhe imprimissem uma vantagem comparativa perante as companhias, esta se desfaleceria sob estruturas mais robustas - conforme veremos adiante no tema dos problemas de informação do mercado securitário - por que muito mais difícil seria zelar pelos fundamentos de cooperação e solidariedade. Logo, as cooperativas guardavam um frágil equilíbrio econômico, essencial para sua viabilidade e operacionalidade, assentado sobre a bem intencionada atuação dos seus membros sob os fundamentos de cooperação e solidariedade. No sentido de reduzir esta fragilidade, e não perder espaço para as companhias, as cooperativas incorporam – sem perder a sua essência - alguns elementos da tradição securitária “mediterrânea”, quais sejam, a avançada técnica atuarial e administração mais profissionalizada de suas operações. Isto porque o avanço da gestão atuarial se deu no seio do progresso das companhias de seguro, ou melhor, estas, em seu ímpeto lucrativo e expansionista sobre o mercado, absorveram, desenvolveram e aplicaram a matemática probabilística que era construída. “Com a passagem dos anos, os matemáticos transformaram a teoria das probabilidades de um brinquedo de apostadores em um instrumento poderoso de organização, interpretação e aplicação das informações. À medida que uma idéia engenhosa se empilhava sobre a outra, surgiram técnicas quantitativas de administração do risco que ajudaram a desencadear o ritmo dos tempos modernos.”28

28

BERNSTEIN, Peter L. Op. Cit., p.08.

23

Como exemplo de cooperativas de seguro organizadas sob essa lógica, “(…) [f]armers pooled their savings to protect themselves against the risks of their property, bad weather and fires mainly, on a mutual basis. Other mutual insurance companies for retailers and craftsmen followed, in competition with insurance corporations”.29 Nos EUA, do final do século XIX até a década de 30, a classe operária constituiu uma série de sociedades de auxílio mútuo visando ao amparo de trabalhadores em caso de doenças ou acidentes de trabalho que lhes impossibilitassem de trabalhar. No século XX, notadamente após a IIGM, as cooperativas de seguro novamente transformar-se-iam no sentido de atender a contratação em massa que adviria da sociedade de consumo. Nesse sentido, “(…) the dissemination of mutual insurance among the salaried population is more recent; it was in many countries a by-product of the post WWII consumption society, especially with the compulsory insurance of car accidents and other damage to real estate property.”30 Diante da securitização em massa, ao longo de todo o século XX, a política estatal foi determinante para o sucesso ou declínio das cooperativas de seguro, no sentido de conferir, ou não, vantagens regulatórias, jurídicas, tributárias, etc. Nota-se, no século XX, recorrente o fenômeno de transformação societária de sociedades seguradoras, seja de cooperativas para companhias ou vice-versa, em consonância com as respectivas vantagens ou desvantagens comparativas de cada modalidade em determinados períodos. A partir do final do século XX as formas jurídicas competitivas, inicialmente em desvantagem, adquiriram poder econômico, participação mercado, e capacidade técnica notáveis, sendo dotadas de elevado grau de confiabilidade perante os agentes do mercado financeiro, de modo que passaram a gozar, ao reverso das cooperativas, de amplo acesso à créditos e financiamentos. Daí porque se observa atualmente, nos EUA e na Europa, países nos quais a forma cooperativa se fez e faz presente, o fenômeno da desmutualização (“demutualization”), isto é, a transformação das cooperativas em sociedades anônimas. Este quadro se agravou com os fenômenos da desregulamentação e do acirramento da competição – este em larga medida em razão da globalização – os quais 29 30

ARCHAMBAULT, Op. Cit., p.03. ARCHAMBAULT, Op. Cit., p.03.

24

aproximaram as operações securitárias da atividade financeira, seja porque instituições financeiras passaram a atuar no ramo de seguros, porque as companhias gozam de maior acesso ao financiamento, ou mesmo porque a aplicação financeira das provisões por vezes é mais lucrativa do que a mera captação dos prêmios.

2.3

ANTAGONISMO

E

COMPLEMENTARIDADE

DAS

TRADIÇÕES SECURITÁRIAS Esta breve exposição nos sugere – pois que apenas uma pesquisa específica e mais aprofundada poderia dar um respaldo mais seguro – que o mutualismo e o seguro guardam histórias distintas, mas com dois pontos viscerais de encontro. No primeiro, o mutualismo – erigido por uma sucessão antiguíssima de arranjos de cooperação e solidariedade – dá origem ao seguro por meio da transformação, no seio da revolução marítima comercial, de um arranjo de distribuição de riscos fundado na solidariedade para outro essencialmente egoístico, passando a coexistir duas tradições de mutualidade com lógicas substancialmente diversas. Noutro momento, em vez da versão de uma tradição em duas, ocorre o entrecruzamento de uma em outra. Isto porque as sociedades mútuas – da tradição “alpina” – se apropriam, sem desnaturar os seus fundamentos de cooperação e solidariedade, da organização e técnica de gestão de riscos das companhias – conhecimento este desenvolvido no seio da tradição “alpina” – de modo a conformarem-se em autênticas cooperativas de seguro. “Os modelos mercantil e cooperativo da atividade seguradora correspondem

respectivamente

às

atuais

formas

jurídicas

de

organização dessa atividade: a sociedade de capitais e a sociedade cooperativa. (...) A primeira tem o sócio capitalista como figura principal da empresa, que lhe fornece recursos financeiros para, através da atividade seguradora, obter lucro; na segunda, pessoas se unem para se proteger contra os efeitos negativos de um potencial sinistro – a cooperação entre os sócios é o traço característico da organização.”31 31

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de Seguros: Resseguro, Seguro Direto e Distribuição de Serviços. São Paulo: Editora Atlas, 2006, p.06-07.

25

Em linhas gerais, parece que as companhias de seguro derivaram de um modelo egoístico de desenvolvimento econômico – típico do sul da Europa – que tem por fundamentos a acumulação primitiva do capital e a concentração econômica. Estes permitiram a aplicação de vultosos recursos em custosos, rentáveis e arriscados empreendimentos, inicialmente do comércio marítimo, que, no mais das vezes, bem sucedidos, erigiram uma complexa e poderosa tradição securitária ao longo da história moderna. As cooperativas de seguro, de outro lado, derivam dos arranjos mais primitivos da civilização e, consequentemente, dos fundamentos mais típicos da comunidade: a cooperação e a solidariedade, que o capitalismo e sua forma mais avançada por vezes tende a repelir. São princípios que exerceram grandioso papel de humanização das relações sociais nas mais variadas circunstâncias de nossa história, servindo ao funcionamento orgânico da família, à continuidade do clã, a proteção mútua contra intempéries, contra a exploração do proletário, etc. Por isso, afirma-se que a forma cooperativa é mais própria aos instintos primários do homem e deriva de valores mais fundantes, ao passo que a competitiva deriva mais da impessoalidade e complexidade da organização que tomou forma o nosso sistema econômico. “En este sentido, mientras en la compañía anónima existen dos sectores de personas netamente diferenciados (socios o accionistas y asegurados o clientes), en la mutualidad ambos grupos coinciden, al ser inseparable la condicione de socio o de la de asegurado. Por ello, en cierto sentid, o objeto básico de una mutualidad es eminentemente social (mejor servicio al coste más reducido posible), en tanto que una compañía anónima el objetivo básico es fundamentalmente económico (máxima retribución posible del capital accionista).”32

32

MATRÁN, Julio Castelo e LOZANO, António Guardiola. Diccionário. 3ª ed. Madri: Editorial Mapfre S.A., 1992, p.87.

26

2.4

EVOLUÇÃO DAS COOPERATIVAS DE SEGURO NA

ALEMANHA Situando-se na Europa Central - berço da organização econômica e social ocidental -, a Alemanha guarda uma história longuíssima de evolução das cooperativas de seguro, que em muito acompanha a origem das cooperativas de seguro tratada na seção precedente. “The first mutuals were organized during the sixteenth century, and they typically provided fire insurance to members of specific groups such as guild members (called Brandgilden). In 1821 the Gothaer Feuerversicherungsbank

and

in

1827

the

Gothaer

Lebensversicherungsbank were founded by Ernst Wilhelm Arnoldi, with both companies organized as mutuals. Following these examples, many mutuals were created in all insurance lines during the second half of the nineteenth century.”33

As primeiras companhias de seguro surgiram muito tempo depois. Apenas em 1765, em Hamburgo, foi constituída a primeira companhia de seguros, voltada à securitização de riscos marítimos. A despeito disto, foi esta a forma de organização que permitiu o maior desenvolvimento do setor com a incorporação de novas técnicas matemáticas, notadamente a probabilidade.34 “No ano de 1994, estavam na Alemanha sob a supervisão do “Bundesaufsichsamt

für

das

Versicherungswesen”

(BAV)

310

seguradoras constituídas como sociedades anônimas, 91 cooperativas (VVag) e 34 companhias seguradoras públicas. O BAV é o ente administrativo federal que fiscaliza e regula o mercado segurador alemão. A atividade seguradora na Alemanha é também controlada por órgão estaduais, nos quais estavam registradas, no mesmo ano de 1994, 1.480 pequenas cooperativas de seguros, atuantes nos mais variados 33

MAURER, Raimond H. e SOMOVA, Barbara. German Insurance Industry: Market Overview and Trends. Finance & Accounting, nº. 156, disponível em: http://hdl.handle.net/10419/23421, p.05. 34 Idem.

27

ramos (previdência, vida, saúde, danos materiais, acidentes pessoais etc.).”35 As cooperativas de seguros detêm, na Alemanha, pouco menos um quarto de participação no mercado de seguros, gozando de maior participação em determinados ramos, como no de pessoas, do qual detêm cerca de metade. [RIBEIRO. p.11] As grandes cooperativas de seguro guardam uma estrutura de funcionamento muito próxima das companhias de seguro, razão pela qual são similares os seus regimes jurídicos. Isto porque, em que se pese as grandes cooperativas de seguro não tenham um escopo essencialmente lucrativo, mas objetivem, sim, o melhor proveito do seus segurados, atuam em âmbito nacional em concorrência direta com as companhias de seguro e, inclusive, oferecendo apólices para não sócios. De outro lado, as pequenas cooperativas de seguro, muito mais numerosas, exercem um papel muito diverso das grandes cooperativas, mesmo porque sua lógica de funcionamento guarda, além dos fundamentos de cooperação e solidariedade, uma natureza associativa. Em outras palavras, as pequenas cooperativas de seguro decorrem da cooperação de um número reduzido de associados, submetidos à riscos homogêneos, que guardam um vínculo comum, seja este de natureza profissional, social, econômica, etc. Ocorre que, conforme o presente estudo discorrerá, as pequenas cooperativas de seguro, por vezes, tem a aptidão de melhor enfrentar as falhas de mercado do mercado de seguros, trazendo apólices mais baratas e de mais qualidade aos consumidores. Atualmente, entretanto, as cooperativas de seguro têm sofrido com severas restrições de acesso ao crédito, motivo pela qual muitas cooperativas, de modo a garantir a sua continuidade, têm adotando medidas ousadas. Algumas têm optado por simplesmente fundirem-se com outras, no sentido de, em sendo mais robustas, angariarem créditos mais facilmente. A título de exemplo, “[t]he Signal/Iduna group was created in 1999 by the alliance of two mutual insurance groups: Signal Group, specializing in health and property and casualty insurance, and Iduna, specializing in life 35

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Direito de Seguros: Resseguro, Seguro Direto e Distribuição de Serviços. São Paulo: Editora Atlas, 2006, p.10-11.

28

insurance and related products. The goal of the alliance was to form an all-around insurance group and secure the position of a countrywide player. Currently, Signal/Iduna belongs to the top ten insurance groups in Germany.”36

Outras, entretanto, estão sendo transformadas em sociedades anônimas, é o chamado fenômeno da desmutualização, que é um procedimento longo, burocrático e custoso. Mesmo assim, este fenômeno recente tem ocorrido com relativa intensidade na Alemanha nos últimos anos. Há, ainda, outro caminho, “(...) in order to combine the advantages of a mutual insurance association with those of a stock company, and to avoid the legally and economically difficult process of outright demutualization, a holding company in the form of a mutual insurance association is often created with wholly owned subsidiaries as stock corporations. (An example of such a structure is the Gothaer Versicherungen). On a consolidated basis, the importance of mutuals with respect to premium volume increases.” 37

2.5

EVOLUÇÃO DAS COOPERATIVAS DE SEGURO NOS EUA “A experiência alemã, como aliás toda experiência europeia em matéria de cooperativas de seguros, exerceu enorme influência sobre a atividade seguradora nos EUA, onde desde o início as cooperativas tiveram papel importante no desenvolvimento dessa indústria.”38

O surgimento do mercado de seguros norte-americano se deu já no século XVIII, ainda antes da independência (1783), por meio da constituição de algumas poucas sociedades mútuas, especialmente contra riscos de fogo, por influência das cooperativas inglesas de seguros. 36

MAURER, Raimond H. e SOMOVA, Barbara. Op. Cit. p.17. MAURER, Raimond H. e SOMOVA, Barbara. Op. Cit. p.09. 38 RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.11. 37

29

Na verdade, além das barreiras de acesso ao mercado - notadamente, conhecimento e capital -, se colocava como obstáculo à livre formação de companhias de seguros americanas o monopólio real concedido às companhias inglesas no mercado colonial de seguros. Apenas quase uma década após a independência, seria constituída, em 1792, a primeira companhia americana de seguros: “Insurnace Company of North America”, que não foi bem sucedida. Foi seguida pela companhia seguradora de vida, “Pensylvania Company for Insurance on Lives and Granting Annuities”, que não tardou a obter um número expressivo de apólices. Já no primeiro quarto do século XIX consolidaram-se os ramos de seguros contra riscos de incêndio e vida, já que os seguros marítimos eram, até o início do mesmo século, hegemônicos. “While mutual companies may initially have experienced something of an advantage due to the monopoly granted to stock companies loyal to the Crown, following the revolution neither organizational form had a distinct advantage over the other form from a regulatory perspective.”39

Este período de relativo equilíbrio entre as vantagens/desvantagens dessas formas de organização do seguro, entretanto, duraria pouco tempo. Já no segundo quartel do século XIX, sobreveio um breve período de crise econômica, cuja principal causa foi a febre especulativa que levou ao chamado “Pânico de 1837”, que afetou principalmente as instituições bancárias. Diante destas circunstâncias – especialmente de escassez de capital, e considerando a expressiva maior dependência das companhias para com o crédito privado, as sociedades mútuas de seguros tornaram-se, por alguns anos, mais atrativas do que as companhias. Novamente esta situação não tardaria a mudar. Na verdade, já ao início da segunda metade do século XIX se inverteria em favor das companhias de seguro.

39

CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Op. Cit. p.29.

30

“Beginning with New York in 1849, the states began to impose initial capital requirements on newly forming insurers. Due to the greater difficulty that mutual insurers have in raising capital, this change in the regulatory environment was followed, during the latter half of the 19th century, by a sharp decrease in the number of new mutual insurers formed.40

Estas passagens sugerem o quão vulneráveis estão as formas de organização para a operação de seguros, talvez em razão da complexidade de sua atividade, a fatores que lhe são externos, especialmente aos instrumentos normativos da política estatal. Até então, as sociedades mútuas em operação nos EUA constituíam fundo comum, com respeito aos limites mínimos estabelecidos por cada estado americano, para fazer frente aos pagamentos das indenizações correspondentes aos sinistros. A exigência de capital mínimo para a atividade das mútuas e das companhias de seguro, uma vez que perfaz uma barreira de acesso ao mercado, estimulou, já ao final do século XIX e início do XX, a formação de cooperativas de seguro na modalidade tontineira - então denominadas “fraternal societies” -, sobre as quais ainda não recaíam exigências regulatórias. Nestas, ao invés de se constituir primariamente um fundo para fazer frente às indenizações, se distribui o prejuízo das indenizações entre os membros da sociedade, variando a contribuição dos mesmos na medida do quantum deste prejuízo. Assim, a principal diferença destas sociedades para com as tradicionais mútuas de seguro, é que as primeiras, em tese, nunca se tornam insolventes, já que o aumento de custos, via de regra, será imediatamente redistribuído, ao passo que nas segundas, de um modo geral, a elevação dos prêmios dependerá de decisão coletiva formal. Apenas no início do século XX os estados Americanos começaram a regular estas formas de organização. “By 1920, nearly 80 percent of the population lived in states with accompanied solvency requires for fraternal organizations”.41 Ao lado do maior rigor regulatório, acirrou-se a concorrência pelo mercado, sobretudo em razão de novos produtos securitários, a exemplo dos seguros coletivos, e, ainda, foram criados alguns mecanismos de proteção aos trabalhadores. Todas estas

40 41

CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Op. Cit. p.29. CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Op. Cit. p.30.

31

circunstâncias convergiram para a queda drástica da participação de mercado das “fraternal societies”. Se ao início do século XX estas eram dominantes no setor de seguros de vida, na década de 30 responderiam por apenas oito por cento do mercado, não tardando para que esta forma se tornasse obsoleta. Vale salientar que a gestão dos riscos ao longo do século XIX era ainda pouco desenvolvida, e, portanto, apresentava imprecisões que traziam riscos e inconveniências aos consumidores e as próprias companhias de seguros. “Se, de um lado, o segurado estava sujeito a não receber o esperado do segurador, ou até mesmo que este falisse por má gestão técnica, de outro o segurador enfrentava dificuldades em compor adequadamente suas posições e receber o retorno adequado por seus investimentos.”42

Os riscos elevados dos segurados implicavam apólices mais caras e de baixa qualidade, e ainda estimularam a prática de amarração dos segurados por meio de contratos “lock-in”, isto é, a cobrança de quantias substancialmente maiores ao início do seguro que não seriam restituídas no caso de término da relação contratual. É fácil perceber que, sob estas circunstâncias, as cooperativas de seguro facilmente superariam as companhias, porque muito menos dependentes da gestão avançada dos riscos, já que – na ausência de escopo lucrativo e da polarização segurado-segurador - um eventual aumento dos custos seria diluído na massa de prêmios. Neste sentido, as cooperativas de seguro exerceram importantíssimo papel sistêmico, pois que, ao elevarem a concorrência no mercado, contribuíram não apenas para o oferecimento de apólices melhores e mais baratas pelas companhias, como também estimularam a sua maior eficiência, notadamente com o desenvolvimento técnico-atuarial. Desse modo, no período entre Guerras, as mútuas e as companhias de seguro passaram a disputar a hegemonia do mercado de seguros de vida, que, após a Segunda Grande Guerra, sofreu um crescimento vertiginoso. 42

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.14.

32

As taxas de mortalidade continuamente em queda e os juros consideravelmente elevados tornaram a operação de seguros de vida um negócio ainda mais lucrativo. Práticas concorrências ajudaram a manter as apólices em um patamar elevado. Na medida em que os consumidores foram tomando consciência do valor elevado e da baixa qualidade dos produtos securitários, começaram a se associar em sociedades mútuas de seguro, por vezes de forma a complementar o seguro de vida firmado com alguma companhia. No ramo dos seguros de propriedade e responsabilidade o desenvolvimento das cooperativas de seguro foi um pouco distinto, principalmente porque, ao contrário dos seguros de vida, que visavam aos consumidores em geral, estes eram em sua maioria destinados às empresas. Também nesta modalidade de seguros, cujo exemplo, por excelência, no período, era o seguro de incêndio e, após a Segunda Grande Guerra passou a ser o seguro automotivo, o preço e a qualidade das apólices, em razão de fatores já apontados, deixavam a desejar. Em sendo empresas os segurados, muito mais fácil era a cooperação dos mesmos, não só porque detinham maior poder econômico, mas porque, via de regra, as empresas que se associavam exerciam atividades comuns e, portanto, estavam submetidas a riscos similares e, grande parte das vezes, já guardavam relações associativas de outras naturezas. Enquanto as companhias de seguros dependiam de complexas e então inexistentes instrumentos matemáticos, as cooperativas podiam gerir com mais precisão os riscos de modo empírico, utilizando-se a experiência e o conhecimento que as empresas guardavam de sua própria atividade. Aliás, este conhecimento permitiu, também, a formulação de melhores mecanismos redutores de risco e práticas mais efetivas de supervisão. São todas peculiaridades de funcionamento das cooperativas de seguro que convergem para a melhor qualidade e menor custo das apólices. Nota-se que as cooperativas de seguro ainda respondem por aproximadamente um quarto de todo o seguro de propriedade e responsabilidade.43 Já partir de meados da década de 80 do século passado, começaram a baixar as exigências regulatórias para a constituição e funcionamento de organizações de fundo 43

HANSMANN, Henry. The Organization of Insurance Companies: Mutual versus Stock. J. L. Econ. & Org., 1985. p.265.

33

mútuo, bem como de outras formas de prestação de produtos securitários, especialmente aqueles operados por instituições bancárias. A partir de então acirrou-se a competição neste mercado, e logo os agentes trataram de se reorganizar para fazer frente as novas circunstâncias, notadamente por meio de movimentos de concentração. O tratamento regulatório das mútuas, entretanto, pouco diferente do das companhias, forçou-as a realizaram movimentações mais drásticas, especialmente porque guardavam severas desvantagens quanto ao acesso de capitais. “Licensing for a new mutual insurance company involves satisfying an initial surplus requirement that is roughly equivalent to the capital and surplus requirement of stock insurers. In addition, mutual insurers must establish a minimum number of policyholders. Both stock and mutual companies must satisfy risk-based capital requirements in addition to the minimum described above. Some states have additional requirements for foreign and alien insurers.”44

Neste sentido, três foram os caminhos adotados pelas mútuas de seguros para angariar mais créditos e fazer frente à concorrência acirrada do final do século XX: (i) desmutualização; (ii) concentração; e (iii) reorganização societária. O primeiro consiste na transformação da sociedade mútua em anônima, o segundo na fusão de cooperativas de seguro, e o terceiro na constituição de uma estrutura societária que combine elementos das duas formas de organização, a chamada “Mutual Holding Company” (MHC). “MHC conversions evolve the creation of a 100 percent policyholder-owned stock holding company which is the direct parent of the newly formed stock insurer that inherits liabilities and assets from the converting mutual company.”45

44 45

CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Op Cit., p.47. CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Op Cit., p.48.

34

Atualmente as mútuas respondem por aproximadamente metade de todos os seguros de vida, predominando na modalidade individual, ao passo que as companhias prevalecem no ramo de seguros coletivos. “Não obstante seu grande desenvolvimento na indústria de seguros norte-americana, (...) as cooperativas enfrentaram, em relação aos seguradores constituídos sob a forma de sociedades de capitais, grande desvantagem competitiva: o acesso a capital. A consequência dessa desvantagem é que estes acabaram superando o crescimento das cooperativas nos EUA.”46

3

EVOLUÇÃO DAS COOPERATIVAS DE SEGURO NO

BRASIL

3.1

INTRODUÇÃO Primeiramente, assinala-se que poucos são os estudos e as pesquisas sobre as

cooperativas de seguros no Brasil, assim como escassos são os materiais históricos que registram o desenvolvimento das mesmas, o que, por si só, já indica a pouca expressividade histórica e atual desta forma societária. Em grande parte dos outros países - notadamente os EUA e países europeus - as cooperativas de seguro tiveram e ainda têm muito mais importância do que no Brasil, a despeito disto também subsiste, ainda que em menor grau, expressiva carência de estudos sobre a atividade das mesmas. De modo a superar esta deficiência bibliográfica, provou-se levantar e analisar grande parte dos instrumentos normativos, editados no Brasil, que dispuseram sobre as cooperativas de seguros. Neste sentido, o levantamento centrou-se em três ordens de instrumentos: (i) no aspecto regulatório – leis que estabelecem o regime jurídico e regulam as atividades das cooperativas; (ii) no aspecto político – projetos de lei e respectivas exposições de motivos que apontem as motivações e circunstâncias do setor; e (iii) no aspecto 46

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.15.

35

empírico – decretos e demais instrumentos de aprovação de constituição, alteração de contrato social, transformação, e de extinção de cooperativas de seguro. É nitidamente perceptível por meio de sua análise histórica que o mercado segurador no Brasil, ao longo de todo o seu desenvolvimento, foi intensamente direcionado, senão dirigido, pelo Estado, sobretudo por meio da regulação, atividade por trás da qual os interesses em jogo e seus respectivos grupos de pressão se mostraram definidores. Não à toa, Amadeu Carvalhaes Ribeiro afirma que "(...) ela [a regulação da atividade seguradora privada no Brasil] teve influência determinante sobre o mercado (...)"47 Em vista disso, para fins da presente exegese, convém utilizar-se da proposta de Amadeu Carvalhaes Ribeiro de divisão em períodos históricos da evolução da regulação do mercado de Seguros Privado no Brasil. Isto porque o autor logrou, de forma didática, aglutinar em períodos históricos a medida e o sentido da atuação estatal, tão marcante no desenvolvimento deste setor no Brasil, apontando os fatos marcantes e os seus traços característicos definidores. Destarte, o autor nos apresenta os seguintes períodos: 1) 1901-1930: Regulamento Murtinho (1901); 2) 1930-1945: Era Vargas - Criação do IRB (1939); 3) 1945-1964: tênue liberalização do mercado de seguros; 4) 1964-1980: Decreto-lei n. 73/66 (até hoje o principal corpo de normas reguladoras da atividade) - maior intervenção do Estado; e, 5) 1980-dias atuais: liberalização e desregulamentação.48 Ademais, considerando que as “(...) seguradoras são os principais agentes econômicos da história do mercado segurador brasileiro, [e que] sua evolução confunde-se com a desse mercado (...)”49 mostra-se imperativo descrever a analisar brevemente a evolução das companhias de seguro na medida em que estas serviram à evolução ou ao retrocesso das cooperativas de seguro.

3.2

ANTECEDENTES: 1808-1901 Como será exposto adiante, o Regulamento Murtinho pode ser considerado a

primeira ruptura efetiva com a quase integral desregulamentação do setor de Seguros 47

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.01. RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.21. 49 RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.21. 48

36

Privados no Brasil, de modo que convém tratar todo o período anterior à publicação deste Decreto em uma única seção, na qual se atentará mais a origem e aos estágios iniciais desse mercado. Ocorre que, a despeito de o controle estatal efetivamente se fazer presente apenas a partir de 1901, o mercado segurador brasileiro alcançou notável expansão e amadurecimento ao longo de praticamente toda a segunda metade do século XIX, ocasião na qual as cooperativas de seguro operaram com protagonismo algumas modalidades de seguro. De todo modo, o surgimento do mercado segurador no Brasil parece ter ocorrido ainda na primeira metade do século XIX por extensão e reprodução da tradição "marítima", "mediterrânea" ou do sul da Europa, notadamente por força do pacto colonial e da divisão internacional do trabalho. Primeiramente, é consensual que a dependência econômica portuguesa para com a Inglaterra foi desdobrada para a colônia brasileira, de modo que, ao longo de quase todo o século XIX, a Inglaterra exerceu intensa influência econômica e política sobre o Brasil, gozando de privilégios e impondo seus interesses na conformação do Estado brasileiro. O avanço econômico brasileiro, sobretudo à dependência do persistente "pacto colonial”, notadamente com exportação de produtos primários à Europa e a importação de artigos europeus, fez emergir um considerável fluxo marítimo-comercial centroperiferia. Neste contexto, surgiram inúmeras companhias de navegação no Brasil, ao lado das quais passaram a atuar companhias seguradoras estrangeiras, a maioria de origem inglesa. Daí porque os seguros marítimos são considerados a origem do mercado de seguros no Brasil. Além disto, esta modalidade assumiu a dianteira do setor de seguros ao longo de todo o século XIX, o que invariavelmente influenciou sobremaneira a legislação do período. “O desenvolvimento do seguro no último quarto do século XIX (...) teve evidente relação com dois fatores cruciais da história econômica do Brasil no período – a Inglaterra e o café -, na medida em

37

que a proliferação das companhias de seguro, principalmente inglesas, se deu a partir do auge da exportação do café.”50

Não à toa, as demais modalidades de seguro - notadamente terrestres e de vida -, as seguradoras nacionais, e as cooperativas de seguro também afloram no século XIX, mas em muito influenciadas pela organização, técnica, e pelos contratos praticados pelas companhias estrangeiras de seguros marítimos. “Apesar de algumas semelhanças com a pioneira experiência inglesa, por exemplo, a origem do setor com os seguros marítimos e a subsequente formação das Companhias de Seguros de Vida e “Contra Fogo”, a história das Companhias de Seguros no Brasil apresenta características próprias: país escravista e periférico, sem passar por um processo de industrialização durante o século XIX, e cuja interferência estrangeira foi determinante na constituição do capitalismo local.”51

Nota-se, portanto, que a origem e disseminação das companhias de seguro guardam íntima afinidade com o desenvolvimento da economia capitalista. O mesmo não pode ser dito quanto às cooperativas de seguro, o que não significa que estas não tenham proliferado e amalgamado à sua lógica no esteio da evolução do mesmo sistema. É que as cooperativas de seguro no Brasil derivam, assim como nos EUA e na Europa, de arranjos sociais marcados pela mutualidade e que antecedem o surgimento do mercado segurador sob a tradição “marítima”, que, no Brasil, se deu a partir de 1808. Estas organizações mútuas exerciam uma infinidade de atividade de auxílio e assistência mútuos, cujas naturezas se alteravam na medida das necessidades comuns dos corpos sociais; de modo que, na evolução das formas de intercâmbio econômico, adequavam-se a sorte de riscos que imperava, bem como incorporavam as técnicas e estruturas marcadamente capitalistas.

50

ALBERTI, Verena et al. Entre a Solidariedade e o Risco: História do Seguro Privado no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p.13-14. 51 SAES, Alexandre Macchione, e GAMBI, Thiago Fontelas Rosado. a formação das companhias de seguros na economia brasileira (1808-1864).disponível em: http://www.fea.usp.br/feaecon/incs/download.php?i=598&file=../media/livros/file_598.pdf. p.05.

38

Neste sentido, as sociedades mútuas, então já habituadas à distribuição de riscos, muito embora sob os traços da cooperação e solidariedade, paulatinamente absorveram a técnica atuarial das companhias, e, de modo a responder aos riscos próprios e emergentes do progresso capitalista, ampliaram seu rol de atividades, de modo a oferecer aos seus associados o seguro em sua acepção mais genuína.

3.2.1 PERÍODO

COLONIAL:

A

VINDA

DA

COROA

PORTUGUESA Ao final do século XVIII o seguro alcançou extraordinário progresso na Europa. Os avanços na organização da empresa, gestão técnica dos riscos, e no regime jurídico considerando aqui tanto a legislação estatal como os usos e costumes dos seguradores propiciaram a extensão - por meio da operação em larga escala - e ampliação - do ramo marítimo ao terrestre - dos serviços de seguro. “Esse progresso beneficiou a implantação do seguro entre nós, por força de nossa ligação com a cultura dos povos europeus e das transações comerciais que se estabeleceram com eles, a partir

da

abertura

dos

portos

para

o

intercâmbio

internacional.”52

A ausência de registros de operações de seguro no Brasil antes da vinda da família real portuguesa é um forte indício de que esta técnica e organização securitárias avançadas pouco ou nada adentraram no Brasil colonial, provavelmente em razão do pacto colonial e exclusivo comercial (monopólio real). “Tudo leva a crer que, se houve alguma transação, limitou-se ao seguro marítimo, feito no exterior pelos compradores dos produtos coloniais através de Portugal.”53 A adoção de providências logo após a chegada da família real portuguesa, como a autorização para o funcionamento de companhias seguradoras, constituição de órgão

52 53

ALVIM, Pedro. Op. Cit. 1999, p.48. ALVIM, Pedro. Op. Cit. 1999, p.50.

39

específico, e a edição de decretos e outros instrumentos, sugerem que o seguro já era praticado no Brasil perante a Casa de Seguros de Lisboa por meio de procuradores. A despeito disto, a chegada da coroa real portuguesa ao Brasil em 1808 parece constituir o verdadeiro marco inicial do mercado de seguros brasileiro, pois está diretamente relacionada aos dois principais fatores de soerguimento deste setor: a abertura dos portos – que significou o fim do pacto colonial e exclusivo comercial, ou seja, permitiu a abertura do comércio marítimo da colônia às nações amigas e instalação de seguradoras no Brasil; e a paulatina composição de um regime jurídico, em um primeiro momento essencialmente remissivo às escassas leis portuguesas, mas também acompanhado da incorporação dos usos e costumes do setor de seguros europeu. “Era escassa a legislação de Portugal sobre seguros. Nas antigas Ordenações do Reino, nem tampouco na compilação que delas fez D. Felipe, escreve Numa P. do Valle – nada encontramos que diga respeito ao seguro marítimo; mas, pelo que sabemos pelos historiadores e pelos Alvarás, Assentos, Leis e Resoluções a que temos feito menção, o seguro marítimo já era praticado em Portugal, de longa data.”54

O Regulamento da Casa de Seguros de Lisboa, aprovado pelo Alvará de 11 de agosto de 1791, foi, sem dúvida, a lei mais importante do período, e, em linhas gerais, dispunha sobre as condições de operação dos seguros, sobretudo marítimos, a exemplo do Artigo II que dispunha que todos os negociantes de boa fama ou crédito instalados em Lisboa e demais cidades do Reino, nacionais ou estrangeiras, podiam subscrever apólices, desde que tivessem seus nomes inscritos na Casa de Seguros de Lisboa e se submetessem ao seu regulamento. Poucas semanas após a sua chegada, o Príncipe Regente de Portugal autorizou, por meio de Decreto editado em 24 de fevereiro de 1808, o estabelecimento da primeira seguradora no Brasil, a Companhia de Seguros – Boa Fé, sediada na Bahia, que operava seguros marítimos. Vale assinalar que, a despeito da então abertura dos portos – que facilitou sobremaneira o intercâmbio marítimo, a primeira metade do século XIX no Brasil é marcada pela estagnação e decadência econômicas, em grande medida em razão do 54

ALVIM, Pedro. Op. Cit. p.48-49.

40

declínio da cana-de-açúcar e do algodão, o que causou sensível redução da renda per capita. Curioso notar que o preâmbulo do Decreto de funcionamento da Companhia de Seguros – Boa Fé, ao expressar os motivos dos acionistas para a sua constituição, refere-se às actuaes circumstancias e a tentativa de animar o commercio. Logo, os primeiros passos do setor de seguros no Brasil não resultaram tanto da ascensão do comércio marítimo pós-abertura dos portos, mas mais da tentativa de alguns comerciantes – que eram poucos - de enfrentar a estagnação econômica da colônia. Como a exportação de produtos agrícolas estava em franco declínio - em razão da queda dos preços internacionais - o surgimento do mercado segurador se lastreava no que restava deste intercâmbio em crise e na importação de manufaturados da Europa sobretudo da Inglaterra -, sendo muito provável que este comércio tenha auxiliado sobremaneira a formação das primeiras companhias de seguro no Brasil. Ainda quanto ao Decreto de funcionamento da Companhia de Seguros – Boa Fé, observamos, também no preâmbulo do instrumento, a conformação inicial da primeira forma de regulação do setor de seguros no Brasil por ocasião da ampla delegação imperial ao Conde da Ponte, então Governador e Capitão Geral da Capitania da Bahia, para tomar todas as providências necessárias ou úteis no sentido de fazer valer os termos do referido decreto, que foi o mote para a criação da Provedoria de Seguros da cidade da Bahia. “A necessidade de dar garantias para a expansão do comércio marítimo à nova sede da Coroa Portuguesa condicionou que D. João VI não estendesse o controle da Casa de Seguros de Lisboa para o Brasil. Bem, porque Lisboa, nessa altura, estava sob controle de Napoleão.”55

As regulações da Casa de Seguros de Lisboa (art. 5º), os usos e costumes marítimos, e as leis e ordenanças nacionais (art. 14º) perfaziam o direito aplicável às companhias de seguros até o advento da independência. Ainda, de acordo com a Lei da Boa Razão, a legislação comercial portuguesa era subsidiada pelas normas das nações cristãs iluminadas e polidas. 55

SAES, Alexandre M., e GAMBI, Thiago F. R. p.09.

41

Em 24 de outubro de 1808 o Príncipe Regente autorizou o funcionamento da Companhia de Seguros Conceito Público com sede na Bahia. Em 5 de fevereiro de 1810 autorizou o funcionamento da Companhia de Seguros Indemnidade com sede no Rio de Janeiro, bem como determinou a criação da Provedoria de Seguros do Rio de Janeiro. “Essas companhias, voltadas para operações de seguros marítimos, foram criadas por comerciantes instalados na colônia que desejavam auferir lucros também nesse novo setor (...)”.56 Estes comerciantes, em geral de grosso trato, compunham uma classe pouco numerosa, de modo que as companhias por estes constituídas guardavam um capital consideravelmente concentrado. Do início do período joanino até a independência o legislador pouco avançou sobre a matéria de seguros. O Regulamento da Casa de Seguros de Lisboa foi o cerne do regime jurídico dos seguros marítimos neste curto período. Não há que se falar em direito aplicável às cooperativas de seguros, pois não há relatos de que estas subsistissem, e mesmo que se fizessem presente muito provavelmente não tiveram significado econômico. Dentre os poucos instrumentos editados no período, temos o Alvará de 05 de maio de 1880, que revogou o Alvará de 17 de janeiro de 1757 e a Ordenança, Livro 04, Título 67, isto é, permitiu às partes ajustarem livremente os juros e prêmios dos contratos de câmbio e seguros marítimos. Pouco antes da declaração da independência foi editada a Resolução de 30 de agosto de 1820 que transplantou para o Brasil, com algumas modificações, o Regulamento da Casa de Seguros de Lisboa, passando a definir e regular o processo de avarias nos portos. “Contém ao todo 40 dispositivos, cujas normas sobre o contrato se restringem ao seguro marítimo, embora faça alusão aos seguros terrestres, no artigo IV, acima transcrito. A última disposição, todavia, é ampla, permitindo a aplicação do subsídio estrangeiro.”57

56 57

ALBERTI, Verena et al. Op. Cit. p.24. ALVIM, Pedro. Op. Cit. p.50.

42

“Como vemos, o panorama do seguro, no período colonial, não foi dos mais promissores. (...) Em todo caso, a sementes estava lançada e o caminho aberto para novas e maiores iniciativas.”58

3.2.2 PERÍODO DE FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO: 1822-1889 O advento da Independência não implicou alteração imediata da legislação sobre seguros ou direito societário. Na verdade, ainda antes de promulgada a Constituição de 1824 foi editada a Lei de 20 de outubro de 1823, que prorrogou a vigência das leis portuguesas ao Brasil, assim, as regulações da Casa de Seguros de Lisboa permaneceram vigentes. Em sequência à evolução do mercado segurador após o período joanino, permaneceu acentuada a abertura de companhias de seguros contra riscos marítimos após a independência. E, curiosamente, a primeira seguradora autorizada a funcionar adotava a forma mútua. Antes de tudo, vale observar que a evolução das mútuas de seguros ao longo do século XIX, seja quanto ao número de sociedades em operação ou à diversidade de ramos de atuação, parece em muito ter acompanhado o desenvolvimento das companhias de seguro, a despeito destas gozarem de expressiva maior participação de mercado. Na verdade, tanto as companhias como as mútuas se desenvolveram no bojo da inserção do Brasil no comércio internacional, sendo que, em alguma medida, as mútuas se apropriaram do conhecimento construído pelas companhias. Á evolução díspar entre as companhias e as mútuas se aprofunda apenas no século XX, quando outros fatores – notadamente a desastrada intervenção estatal – se fazem presente. Em resposta ao pedido de abertura de uma seguradora mútua por alguns negociantes proprietários de embarcações mercantis, os quais alegavam copiosas vantagens ao comércio nacional, foi emitido, por meio do Decreto de 29 de abril de 1828, o Imperial Beneplácito de autorização para o funcionamento da Sociedade de Seguros Mútuos Brasileiros. “O decreto, além de autorizar o funcionamento da sociedade e aprovar os seus estatutos, determinava que os usos e costumes marítimos estabelecidos pelos códigos 58

SANTOS, Amílcar. Seguro: doutrina, legislação e jurisprudência. Rio de Janeiro: Distribuidora Record Editora, 1959. p.23

43

das nações mais civilizadas serviriam, juntamente com os artigos dos estatutos, para reger a vida da sociedade.”59 É possível que esta sociedade mútua tenha sido uma resposta de alguns pequenos e médios negociantes proprietários de embarcações, no sentido de enfrentar os elevados riscos do comércio marítimo, contra os problemas dos seguros oferecidos pelas companhias, quais sejam, prêmios elevados, considerável potencial de falência da seguradora, etc. A despeito desta especulação, é indiscutível que as companhias de seguros eram muito lucrativas e seu capital acionário era altamente concentrado, e, além disso, a técnica atuarial predominante utilizada não era a mais moderna, bem como, ao reverso das mútuas, eram sociedades limitadas, ou seja, na ausência de provisões mínimas que fizessem frente aos sinistros – e ainda não havia norma que dispusesse sobre a matéria – os segurados não receberiam suas indenizações. Estes informações parecem indicar que a forma mútua poderia ser muito mais eficiente que as companhias no período. Não á toa, a Sociedade de Seguros Mútuos Brasileiros era, em 1850, a segunda maior seguradora em operação.60 Com vistas a estimular formação de companhias de seguro, o governo, em 26 de julho de 1831, editou uma Resolução de caráter liberal que centralizou o controle destas nas recém-criadas Procuradorias dos Seguros das Províncias Imperiais, restando extintas as antigas Provedorias de Seguros das Províncias; ainda afrouxou as exigências para constituição de Sociedades Anônimas e isentou os contratos de seguro de todo e qualquer imposto (art. 2º). Estas medidas não demorariam a fracassar. Ao longo de praticamente toda a primeira metade do século XIX faltou dinamismo à economia brasileira, e apenas após a Guerra do Paraguai este panorama iria se alterar. A despeito disso, foi justamente neste período em que se formou o setor de seguros no Brasil, o que sugere que o florescer das seguradoras talvez seja decorrência mais da inserção do Brasil no comércio internacional – leia-se alteração das estruturas econômicas - do que propriamente um crescimento econômico.

59

60

SANTOS, Amílcar. Op. Cit. p.23 SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.28.

44

“O movimento de abertura de Companhias de Seguros, inclusive de Agências, foi estável e pouco intenso até 1850. Nesse intervalo de 43 anos, foram criadas apenas 18 e, com exceção de 1843, foram abertas no máximo duas por ano. Em 1843, foram quatro, todas no Rio de Janeiro20. Os intervalos de tempo entre a criação das companhias eram bastante longos até a década de 1840, quando passa a ser criada pelo menos uma companhia por ano, com exceção dos anos de 1841 e 1847.”61

Apesar do pouco sucesso, aquelas medidas mostravam que o Estado brasileiro começava adotar políticas econômicas para o setor. Neste sentido, o Decreto nº 575, de 10 de janeiro de 1849, passava a exigir aprovação estatal prévia nos casos de incorporação de Sociedades Anônimas e a integralização da quarta parte do capital social das instituições bancárias. O Código Comercial de 1850, aprovado pela Lei nº 556, de 25 de junho de 1850, veio dar amparo jurídico a uma série de relações econômicas, sobretudo porque as mesmas haviam se intensificado com a adoção de medidas protecionistas – Tarifas Alves Branco (1944). “A legislação mercantil apresentada pelo Código Comercial lançava os princípios para a prática comercial, definindo regras para o transporte marítimo, para o funcionamento de empresas comerciais e de seguros, para a formação de Sociedades Anônimas e mesmo para a definição de quebras e falências, dentre outros negócios.”62

Nota-se que a partir de então o contrato de seguro, notadamente marítimo, passava a ter um regime jurídico próprio, em consonância com os países centrais. A despeito disso, logo operariam, no Brasil, seguros em outros ramos, notadamente contra riscos de incêndio e, em segundo plano, terrestres; logo se aplicaria aos mesmos o Código Comercial extensiva ou analogicamente, ou ainda no que coubesse, em consonância com demais fontes do direto. As companhias organizadas na forma de sociedade anônimas, ou comandita, e mesmo as agências, passavam a ter, também, um regime bem definido. Na outra ponta, 61 62

SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.20. SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.12.

45

as sociedades mútuas restavam sem um regime próprio, o que não parecia, no período, constituir um impedimento. “De qualquer maneira, tanto o contexto de expansão econômica como o de estímulo pela nova legislação brasileira auxiliou a profunda difusão das Companhias de Seguros durante a década de 1850.”63 Neste contexto de expansão, as sociedades anônimas de seguro, de um lado, “(...) era[m] composta[s] das maiores empresas, com maior número de acionistas, e estes faziam parte de grupos de investidores com capitais em outros ramos da economia. As Companhias de Seguros Mútuos eram empresas em que todos os sócios dispunham, como proprietários, do mesmo tipo de objeto segurado: fossem embarcações, escravos, prédios ou outras mercadorias.”64 Estas eram, até em razão da sua própria natureza e lógica de funcionamento, via de regra, nacionais e, embora detivessem uma menor participação do mercado de seguros frente as sociedades anônimas, operavam, em geral, nos mesmos ramos de seguros, bem como assumiam dimensões tão variadas quanto as companhias. As companhias de seguros estrangeiras lograriam peso no mercado brasileiro de seguros apenas a partir do último quarto do século XIX, mas já partir da metade deste século se fariam presente. Isto porque a necessidade de autorização e a imposição do cumprimento de algumas exigências pelo Estado, algumas das quais previstas no Código Comercial, dificultaram um pouco a expansão inicial das companhias estrangeiras no Brasil. Assim como a história dos seguros em grande parte do mundo, os seguros contra riscos de incêndio constituíram o segundo ramo de formação e expansão do mercado de seguros no Brasil. Uma das primeiras seguradoras a atuar neste ramo, e que adotava a forma mútua, foi a Companhia Imperial de Seguros Mútuos Contra fogo, autorizada a funcionar em 1854, que teve longuíssima operação, inclusive com ampla atuação no ramo elementar ao longo do século XX, e que foi sofreu desmutualização em 1963. Vale transcrever texto oficial da Companhia Imperial de Seguros Mútuos Contra fogo, publicado no Almanack Laemmert de 1865, que muito bem expõe as propriedades das sociedades mútuas no período.

63 64

SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.16. SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.17.

46

“Esta companhia, além de ser a mais apropriada para o Rio de Janeiro em razão da raríssima occurrencia de sinistros de alguma monta, é também e indubitavelmente, comparada com as chamadas a premio, mais equitativa, mais economica, mais segura e mais moral. É mais equitativa: porque os segurados, que são os próprios associados, regem tudo por si mesmos e não ficão, como nas companhias a premio, completamente estranhos e reduzidos a meros espectadores, testemunhas passivas de innumeros abusos, que o espirito de cobiça nas companhias a premio póde inventar. É mais economica: porque nas companhias a premio os segurados pagão não sómente uma contribuição invariavel, mas calculada de maneira que concorrem para todos os gastos da admnistração, e (note-se) para lucros fabulosos que cada semestre se repartem pelos acionistas, e este excesso, que nas companhias a premio dependem os segurados, não sahe de seu bolso na companhia mutua. É mais segura: porque as companhias a premio estão muito longe de ter em sua origem capitaes que offereção uma garantia equivalente áquella que representa o minimum do fundo capital de uma companhia mutua, pois a garantia desta é sempre proporcional á extensão das operações, seu fundo social augmenta precisamente na mesma relação que ellas, emquanto que em uma companhia a premio essa garantia não consistindo senão no fundo social, que fica, por assim dizer, estacionario, diminue ao contrario em razão do accrescimo de operações. É mais moral: porque o nosso Codigo Commercial, assim como o de todas as nações cultas, diz que os accionistas das companhias não são responsaveis ácima do valor de suas respectivas acções, porém não dizem nem mesmo concedem e tolerão que uma companhia cujo capital se limita a dous ou tres mil contos possa respousabilisar-se por 50, 60, ou 100 mil contos. Consequentemente as companhias a premio são de que, não só na companhia mutua o saldo dos premios dos vossos seguros e juros que rendem nos Bancos revertem em vosso beneficio e não passão, como acontece nas companhias a premio, para o limitado circulo chamado

47

accionistas, mas de que, se nesta côrte (o que Deos jámais permitta) houvesse incendio que absorvesse o capital representativo das companhias a premio, aí daquelles d'entre vós que fossem os ultimos na apresentação de suas reclamações! A Imperial Companhia de Seguro Mutuo Contra Fogo no nono anno da sua installação, lutando com todas as dificuldades inherentes a estabelecimentos novos (e ainda com a opposição de certos adversarios a quem ella foi ferir interesses) pode dividir por seus socios mais de 65 por %: o seu Fundo capital realizado em seguros excede a Rs. 57,000:000$000, e o número de seus Associados a 3,450. As pessoas que desde então segurarão nesta Companhia suas propriedades economisarão mais de Rs. 490:000$000, que terião perdido se seus seguros fossem effeituados em qualquer das companhias a premio.”65

Este excerto transcrito nos permite, ainda, afirmar o elevado grau de consciência, já no início da primeira metade do século XIX, das expressivas vantagens das sociedades mútuas. O trecho “(...) [os segurados] regem tudo por si mesmos e não ficão (...) reduzidos a meros espectadores” demonstra que já havia algum reconhecimento da aptidão das sociedades mútuas em melhor lidar com problemas de assimetria de informação. Aponta, ainda, que tomavam as sociedades mútuas como mais eficientes economicamente, pois que destas não seriam retirados lucros fabulosos, isto é, o excedente retornaria aos segurados na forma de reinvestimento e redução dos prêmios. Ponderam, também, que as companhias eram sociedades de responsabilidade limitada, sujeitando-se o segurado, em caso de insuficiência das provisões - observando que ainda não havia exigência legal de provisões mínimas -, ao não recebimento integral da indenização à que faz jus; de outro lado, o fundo comum das sociedades mútuas é sempre proporcional à extensão das operações, isto é, os prêmios pagos pelos associados correspondem sempre ao custo das indenizações, descontados os custos administrativos. 65

Almanack Laemmert, Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert, 1865. p.401.

48

Muito curioso é trecho que dispõe a existência de “(...) opposição de certos adversários a quem ella [a Companhia Imperial de Seguros Mútuos Contra fogo] foi ferir interesses”; reforçando a tese de que as sociedades anônimas de seguros, então controladas por poucos e poderosos comerciantes, ofereciam apólices altamente lucrativas. O ramo de seguros de vida, entretanto, demoraria mais para se desenvolver, notadamente porque persistia o receio de que pudesse incentivar mortes, temor que foi positivado no Código Comercial – o art. 686, item “2”, proibia expressamente o seguro sobre a vida de alguma pessoa livre. Subsistiam, entretanto, divergências quanto à correta interpretação desta vedação do Código Comercial, de modo que não foi obstada, em 1855, a constituição da primeira

sociedade

de

seguro

de

vida

sobre

pessoas

livres,

denominada

“TRAQUILIDADE”. De todo modo, poder-se-ia instituir seguro sobre a vida de escravo, mas como o tráfico negreiro já estava proibido, o seguro de vida floresceu com o objeto de segurar os escravos que já trabalhavam no Brasil. “Quanto a esse tipo de seguro, [até 1864] todas as companhias se localizavam na Província do Rio de Janeiro e estavam organizadas como Sociedades Anônimas (quatro) ou Companhias de Seguros Mútuos (uma).”66 Esta sociedade mútua era a “TUTORA BRASILEIRA” – seguros mútuos sobre a vida, que foi fundada em 1858. O terceiro quartel do século XIX, ao inverso da primeira metade, que foi marcada pela contínua estagnação econômica, pautou-se por uma considerável instabilidade econômica no Brasil, em muito devido a equívocos em matéria de política econômica, o que, em alguma medida, serviu de aprendizado ao governo para a regulação dos mercados financeiro e securitário. O progresso econômico inaugurado pela Tarifa Alves Branco (1944) perduraria por pouco mais de uma década. A política emissionista do ministro Souza Franco, em grande medida, implicaria o elevado número de falências entre 1857 e 1858, permanecendo estagnado a formação de novas empresas. E é exatamente neste contexto de crise que é formulada a Lei nº 1.083, de 22 de agosto de 1860, chamada Lei de Entraves, que inaugura um período de maior controle e

66

SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.25-26.

49

regulação pelo Estado das atividades econômicas, notadamente das instituições financeiras, e das Companhias e Sociedades Anônimas. No que toca as seguradoras, as organizadas na forma de companhias ou sociedades anônimas, e ainda na forma mútua - por força da segunda parte do § 1º do art. 2º da Lei de Entraves -, ou seja, todas as seguradoras, ficam obrigadas a operar, ou incorporar outra sociedade, mediante autorização estatal prévia, sob pena de dispendiosa multa, de acordo com a primeira parte do § 1º do art. 2º da Lei de Entraves. O mesmo dispositivo ainda dispõe que “ficão solidariamente responsaveis os socios que as organisarem ou tomarem parte em suas deliberações, direcção ou gerencia, e as pessoas que directa ou indirectamente as promoverem.” As sociedades mútuas ficam ainda obrigadas a depositar as contribuições dos sócios, no prazo máximo de oito dias, á Estação de Fazenda que o Governo designar em cada Província ou Município, e vencerão ao juro de 6% desde o dia de sua entrada. Os juros serão acumulados semestralmente, e a retirada dos depósitos só poderá ter lugar com prévio aviso do depositante, feito com antecedência de oito dias pelo menos, consoante o § 16 CC §18 do art. 2º da Lei nº 1.083/1860. Ainda, no § 22. do mesmo art. 2º, a Lei concede isenção fiscal às sociedades mútuas, conforme segue: “As Caixas Economicas, os Monte-Pios ou de Soccorro, e as Sociedades de Soccorros Mutuos, creados em virtude da presente Lei, ficão isentos do imposto do sello, e terão a faculdade de aceitar doações e legados.” Ainda em 1960 foram editados os Decretos de nº 2.679, de 02 de novembro, e 2.711, de 19 de dezembro, sendo que o primeiro impôs as seguradoras, inclusive aquelas organizadas sob a forma mútua, a apresentação obrigatória dos balanços e outros documentos das sociedades, e o segundo a obrigatoriedade do pedido de autorização para funcionamento das sociedades e aprovação dos respectivos estatutos. Pouco efeito, entretanto, teve a Lei de Entraves sobre o nível da atividade econômica. A crise se aprofundou até 1864, quando atingiu o seu auge. O número de abertura de seguradoras caiu drasticamente, mas, ainda sim, permitiu a constituição, em 1963, da Companhia de Seguro Mútuo “Contra Fogo” Alliança. É possível que a formação desta seguradora mútua tenha sido justamente estimulada por esta crise. Em sendo o risco de fogo, ao reverso dos seguros marítimos e terrestres, pouco afetado pela redução do dinamismo econômico, e dispondo os segurados de menor renda para pagar os prêmios, bem como enfraquecidas as

50

companhias de seguros, as mútuas de seguros poderiam ter despertado as atenções, pois que, nesta oportunidade, poderia ter sobressaído a sua maior eficiência econômica. A partir de 1964 ocorre um aumento expressivo do número de abertura de seguradoras, provavelmente em razão da Guerra do Paraguai, que impôs o retorno de uma política emissionista. “No período estudado [1822-1863], pouco menos da metade das 83 companhias levantadas eram Agências. Do restante, 40 eram Sociedades Anônimas e apenas 5, Companhias de Seguros Mútuos.”67 Logo, para cada seguradora organizada sob a forma mútua haveria outras oito sob a forma de sociedade anônima, desconsiderando as Agências que eram, grande parte das vezes, braços das companhias em outras províncias. O principal motivo desta prevalência das companhias é manifesto: a configuração do capitalismo que se estruturava no período, pois que as atividades das sociedades anônimas “(...) era[m] um negócio a mais, exercido por negociantes, atrelado à economia exportadora brasileira.”68 De outro lado, as seguradoras mútuas derivavam de organizações de socorro ou auxílio mútuos, consideravelmente numerosas e com amplíssimo escopo de atuação, que eram de alguma forma influenciadas pelas companhias. Na verdade, não raro as primeiras seguradoras mútuas eram propriamente um alargamento das funções de organizações de auxílio mútuo. Anotando que estes arranjos de auxílio mútuo organizavam-se no amparo de grupos sociais de diferentes classes e com diferentes vínculos. Assim, subsistiam nas classes mais abastadas – como associações dotais -, e nas mais baixas – como associações operárias, de pequenos comerciantes, etc.; bem como se assentavam sobre vínculos sociais, econômicos, políticos ou mesmo religiosos. Tanto assim, que algumas companhias de seguro – como a Companhia Brasileira de Seguros, fundada em 1971, podiam, consoante prescrito em seus estatutos sociais, organizar e administrar seguradoras mútuas contra indenização própria. Isto comprova não apenas que as companhias influenciavam as mútuas – no sentido de estender a operação de seguros aos arranjos mútuos e também de prover técnicas mais modernas de gestão de riscos – como também que esta era uma forma viável de mutualização de riscos. 67 68

SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.25. SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.25.

51

Enquanto as sociedades anônimas se lastreavam em vínculos de natureza puramente negocial voltadas à realização do lucro, as seguradoras mútuas conservavam o laço solidário e cooperativo das entidades que tinham origem, pois que seu fim último era exatamente o de preservar os seus associados de possíveis prejuízos, distribuindo-os entre si. “Em suma, sem levar em conta a diferenciação por tipo de organização, entre 1808 e 1864, a maioria das Companhias de Seguros era brasileira, estava concentrada na Província do Rio de Janeiro e oferecia, acima de tudo, seguros marítimos e contra incêndios.”69

Neste panorama, as mútuas representavam uma fração menor, mas presente, de participação neste mercado, sendo que, em larga medida, se desenvolveram ao lado (praticamente nos mesmos ramos) e com a mesma velocidade das companhias. “A diferença mais evidente entre elas e as Sociedades Anônimas e as Companhias de Seguros Mútuos estava justamente em suas nacionalidades. Enquanto estas últimas eram totalmente nacionais, existiam no país Agências de seguros de oito países diferentes.”70

A partir de 1864 inicia-se o período de consolidação do mercado de seguros, com expressiva diversificação de interesse legítimos segurados. “Havia seguradoras para diferentes ramos, predominando a exploração de seguros marítimos, de incêndio e de pessoas. Uma delas se propunha a segurar bilhetes das loterias do Estado sendo posteriormente cassada sua autorização sobre o fundamento de que o seguro indeniza perda eventual e não pode ser meio de obter lucro. Em 1874, organizou-se uma outra para seguros de carros, veículos e animais. Algumas davam cobertura a seguros contra “desastres”. E havia também a ‘COMPANHIA DE SEGUROS MÚTUOS SOBRE RECRUTAMENT’ “para os efeitos do recrutamento militar”. Registre-se 69 70

SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.25. SAES, Alexandre M., e GAMBI, T. F. Rosado. Op. Cit. p.30-31.

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uma outra que englobava os riscos de “vida, contra fogo, contra os efeitos das falências e a favor dos falidos e contra o recrutamento e conscrição”. Apareceu uma com o nome curiosos de “AUXILIAR DO TRABALHO NACIONAL E DOS INGÊNUOS”. Outra com a denomicação de “GARANTIA DA SEMENTEIRA”.71

É importante observar que, a despeito de já subsistirem, neste período, mútuas que operavam exclusivamente seguros, ainda grande parte das mútuas eram organizadas na forma de sociedades de socorro e, portanto, exerciam um amplo rol de atividades além da operação de seguros. Algumas destas sociedades estruturavam-se mais com base na solidariedade, como as casas de misericórdia e de auxílio aos necessitados e enfermos, outras mais com base na cooperação, como as associações profissionais. Estas últimas guardam mais relevância para a constituição de sociedades mútuas enquanto as primeiras tem mais relevância quanto à evolução da previdência social. Na verdade, as associações profissionais, de classe, ou de categoria do setor econômico passaram a organizar sociedades de auxílio mútuo, então já mais sofisticadas que as sociedades de socorro, mas também não se voltavam exclusivamente à mutualização de riscos, pois seu objeto, até em razão do seu propósito, era muito mais amplo, englobando as atividades de concessão de crédito, capitalização, etc. Apenas mais ao final do século se observa uma intensificação da abertura de mútuas de seguros, algumas das quais, inclusive, menos vinculadas a uma ou outra associação, e mais voltadas a um grupo cujos membros vínculos comuns de forma geral. A economia da segunda metade do século XIX, considerada em seu conjunto, desfrutou de um expressivo crescimento. Ainda assim, o comércio exterior permaneceu o setor mais dinâmico – quintuplicou de 1840 a 189072. Não à toa, os seguros marítimos continuaram predominantes até o final do século XIX. No último quartel do século XIX o dinamismo econômico intensificou-se com a economia cafeeira, que amparou o aumento da importância relativa do setor assalariado.

71

72

ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999. p.52. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.147.

53

Ao final do Império foi editada a Lei 3.150, de 4 de novembro de 1882, que estabeleceu uma distinção desvelada no regramento jurídico das seguradoras organizadas sob a forma de sociedade anônima e cooperativa de seguros. O art. 1º da referida Lei prescrevia que as sociedades anônimas poderiam se estabelecer sem autorização do governo, ao passo que o §2º do mesmo dispositivo determinava que as sociedades de seguros mútuos continuavam a depender de autorização do governo para que pudessem se organizar. Esta diferença de tratamento expõe a influência exercida pelas companhias, especialmente as inglesas, em sede de um mercado altamente rentável, como é o mercado de seguros, sobretudo em uma conjuntura de aumento do intercâmbio marítimo, sobre o governo.

3.3

PRIMEIRA REPÚBLICA: 1889-1930 “Tudo indica (...) que ao final do século XIX a atividade de seguradora em

nosso país era realizada em larga medida sob bases cooperativas.”73 A justificativa apontada por Amadeu Carvalhaes Ribeiro para esta proeminência das cooperativas recai na “incipiência do capitalismo da época”74, causa demasiadamente ampla que aponta para muitas outras circunstâncias, dentre as quais: - o poder econômico e a capacidade técnica débeis das companhias seguradoras nacionais, que eram incapazes de segurar grandes massas de risco e, também, de segurar determinadas modalidades de interesses legítimos; - o modus operandi das companhias seguradoras estrangeiras, as quais, a despeito de gozarem de poder econômico e capacidade técnica consideráveis, privilegiavam os riscos mais lucrativos e conhecidos, passando ao largo de diversas modalidades de interesses legítimos de caráter mais local; e, - a dinâmica e a conformação das atividades econômicas, notadamente com poucos agentes nos setores secundário e terciário, grande parte dos quais atuando em nível local – em grande medida em razão da dispersão territorial –, e ainda o provincianismo das cidades – que fortalecia as relações pessoais -, todas circunstâncias que propiciavam a articulação dos agentes; e,

73 74

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. pp. 52-53. RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. pp. 52.

54

- o baixo nível técnico das atividades, que trazia homogeneidade aos riscos e, consequentemente, facilitava a mutualização de riscos. Daí porque a única e natural alternativa para os pequenos e médios empresários seria a mútua associação em cooperativas de seguros com vistas à proteção de riscos comuns. Não se pode, entretanto, simplesmente identificar esta proeminência das cooperativas de seguro a um capitalismo pouco evoluído ou em seus estágios iniciais, pois, conforme observado em outros países, as cooperativas exerceram diversos papéis ao longo da evolução do sistema econômico capitalista. Na verdade, nesta etapa as cooperativas pouco competiam com as seguradoras, de modo que as duas formas pareciam se complementar em alguma medida. Sob a perspectiva regulatória, a significativa presença de cooperativas de seguro ao final do século XIX pode ter sido beneficiada pela política-legislativa liberalizante do setor de Seguros Privados em geral. Isto porque, a despeito de hoje, conforme veremos adiante, a atividade securitária cooperativa demandar, para seu florescimento e permanência, elevada disciplina impositiva estatal, no referido período – ao final do século XIX – esta ausência de um efetivo controle estatal significava um ganho comparativo da forma cooperativa frente às companhias, pois que a incipiente dinâmica econômica, e outras circunstâncias – como a baixa capacidade técnica das companhias, a dimensão reduzida das cooperativas, etc., ainda favoreciam aos vínculos de pessoalidade e solidariedade. Por óbvio, as companhias seguradoras expandir-se-iam e fariam frente às cooperativas em suas áreas de atuação, mas, no limite, a persistência de uma política de desregulação implicaria falhas de mercado, como o problema da assimetria de informação, impedindo ora as cooperativas e ora as companhias de avançaram em determinados mercados, fazendo com que uma forma se expandisse, em alguma medida, em mercado obstaculizado à outra, e vice-versa, sendo que, na acomodação deste processo, muitas desutilidades seriam geradas aos consumidores. O papel regulatório do Estado, além de criar uma política em sentido amplo para o setor, seria o de corrigir estas falhas de mercado a fim de trazer benefícios efetivos aos consumidores. Esta política pública, na medida em que deveria ser orientada por valores e princípios constitucionais, privilegiaria a expansão ora da forma cooperativa e ora da companhia, objetivando a um ponto de equilíbrio na coexistência de ambas pautado pelos ditames constitucionais da política econômica.

55

Assim, a presente busca do espaço e papel das cooperativas no mercado securitário não deprecia a importância das companhias, mesmo porque neste período estas são essenciais ao desenvolvimento econômico do país, notadamente industrial. O que se explora neste trabalho é se não teria sido mais conveniente, em um sentido de eficiência social, a convivência das duas formas. Ocorre que ao longo de praticamente toda a primeira metade do século XX a participação das cooperativas de seguros descendeu drasticamente, ao passo que a participação das companhias emergiu fortemente. E já “em 1931, entre as dez maiores seguradoras atuantes no mercado brasileiro havia apenas uma cooperativa, a União Comercial dos Varejistas”75. E ao final dos anos cinquenta quase não havia mais cooperativas de seguros no Brasil. Uma das razões apontadas para o declínio das cooperativas é a elevadíssima concentração de propriedades e capitais no Brasil, que, em um primeiro momento, parece benéfica às cooperativas, pois os vínculos de cooperação e solidariedade são mais prósperos em configurações oligopolistas; ocorre que a estrutura econômica era tão concentrada que, face ao poder econômico de alguns agentes, era mais fácil vencer do que cooperar, pois para esta deve haver um mínimo de agentes concorrendo no mercado com relativa igualdade. Ainda que as razões apontadas não tenham implicado, por assim dizer, o declínio das cooperativas, a mera não expansão desta forma, considerando as dificuldades de permanência neste mercado, possivelmente implicaria o seu declínio, pois o contínuo desenvolvimento das companhias acabaria por suplantar a participação das cooperativas. Ademais, as companhias seguradoras estrangeiras já haviam se estabelecido e organizado no Brasil ainda no século XIX, quando a dinâmica econômica do país engatinhava, de modo que, ao início do século XX, quando a indústria do país começa a se desenvolver, as cooperativas teriam que enfrentar, além das consideráveis barreiras de acesso ao mercado, a concorrência das companhias estrangeiras, que já atuavam largamente com respaldo regulatório. No período da Primeira República, o Brasil não mudaria muito o seu papel na divisão internacional do trabalho, de exportador de produtos primários, notadamente café, mas a estrutura e a dinâmica econômicas internas sofreriam mudanças profundas.

75

ALBERTI, Verena et al. Op. Cit. p.43.

56

Até aproximadamente o Regulamento Murtinho as companhias estrangeiras inglesas exerceram pesada influência sobre o desenvolvimento do mercado de seguros, e inclusive sobre o sentido da regulação do mercado, o que decorria do intenso comércio marítimo fortemente operado por companhias inglesas. Ao final do século XIX e início do XX ganhou força um movimento contra a "desnacionalização" do país, tendo em vista que grande parte dos agentes econômicos que atuavam no Brasil, desconsiderando o setor primário, eram estrangeiros, motivo pelo qual a remessa de dividendos ao exterior colocava em risco a balança comercial brasileira. Os Decretos nº 164, de 17 de janeiro de 1890, e nº 434, de 4 de julho de 1891 mantiveram o regramento da Lei 3.150, de 4 de novembro de 1882, no sentido de que as sociedades anônimas poderiam se estabelecer sem autorização do governo, ao passo que o §2º do mesmo dispositivo determinava que as sociedades de seguros mútuos continuavam a depender de autorização do governo para que pudessem se organizar.

"O primeiro regulamento das operações de seguro ocorreu em 1895 (Decreto nº 294, de 5.09.1895). Aplicava-se às companhias estrangeiras. Exploravam o seguro de vida e como não aceitaram o regulamento, preferiram encerrar as suas atividades no país.”76

Dentre as medidas, destacamos a autorização prévia para o funcionamento da companhia, exigência de depósito inicial, autonomia administrativa das subsidiárias, fiscalização dos livros e documentos, mas ainda não era uma lei completa. A partir da virada do século, muito em razão do aumento da competição por mercados mundiais, houve uma maior diversificação de investimentos em relação às origens de capital aportado no Brasil. O que elevou a preocupação dos parlamentares com a crescente e já vultosa evasão de divisas.

"Foi nessa conjuntura tensa que o governo da República, em 1901, por intermédio do Presidente Campos Salles e de seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, tomou a posição de intervir mais

76

ALVIM, Pedro. Op. Cit. 1999, p.54.

57

decididamente no mercado, aprofundando, com novo regulamento, as medidas determinadas pela legislação vigentes."77

Daí que se editou o Regulamento Murtinho, que criou o primeiro órgão fiscalizador da atividade de seguros: a Superintendência Geral de Seguros, então subordinada ao Ministério da Fazenda, que realizava a fiscalização preventiva e repressiva dos seguradores. Esta lei foi a primeira a estabelecer um regramento mais preciso das sociedades mútuas de seguro, divindo-as em mútuas gerais (art.75 e ss.) e de vida (art. 184 e ss.). O regime jurídico é essencialmente o mesmo, alterado apenas alguns requisitos de constituição. Ambas dependiam de autorização do governo para funcionar (art.s 75 e 184), só podiam aceitar cada risco até 20 % de suas contribuições e reservas (art.s 80 e 189), e deveriam realizar um depósito inicial para a sua operação (art.s 82 e 191). O Decreto nº 5.071/1902 reduziu consideravelmente a regulação das sociedades mútuas, parecia que a intenção do legislador era a de que fossem cridos regulamentos que especificassem algumas questões, como provisões mínimas e depósito inicial. Vale ressaltar que "[o]s riscos mais importantes [leia-se, lucrativos] ficavam com as estrangeiras. Ainda que assumidos pelas nacionais, viam-se na contingência de repassá-los por falta de condições técnico-financeiras para conservá-los em carteira."78 Daí porque uma sorte de interesses legítimos restavam não acobertados pelos seguros das companhias, ocasião na qual as sociedades mútuas se ampliavam a sua participação. Anota-se que a economia brasileira, após a primeira guerra, sofreu profundas transformações, especialmente em razão da industrialização, dinamização do mercado interno, e da urbanização, muito embora a exportação de produtos primários fosse, ainda, o seu principal motor. A despeito disso, a economia brasileira era ainda muito pouco desenvolvida, sendo que prevaleciam os pequenos e médios empresários em atividades pouco elaboradas.

77 78

ALBERTI, Verena et al. Op. Cit. p.43. ALVIM, Pedro. Op. Cit. 1999, p.44.

58

"Seria nesse contexto de desenvolvimento urbano que iria se dar o crescimento do mercado de seguros no Brasil, impulsionado pela demanda de novos ramos como, por exemplo, os seguros de acidentes de trabalho e outros seguros sociais, voltados para a cobertura dos casos de doença, velhice, incapacidade ou morte."79

E também seguros organizados na forma mútua pelas associações de pequenos e médios empresários que, não logrando a cobertura de seus riscos pelas companhias, optavam por se associarem. Um exemplo disso foi a União Comercial dos Varejistas, que constitui mútua de seguro. Ocorre que a ausência de controle estatal, em grande medida em razão da influência das companhias estrangeiras, ao lado da profunda transformação da dinâmica econômico-social interna, fez com que a forma jurídica das sociedades mútuas, que deveria operar sob os fundamentos da cooperação e solidariedade, fosse capturada por sujeitos mal-intencionados que, notando o elevado potencial da demanda para a sua atividade, e os seus custos reduzidos, inclusive tributários, constituíram dezenas de sociedades mútuas, a partir de meados de 1910, para o fim exclusivo de servirem aos seus interesses. "(...) foi fertilíssimo na organização de sociedade de seguros, principalmente, ou, quase exclusivamente, sob a forma mútua. As cousas mais disparatadas, organizações sem nenhum cálculo razoável, sem nenhuma vista aos cálculos de probabilidades, serviam para os imprevidentes e poucos honestos manipuladores de tais instituições. Consequência: - instituto de previdência de maior utilidade, como são as sociedades mútuas em suas várias modalidades, tornaram-se em dois anos,

entre

nós,

uma

fontes

de

especulações

inconfessáveis,

enriquecendo uma dúzia de homens sem escrúpulos em prejuízo de quase toda a população brasileira.”80

Não tardaria para que o sensível equilíbrio econômico-financeiro destas seguradoras tornasse inviável a continuidade de suas operações. A derrocada era fatal, 79

80

ALBERTI, Verena et al. Op. Cit. p.47. NUMA, P. do Valle. Seguro Terrestre. São Paulo: Casa Duprat. 1922. p.23.

59

quase todas as sociedades mútuas que se haviam constituído pouco anos antes tornaramse insolventes “O

índice

de

mortalidade,

naquela

época,

no

Brasil,

ultrapassava, de muito, os dezoito por dois mil apregoados pela Caixas. Oscilava, conforme a região, entre vinte e oito e quarenta e oito por dois mil, Êsse índice, para as Caixas, era ainda maior pelo fato de não haver para os seus associados exigência de exame médico ou de idade, o que facultava o ingresso de pessoas idosas ou em precário estado de saúde. Nessas condições, tinham os mutualista de pagar, anualmente, uma cota muito superior a que fôra prevista. Isso deu origem a que uma grande número de associados se recusassem ao pagamento das cotas mutuárias. E, como não havia obrigação expressa dos mutuantes para com as Caixas, tal recusa não importava nenhuma responsabilidade o que vinha agravar sobremodo a situação. Acrescente-se a isso a ausência de contrôle dos sinistros e termos as razões da derrocada final que cêdo se processou, fazendo com que tais associações desaparecessem em sua quase totalidade.81

A despeito da malfadada passagem de 1914 quando se operou verdadeira tontinagem especulativa e abusiva dos segurados pelos fundadores mal intencionados das mútuas, o Código Civil de 1916 trouxe um regime jurídico relativamente permissivo à operação das seguradoras mútuas. De qualquer modo, prescreveu a necessidade de autorização prévia (§ 1º do art 20) e estabeleceu a estrutura mínima das sociedades mútuas no art. 1.466 e ss. Quanto ao contrato de seguro, ajudou a preencher as lacunas do Código Comercial, já que o Código Civil de 1916 dispôs sobre os seguros terrestres, de coisas e de pessoas. Talvez a intenção do legislador fosse justamente não entrar nesta seara, que caberia ao legislador ordinário, até no sentido de prolongar a vigência do código no tempo. A verdade é que a população não mais iludiria tão facilmente com as sociedades mútuas.

81

SANTOS, Amílcar. Op. Cit. pp.25-27.

60

No sentido de completar o Código Civil de 1916 e regular o mercado de seguros foi editado o Decreto nº 14.593, de 31 de Dezembro de 1920, que aprovou o regulamento para o serviço de fiscalização das companhias de seguros nacionais e estrangeiras. Influenciado pela fatídica insolvência em cadeia de dezenas de sociedades mútuas poucos anos antes, este regulamento institui um controle muito mais rigoroso das sociedades mútuas. Em linhas gerais, além de repetir algumas prescrições do Regulamento Murtinho, como a necessidade de autorização prévia (art. 1), e de fundo inicial mínimo (art. 41), estabeleceu, também, regras de destinação das provisões (art. 43 e ss.), normas para efetiva participação dos associados nos negócios sociais (art. 46 e ss), e o limite de assunção de riscos á 40% do capital realizado (art. 50). Este mesmo regulamento foi alterado pelo Decreto nº 16.738, de 31 de Dezembro de 1924, que não modificou a estrutura do regime jurídico das sociedades mútuas "Uma particularidade interessante se prense à existência dêsses dois decretos. Como surgissem com a expedição do decreto 16.738, reclamações das sociedades de seguros, o Ministro da Fazenda, por uma nota do "Jornal do Comércio", suspendeu a sua execução para decidir dos protestos apresentados. Daí resultou uma situação sui generis, fato inédito na legislação brasileira: de 1924 a 1932 aplicou-se um regulamento revogado e não se pôs em execução um regulamento em vigor."82

O processo de industrialização e urbanização, notadamente a partir da primeira década do século passado, acelerou a formação da classe operária nas cidades. Como em praticamente toda a história mundial, essa industrialização foi acompanhada de péssimas condições de trabalho, que impulsionaram a organização dos trabalhadores por direito sociais. Neste esteio, as empresas passaram a contratar seguros contra acidentes de trabalho para os seus trabalhadores, especialmente a partir do Decreto nº 3.724/19, que definia a extensão da responsabilidade dos empregadores sobre estes acidentes. “Os

82

SANTOS, Amílcar. Op. Cit. p.27.

61

dados mostram que 47,57% das empresas paulistas possuíam em 1919 algum tipo de seguro.”83 O Decreto nº 13.498, de 12 de março de 1919, dispôs sobre os seguros de acidentes de trabalho, de um lado estabelecendo a forma pela qual os empregadores contratariam o seguro, e de outra o regramento jurídico aplicável ás sociedades que optassem por operar neste ramo. Poderiam operar seguros de acidentes de trabalho as companhias de seguros devidamente autorizadas a operar neste ramo e os sindicatos profissionais. Estas sociedades, além de serem fiscalizadas pela Inspetoria de Seguros, subordinavam-se á supervisão do Ministério da Agricultura (art. 29, “c”). “Nesta data [1923], segundo dados apurados pelo por esse conselho [o Conselho Nacional do Trabalho], existiam nove companhias de seguros autorizadas a atuar com acidentes de trabalho, sendo duas em São Paulo (Garantia Industrial e Brasileira de Seguros) e sete com sede no Distrito Federal (Ipiranga, Lloyd Industrial Sul Americano, Segurança Industrial, Anglo Sul-Americana, Internacional, Guanabara e Sociedade Cooperativa de Seguros em Fábricas de Tecidos.”84

Logo, praticamente todas as seguradoras contra acidentes de trabalho eram organizadas na forma de companhias de seguro, e, em 1921, seria organizada a primeira, e única até a Era Vargas, sociedade cooperativa de seguros, a Sociedade Cooperativa de Seguros Operários em Fábricas de Tecidos. A situação se alteraria drasticamente na Era Vagaras, ocasião na qual já na década de 1930 foram constituídas mais de uma dezena de cooperativas.

3.4

ERA VARGAS: 1930-1945 A despeito da relativa dinamização posterior da economia, a elevadíssima

concentração de propriedades e capitais permaneceria constante, transpondo-se a concentração fundiária das oligarquias ao poder econômico da burguesia emergente pós

83 84

ALBERTI, Verena et al. Op. Cit. p.49. ALBERTI, Verena et al. Op. Cit. p.51.

62

1930, ocasião na qual os monopólios estatais também dificultariam a cooperação dos agentes. Neste contexto, de um lado, a estrutura econômica brasileira concentrada mostrava-se, portanto, pouca favorável à formação de cooperativas de seguro, e o governo pouco ou nada havia feito para estimulá-las, por outro lado, o país se encontrava em um estágio único de transformações rumo à industrialização e independência econômica, e o governo também não havia criado obstáculos à formação de cooperativas. Logo, a direção da política nacionalista, intervencionista e industrialista da Era Vargas seria definidora para a efetiva participação, ou não, das cooperativas no setor de seguros brasileiro, alçando-as, ao lado das companhias, como uma forma viável de segurar os interesses legítimos, ou enterrando de vez esta forma societária. Em 7 de março de 1940 Getúlio Vargas estabeleceu o Decreto-lei nº 2.063, que regulamentou extensivamente a constituição, o funcionamento, e a fiscalização das operações de seguros privados. O referido Decreto-lei, nos termos do Artigo 1º, estabeleceu que apenas três formas societárias poderiam operar no Setor de Seguros Privados, quais sejam: as (i) Sociedades Anônimas, reguladas pelo mesmo instrumento, que podiam atuar em todos os ramos, notadamente elementares e vida, as (ii) Sociedades Cooperativas, reguladas por legislação especial, as quais tinham por objeto somente os seguros agrícolas, de acordo com o Parágrafo único do Artigo 1º, e as (iii) Sociedades Mútuas, reguladas pelo mesmo instrumento, que podiam atuar, assim como as Sociedades Anônimas, em todos os ramos. Ressalta-se que parece haver uma profunda confusão terminológica entre as formas Cooperativa e Mútua, pois se pode falar em um gênero, em sentido lato, de Sociedades Cooperativas no qual estariam inclusos as Sociedades Cooperativas em sentido estrito e as Sociedades Mútuas. Ciente desta ressalva, fica mais clara a interpretação do Decreto-lei em comento, bem como sobressai o regime jurídico de cada uma das formas jurídicas possíveis, notadamente o das Sociedades Mútuas e o das Cooperativas, cujo cerne não se encontra no referido instrumento. A primeira mudança visível neste instrumento normativo quanto aos anteriores que versavam sobre a mesma matéria é a interrupção da política liberalizante com um

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regramento mais detalhado e rigoroso da matéria, e a inversão dos privilégios, antes concedidos às Companhias Estrangeiras e a partir de então às Nacionais. Assim, o referido Decreto-lei dispôs algumas exigências de cunho nacionalista e que visavam a prejudicar as Companhias Estrangeiras, dentre as quais, a exigência de que o capital das Sociedades Anônimas pertenceria, em sua totalidade, a pessoas físicas de nacionalidade brasileira (Artigo 9º). Quanto aos seus efeitos, esta alteração poderia conter o apetite voraz sobre o mercado e o poder de influência sobre o governo das Companhias Estrangeiras, abrindo, em alguma medida, espaço para as Cooperativas de Seguro em sentido amplo, bem como ao desenvolvimento da técnica atuarial em seio nacional. Em segundo lugar, devemos analisar em que medida as exigências do referido Decreto-lei para constituição e funcionamento das Sociedades Mútuas são, ou não, mais rigorosas do que as destinadas às Sociedades Anônimas. Isto porque cada qual, a fim de preservar o interesse público, guarda demandas regulatórias distintas por parte do Estado; o que é natural de formas jurídicas tão diversas. Assim, as companhias, por terem como fim último o lucro, necessitam de ampla regulação para fazer valer o interesse público, de outro lado, as cooperativas de seguro tem escopo que em muito se confunde com o do Estado, qual seja, o de reduzir os efeitos econômicos adversos oriundos do sinistro. Em última análise, a regulação do Estado sobre as Companhias serve a proteção dos consumidores da avidez das seguradoras; e já quanto às Cooperativas de Seguro serve para fazer valer o seu escopo próprio, ou seja, visa a garantir a gestão técnica dos recursos e preservar o seu equilíbrio econômico-financeiro. Neste sentido, quanto aos requisitos de capital, ou fundo no caso das Sociedades Mútuas, inicial para a sua constituição e funcionamento, o Decreto-lei nº 2.063 tem um regime jurídico mais brando às Sociedades Mútuas. Assim, de acordo com o Artigo 8º do referido Decreto-lei, as Sociedades Anônimas constituir-se-iam com capital inicial mínimo de 1:500:000$0 (mil e quinhentos contos de réis) quando tivessem por objeto operações de seguros dos ramos elementares, e 3.000:000$0 (três mil contos de réis), quando de seguros de vida, sendo que caso tivessem por objeto operações em ambos os ramos o capital inicial mínimo seria a soma das importâncias mínimas exigidas para cada grupo, ou seja, 4:500:000$0 (quatro mil e quinhentos contos de réis).

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Já as Sociedades Mútuas, de acordo com o Artigo 14, constituir-se-iam com capital inicial mínimo de 1:000:000$0 (mil contos de réis) quando tivessem por objeto operações em qualquer um dos grupos, notadamente elementares e vida, sendo que caso tivessem por objeto operações em ambos os ramos o capital inicial mínimo seria a soma das importâncias mínimas exigidas para cada grupo, ou seja, 2:000:000$0 (dois mil contos de réis). Em terceiro lugar, o Decreto-lei nº 2.063 delineou uma estrutura jurídica consideravelmente adequada à operação de pequenas Sociedades Mútuas de Seguro, sendo que para vislumbrar-se esta estrutura favorável faz-se uma pequena explanação sobre esta forma jurídica, ressaltando-se as suas características. “Nas sociedades mútuas – ou cooperativas – de seguros, o segurado assume a posição de sócio. Esse é o seu traço distintivo fundamental em relação à sociedade seguradora de capitais (...). Por definição, na cooperativa a administração está entregue aos próprios segurados, por intermédio de representantes eleitos livremente pela assembleia geral dos mutualistas”.85

Considerando a natureza associativa das Sociedades Mútuas, a modalidade pequena desta forma societária dar-se-á, portanto, a partir da associação de um número reduzido de pessoas; in casu, as Sociedades Mútuas constituir-se-iam com o número mínimo de 500 (quinhentos) sócios fundadores (Artigo 14). Parece um número mínimo razoável, pois que número inferior poderia colocar em xeque a própria mutualidade dos riscos dos sócios-segurados; mas, por outro lado, nada fácil seria, ainda na década de 40, agregar 500 (quinhentas) pessoas aptas e interessadas em constituir uma Cooperativa de Seguros. Na verdade, grande parte das Cooperativas de Seguros então constituídas não surgiram de um projeto específico, mas de agremiações de outra natureza - como associações, sindicatos, etc. - de indivíduos com algum elemento comum, sobretudo de ordem profissional. Em sendo todos os segurados também sócios da sociedade, gozam de expressivo poder decisório sobre os rumos da sociedade, razão pela qual os poderes

85

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.52.

65

permanecem concentrados na Assembleia e não na Diretoria, bem como a aprovação de resolução das Assembleias Gerais se dava por maioria absoluta dos sócios presentes, cabendo a cada sócio um voto (Artigo 23). Deste sobressai outra característica: a paridade de poder entre os associados, de modo que o fundo inicial devia ser constituído por quotas iguais, subscritas por todos os sócios (Artigo 14), ainda que, posteriormente, os limites mínimo e máximo de quotas por associado pudessem ser fixados no Estatuto, sendo que o máximo não poderia ultrapassar cinco vezes o mínimo (Artigo 18, “l”). A preocupação com a expressão da vontade individual dos associados ia além, limitando o direito dos associados de se fazerem representar por terceiros, os quais deveriam ser sócios e não exercer cargos de administração ou do conselho fiscal, nem desempenhar quaisquer funções na sociedade, inclusive os de angariador ou corretor (Artigo 24) e, ainda, um sócio não poderia representar mais de dez consócios (Parágrafo único do Artigo 24). A despeito disso, o Decreto-lei nº 2.063 nada dispôs sobre algumas questões igualmente importantes às Cooperativas de Seguro, como os limites ao exercício da vontade individual, notadamente ao direto de retirada dos sócios, uma vez que, em sendo os contratos de seguro, via de regra, de longa duração, a continuidade do recebimento dos prêmios dos sócios é essencial à preservação da sociedade e permanência de sua atividade securitária. Vale ressaltar, ainda, o Artigo 22 do mesmo Decreto-lei que dispõe sobre a figura da desmutualização da sociedade, isto é, a transformação da mesma de Cooperativa para Sociedade Anônima, o que demonstra claramente a qualidade do referido corpo normativo, haja vista que hodiernamente a demutualization é um fenômeno muito corrente nos EUA. "Em síntese, o Decreto-lei 2.063/40 respeitava as características fundamentais de uma sociedade cooperativa"86 Ocorre que este Decreto-lei, que estabelecia uma estrutura jurídica consideravelmente adequada à operação de pequenas Sociedades Mútuas de Seguro, e, portanto, poderia significar uma reversão na decrescente participação das Cooperativas no setor de Seguros Privados, vigorou, na forma descrita, por pouco menos de dois

86

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.53.

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anos, de 07 de março de 1940 a 8 de dezembro de 1941, ocasião em que Getúlio Vargas editou o Decreto-lei nº 3.908, que desvirtuou o regime jurídico das Sociedades Mútuas. Assim, a evolução da política normativa brasileira no setor de Seguros Privados, a partir de meados do século XIX, parte de uma política liberalizante e desregulamentadora da atividade econômica, por vezes favorável aos interesses estrangeiros, para, na Era Vargas, uma política econômica intervencionista e nacionalista de Estado que, num primeiro momento, fornece o respaldo jurídico à atuação privada das Cooperativas de Seguro. Veremos, contudo, que a política varguista, em seu ímpeto corporativista, ao estender os braços do Estado sobre a esfera privada, acabaria por inviabilizar a dinâmica associativa própria das Cooperativas de Seguros. “Em sociedades desse tipo [cooperativas de seguro], devido ao número elevado de segurados, o número daqueles que efetivamente participavam das decisões era relativamente baixo. Poucos eram os que compareciam à assembleia e exerciam o seu direito de voto. Sabedor dessa realidade, Getúlio Vargas alterou o Decreto-lei nº 2.063/40 por meio do Decreto-lei 3.908/41, estabelecendo, no artigo 14, que uma pessoa designada pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio passaria a ser o representante dos sócios ausentes nas reuniões da assembleia geral, sempre que estas não contassem com a presença de mais da metade dos sócios. Estabeleceu também que o representante dos sócios ausentes teria todos os votos que coubessem a estes.”87

O Artigo 14 do Decreto-lei 3.908/41 prescrevia que as sociedades mútuas de seguro

se

sujeitariam

ao

regime

do

mesmo

dispositivo

se

mantivessem

responsabilidades de seguros diretos sobre riscos situados ou sobre pessoas residentes em Territórios ou Estados não limítrofes daquele em que tinham sede, ou seja, sujeitarse-iam à intervenção estatal grande parte das sociedades, sobretudo aquelas de maior importância. Nas sociedades mútuas que guardassem esta condição, quando as reuniões da assembleia geral não se realizassem com a presença de mais de metade dos sócios - o

87

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.52.

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que, na prática, era a regra - à representação dos ausentes caberia à pessoa designada pelo Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio (alínea “a” do Artigo 14). Ademais, ao representante assim designado cabia votar para os cargos da administração e fiscalização da sociedade, ou para qualquer outro órgão social, bem como dissentir e votar os assuntos propostos (alínea “b” do Artigo 14). Sendo certo que a reunião da assembleia geral não podia ser realizada sem a presença desse representante, devendo ser adiada a sua realização mediante nova publicação de editais, se necessário. (Parágrafo único do Artigo 16). As consequências do Artigo 14 sobre a estrutura e o funcionamento das Cooperativas foram arrebatadoras, porque este dispositivo transferiu, em grande medida, o poder de aprovar as decisões da Assembleia, assim como de eleger e destituir os membros dos órgãos sociais para o representante nomeado pelo Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, em outras palavras, privou os sócios de efetivamente conduzir os rumos da sociedade, tomando-lhes o poder de controle da mesma. Percebe-se, pois, que, a partir da edição do Decreto-lei nº 3.908/41, “[o] voto do depositário da confiança do Governo, representa a vontade social. (...) Acresce que, na maioria das vêzes, os dirigentes eleitos, pela forma apontada, são elementos estranhos à sociedade e, geralmente, ignorantes até do mecanismo dessas instituições, escolhidos apenas em função da política dominante no momento.”88 O obstáculo à participação dos sócios nas decisões sociais, em razão da material transferência do poder de controle da sociedade ao representante do Estado, assim como a introdução de elementos estranhos nos órgãos sociais, tolheram o elemento mais importante das Cooperativas de Seguro, e que faz com que estas coexistam em concorrência com as Sociedades Anônimas: a solidariedade. Uma vez que se esvai o mecanismo de cooperação dos sócios-segurados, a sociedade perde a vantagem comparativa que guardava frente às Sociedades Anônimas, em última análise, a sua aptidão em melhor solucionar os problemas de informação típicos do Setor de Seguros Privados. Assim, “[r]etirar o poder de controle dos mutualistas equivalia a convertê-los em meros fornecedores de capital à sociedade, posição análoga ao sócio da sociedade anônima que não goza de direitos políticos.”89

88 89

SANTOS, Amílcar. Op. Cit. p.87. RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.53.

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Logo, nas palavras de Amadeu Carvalhaes Ribeiro, “ao lado das sociedades seguradoras de capitais passaram existir verdadeiras sociedades comandas pelo Estado, que de mútuas só tinham o nome.”90 Na medida em que a nova forma societária não corresponde devidamente aos anseios econômicos, e o que é pior, outras formas jurídicas, no caso as Sociedades Anônimas, mostram-se mais eficientes em fazê-lo, a permanência das Cooperativas de Seguro perde todo o seu sentido próprio. Assinala-se que o Decreto-lei nº 3.908/41 não revogou o instrumento anterior - o Decreto-lei nº 2.063/40 - que permaneceu quase inalterado, mas sim editou pequenas e profundas alterações no mesmo que corromperam a essência do regime jurídico, antes dotado de significado econômico. Com vistas à ampliação da participação, do poder e dos privilégios dos representantes do Estado, o referido Decreto-lei buscou diminuir ainda mais a participação dos sócios ao estabelecer que o quorum da assembléia geral ordinária seria computado sobre o número dos sócios existentes ao último dia do exercício financeiro anterior (Parágrafo único do Artigo 8º), e que só poderiam votar e ser votados na mesma os fundadores e os demais sócios que tivessem direito ao resgate dos seus contratos, ou que fossem segurados há mais de três anos, quando os contratos não admitisem resgate (Parágrafo único do Artigo 10º). O mesmo Decreto-lei nº 3.908/41 prescrevia um regramento rigoroso da destinação das provisões, estabelecendo um percentual de distribuição do excedente, amortização do fundo inicial e pagamento de juros (Artigos 3º e 4º). Prescrevia, ainda, restrições de cunho corporativista, como o impedimento daqueles que tivessem débito para com a sociedade ou estivessem em litígio com a mesma de assumir cargos de administração e fiscalização (alínea “b” do Artigo 12). Percebe-se, portanto, que a política de Estado para o setor, antes ausente, depois estruturante e, por fim limitadora da livre iniciativa privada, constitui-se em fator necessário e preponderante ao desaparecimento das Cooperativas de Seguro do Brasil. Curioso notar que a dualidade que marca todo o regime varguista está expressa na legislação sobre as cooperativas de seguro, pois o mesmo governo que edita um regime jurídico razoável às cooperativas de seguro, estabelece um regramento rigoroso

90

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.53.

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que constrange a autonomia dos seus sócios, em outras palavras, o mesmo governante que dá com uma mão tira com a outra. Ainda após a edição do Decreto-lei nº 3.908/41, Getúlio Vargas decretou, até o final do seu regime, uma série de instrumentos suplementares versando sobre o funcionamento das cooperativas de seguro. Uma nota característica de grande parte desses Decretos-lei suplementares é a restrição expressa e específica de direito trabalhistas, então direitos sociais, dos trabalhadores das sociedades mútuas. Na verdade, essa restrição deve ser interpretada à luz dos valores do regime corporativista varguista, no sentido de que os direitos individuais deveriam se sujeitar aos interesses da coletividade, no caso, os interesses interiores às sociedades mútuas, fossem de sócios ou de trabalhadores, deveriam se vergar aos imperativos do Estado. Neste sentido, o Decreto-Lei nº 4.608, de 22 de Agosto de 1942, prescreve, em seu Artigo 3º, que poderão ter suspensos os direitos sociais, pela assembleia geral - já sob controle estatal - os sócios que tivessem agido de modo prejudicial aos interesses, ao bom nome ou ao crédito das sociedades mútuas de seguros. Não bastante, Getúlio Vargas editou o Decreto-lei nº 4.609, de 22 de Agosto de 1942, que, ao contrário do Decreto-lei nº 3.908, que era um pouco mais sutil na intervenção do Estado nos negócios sociais, reforçou e intensificou explicitamente os instrumentos jurídicos de que poderia lançar mão o Estado para intervir nas sociedades mútuas. Assim, primeiramente, de acordo com o Artigo 1º, o Estado garante o controle sobre as sociedades mútuas de seguros sobre a vida, ao subordinar a garantia subsidiária pelo Governo Federal das reservas técnicas atuarias das sociedades, à eleição dos órgãos eletivos pelos votos dos sócios representados na forma estabelecida no Artigo 14 do Decreto-lei nº 3.908. Ainda, de modo a intensificar o controle sobre as sociedades mútuas de seguros sobre a vida, o instrumento reserva ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio a imediata e especial fiscalização dos atos de administração das sociedades que gozem da garantia subsidiária pelo Governo Federal das reservas técnicas atuarias (Artigo 2º). No esteio da restrição dos direitos trabalhistas dos colaboradores, o Artigo 3º do mesmo instrumento estabelece que o Presidente da República, por proposta do Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, poderá autorizar a redução ou a supressão de salários, comissões e percentagens, bem como a dispensa dos empregados das

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sociedades mútuas de seguros, assim garantidas qualquer que seja o seu tempo de serviço e independente de indenização. Esta sucessão de Decretos-lei de Vargas é clara no sentido de tomar o controle da sociedade, em um primeiro momento, a partir do constrangimento dos sócios e, em um segundo momento, por meio do constrangimento dos empregados e demais trabalhadores da sociedade, os quais se viam constantemente sob a ameaça de perder direitos e garantias individuais.

3.5

TERCEIRO PERÍODO: 1945-1964 Ao final dos anos cinquenta quase não havia mais Cooperativas de Seguros no

Brasil.

91

Não à toa, logo após o término da Era Vargas, foi editado o Decreto-Lei nº 8.934, de 26 de Janeiro de 1946, cujo preâmbulo entoa: “Considerando que o progresso da legislação social não comporta exceções ao amparo devido ao trabalhador nacional; Considerando que a interferência do Governo na administração interna das sociedades mútuas de seguros em favor dos mutuários não justifica o cerceamento de direitos e vantagens assegurados por lei aos empregados daquelas empresas que, na sua maioria, são também mutuários;”

Assim, o instrumento, em seu Artigo 1º, assegura aos empregados das sociedades mútuas de seguros sobre a vida todo o amparo da legislação social vigente, e o Artigo 2º revoga os Decretos-lei ou dispositivos que restringiam direitos trabalhistas. Curioso notar que o descontentamento, já no período pós Era Vargas, com o intervencionismo estatal e o abuso de direitos individuais tenha desembocado, no que toca às sociedades mútuas, apenas neste decreto-lei, pois o mesmo não revoga em nenhum momento os dispositivos relativos à ingerência do Estado nos negócios sociais. Não é difícil conjecturar a razão pela qual o regime jurídico do Decreto-lei 3.908, com suas alterações posteriores, foi mantido pelo então governo democrático, 91

SANTOS, Amílcar. Op. Cit. p.80.

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dentre as especulações podemos apontar que talvez já não restasse nenhum exemplar de sociedade cooperativa de seguros - o que é muito provável, ou ainda talvez o lobby das sociedades anônimas - considerando o poder econômico que as segurados nacionais alcançaram na Era Vargas - impedisse a restauração do Decreto-lei 3.908 ao seu regime inicial, e também, o que é certo, talvez a política estatal paternalista não tivesse perdido muita fôlego. De qualquer forma, era certo que naquela altura, frente à modernização promovida na Era Vargas, as cooperativas tinham perdido o bonde, pois que o setor de seguros privados tinha amadurecido e fortalecido consideravelmente no período, seja pela perspectiva econômica como técnica. Neste esteio, o excerto de Amílcar Santos bem sintetiza o painel em que se encontravam as sociedades mútuas ao final da Era Vargas:

"O seguro mútuo, hoje em dia, tende a desaparecer. Entre nós, principalmente, pode-se quase afirmar que ele já não existe. As poucas sociedades mútuas de seguros, que operam em nosso país, de mútuas só tem o nome. Dos elementos característicos dessa forma de seguro, não possuem um, sequer. Tais elementos, em virtude de leis e regulamentos sucessivos, ou desapareceram, ou foram de tal forma modificados, que nada mais significam na representação do seguro mútuo, em seu verdadeiro sentido."92

No período que se estende de 1945 a 1964, conhecido por República Nova, alguns parlamentares, diante da decadência das cooperativas de seguro frente a uma legislação arcaica, propuseram uma série de Projetos de Lei, todos não aprovados, cuja proposta e Exposição de Motivos dão o tom da situação em que se encontravam as poucas Cooperativas de Seguro que ainda operavam, bem como os inúmeros problemas gerados pela constante intervenção estatal. O primeiro de muitas tentativas frustradas foi o Projeto de Lei nº 2.358/1952, proposto por Antonio Balbino, deputado federal pelo PSD/BA, cuja exposição de motivos afirma que os representantes do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, com fulcro no Artigo 14, letra “b”, do Decreto-lei 3.908/41, elegem membros para os

92

SANTOS, Amílcar. Dicionário de Seguros. IRB, 1944. p.136.

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órgãos sociais “(...) cuja formação técnica [por vezes] não corresponde, em absoluto, aos interesses sociais, entravando o seu desenvolvimento, e causando-lhes graves prejuízos”93, dentre os quais “(...) a descontinuidade da administração, exercida por pessoas estranhas e não afeitas às atividades sociais dessa espécie.”94 De acordo com a mesma Exposição de Motivos, esta escolha de pessoas estranhas às atividades sociais para ocupar cargos estratégicos ocorre porque os representantes do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio “(...) nem sempre consultam os interesses da sociedade, dada a ampla liberdade de escolha [que lhes é] conferida.”95 Assim, coloca o propositor, o Projeto de Lei nº 2.358/1952 pretende corrigir falhas e defeitos do Decreto-lei 3.908/41, mais especificamente, busca estabelecer um “(...) critério mais técnico para a constituição dos órgãos de administração (...) para melhor resguardo da prosperidade dos interesses sociais (...) sem retirar do Estado o poder de intervir nas sociedades mútuas de seguros.”96 Neste sentido, o texto sugere que os cargos do Conselho de Administração sejam eleitos em parte pelos sócios, outra pelos funcionários, e outra parte pelo Governo Federal, conforme dispõe § 1º do Artigo 1º do referido Projeto de Lei: “§ 1º - O Conselho de Administração compor-se-á de nove membros, sendo: cinco segurados em pleno gôzo [sic] de seus direitos sociais, eleitos pela Assembléia [sic] Geral; dois indicados pelos funcionários da sociedade, escolhidos dentre os que tenham estabilidade, de conformidade com a legislação trabalhista, recaindo a escolha em um do setor da produção e outro do de administração; dois nomeados pelo Presidente da República, por indicação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio através do Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalização;”

93

Diário do Congresso Nacional, quarta-feira, 27 de agosto de 1953, p. 8571. Idem. 95 Idem. 96 Idem. 94

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E a Diretoria Executiva fosse composta conforme dispõe § 2º do mesmo dispositivo: “§ 2º - A Diretoria Executiva compor-se-á de três membros, com a designação de Presidente, Diretor Geral de Administração e Diretor Geral de Produção, escolhidos dentre os funcionários estáveis da sociedade.”

A despeito da boa intenção deste projeto, no sentido de resolver o problema de gestão das sociedades mútuas, as soluções propostas não atacavam a origem do problema: a intromissão do Estado e a falta de participação dos sócios nos negócios sociais, isto porque o Governo Federal ainda dispunha de vigorosos instrumentos para controlar a sociedade, quais sejam, as faculdades de eleger os membros do Conselho de Administração e de representar os sócios ausentes na Assembleia Geral. Outra vez, agora com o Projeto de Lei nº 3.657/1953, os parlamentares novamente mostravam-se equivocados em sua análise quanto aos problemas das cooperativas de seguro, muito embora tivessem reconhecido a existência de problemas na gestão da sociedade e, ainda que não soubessem diagnosticar corretamente a causa, mostraram, ao menos aparentemente, boa intenção ao propor reformas pontuais na lei. Neste sentido, o referido Projeto de Lei afirma, em sua Exposição de Motivos, que subsistem dois problemas no funcionamento das Sociedades Mútuas: um problema de comando e outro de continuidade, ambos relativos à gestão da sociedade. Quanto ao primeiro, expõe o propositor em sua justificação que a “organização atual da maioria das sociedades mútuas de seguros privados estabelece para o órgão de administração uma Diretoria com três membros, com atribuição definida para cada um, falhando na maioria das vezes a unidade de comando, princípio genérico de administração”97 Coloca, ainda, que “buscando ensinamentos na legislação dos Estados Unidos da América, verifica-se que as sociedades mútuas de seguros privados são administradas por um Conselho de Administração e este elege o Diretor Executivo ou na maioria dos casos Vice-Presidente Executivo.”98

97 98

Diário do Congresso Nacional, quarta-feira, 26 de setembro de 1953, p.2088. Idem.

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Dai porque o Projeto de Lei propõe “uma administração colegial com um único executivo enquadrando os órgãos diretivos nos princípios gerais de administração.”99. Quanto ao segundo, expõe o propositor que subsiste um problema de continuidade na condução dos negócios sociais pelos membros do Conselho de Administração, motivo pelo qual propõe que os mesmos sejam renovados pelo terço anualmente. De um modo geral, os propositores atribuem esses problemas ao Decreto-lei nº 2.063, de 7 de março de 1940, que regula as operações das empresas de seguros privados, o qual teria deixado a juízo das sociedades a organização de seus órgãos de administração, o que claramente expõe a visão paternalista dos parlamentares. Neste sentido, de que a sociedade mútua não era capaz de “andar com as próprias pernas”, coloca o deputado que “o projeto em causa, sem tirar a intervenção do Poder Estado na eleição dos membros efetivos do Conselho de Administração, dá a estes a faculdade de escolha de um técnico, Diretor Executivo, para orientar os serviços sociais.”100 Corroborando essa visão, afirma que o Decreto-lei nº 3.908, de 8 de dezembro de 1941, que trata especificamente das sociedades mútuas de seguros, tentou regularizar as referidas falhas na gestão da mesma com a intervenção do Poder Estatal na eleição dos órgãos de administração, sendo que teria falhado no seu intento. Isso porque na ocasião da intervenção pelo Poder Estatal nas eleições dos administradores “não raro (...) [eram] eleitas pessoas cuja formação técnica não [correspondia] aos interesses sociais,”101o que conferia um “sentido eminentemente político (...) as administrações das sociedades mútuas de seguros privados em detrimento de suas bases técnicas, o que [vinha] acarretando sensível prejuízo aos segurados.”102 O que os propositores do referido Projeto Lei não percebem claramente é que os problemas operacionais e de funcionamento das cooperativas de seguro não provêm de falhas na organização do comando e de deficiência técnica administrativa da mesma, na verdade, são estes, também, consequência da estrutura de poder enviesada das cooperativas de seguro erigida ao longo da Era Vargas.

99

Idem. Idem. 101 Idem. 102 Idem. 100

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Isto porque os comandos das alíneas “a” e “b” do Artigo 14 do Decreto-lei 3.908/1941, quais sejam, o de que a representação dos ausentes na Assembleia Geral da sociedade, se ausentes mais da metade dos sócios, far-se-ia por pessoa designada pelo Governo Federal, e o de que caberia ao mesmo representante eleger os membros dos órgãos sociais, respectivamente, impediram que os sócios da cooperativa de seguros se compusessem no sentido de efetivar a vontade a social, uma vez que os instrumentos de efetivação e controle sociais haviam sido tomados pelo Estado, entidade estranha as reais necessidades e aos propósitos da sociedade. Sob essa perspectiva equivocada, o parlamentar propõe alterações, no caso, a eleição de um Diretor Executivo e a renovação anual de um terço dos membros do Conselho de Administração, que visam a resolver, respectivamente, os problemas de comando e continuidade da sociedade, isto é, busca tratar os sintomas e não a causa dos problemas das Cooperativas de Segura, qual seja, a indevida intervenção estatal nos negócios sociais. Diferentemente dos outros dois anteriores, o Projeto de Lei 844/1955, proposto por iniciativa do Deputado Federal Jefferson de Aguiar (PDS/ES), não foi conivente com o abuso da intervenção estatal sobre as Cooperativas de Seguro. Sendo assim, o parlamentar afirma que “(...) o Governo [com base nos Artigos 14, 15 e 16 do Decreto-Lei nº 3.908/41] é interventor em sociedades particulares, elegendo os seus dirigentes e orientando os seus negócios em oposição aos próprios poderes que lhe foram outorgados pela Constituição (...) [porque esta] não outorga os poderes que a União Federal vem exercendo nas sociedades mútuas de seguros,”103. Isto porque, de acordo com o Artigo 146 da Constituição de 1946, a “intervenção [do governo no domínio econômico] terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição”, respaldo com qual o Deputado propõe a revogação dos Artigos 14, 15 e 16 do Decreto-Lei nº 3.908/41. A despeito disso, e em semelhança aos projetos anteriores, o Deputado propõe, considerando que “(...) mais se ajustará a segurança dos (...) negócios [das sociedades mútuas] que os órgãos de administração se dividam e se fiscalizem mútua e reciprocamente”, que o Conselho de Administração seja composto em parte pelos sócios, outra pelos trabalhadores da sociedade, e outra por um representante do Governo; ou seja, não retira totalmente o controle estatal da sociedade.

103

Diário do Congresso Nacional, Seção I, 07 de dezembro de 1955, p.9.002.

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O Projeto de Lei nº 3.437 é ainda mais perspicaz no sentido de apontar as irregularidades e inconveniências da intervenção estatal sobre as sociedades mútuas, mas, assim como o Projeto de Lei 844/1955, não propõe uma reforma adequada do regime jurídico respectivo, e o que é pior, toma as sociedades mútuas com descrédito, no sentido de que a transformação das mesmas em Sociedades Anônimas seria mais conveniente. Na exposição de motivos do referido Projeto de Lei, o deputado aponta, em um primeiro momento, que mesmo o regime jurídico originalmente instituído pelo Decretolei nº 2.063, de 07 de março de 1940, era inadequado aos fundamentos das sociedades mútuas, porque permitia, de acordo com a alínea “k” do Artigo 18, o rateio não proporcional para o pagamento de prejuízos no caso de insuficiência dos bens sociais. Amparando-se no estudo de Adalberto Darcy intitulado "O Resseguro e as Sociedades Mútuas", cujo texto não pode ser encontrado, o deputado afirma que o dispositivo imediatamente acima mencionado teria corrompido a essência da mutualidade, fundamento que impõe a comunhão proporcional dos recursos, sejam positivos ou negativos, entre os sócios, sem a qual o regime jurídico das sociedades mútuas perderia o seu significado e a sua importância econômicos. O mesmo parlamentar ressalta, ainda, que “não foi somente o princípio básico [do mutualismo], porém, o único a sofrer alteração [pelo Decreto-lei nº 2.063]. As quotas variáveis, as entradas suplementares, a entidade segurado-segurador, características primordiais dessas sociedades, tudo isso desapareceu. A ausência de capital, outra (...) distinção dessa espécie de sociedade, não mais concretiza. O fundo inicial, exigido para a constituição das sociedades mútuas de seguros representa, sem a menor dúvida, um capital. Exigido do mesmo modo que o capital das sociedades anônimas, [o fundo inicial] é, como este, obrigatório, e serve aos mesmos fins. Nada, ou muito pouco, de acordo com a nossa atual legislação, subsiste dentre os princípios básicos das sociedades mútuas de seguros.”104 Curioso notar que, diferentemente da grande maioria dos autores, como Amadeu Carvalhaes Ribeiro e Amílcar Santos, o Deputado Elias Adaime (PTB/SC) considera o regime jurídico instituído pelo Decreto-lei nº 2.063, em sua versão original, já contrário aos fundamentos e elementos essenciais das sociedades mútuas, consoante os apontamentos feitos nos dois parágrafos anteriores.

104

Diário do Congresso Nacional, Seção I, 07 de novembro de 1957, p.9.299.

77

Ocorre que, a despeito de identificar os abusos e as intervenções estatais, no ensejo de uma política legislativa desestruturante, como causas dos problemas enfrentados pelas sociedades mútuas, o parlamentar não propõe uma reforma deste regime jurídico. Muito pelo contrário, propõe a transformação dessas em sociedades anônimas, porque, nas suas palavras, “(...) no grau de desenvolvimento alcançado pelas operações de seguros (...)[a sociedade mútua] não mais se justifica[, mesmo porque o] princípio fundamental que constitui a base de toda operação de seguro é inerente tanto ao seguro mútuo como ao seguro a prêmio fixo.”105 Para reforçar sua tese transcreve o excerto da obra do economista F. Célio Monteiro, então Inspetor de Seguros do DNSPC, intitulado “As “Mútuas” e o Seguro no Brasil”:

"Procurem saber o número

de sociedades

mútuas

em

funcionamento e o número de anônimas. Se, de fato, a forma mútua é tão boa, porque então não estar preponderando? Por que a preferência mundial de se adotar quase unanimemente a forma anônima? A resposta é fácil: - as mútuas não correspondem mais a complexidade da moderna indústria do seguro [grifo nosso]. Logo, adaptemo-las à realidade, sem embustes, transformandoas, como acima proposto, em anônimas. O princípio do mutualismo não deixará de existir. Ele é a alma mesmo do instituto do seguro.”106

Na verdade, a possibilidade de transformação das sociedades mútuas em anônimas, procedimento chamado de desmutualização, já estava prevista no Artigo 22 do Decreto-lei nº 2.063, o deputado propunha tão somente regulamentar mais minuciosamente a matéria, no sentido de estimular e conferir mais segurança jurídica às sociedades que decidissem por fazê-lo. A título de exemplo, propõe, nos termos do Artigo 4º do Projeto de Lei nº 3.437, que o direito de participação dos mutualistas nos lucros sociais fosse garantido mediante a emissão de partes de fundador, para os segurados cujas apólices estivessem em vigor 105

Idem. MONTEIRO, F. Célio. As “Mútuas” e o seguro no Brasil. Revista Especializada Finanças e Seguros, Ano I, nº 04, 1947. 106

78

na data da aprovação dos novos Estatutos Sociais, pelo Poder Executivo, e de partes beneficiárias para os segurados que tivessem sido aceitos após a transformação social, em ambos os casos levando-se em conta os valores então garantidos das apólices quando se tratasse do ramo vida, e o montante do prêmio anual pago quando se referisse a ramos elementares.

3.6

QUARTO PERÍODO: 1964-DIAS ATUAIS Ao longo da década de 1960 temos os últimos relatos da atuação de cooperativas

de seguros a partir dos decretos de desmutualização da “A Equitativa dos Estados Unidos do Brasil, Sociedade Mútua de Seguros Gerais” (Decreto nº 57.463, de 20 de Dezembro de 1965) e da “Nova América, Sociedade Mútua de Seguros Gerais” (Decreto nº 52.438, de 3 de Setembro de 1963). Na década seguinte, novamente em sede de regime autoritário, foi editado o Decreto-lei nº 73/66 que, nos termos do Parágrafo único art. 24, estabeleceu que as Sociedades Cooperativas aperarão unicamente em seguros agrícolas, de saúde e de acidentes do trabalho. Restando este decreto vigente até os dias atuais. Poucos anos depois, já em 1967, a Lei nº 5.316/67 determinou que os seguros de acidentes de trabalho passassem a ser monopólio do Estado, de modo que, as cooperativas podiam atuar apenas nos ramos de seguro de saúde e agrícola. A Emenda Constitucional nº 20, de 1998 alterou o art. 201, cujo § 10 dispõe que lei disciplinará a cobertura do risco de acidente de trabalho, a ser atendida concorrentemente pelo regime geral de previdência social e pelo setor privado; esta lei, no entanto, ainda não foi editada. Em 16 de dezembro de 1971, foi promulgada a Lei nº 5.764, que cria a política nacional de cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas. A partir de então se operou um esquecimento completo desta forma pelo próprio legislador e autoridades regulatórias. Não foram encontrados instrumentos normativos, de qualquer ordem hierárquica, editados no último quartel do século XX.

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PARTE II

A COOPERAÇÃO: DOS JOGOS AO MERCADO, E DO MERCADO AO DIREITO 1

A COOPERAÇÃO NA TEORIA ECONÔMICA: APLICAÇÃO

DA TEORIA DOS JOGOS À TEORIA ECONÔMICA É inegável que os agentes econômicos, pessoas físicas ou jurídicas, buscam, primeiramente, atender aos seus próprios interesses; é, entretanto, evidente, também, que a cooperação é possível, e realmente ocorre, entre os agentes de uma comunidade. A teoria dos jogos, neste ínterim, nos fornece o devido instrumental analítico para examinar, por meio de testes práticos, em quais circunstâncias a cooperação tende a melhor se desenvolver. Uma vez identificadas estas situações, podemos confirmá-las a partir de determinadas passagens históricas. Nesse sentido, o estudioso do tema, Robert Axelrod, em sua obra clássica “A Evolução da Cooperação”, demonstra que os agentes, em um primeiro contato, e sob determinadas condições, tendem a cooperar, evitando um conflito desnecessário ao esperar a mesma orientação do outro agente; já o segundo encontro, e os subsequentes, são pautados pela reciprocidade, de modo que, na medida da continuidade desta relação, se intensificará a confiança no outro, fortalecendo a cooperação. Esta dinâmica pôde ser testemunhada nas guerras de trincheiras da Primeira Guerra Mundial, nas quais pequenas unidades inimigas, guerreando por extensos períodos de tempo, se abstinham, mutuamente, de atacar as provisões alimentares inimigas.

1.1

CONCLUSÕES DE ROBERT AXELROD: AS CONDIÇÕES

FAVORÁVEIS À COOPERAÇÃO Os estudiosos do tema apontam, a partir de testes práticos, que algumas condições estimulam a cooperação espontânea entre os agentes, dentre as quais, a

80

interação continuada e por um período indefinido de um pequeno número de jogadores, o relativo nivelamento informacional entre os mesmos, e mesmo a existência de outros agentes dispostos a cooperar, constituindo uma forma de competição à cooperação. Apontam ainda que, uma vez permanecendo duradoura a relação, a cooperação tende, naturalmente, a amadurecer; pois se estabelece um vínculo de subordinação, amparado na busca pela segurança, que impele ambos a competirem com aqueles que se encontram fora deste “cluster” de cooperação. Esta nova abordagem de Axelrod a respeito da cooperação entre jogadores encerrou uma das maiores crises da teoria dos jogos, decorrente da questão mal resolvida conhecida por “The Prisoner’s Dilemma”, colocada em discussão já na década de 1950 por Merril Flood e Melvin Dresher. Esta questão consiste na situação hipotética na qual dois indivíduos podem cooperar, o que resultará em ganho mútuo, ou não cooperar, ocasião na qual o jogador poderá ter um ganho ainda maior do que se cooperasse com o outro, mas nesta remanesceria sempre a possibilidade de não ter ganho algum e, dependendo da situação em concreto, ter mesmo uma perda ou prejuízo. A partir de uma série de testes práticos realizados com base nesta situação hipotética e cujos resultados foram comparados, a Teoria dos Jogos aponta alguns comportamentos recorrentes que puderam ser identificados. O principal deles, chamado de “TIT FOR TAT”, consiste na cooperação, já na primeira jogada, entre os jogadores e a perseverança recíproca deste comportamento nas próximas jogadas. As razões apontadas para esta tendência de cooperação já na primeira jogada pendem ainda de mais estudos, mas podemos especular que se situam nas ordens da psicologia comportamental, moralidade, e da análise econômica. Isto não significa, entretanto, que a competição não ocorre sob as circunstâncias de relação continuada entre um pequeno número de agentes com o mesmo nível de informação. O que prevalece é uma tendência à cooperação, de modo que, na hipótese de não-cooperação, a teoria dos jogos sugere que o outro jogador retaliará o outro com o mesmo comportamento, mas tão logo um deles opte por cooperar com o outro, este comportamento será incorporado pelo outro jogador, e tenderá a se manter, sendo que, quanto mais perdurar esta cooperação, maior será a confiança na cooperação alheia, e maior a probabilidade de reciprocidade.

81

Uma vez consumadas partidas bem-sucedidas pautadas pela cooperação, a estratégia tende a se reproduzir em partidas com outros jogadores, mesmo desconhecidos. Em outras palavras, a estratégia da partida bem sucedida constituirá a “experiência de jogada” do respectivo jogador e exercerá efeito multiplicador sobre as demais, na medida em que se mostrar eficiente. Porque a ocorrência da cooperação depende, então, de determinadas circunstâncias? Primeiro em razão de fatores intrínsecos aos jogadores, notadamente a busca, antes de tudo, do máximo proveito próprio; e segundo, em razão de uma sorte de fatores externos e que variarão conforme o caso em concreto. No caso da cooperação entre segurados no Brasil, induz ao comportamento anticooperativo - enquanto fator externo que cria obstáculos à cooperação -, a ausência de um regime jurídico permissivo; e enquanto fator intrínseco aos jogadores, temos a ausência de “experiências de jogadas”, em outras palavras, falta uma cultura de cooperação no livre mercado brasileiro.

1.2

COMPETIÇÃO E COOPERAÇÃO: DUAS FACES DE UMA

MESMA MOEDA Estas tendências de comportamento identificadas pela teoria dos jogos podem ser infirmadas ao anotar-se que, no longo prazo, a cooperação gera, na maior parte das vezes, um resultado maior para ambos os jogadores do que a competição. Como exemplo, temos a cooperação entre os seguradores, sendo que, para ser lícita, devem permanecer distintos e autônomos os centros de decisão. Segundo a lei dos grandes números, quanto maior a massa de riscos segurada por um segurador, menor será a margem de erro entre a frequência esperada e a quantidade efetiva de sinistros, logo, se seguradores concorrentes trocarem, em alguma medida, informações sobre a sua atividade poderão incorrer em menores custos de gestão de riscos, liberando, em tese, capital para a redução do valor das apólices. Isto não significa, entretanto, que a competição não guarde vantagens sobre a cooperação, mas apenas que esta é possível, e pode, por vezes, ser mais eficiente economicamente do que a competição, e também, implica, grande parte das vezes, uma maior eficiência social.

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Na verdade, não podemos olvidar que a forma vigente de organização do capitalismo, que parece ser o sistema econômico que, até então, mostrou empiricamente gerar a maior eficiência alocativa, fundamenta-se exatamente na livre concorrência entre os agentes. De outro lado, não podemos deixar de compreender que a cooperação pode servir à competição e, na realidade, o objeto do presente estudo - a cooperação dos segurados -, não faz mais do que sugerir uma forma cooperativa de organização que concorre com formas competitivas no mercado. No fundo, a cooperação guarda uma relação dicotômica para com a competição, isto é, os sujeitos cooperam, via de regra, porque suas necessidades concorrem de alguma forma; tal comportamento reduz a probabilidade de ruína própria, aumenta o seu proveito no longo prazo, mas também fortalece os cooperados para competirem externamente com outrem.

1.3

A

COOPERAÇÃO

EM

OUTRAS

ÀREAS

DO

CONHECIMENTO A ideia de que a cooperação pode ser mais vantajosa do que a competição, entretanto, vai de encontro ao darwinismo, que dispõe que a competição deve sempre prevalecer, pois é exatamente por meio dela que se alçará o agente mais adaptado. A posição darwiniana foi incorporada por algumas teorias mais liberais, notadamente o darwinismo social, e depois absorvida por alguns estudiosos da teoria econômica, uma das razões porque predomina, nesta, o entendimento de que o papel do Estado seria o de apenas preservar a livre concorrência entre os agentes. Ocorre que não apenas comportamentos cooperativos, solidários e mesmo altruístas ocorrem com relativa regularidade a nossa volta, e não há nenhum motivo pelo qual ofusca-los, como também outras áreas do conhecimento reconhecem o valor da cooperação. A antiguíssima história do mutualismo, brevemente abordada na primeira parte desta monografia, do qual sobressaem as figuras da família, do clã, da pequena comunidade autossuficiente, das associações de mercadores, irmandades religiosas e sociedades de socorro e auxílio mútuo de maneira geral, é outro forte indício que sugere que a cooperação é normal ao trato econômico e social.

83

No caso da biologia, a presença de animais que são instintivamente dependentes dos demais indivíduos de sua espécie, como no caso das abelhas e das formigas, em que há elevada divisão de tarefas, e mesmo o caso de cooperação entre indivíduos de espécies distintas, como no caso da simbiose nos líquens entre fungos e algas, sugere que a cooperação é também intrínseca à natureza.

1.4

A TEORIA ECONÔMICA: A ANÁLISE ECONÔMICA DOS

CUSTOS DA COOPERAÇÃO Ao transportar-se este conhecimento da teoria dos jogos para a teoria econômica, notadamente a teoria dos custos de transação, nota-se que a cooperação é uma das formas mais eficientes de eliminar os problemas de informação no mercado; sendo que tais problemas, em determinados setores, como é o de seguros privados, implicam enormes dificuldades ao desenvolvimento do mercado, além de trazerem enormes desutilidades aos consumidores. Para melhor compreender a dinâmica da análise dos custos de transação, no sentido de apontar as formas jurídicas, sejam de competição ou cooperação, pelas quais uma empresa pode operar com maior eficiência econômica, anota-se que é o contrato que estrutura as relações firmadas pela empresa com outrem para a realização de suas necessidades econômicas. Neste sentido, a teoria econômica concebe a empresa como um feixe de contratos, o que é um tanto reducionista, mas, em que se pese sejam estes o meio, por excelência, de coordenação das atividades econômicas da empresa, esta perspectiva da empresa enquanto “nexus of contractus” se presta enquanto um forte indício da eficiência econômica de determinada forma jurídica. Para determinar a forma jurídica, sobre a qual se assenta determinada organização econômica, que melhor realiza as demandas econômicas da empresa, a teoria econômica analisa qual a situação capaz de gerar os menores custos de transação: contratar no mercado ou assumir a posição de proprietário. Os custos de contratação no mercado são praticamente infinitos, e podem envolver muitas variáveis. A título de exemplo, englobam todos os custos que decorrem da contratação com clientes, fornecedores, trabalhadores, instituições financeiras, etc. E os custos decorrentes da posição de proprietário de empresa são aqueles

84

decorrentes da (i) supervisão da direção da empresa, a exemplo da fiscalização dos atos dos administradores, (ii) os custos associados às decisões coletivas, e por fim, (iii) os custos decorrentes da assunção de riscos. “Como regra geral, pode-se dizer que, se os custos de contratação são muito elevados (...) [será preferível] ocupar a posição de proprietário da empresa, desde que essa posição não implique custos ainda maiores.”107 “Se não for possível tornar-se proprietário, essa pessoa terá ao menos o estímulo de celebrar contratos de longa duração com a empresa, pois assim espera se proteger contra ações oportunistas desta. No entanto, contratos desse tipo podem gerar riscos para ambas as partes contratantes. O principal risco é a possibilidade de alteração do substrato ou do ambiente econômico do contrato, de modo que uma parte realize ganhos extraordinários e a outra seja submetida a severas perdas. Daí porque a aquisição da empresa será sempre uma cogitação da parte contratante que estiver sujeita a elevados custos de transação.”108

A partir dessa dinâmica dos custos de transação, a análise econômica traduz os fatores ótimos à cooperação, apontados pela teoria dos jogos, a custos transacionados no mercado ou despendidos na posição de proprietário, apontando, no somatório dos mesmos, se o comportamento cooperativo é realmente mais eficiente na perspectiva econômica. Neste sentido, em linhas gerais, os estudiosos da teoria dos jogos apontam o pequeno número de segurados como condição favorável à cooperação porque, na perspectiva da teoria econômica, a cooperação entre um número grande de jogadores implicaria elevados custos associados às decisões coletivas e à supervisão dos cooperados. Ainda, apontam que deve ser continuada a relação porque, em sendo ocasional, reduzem-se expressivamente os custos associados ao insucesso, o que talvez torne mais vantajosa a competição, e, se continuada, majoram-se os custo associados à busca de 107 108

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.125. RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.126.

85

outro parceiro confiável no mercado, logo, torna-se mais vantajosa a manutenção da cooperação. Quanto à condição de relativa simetria informacional entre os jogadores, se coloca porque o custo associado à obtenção de informações no mercado é muito elevado, e se a quantidade de informação obtida é inversamente proporcional ao grau de incerteza, perde todo o sentido econômico a cooperação em sede de assimetria informacional, já que o jogador com mais conhecimento, e, portanto, mais consciente de qual posição deverá tomar na partida, não terá motivos porque sacrificar o proveito próprio diante de um oponente mais ignorante, especialmente no caso de já ter realizado um elevado investimento com a obtenção de informações. Esta leitura da teoria econômica expõe, em grande medida, que a cooperação pode mostrar-se mais eficiente economicamente em determinadas circunstâncias, mas despreza uma realidade muito mais complexa, especialmente a ordem jurídica subjacente.

2

A COOPERAÇÃO NO DIREITO SOCIETÁRIO É inegável a prevalência da atuação de empresas sob formas societárias

competitivas; condição que se explica, em larga medida, em razão do seu escopo lucrativo, de modo que a busca, pelos acionistas da sociedade, de um retorno financeiro acaba por imprimir à sociedade um ímpeto expansionista sobre o mercado. Não menos importante, a direção da política econômica estatal foi essencial para o declínio das formas cooperativas e solidárias de organização. Atualmente, em sede do capitalismo financeiro, outros fatores também concorrem para a prevalência das formas competitivas, notadamente as barreiras de acesso ao capital e a rentabilidade dos investimentos financeiros. Apesar da prevalência destas formas sobre as de cooperação, se mostra muito questionável, sob a perspectiva da ordem jurídica constitucional, a ausência de estruturas societárias viáveis de cooperação, ou mesmo de outros mecanismos jurídicos de organização e internalização dos diferentes interesses que recaem sobre a sociedade. O papel regulatório do Estado, além de criar uma política em sentido amplo para o setor, seria o de corrigir as falhas de mercado a fim de trazer benefícios efetivos aos consumidores. Esta política pública, na medida em que deveria ser orientada por valores

86

e princípios constitucionais, privilegiaria a expansão ora de formas cooperativas e ora de competitivas, objetivando a um ponto de equilíbrio na coexistência de ambas pautado pelos ditames constitucionais da ordem econômica, especialmente a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, e a redução das desigualdades sócias (art. 170, inciso III, IV, V e VII, respectivamente). Neste sentido, o fundamento da livre iniciativa (art. 1º, “IV” e 170, caput da CF), “(...) não pode ser reduzid[o], sob pena de uma interpretação parcial e equivocada do texto constitucional, à liberdade econômica plena ou à liberdade de empresa, pois abrange todas as formas de produção individuais ou coletivas, como a iniciativa econômica (...) cooperativa”.109

É dever do Estado, de acordo com o §2º do art. 174, como agente normativo e regulador da atividade econômica, apoiar e estimular o cooperativismo e outras formas de associativismo. O constitucionalismo social, da qual a Constituição do Brasil é produto, ao incorporar o conflito social, dispôs uma ordem econômica diretiva, no sentido de estabelecer uma agenda de transformações das estruturas sociais, e, em sendo o instrumentalismo jurídico incapaz de promovê-las, deve a política econômico-social fazê-lo. A evolução doutrinária, notadamente o contratualismo e institucionalismo clássicos, amparou a prevalência de estruturas de competição, bem como a tentativa de solução de todos os conflitos de interesse, em sentido amplo, fora do âmbito da sociedade; e, mais modernamente, a Teoria da Eficiência buscou arredar, completamente, os interesses da comunidade do Interesse Social da empresa. A perspectiva adotada na presente exegese é, entretanto, valorativa-universal, sendo certo que caberia ao Direito Comercial, dentro deste espectro, atuar de forma combativa perante os fenômenos econômicos socialmente reprovados pela ordem constitucional; 109

nesta

seara,

compete

à

categoria

do

Direito

Societário,

BERCOVICI, Gilberto; ANDRADE, José Maria Arruda de. A Concorrência Livre na Constituição de 1988. In: João Maurício Adeodato; Eduardo C. B. Bittar. (Org.). Filosofia e Teoria Geral do Direito: Estudos em Homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Junior por seu Septuagésimo Aniversário. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p.463.

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simplificadamente, estruturar as formas jurídicas segundo as quais as empresas, os agentes econômicos por excelência, poderão atuar no mercado. Nesse sentido, “(...) [a] teoria econômica, como não poderia deixar de ser, examina a realidade econômica e a coloca em primeiro plano. Cabe ao direito tomar o substrato desse exame e estabelecer normas para as estruturas organizativas das sociedades. É o direito que deve se preocupar em possibilitar a criação de estruturas societárias aptas a ordenar e proteger os mais variados interesses. 110

E são exatamente estes agentes econômicos, as empresas, que, como bem demonstrou Marx, engendrariam os efeitos autodestrutivos de nosso sistema; previsão confirmada inclusive pela teoria econômica que, diante da inegável concentração do poder econômico – e das externalidades desta decorrentes, não hesitam em negar a essencial atividade dos órgão antitruste. Destarte, se reconhecermos, de um lado, o caráter conflitivo da presente configuração do sistema capitalista vigente; e, de outro, a prevalência de valores, historicamente afirmados e constitucionalmente positivados, que impõe a busca de uma paz social em nossas relações econômicas; logo, o Direito Societário deve aplicar os mecanismos que efetivem esse objetivem conciliador, instante no qual margeia o Direito Econômico.

2.1

A TEORIA DO CONTRATO-ORGANIZAÇÃO A Teoria do Contrato-Organização, que é, em certa medida, desdobramento do

Institucionalismo Integracionista, vai ao encontro desta pretensão, pois busca internalizar na sociedade os diferentes interesses que a rodeiam, projetando um novo sentido ao Interesse Social que se traduz em uma melhor catálise do feixe de relações de que participa a sociedade. Essa teoria é a formulação teórica atualmente mais apta em transpor as discussões de natureza econômica ao Direito Societário, no sentido de apontar a forma 110

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.127.

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jurídica mais eficiente para realizar necessidades econômicas. E quando se discorre sobre forma jurídica remete-se à regimes jurídicos complexos, dos quais sobressaem os elementos de propriedade (estrutura) e seu controle (função), e de funcionamento (estrutura) e seu escopo (função). Amparando-se no instrumental analítico das teorias econômicas, a Teoria do Contrato-Organização assevera que, por vezes, é economicamente mais interessante à empresa, de acordo com a clássica análise dos custos de transação, colaborar com seus competidores. Desse modo, essa Teoria demonstra que, por vezes, é mais conveniente, no sentido de trazer uma eficiência social, centralizar na empresa um conjunto de interesses que, não raro, são externos e contrapostos, apartando, em alguma medida, a mediação estatal de sua solução e, assim, melhor ordenando os interesses nela envolvidos e melhor compondo os conflitos nela existentes. Assim, incube ao Direito Societário, no sentido de salvaguardar o Princípio Democrático da vida econômica, estruturar os modelos de formação difusa do conhecimento aptos a compor os mais contrapostos interesses no interior da empresa. Neste esteio, a Teoria Econômica, utilizando-se do conhecimento erigido pela Teoria dos Jogos, especialmente a partir dos estudos de Robert Axelrod, demonstra que os agentes econômicos, diante de determinadas condições, tendem naturalmente à cooperação, até porque este comportamento mostra-se mais eficiente economicamente. Em vista disso, a política econômica, considerando as circunstâncias apontadas pela Teoria Econômica nas quais os agentes tendem a cooperar, deveria erigir regimes ou instrumentos jurídicos capazes, em um primeiro momento, de amparar as formas ou os mecanismos econômicos de organização que internalizam os interesses que recaem sobre os mesmos, como no caso das cooperativas, e, em um segundo momento, adotar uma agenda de medidas positivas e de estímulo, conforme prescreve o §2º do art. 174 da CF.

3.

COOPERAÇÃO NO SETOR DE SEGUROS: ELIMINAÇÃO

DE FALHAS DE MERCADO E DEFESA DO CONSUMIDOR O setor de Seguros Privados tem por objeto, em linhas gerais, garantir interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados, assim, é orientado por interesses

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eminentemente privados, na maior parte das vezes de natureza empresarial, de modo que o resguardo destes interesses deveria, a priori, ser legado aos próprios “jogadores” do mercado, dentro de determinadas estruturas jurídicas e segundo as “regras do jogo” estabelecidas, ou melhor, com respeito ao “ambiente institucional” vigente, sem a necessidade da tutela jurídica estatal de um agente específico. Essa ponderação, entretanto, rapidamente mostrou-se superada com a evolução do setor de seguros em razão dos consideráveis problemas concorrenciais e de higidez deste setor, mas, no que respeita o presente trabalho, se desarticula em razão de uma das principais falhas de mercado deste setor: os problemas de assimetria de informação. A clássica obra de George Akerlof, intitulada “The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism” nos fornece uma clara representação deste entrave: em determinados mercados, por diversas razões, a exemplo da complexidade técnica do produto comercializado, os consumidores são praticamente incapazes de determinar, em alguma medida, a qualidade dos produtos de uma mesma categoria; apesar disso, como agentes racionais que são, buscam, de um modo geral, maximizar a sua satisfação, adquirindo produto de melhor qualidade pelo menor preço, utilizando-se, para tanto, de uma diversidade de parâmetros, uns piores e outros melhores; mas nesses mercados, em que inexistem parâmetros confiáveis de aquisição, os consumidores, então, elegerão o produto apenas com base em critérios ruins, como o comportamento dos demais consumidores, sendo certo que os vendedores, em sentido amplo, buscando majorar seus rendimentos e reduzir seus custos, e reconhecendo a ignorância dos consumidores quanto à qualidade do produto comercializado, passarão a comercializar produtos de baixa qualidade com o mesmo preço dos produtos de qualidade elevada e, por fim, deixarão de vender os produtos de melhor qualidade; em longo prazo, os consumidores passam a sofrer os efeitos da má qualidade do produto adquirido e, diante da baixa qualidade generalizada, deixam de adquirir novos itens da mesma categoria, causando uma redução estrutural do mercado daquele produto. Ocorre, simplificadamente, problema análogo no setor de seguros, muito embora os atores estejam em posições invertidas: o consumidor é, de fato, muito pouco capaz de avaliar a qualidade do produto securitário adquirido, em termos de higidez, nível de cobertura de riscos, etc., razão bastante para o Estado regular o referido mercado, inclusive no sentido de proteger a poupança popular, mas o que verdadeiramente impede a criação, manutenção e o desenvolvimento deste setor é a dificuldade dos

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seguradores em manter a elevada qualidade, sobretudo durante a execução contratual, da análise dos riscos dos segurados. Outro problema típico do setor de seguros, também apontado por Akerlof na obra citada, corresponde à seleção adversa. Este fenômeno está igualmente associado aos problemas de assimetria de informação, e ocorre porque, no limite, o elevado valor e a baixa qualidade das apólices selecionarão apenas os segurados sujeitos a níveis maiores de risco, o que implicará também, além de inconveniências aos consumidores, uma redução estrutural do marcado de seguros. No entanto, ao consideramos a assimetria de informação como problema típico do setor de seguros, assumimos, de forma imanente, as relações bipolares, ou de troca, mesmo porque, é inegável a prevalência no setor de seguros de seguradores sob a forma de sociedade anônima, passando ao largo de formas cooperativas ou solidárias de organização. Além das circunstâncias históricas de conformação do sistema capitalista, o esquecimento histórico e mesmo preconceito econômico quanto às formas nãocompetitivas de organização econômica decorrem, no caso brasileiro, da política econômica para o setor, ora desastrada ou enviesada, e ora desveladamente privilegiadora das formas competitivas ou obstaculizadora das formas cooperativas. A despeito disso, a teoria econômica demonstrou que “(...) a estrutura cooperativa, dentro de determinados traços, rompe com os tradicionais problemas que a sociedade anônima enfrenta ao atuar no mercado de seguros.” 111 Isto ocorre porque o interesse social de uma cooperativa de seguros, ao invés de ser orientado pelo espoco lucrativo dos sócios investidores, é guiado pelos segurados, que visam ao proveito próprio, como a redução dos prêmios, de modo que o excedente que seria retirado da sociedade é reinvestido ou direcionado à redução do valor das apólices. Uma vez que nestas cooperativas não subsiste a polaridade entre seguradosseguradores elimina-se a assimetria informacional, bem como se extirpa o conflito entre os interesses de ambos. Em tese, ganha a sociedade maior eficiência social, no sentido de maior aptidão em gerar bem-estar aos consumidores. Ainda, em sendo a empresa autogerida pelos segurados, poderão estes implantar mais facilmente medidas de segurança ou redutoras de risco mais eficientes, bem como

111

SALOMÃO, Calixto; O Novo Direito Societário, Editora Malheiros, 3ª Edição, p.21.

91

exercer supervisão das mesmas de modo mais efetivo, tornado a sociedade eficiente economicamente. O estudo apontará, contudo, que remanescem alguns custos consideravelmente elevados sobre as cooperativas de seguro, como o custo das decisões coletivas e de acesso ao capital, ao passo que as companhias também preservam consideráveis vantagens comparativas, como a gestão técnico-administrativa mais eficiente. Neste sentido, esta forma cooperativa de organização para a mutualização de riscos gozará de indubitável maior eficiência econômica e social comparativas quando presentes determinadas circunstâncias apontadas pela teoria econômica, notadamente (i) o pequeno número de cooperados, (ii) a considerável homogeneidade informacional entre os participantes, e (iii) o relacionamento continuado, não-ocasional, dos mesmos. Ocorre que, não obstante efeitos sistêmicos benéficos, tais como elevação da concorrência, e maior eficiência social, bem como sua conformidade com os princípios da ordem econômica brasileira, essa forma societária, veem sendo historicamente constrangida no Brasil, de modo que, no setor de seguros privados, subiste apenas no setor agrícola, sem dados empíricos que indiquem sua importância. A julgar pelas bem sucedidas experiências alemã e norte-americana, sugere-se que a cooperativa de seguros poderia servir, em relevantes nichos da atividade econômica brasileira, como um instrumento de politica pública voltado para a superação do subdesenvolvimento. Esta asserção é reforçada quando pensamos na realidade que estão imersas as milhares de pequenas e médias empresas atuantes no Brasil, ou seja, acesso restrito e custoso a crédito, custos tributários elevados, sujeição a riscos elevados, especialmente os ligados à infraestrutura precária, etc. Logo, a cooperação no setor de seguros é uma das formas mais eficientes de minorar os problemas de informação, que, não raro, implicam enormes dificuldades ao seu desenvolvimento, bem como trazem profundas desutilidades aos consumidores. “Não é por outra razão que ela [a cooperação] é tradicionalmente vista como um fundamento de regulação da atividade [de seguros].”112

112

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.124.

92

PARTE III

AS

COOPERATIVAS

DE

SEGURO:

ESTRUTURA

E

FUNCIONAMENTO A principal diferença entre as sociedades anônimas e as cooperativas de seguro reside no objetivo principal de cada uma, enquanto a primeira guarda essencialmente um escopo lucrativo, a segunda busca, em linhas gerais, o melhor proveito aos seus membros. “Na sociedade anônima a figura central é o acionista. Ele tem, em princípio, uma posição adversa àquela ocupada pelos clientes da companhia: enquanto o acionista deseja que a companhia venda seus produtos ou preste seus serviços ao maior preço possível – pois isso lhe aumentará os lucros -, o cliente deseja exatamente o inverso. Na cooperativa de consumidores – que é justamente o caso das cooperativas de seguros – esse antagonismo desaparece. O consumidor dos serviços que ela oferece é ao mesmo tempo seu sócio. Em razão disso, a finalidade última da sociedade coincide com a vontade do consumidor.”113

1

OS CUSTOS NO MERCADO SEGUROS

1.1

OS CUSTOS DAS COMPANHIAS DE SEGUROS Em uma primeira aproximação do mercado de seguros, ao analisar-se as

estruturas de custo das companhias de seguro, atores por excelência deste setor, notamos algumas peculiaridades perante outras organizações competitivas de outros mercados. Primeiro que, em razão de sua própria atividade - securitização de riscos -, o conhecimento preciso dos riscos de seus segurados é essencial para conformação de sua estratégia de custos, pois que tais riscos estão diretamente associados aos sinistros, e,

113

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.127.

93

consequentemente, ao pagamento de indenizações. Estes custos, ainda antes dos custos técnicos e administrativos, compõe o cerne da estrutura de custos das companhias, de modo que a equivalência destes para com as fontes de entrada de recursos, notadamente as apólices e os lucros financeiros, é fundamental para permanência e saúde financeira da empresa. Logo, o conhecimento preciso e aprofundado dos riscos de seus segurados é primordial para operação das companhias. Ocorre que os custos associados à obtenção de informações no mercado, notadamente o nível de exposição dos segurados, são, em si, elevados, mas no caso das companhias, nas quais restam polarizados os interesses dos segurados-seguradores, compondo apenas o segundo o interesse social da empresa, são estes custos ainda maiores. Nesse sentido, os segurados, via de regra, nunca vão investir na redução de riscos tanto quanto os seguradores desejariam, bem como também não deixarão transparecer este investimento menor. Sabedoras desta irreversível tendência comportamental dos segurados, os seguradores buscam reduzir os custos de obtenção de informações dos segurados, já que será um esforço custoso e pouco útil.114 Ainda, perdem os seguradores o incentivo de negociar descontos no valor das apólices com os seus segurados, dado o elevado grau de incerteza quanto aos riscos aos quais estão sujeitos. Logo, de um lado, não se reduzem os preços das apólices, e, de outro, não se adotam medidas redutoras de riscos e, portanto, mostra-se muito deficiente a sua eficiência social. De um modo geral, é muito duvidoso postular que os segurados poderiam cooperar com as seguradoras, sendo mais transparentes quanto aos riscos aos quais estão sujeitos bem como das medidas adotadas para reduzi-los, a fim de reduzir o preço de suas apólices. De um lado porque é muito complexo o funcionamento das companhias de seguros, não dispondo, via de regra, os segurados de capacidade para avaliar se a sua conduta zelosa poderia reduzir o preço das apólices, de outro porque dificilmente os 114

CROLEY, Steven P.; HANSON, Jon D. What Liability Crisis? An Alternative Explanation for Recent Events in Products Liability. 8 Yale J. on Reg. 1, 1991. p.101.

94

segurados confiariam na declaração da companhia no sentido de que a redução de custos seria repassada aos consumidores e não aos acionistas na forma de dividendos. Conclui-se, portanto, que, no limite, os seguradores nunca gozam de um conhecimento preciso dos riscos aos quais estão sujeitos os seus segurados porque os custos de sua obtenção são muito elevados e também porque tal elevado grau de transparência é contrário aos interesses dos segurados, os quais, temendo um incremento no valor de suas apólices, sempre conservam algum grau de omissão. Daí porque os custos de obtenção de informações sobre os riscos aos quais estão sujeitos os segurados são invariavelmente elevados para as companhias de seguros, restando às mesmas incorrer em mais custos, agora de ordem técnica e administrativa, para mensurar e avaliar com algum grau de precisão essa incerteza. Por outro lado, os custos de negociação são relativamente baixos nas companhias de seguros. Primeiro porque a atividade dos seguradores é expressivamente horizontalizada, no sentido de que não necessitam, para o regular exercício de suas atividades, contratar com um número elevado de agentes no mercado; e segundo porque os consumidores, que aderem às apólices das companhias, não dispõem de capacidade econômica nem de conhecimento técnico para negociar razoavelmente os termos do contrato de seguro. Em vista do segundo motivo, mostra-se primordial que o Estado tutele os direitos do consumidor, e um dos meios de fazê-lo, além de legislar sobre uma série de questões regulatórias intrincadas, é estimulando a livre concorrência no mercado de seguros, oportunidade na qual a atuação de novos agentes, como as cooperativas de seguro, seria muito benéfica à competição. Quanto aos custos de supervisão são expressivamente elevados por duas razões principais: a primeira é que, em razão do princípio da equivalência, isto é, a imperiosa necessidade de se equilibrar, com uma relativa margem de segurança, a estrutura de custos do segurador, é muito importante a avançada gestão técnica dos riscos e, consequentemente, zelar pela excelência na administração da empresa; segundo porque, em razão dos referidos problemas de informação desse mercado, o segurador é invariavelmente obrigado a dispender volumosos recursos na averiguação do comportamento dos seus segurados.

95

1.2

OS CUSTOS DAS COOPERATIVAS DE SEGUROS A teoria econômica, notadamente segundo a análise dos custos de transação,

conforme colocado na segunda parte desta monografia, pontua que, no jogo de mercado, os agentes econômicos assumem a posição de proprietários da empresa apenas quando os custos desta posição são inferiores aos custos de se contratar no mercado. Ao adentrar-se no mercado de seguros, anotou-se que sobressaem elevados custos de contratação no mercado pelas empresas seguradoras para com os seus clientes em razão da uma expressiva assimetria informacional daquelas quanto aos riscos aos quais estão sujeitos os seus segurados ou potencias consumidores, o que corrompe a precisa avaliação econômica do respectivo produto securitário oferecido. Contra isso, a estrutura de funcionamento das cooperativas de seguro guardam algumas peculiaridades aptas a reduzir consideravelmente parte expressiva destes custos de transação. Nas pequenas cooperativas de seguro, o pequeno número de segurados faz com que o custo de ocorrência de um sinistro seja quase que imediatamente repassado às apólices, daí porque os associados-segurados atuarão mais ativamente na fiscalização da redução dos riscos dos demais associados, reduzindo-se, assim, a possibilidade de “moral hazard”.115 Os custos de supervisão são também reduzidos, porque o conhecimento agregado dos segurados sobre a sua atividade econômica, que em geral compõe um nicho comum e específico, transpõe-se ao mais aprofundado conhecimento dos riscos e, consequentemente, resulta em métodos mais eficientes de fiscalização e redução dos mesmos. A despeito disso, observa-se que a autogestão e distribuição coletiva de riscos traz também alguns custos majorados, como aqueles associados às decisões coletivas e, sobretudo, à obtenção de recursos financeiros, especialmente a mais custosa tomada de crédito e menos rentável aplicação financeira de provisões. Daí porque alguns estudiosos, como Hansmann, afirmam que, “(...) firms are recognized as consumer cooperatives only where two broad conditions are satisfied: (1) there is relatively severe market 115

CROLEY, Steven P.; HANSON, Jon D. What Liability Crisis? An Alternative Explanation for Recent Events in Products Liability. 8 Yale J. on Reg. 1, 1991. p.104.

96

failure and (2) consumers are able to assure effective control without incurring excessive costs. Absent one or both of these conditions, the conventional investor-owned firms is generally dominant – and hence, we can reasonably conclude, a more efficient form of organization.” 116

Quanto à primeira condição, anota-se que podemos compreender a ideia de “falha de mercado” por circunstâncias intricadas próprias de determinado mercado que implicam custos majorados de realização da transação econômica. No caso do mercado de seguros, subsiste uma falha de mercado em razão dos elevados custos do segurador na obtenção de informações e supervisão dos segurados. A segunda condição é essencialmente decorrência da primeira, pois que os agentes tendem a se associar no mercado apenas quando os custos associados à referida falha de mercado forem menores na forma cooperativa de organização. Por fim, conforme apontado pela teoria dos jogos, notadamente a partir do trabalho de George Akerlof, traduzido pela teoria econômica e aplicado ao setor de seguros, as circunstâncias ótimas à cooperação neste mercado são: modalidade de seguro de contratação continuada por longo período de tempo com o mesmo ente segurador e cujo bem segurado possua um valor relativamente alto.

1.2.1 VANTAGENS ECONÔMICAS DAS COOPERATIVAS As vantagens comparativas da forma societária cooperativa, respeitadas as circunstâncias nas quais esta guarda maior eficiência econômica, estão intrinsecamente associadas ao seu regime de propriedade (estrutura) e seu controle (função), e de funcionamento (estrutura) e seu escopo (função). Destarte, dentre essas possíveis vantagens destacamos:

i)

preço inferior das apólices;

A redução do valor das apólices se deve à redução generalizada em algumas ordens de custos da cooperativa, notadamente os custos associados à obtenção de 116

HANSMANN, Henry. The Organization of Insurance Companies: Mutual versus Stock. J. L. Econ. & Org., 1985. p.126.

97

informações dos segurados, mas podemos apontar, também, a ausência de escopo lucrativo, o conhecimento mais aprofundado dos riscos, a adoção de medidas redutoras de riscos, etc. Um motivo interessante que concorre para o preço menor das apólices é a possiblidade de criação de contribuições temporárias voltadas à correção do eventual desequilíbrio financeiro da atividade, de modo que não precisa estar embutido no valor das apólices o custo desta incerteza.

ii)

melhora na qualidade das apólices;

Como os associados conhecem melhor os riscos aos quais estão sujeitos os segurados, bem como visam ao aprimoramento da cobertura em proveito dos mesmos, é natural que ocorra uma melhora na qualidade das apólices, especialmente em termos de cobertura de riscos.

iii)

melhor avaliação dos riscos;

Uma vez que os associados detêm aprofundado conhecimento sobre a sua atividade, consequentemente, poderão avaliar com maior precisão os riscos aos quais estão sujeitos e, por fim, precificar os prêmios mais adequadamente.

iv)

garantia de maior higidez;

As cooperativas de seguros, de um modo geral, não aplicam as suas provisões em investimentos arriscados, preferem aplicações menos rentáveis e com maior liquidez, daí porque será menor o risco de crise econômica da sua atividade.

v)

reduzido potencial de contaminação em caso de quebra;

Ao contrário das companhias, no caso de liquidação da cooperativa, os efeitos danosos não se espalham pelo mercado, ficam contidos entre os seus associadossegurados.

vi)

redução do “moral hazard”;

98

Como nas pequenas cooperativas de seguros é reduzido o número de associadossegurados, mais efetiva será a supervisão entre os membros e maior será a sensibilidade de cada um no caso de sinistro, dai porque é menos provável que um deles não seja diligente com os seus riscos ou aja oportunisticamente perante a sociedade.

vii)

redução da quantidade de sinistros; e,

Uma vez que os associados detêm aprofundado conhecimento sobre a sua atividade, podem adotar mecanismos menos custos e mais efetivos de redução de riscos e de supervisão dos associados-segurados.

viii)

aumento da concorrência.

Diante dessas vantagens, as cooperativas poderiam competir, em alguma medida, com as companhias, e, consequentemente, trazer uma maior eficiência social aos produtos oferecidos pelas companhias, isto é, preços menores e cobertura mais larga.

1.2.2 O PROBLEMA DE ACESSO AO CAPITAL O custo de acesso ao capital no mercado é, em grande medida, inversamente proporcional à segurança e poder econômico da instituição recebedora, ou mais precisamente, da perspectiva que as instituições financeiras guardam em relação a esses critérios sobre os entes requisitantes. É fato que a aplicação financeira das provisões pelas companhias de seguro implica receitas adicionais que aumentam a capacidade técnica do segurador, bem como lhe agrega valor, impulsionando o desenvolvimento da atividade. Neste sentido, as cooperativas já partem em desvantagem em razão do preconceito e desconfiança quanto à essa forma de organização do seguro. Soma-se a isso, a menor aptidão das cooperativas em gerar excedentes, bem como a ausência, via de regra, de um ímpeto expansionista da atividade empresarial.

99

Ademais, em sendo a maioria esmagadora das cooperativas de seguro de pequeno ou médio porte, detêm menor capacidade econômica e, portanto, menos provisões e giro financeiro para conferir segurança à obtenção de capital. Este problema é mais crítico na fase inicial de constituição do fundo mútuo, não apenas em razão das dificuldades de se angariar recursos expressivos com os associados-segurados ou instituições financeiras, como também em razão das exigências regulatórias de fundo inicial mínimo para constituição e operação da seguradora. Esta desvantagem das cooperativas de seguro passou a prejudicar mais as mesmas a partir do final do século passado, quando se intensificou o capitalismo financeiro e as companhias de seguro se integraram aos conglomerados financeiros. Daí porque assistimos a um enfraquecimento das cooperativas de seguro no mundo que pode ser observado pela movimentação das cooperativas no sentido da desmutualização, concentração e constituição de “Mutual Holding Companies”, todos comportamentos visando aumentar o acesso da seguradora ao capital.

2

GRANDES E PEQUENAS COOPERATIVAS DE SEGURO A análise dos custos de transação das cooperativas de seguro, realizada na

primeira seção desta terceira parte, permite afirmar-se que os custos associados às decisões coletivas e à supervisão dos segurados elevam-se na medida do aumento da massa de segurados. Dentre os motivos que concorrem para esta asserção destaca-se o aumento do “moral hazard” em associações de maior porte em razão do aumento da dificuldade de monitoramento entre os associados, bem como da menor sensibilidade dos segurados aos sinistros ocorridos isoladamente. Assim, a constituição e permanência de grande cooperativas de seguro é, via de regra, um grande desafio aos seus membros no sentido de enfrentar os elevados custos associados às decisões coletivas e à supervisão dos segurados. A despeito disso, as grandes cooperativas de seguro são muito presentes nos EUA e na Alemanha, onde tais organizações guardam um regime jurídico consideravelmente distinto do das pequenas cooperativas de seguro, e, bem verdade, muito mais próximo do das companhias de seguros.

100

As grandes cooperativas de seguro tem um funcionamento significativamente distinto das pequenas cooperativas de seguros, pois que incorporam alguns aspectos próprios das companhias de seguros, como a gestão mais profissionalizada e menos dependente dos seus membros. Tanto isto procede, que estas cooperativas, não raro, atuam nos mesmos ramos das companhias, inclusive competindo com as mesmas. Inclusive, esta figura é tão mais próxima das companhias de seguro que chegam ao extremo de firmarem apólices com não associados. Estas circunstâncias, entretanto, não desnaturam a sua natureza mútua, pois que a empresa se realiza, em última análise, com o proveito dos segurados, ainda que se pese que subsistam divergências de interesse entre associados segurados, não associados segurados, e quaisquer segurados com níveis díspares de riscos. É certo que as pequenas cooperativas de seguros, ao guardarem comedidos custos associados às decisões coletivas e à supervisão dos segurados, mostram-se mais eficientes economicamente, e, portanto mais aptas em segurar uma sorte de interesses legítimos. “(...) consumer cooperatives are typically small – to keep within bounds the consumer/members’ incentive to free-ride on the monitoring efforts of other consumers – and serve primarily consumers who reside near the cooperative, so that they can personally monitor the operations of the firm.”117

Retoma-se que as pequenas cooperativas de seguro, além dos caracteres de cooperação e solidariedade, guardam, ainda, uma vantagem tipicamente associativa, que traz consequências profundas para a sua dinâmica de funcionamento. Em poucas palavras, as pequenas cooperativas de seguros operam a partir da atuação próxima e constante dos seus membros, e é exatamente esta nota que permite a redução significativa dos custos que permeiam a relação entre os segurados e os proprietários.

117

HANSMANN, Henry. The Organization of Insurance Companies: Mutual versus Stock. J. L. Econ. & Org., 1985. p.127.

101

O âmbito de atuação destas figuras é também muito próprio, conforme trecho abaixo de Amadeu Carvalhaes Ribeiro sobre a atuação das pequenas cooperativas na Alemanha. “As pequenas cooperativas têm um escopo bastante diverso [do das grandes cooperativas de seguro]. Sua área de atuação é normalmente restrita a poucas cidades, no máximo a uma região equivalente à área de um Estado da Federação. Elas contam com um número reduzido de associados, em geral ligados por alguma característica comum bastante peculiar, cujo conteúdo pode variar significativamente: ora trata-se de pessoas empregadas numa mesma empresa ou de atividade profissional, ora de pessoas sujeitas a um risco da mesma espécie, ora de empresários atuantes na mesma indústria.”118

Esta estrutura e funcionamento particulares refletem no regime jurídico das pequenas cooperativas de seguro. Nesse ínterim, o regime alemão é emblemático e serve de referência. Em razão da natureza associativa das cooperativas, a legislação proíbe a celebração de contratos com não associados e a Assembleia detém muito mais poder de condução das atividades sociais do que a Diretoria. Ambos os regramentos reafirmam o peso do poder decisório dos associados-segurados, conferindo-lhe notável expressão da vontade individual no campo econômico.119 Por outro lado, a natureza securitária da atividade cooperativa impõe a criação de mecanismos de instrumentalização dos fundamentos de higidez e defesa do consumidor. Nesse sentido, de modo a preservar a permanência dos vínculos contratuais securitários, que são geneticamente duradouros, e, consequentemente, o equilíbrio das provisões, nesta forma tipicamente menos vultosas, são impostas restrições mais severas ao direito de retirada dos associados.

118 119

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.11. Idem.

102

3

O INTERESSE SOCIAL: DIFERENTES INTERESSES E

DISTINTAS SOLUÇÕES A análise dos custos de transação da atividade de cooperativas e companhias de seguro está intimamente associado a como cada forma lida com os diferentes interesses que recaem sobre a empresa seguradora. Na verdade, subsistem três ordens distintas de interesse nas empresas seguradoras, quaisquer sejam as suas formas de organização, mas que se sobressaem e são solucionados de modo distintos em cada forma societária. “One major difference between the stock and mutual organizational forms relates to how they manage the incentive conflicts that exist between three primary roles that agents have in insurance company operations, namely managing the company, bearing the risks associated with operations, and acting as customers or policyholders.”120

Nas companhias de seguro sobressaem os interesses de administração adequada da empresa, especialmente pelo corpo técnico-administrativo e pelos seus diretores, que, via de regra, voltam-se para o reinvestimento do excedente no aprimoramento da empresa, e, em primeiro lugar, o interesse dos acionistas em reduzir a securitização de riscos de elevada exposição, reduzindo os custos associados ao pagamento de indenizações e incrementando os dividendos. Quanto aos conflitos entre tais interesses, "(...) stock insurers are better able to deal with owner-manager incentive conflicts because of the superior mechanisms available in the stock ownership form for owners to monitor and control managers.”121 Anotando, ainda, que os interesses dos acionistas no incremento lucrativo e dos administradores no aprimoramento da companhia de seguros são amparados pelos reduzidos custos de obtenção de créditos no mercado. Isto porque, uma vez que a estrutura e o funcionamento das companhias estão voltados à expansão e ao acúmulo de excedente, será aparentemente 120

mais

seguro

CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Handbook of International Insurance: Between Global Dynamics and Local Contingencies. Springer, 2007. p.71. 121 CUMMINS, J. David e VENARD, Bertrand. Op. Cit. p.71.

103

para as instituições fornecedoras de capital o cumprimento das obrigações de débito por parte das companhias do que pelas cooperativas. Nas cooperativas de seguros sobressaem os interesses de administração adequada da empresa e de aprimoramento na qualidade e redução do preço das apólices, ambos por parte dos associados-segurados. Logo, não subsiste conflito saliente no funcionamento das cooperativas de seguro, já que ambos os interesses, o dos proprietários e o dos consumidores, permanecem sob um mesmo ator. E é exatamente esta conformação da estrutura de poder nas cooperativas de seguro que reduz drasticamente os problemas de assimetria de informação. Isto porque a dinâmica de funcionamento das mesmas desfruta de um elevado nível de alinhamento do interesse social, em outras palavras, de uma afinidade de necessidades econômicas entre os associados-segurados no sentido de realizar o objetivo social da organização com maior eficiência econômica e social. E este elevado alinhamento do interesse social encontra respaldo não apenas na teoria econômica, segundo a qual as cooperativas podem ser mais eficiente economicamente, como também no Direito Societário, notadamente na Teoria do Contrato Organização, a qual aponta que, por vezes, é mais conveniente, no sentido de trazer uma eficiência social, centralizar na empresa um conjunto de interesses que, não raro, são externos e contrapostos, de modo a melhor ordenar os interesses nela envolvidos e melhor compor os conflitos nela existentes Como exemplo, podemos apontar a adoção de medidas redutoras do nível de exposição a riscos, pois que os associados-segurados guardam notório interesse tanto na redução da frequência de sinistros e, consequentemente, na diminuição dos custos de operação da cooperativa, quanto na redução do valor de suas apólices. Essa construção teórica do “alinhamento” do interesse social, na verdade, incorpora uma dinâmica muito simples: quanto mais uma estrutura convergir à determinada função, melhor a concretizará em termos de custos econômicos e eficiência social. Ciente disso, observa-se que nas companhias de seguros subsiste um elevado nível de convergência de interesses entre seus acionistas - escopo lucrativo e, em alguma medida, expansão da empresa -, mas, na maior parte das vezes, permanece uma divergência com a sua fonte primária de recursos, os consumidores.

104

Daí porque, de um modo geral, as companhias conseguem reduzir os seus custos econômicos, ao passo que, por vezes, não alcançam um ganho razoável de eficiência social, isto é, um incremento no bem-estar dos consumidores. Aliás, nestas estruturas competitivas, este ganho social provém, no limite, do temor de não realização do lucro e, indiretamente, da ameaça de diminuição do número de clientes. Em vista disto, a maior concorrência no mercado, ou melhor, a intensificação na competição entre as empresas pela conquista dos consumidores implica aumento de eficiência social. Daí porque, em sede de mercados que tendem naturalmente à concentração, como é o mercado de seguros, a tutela jurídica da concorrência é essencial para a defesa dos consumidores. Ocorre que nessa dinâmica, na qual o ganho dos consumidores, notadamente com a redução dos preços e a melhora na qualidade das apólices, é consequência indireta do escopo lucrativo dos seguradores, muitos inconvenientes podem ser gerados aos mesmos, uma espécie de externalidade de cunho social. No caso do mercado dos seguros, uma das principais externalidades sociais é a hipersegmentação de riscos, isto é, a imposição à comunidade de consumidores de parâmetros rigorosos de homogeneidade de riscos no procedimento de aderência a um produto securitário, que, no limite, corrompe o princípio mutualístico de distribuição de riscos entre indivíduos submetidos, em algum grau, a níveis distintos de exposição a riscos, transgredindo o critério de tratamento igualitário entre os segurados para a fixação dos prêmios, e, por fim, prejudicando a própria lógica de funcionamento do seguro. É mais uma razão a justificar a atuação do legislador. Deixar à livre escolha do mercado o estabelecimento do ponto de equilíbrio entre os critérios de equivalência e tratamento igualitário dos segurados para a fixação dos prêmios implicará, via de regra, na escolha de critérios de segmentação de risco pautados pelo escopo lucrativo, isto é, pode a companhia, no limite, fixar critérios contrários ao direito, ou mesmo arredar todo um grupo do acesso ao seguro. No caso das cooperativas de seguro, em que se pese tenhamos maior eficiência social quanto maior o alinhamento do interesse social entre seus os seus associados segurados, onde encontrar esta elevada afinidade de necessidades e desígnios?

105

Em termos de proteção securitária contra riscos, encontrá-lo-emos em circunstâncias de elevada homogeneidade de riscos, como em associações de empresas ou trabalhadores de determinado setor da atividade econômica.

4

PORQUE

A

VANTAGEM

ECONÔMICA

NÃO

É

SUFICIENTE A homogeneidade dos riscos de determinado grupo não basta, na maior parte das vezes, para criar, em si, o ímpeto de associação entre os agentes econômicos sob os fundamentos da cooperação e da solidariedade. Isto porque, a despeito das vantagens apontadas, especialmente a maior eficiência econômica das cooperativas em determinadas circunstâncias, as formas competitivas de intercâmbio econômico estão arraigadas na estrutura e cultura sociais. Verdadeiramente, a cooperação e solidariedade têm sido subjugadas a um segundo plano, e o que é pior, são fundamentos atualmente considerados fora do centro dinâmico das relações econômicas. Neste sentido, a cooperação é, grande parte das vezes, organizada na forma de apêndice de organizações competitivas, que, muitas das vezes, guardam mais fins egoísticos do que realmente solidários. Anota-se, ainda, que, de um modo geral, as cooperativas de seguro incorrem em custos menores em razão de sua estrutura de funcionamento, ao passo que nas companhias de seguro também ocorre esta redução dos custos econômicos, mas em razão do escopo lucrativo da empresa que impõe constante eficiência alocativa. Daí porque, ao lado demonstrada maior eficiência econômica e social, devem concorrer outros fatores para emergência das cooperativas de seguro, no sentido de superar esse preconceito histórico e essa ignorância generalizada a respeito de arranjos cooperativos.

4.1

MERCADO CONCENTRADO OU MONOPOLIZADO Outra condição que, via de regra, influi positivamente para a associação dos

consumidores no mercado é a elevada concentração e o monopólio do mercado. Isto obviamente em razão das evidentes desutilidades e inconveniências causadas aos consumidores e ineficiências alocativas das empresas.

106

Logo, os consumidores, visando majorar o seu interesse, no sentido da redução do valor e aumento na qualidade das apólices, poderiam organizar cooperativas de seguros. Interessante notar que, neste âmbito, as cooperativas de seguro exercem uma dupla função: a primeira é a de atribuir maior eficiência econômica e social aos consumidores com a sua simples constituição, e a segunda é a de tornar mercados monopolizados ou altamente concentrados mais competitivos, ao concorrer diretamente com os demais agentes do mercado. Neste sentido, em sede de mercados eivados de estruturas e condutas anticoncorrencias, especialmente em mercados naturalmente concentrados, como é o mercado de seguros, as cooperativas de seguro poderiam ventilar a livre concorrência, traduzindo-se em apólices com condições mais favoráveis aos consumidores, novas modalidades de seguro, redução no valor dos prêmios, cobertura de riscos mais ampla, etc.

4.2

O PAPEL DA POLÍTICA ECONÔMICA Muito embora a teoria dos jogos demonstre que a cooperação tende a ocorrer em

determinadas circunstâncias e a teoria econômica aponte que a cooperação pode ser uma posição mais eficiente economicamente do que a competição, infelizmente a realidade é muito mais complexa do que apenas estas duas perspectivas. A recorrente alternância histórica da prevalência entre as cooperativas e as companhias de seguros, conforme exposto na primeira parte desta monografia, sugere que outros fatores concorrem pesadamente para a emergência de uma ou de outra forma. O arcabouço regulatório-institucional parece compreender uma parte expressiva desses fatores, porque, conforme a história do mercado de seguros sugere, os agentes pautam-se enormemente pela ordem jurídica do mercado, mesmo porque estes mesmos agentes exercem grandiosa influência sobre a direção da política econômica. “The organizational, regulatory, and tax law to which insurance companies are subject has an influence on the choice of form and has often been self-consciously structured with this influence in mind – either

107

to encourage one form or another or to maintain neutrality between them.”122

Na história do mercado brasileiro de seguros poucas foram as ocasiões em que o Estado adotou medida de estímulo às cooperativas de seguro, como exemplo, podemos citar a isenção fiscal às sociedades mútuas ao final do século XIX, e o texto original, sem as modificações posteriores, do Decreto-Lei 2.063/40. Mas podemos dizer que, de um modo geral, até a “especulação de 1914”, quando foram liquidadas dezenas de sociedades mútuas, predominou um interesse político ao menos permissivo das cooperativas de seguros. A partir de então predominou uma política de restrição à livre atuação das cooperativas de seguro, fosse em razão do corporativismo varguista, que estendeu os braços do Estado para o interior das mesmas, de uma política paternalista que tomou as mesmas com descrédito, de uma política de concentração e fortalecimento dos agentes econômicos que não tinha espaço para agentes menores e pautados na solidariedade, ou mesmo a desregulamentação neoliberal que aumentou os requisitos de acesso ao mercado. Neste sentido, a história do mercado brasileiro de seguros tem pouca importância para apontar o papel positivo que o arcabouço regulatório-institucional pode exercer no estímulo à formação de cooperativas de seguros no sentido da afirmação dos fundamentos da ordem econômica, notadamente a livre iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor, cooperação, etc. A história do mercado norte-americano de seguros, por outro lado, é exemplo nesse sentido, conforme demonstrou a exposição na primeira parte desta monografia. Grande parte das companhias norte-americanas de seguros constituiu-se na forma de sociedades mútuas ou transformaram-se nesta ao início do século XX em razão de vantagens práticas e jurídicas. Duas reformas na segunda metade do século XX, em 1959 e em 1984, reverteram esta situação; a primeira buscou equilibrar os tributos incidentes sobre ambas, ao passo que a segunda colocou as companhias efetivamente em vantagem.

122

HANSMANN, Henry. The Organization of Insurance Companies: Mutual versus Stock. J. L. Econ. & Org., 1985. p.125.

108

Logo, em tese, a alternância da vantagem econômica-institucional ora de uma ou de outra forma deve, em alguma medida, ser o resultado da aplicação de instrumentos de determinada política econômica. E, na medida em que a política econômica deve ser estruturada segundo cânones e diretrizes constitucionais, a permissividade ou estímulo às cooperativas de seguro deve, antes de tudo, decorrer dos mandamentos constitucionais. Neste sentido, a Constituição da República Federativa do Brasil prescreve, dentre os princípios constitucionais da ordem econômica, a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, e a redução das desigualdades sociais (art. 170, incisos III, IV, V e VII, respectivamente). E ainda o fundamento da livre iniciativa (art. 1º, “IV” e 170, caput da CF). Dispõe, também, que é dever do Estado, de acordo com o §2º do art. 174, como agente normativo e regulador da atividade econômica, apoiar e estimular o cooperativismo e outras formas de associativismo. Como, então, admitir que a política econômica brasileira não adote medidas de estímulo às cooperativas de seguro, e o que é pior vede a constituição destas organizações, que traduzem fielmente princípios tão caros à comunidade, como a cooperação e a solidariedade? Ocorre que o legado histórico de nosso país deixa transparecer, de um lado, um esquecimento profundo desta forma societária, ventilado pela cultura contemporânea de culto à competição, e, de outro, um preconceito histórico para com esta forma jurídica em razão de um aparente mal funcionamento de sua estrutura, que, em essência, verdadeiramente ocorreu em razão da indevida interferência estatal no comando das cooperativas. Assim, uma vez instituído um regime jurídico adequado, no sentido de harmonizar os mais diversos princípios e fundamentos da ordem econômica brasileira, seriam necessários, ainda, para a viabilidade de constituição de cooperativas, a adoção de medidas positivas de estímulo a fim de enfrentar os problemas associados aos elevados custos de gestão técnica dos riscos e de acesso ao capital, ocasião na qual dever-se-iam operacionalizar formas de apoio técnico e de acesso facilitado ao crédito.

109

5

O MERCADO DE SEGUROS NA ATUALIDADE

5.1

MICROSSEGUROS O que se convencionou chamar de microsseguros nada tem a ver com seguros

cujos valores das indenizações ou dos bens segurados são reduzidos, na verdade, são apenas seguros voltados à população de baixa renda, e é exatamente em razão disto que decorrem as suas peculiaridades. Primeiramente, em razão da baixa capacidade econômica e exposição, muitas das vezes, à riscos elevados, as companhias de seguros não guardam muito interesse sobre este tipo de seguro, muito embora o tema esteja sendo atualmente muito debatido e alguns produtos desta modalidade já sejam até oferecidos por algumas companhias. Daí que faria sentido que tais seguros fossem realizados por cooperativas. Têm sido realizados alguns estudos sobre o tema, sobretudo na Ásia e na África,123 apontando que subsistem cooperativas de microsseguros não formalizadas, especialmente nas áreas de seguro de vida, mas que apresentam uma sorte de problemas. Antes de tudo, é certo que as cooperativas de seguros apresentam algumas vantagens, e talvez a principal delas neste caso seja exatamente a de alcançar as regiões mais pobres, mas, além disso, guardam, também, vantagens associadas aos baixos custos de informação e supervisão em razão da elevada participação de seus segurados. Ocorre que as principais desvantagens da forma cooperativa tornam-se ainda mais dificultosas em sede de uma organização com pouca capacidade econômica e voltada para a baixa renda, notadamente a débil administração e gestão de riscos e o restrito acesso ao capital. No limite, estes problemas tornam as apólices demasiadamente custosas e inacessíveis à população de baixa renda. A operação, com respeito aos fundamentos de higidez e defesa do consumidor, de pequenas cooperativas de microsseguros é uma questão muito intrincada e que demanda estudos que demonstrem que a criação de instrumentos estatais, como o subsídio ao crédito e a consultoria técnica, são realmente viáveis.

123

LEPPERT. Gerald. Micro health insurance in developing countries: What are the solutions to the insurance-relates weaknesses of the mutual model? texto em desenvolvimento (rascunho). Disponível em: http://www.agi-genoforschung.de/files/leppert-2010_micro-health-insurance-in-developing-countrie.pdf

110

5.2

DESREGULAMENTAÇÃO DO MERCADO Ao final do século XX, muitos estudiosos, influenciados pelas doutrinas

neoliberais, passaram a afirmar que as regras regulatórias do mercado de seguros apresentavam falhas e que, em vez de reformá-las, dever-se-ia deixar de regular este mercado, deixando a concorrência atuar livremente na solução das mesmas. Não tardou para que os mesmos estudiosos percebessem que a regulação para o controle da transparência e da higidez no mercado era necessária para garantir a própria tão propugnada livre concorrência. Ocorre que o controle isolado da higidez das seguradoras implica a criação de barreiras mais severas de acesso e permanência no mercado que, no limite, restringem a livre concorrência no mercado. Logo, a tese dos defensores da desregulamentação do mercado de seguros ficou sem sentido, pois ao se propugnar a desregulamentação sob o argumento de aumento da concorrência são adotadas medidas que concentram ainda mais o mercado. A despeito desta patente contradição, alguns Estados e algumas seguradoras têm levantado a bandeira desta corrente, que, se concretizada, torna praticamente inviável a constituição e permanência das cooperativas de seguros. “Desregulamentar mercado implicaria (...) elevar os requisitos de higidez econômico-financeira do segurador, entre eles o capital mínimo necessário para ingressar na atividade. Nesse contexto, é provável que as cooperativas de segurados fossem simplesmente banidas da regulação. A única forma aceitável de organização da empresa seguradora seria a sociedade anônima.”124

5.3

A CRISE ATUAL DAS COOPERATIVAS DE SEGURO Já se apontou, por ocasião da história do mercado de seguros alemão e norte-

americano, que a partir do final do século XX intensificou-se o fenômeno da 124

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op. Cit. p.124.

111

desmutualização, no qual seguradores sob a forma de cooperativas de seguro transformam-se em sociedades anônimas. Este fenômeno está associado ao acirramento da competição no mercado de seguros e à financeirização da economia, sendo que as companhias se integraram intensamente neste processo por meio da aplicação financeira de suas provisões e integração nos conglomerados financeiros, ao passo que as cooperativas foram completamente alijadas, de modo que detêm pouco acesso ao capital financeiro. Esta circunstância de natureza econômica foi definidora para a desvantagem comparativa atual das cooperativas de seguro, motivo pelo qual estas seguradoras têm optado pela fusão com outras cooperativas, constituição de uma “Mutual Holding Company”, ou a sua desmutualização, o que tem sido mais recorrente. Este último fenômeno tem se mostrado não apenas demorado, burocrático e custoso

como

também

os

antigos

associados-segurados

não

têm

recebido

adequadamente a correspondente participação acionária, porque a lei aplicável não garante o valor de mercado aos mesmos, tendo sido as ações subprecificadas pelas autoridades regulatórias e judiciais.125

6

FORMAS JURÍDICAS DAS COOPERATIVAS DE SEGUROS Pode-se afirmar, em linhas gerais, que a forma jurídica segundo a qual pode

atuar uma cooperativa de seguros dependerá do respectivo regime jurídico de cada Estado. Ocorre que, via de regra, subsistem estruturas jurídicas mínimas que instrumentalizam fórmulas recorrentes de organização das cooperativas de seguro, sendo que a variação de uma sorte de aspectos, especialmente de natureza regulatória, são nada mais, sob o aspecto estritamente técnico-jurídico, do que perfumarias da política econômica, que não modificam a sua respectiva lógica peculiar de funcionamento. Assim, a cada forma societária corresponde uma estrutura econômica de funcionamento, sendo que o seu regime jurídico organiza os diferentes interesses que recaem sobre a sua atividade. 125

CLINTON, Edward X. The Rights of Policy holders in an Insurance Demutualization. 41 Drake L. Rev 657, 1992.

112

“(...) a sociedade anônima é a forma societária concebida para organizar interesses de pessoas que estão dispostas a entregar capital à empresa, esperando com isso ter um retorno sob a forma de dividendo. O interesse do sócio se casa perfeitamente com a forma da sociedade – é isso que faz com que as companhias de seguros sejam candidatas naturais a prevalecer no mercado.”126

6.1

A QUESTÃO DA NOMENCLATURA Adotamos no presente estudo o termo “cooperativas de seguros” para fazer

alusão a um gênero o mais largo possível de organizações de operações securitárias baseadas essencialmente no mutualismo de um grupo de pessoas sob os fundamentos de cooperação e solidariedade entre as quais os riscos são equitativamente distribuídos. Sendo assim, o referido termo se posiciona como gênero dos quais são espécies as sociedades mútuas e as cooperativas de seguro em sentido estrito, ambas as quais, conforme exposição posterior, guardam formas jurídicas próprias. Anota-se, que esta classificação não exclui outras eventuais modalidades de cooperativas de seguro, mas que são estas duas espécies as que detêm central relevância no mercado ocidental de seguros. Neste sentido, vale observar que nos EUA fez-se uma distinção, que hoje tem pouca utilidade prática, entre “mutuals” e “fraternal societies”, sendo que a diferença considerável entre essas era a de que a primeira constituía primeiramente um fundo comum para fazer frente aos sinistros, ao passo que a segunda distribuía diretamente os prejuízos correspondentes às indenizações. Ainda, alguns estudos apontam a presença de organizações mútuas essencialmente associativas, relativamente endêmicas, na Ásia e na África, que guardam peculiaridades próprias de funcionamento, em larga medida associadas à aspectos culturais e religiosos locais.127

126

RIBEIRO, Amadeu Carvalhaes. Op Cit. p.127. LEPPERT. Gerald. Micro health insurance in developing countries: What are the solutions to the insurance-relates weaknesses of the mutual model? texto em desenvolvimento (rascunho). Disponível em: http://www.agi-genoforschung.de/files/leppert-2010_micro-health-insurance-in-developing-countrie.pdf 127

113

6.2

FORMAS MÚTUA E COOPERATIVA DE SEGURO Cabe ressaltar que a classificação entre sociedades mútuas e cooperativas de

seguro em sentido estrito tem forte respaldo histórico, pois que a primeira deriva, em grande medida, de arranjos mútuos organizados, sobretudo, a partir da idade média, ao passo que a segunda deriva da organização de trabalhadores após a revolução industrial, notadamente por meio de associações, sindicatos e cooperativas de produção, daí que cada forma guarda estrutura, em alguma medida, distinta. Na ordem jurídica brasileira, ao longo dos séculos XIX e primeira metade do XX, consolidou-se que a qualidade de associado da sociedade mútua era pressuposto necessário para tornar-se segurado da mesma.128 No Brasil, as sociedades mútuas subsistiram solitárias até o início do século XX, quando a industrialização se intensificou, nesta oportunidade os sindicatos de empregadores paulatinamente constituíram cooperativas de seguros em sentido estrito. Nestas, para celebrar contrato de seguro, não era necessário tornar-se membro da cooperativa.129 Logo, as cooperativas de seguros atuaram preponderantemente nos seguros contra acidentes de trabalho e, já na segunda metade do século XX, nos seguros agrícolas.

128 129

MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Tomo 46. Idem

114

CONSIDERAÇÕES FINAIS Não subiste respaldo na ordem jurídica brasileira vigente para a constituição de cooperativas de seguro, a exceção das cooperativas agrícolas de seguro, cuja ausência de dados sugere ter pouca expressividade econômica. A despeito de terem sido atuantes, no Brasil, ao longo de todo o século XIX e, em alguma medida, na primeira metade do século XX, as cooperativas de seguro foram deixadas ao esquecimento, e os poucos que conhecem esta forma de organização da atividade seguradora guardam uma visão preconceituosa sobre a mesma em razão das recorrentes e injustificadas interferências governamentais nessas associações privadas. O predomínio de uma política de concentração de mercado, da Era Vargas até, inclusive, o Regime Militar, e o subjacente fortalecimento das Companhias Seguradoras, bem como a tendência mais contemporânea de integração das seguradoras aos conglomerados financeiros, não abriram oportunidades, jurídicas, políticas e econômicas, para a participação das cooperativas no mercado de seguros. A despeito disso, a teoria dos jogos, a teoria econômica e o direito têm apontado no sentido reverso, isto é, de que as cooperativas de seguros podem algumas vezes exercer com maior eficiência econômica e social a atividade de operação de seguros. A teoria dos jogos, a partir de testes práticos, conclui que a cooperação prevalece sobre a competição em determinadas circunstâncias, quais sejam, a relação continuada entre um mesmo grupo pequeno de jogadores com o mesmo nível informacional sobre os demais. A teoria econômica traduz estes resultados da teoria dos jogos por meio da análise dos custos de transação, concluindo que a cooperação pode ser mais eficiente economicamente do que a competição quando os custos associados à obtenção de informações dos consumidores no mercado e de supervisão dos mesmos mostrarem-se expressivamente elevados em determinado mercado, como, conforme demonstrou Akerlof, é o mercado segurador. O Direito Societário, a partir da teoria do contrato-organização, apresenta a forma jurídica cooperativa como apta a internalizar os mais variados interesses que recaem sobre a atividade econômica da empresa seguradora, no sentido de servir à Política Econômica como instrumento regulatório capaz de realizar harmonicamente as diretrizes da ordem econômica constitucional.

115

Assim, a cooperativa de seguros dá concretude aos princípios constitucionais da (i) função social da propriedade, (ii) livre concorrência, (iii) defesa do consumidor, (iv) redução das desigualdades sociais e regionais (art. 170, incisos III, IV, V e VII, da CF) e ao fundamento da (v) livre iniciativa (art. 1º, “IV” e 170, caput da CF), todos da ordem econômica constitucional, na medida em que (i) efetiva a função social da empresa, (ii) atua na preservação da livre concorrência no mercado, competindo com os demais agentes do mercado, (iii) incrementa o bem-estar dos consumidores, especialmente melhorando a qualidade e reduzindo o preço das apólices, (iv) proporciona o acesso ao seguro às pequenas e médias empresas, e (v) é expressão genuína da livre iniciativa dos particulares. Sendo que este entendimento, de que tais decorrências das cooperativas de seguro dão efetiva concretude a diretrizes constitucionais, é corroborado pela interpretação sistemática destes princípios a fundamentos da ordem econômica constitucional à luz do o §2º do art. 174 da CF, que prescreve o dever do Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, apoiar e estimular o cooperativismo e outras formas de associativismo. A integração dessas três perspectivas da cooperação - notadamente, lúdica, econômica e jurídica -, sugere a conveniência econômica e social das pequenas cooperativas de seguro para operação de seguros privados contra riscos específicos entre consumidores comuns de determinado nicho da atividade econômica. Logo, aponta-se para a eventual associação de pequenos e médios empresários, prevalecentes, de um modo geral, na estrutura econômica brasileira, que exercem determinada atividade econômica comum e estejam sujeitos a riscos homogêneos, possivelmente a partir de relações já existentes no seio de associações ou sindicatos econômicos. Isto porque tal modalidade de associação, conforme já extensivamente exposto neste estudo, é capaz de melhor enfrentar os problemas de informações típicos do mercado de seguros, porque, guardando tais empresas aprofundado conhecimento sobre sua atividade e, consequentemente, sobre os riscos aos quais estão sujeitos, podem estabelecer mecanismos mais eficazes e menos custos de redução de riscos e de supervisão dos associados, e, ainda, delimitar com maior precisão o valor dos prêmios. Sem contar que quão mais duradoura for a cooperação entre os associados de uma cooperativa, menores serão os custos associados à operação de seguros, e mais provável será a reprodução e continuidade desta reciprocidade.

116

Não subsiste, portanto, fundamento jurídico, sob a ótica constitucional, para que a legislação privilegie as formas jurídicas competitivas e não permita que terceiros interessados na autogestão da atividade seguradora possam se associar com respeito aos princípios do seguro, notadamente a higidez, livre concorrência, proteção ao consumidor e cooperação, sob os fundamentos de cooperação e solidariedade.

117

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