Brasilidade gaúcha no Carnaval de Porto Alegre

July 22, 2017 | Autor: Jackson Raymundo | Categoria: Literature, Literatura brasileira, Cultura Popular, CARNAVAL, Canção Popular Brasileira, Porto Alegre
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Texto publicado nas páginas 4 e 5 do Caderno PrOA, de 15 de fevere http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2015/02/o-que-cantaram-ao-longo-do-tempo-os-sambas-enredos-do-carnaval-de-porto-alegre-4700179.html iro de 2015.
Brasilidade gaúcha
O que cantaram ao longo do tempo os sambas-enredos do carnaval de Porto Alegre
Pesquisador analisou as letras dos sambas das escolas da Capital dos anos 1970 até a contemporaneidade
por Jackson Raymundo*
14/02/2015 " 15h03

Desfile de carnaval da escola Imperadores do Samba em 1979, em Porto AlegreFoto: Adolfo / Agencia RBS
* Mestre em Letras/UFRGS com a dissertação A Poética do Samba-Enredo: A Canção das Escolas de Samba de Porto Alegre
Dentre as múltiplas expressões carnavalescas existentes no Brasil, o desfile de escolas de samba sobressai-se como a mais conhecida – no país e no Exterior. Essa forma de fazer carnaval, criada pelos sambistas da periferia carioca nos anos 1920 e 30, se espalhou pelo país e firmou-se como símbolo de uma "brasilidade". E mais: com seus desfiles e o seu samba próprio (o samba-enredo), fundaram um gênero artístico e um gênero cancional novos, duas formas estéticas radicalmente brasileiras.
A construção dessa "forma brasileira" geralmente é analisada somente sob o prisma do Rio de Janeiro, relegando aos demais lugares o papel de meros retransmissores do estilo de carnaval carioca. O estudo das "periferias" do país (periferia, em relação ao "centro" Rio-São Paulo), porém, pode trazer perspectivas enriquecedoras para pensar o Brasil, o lugar no espaço (Estado, cidade, comunidade) e no tempo, além da condição pessoal (de raça e etnia, classe etc.). É o que se constata ao se estudar o Carnaval de Porto Alegre, e particularmente a canção de suas escolas de samba.
Quando decidi, sob a orientação do professor Luís Augusto Fischer, empreender uma pesquisa sobre o samba-enredo de Porto Alegre no âmbito do mestrado em Literatura da UFRGS, foi justamente no intento de preencher uma lacuna bibliográfica evidente. Numa dimensão mais alargada (ou mais generosa) de cânone literário, buscamos, num certo sentido, a aproximação entre duas academias: a academia da universidade e a academia das escolas de samba de Porto Alegre, através do estudo de suas canções. A extensa produção dos compositores locais de samba-enredo não possui um espaço ou suporte centralizados que lhe preservem de forma integral (a análise das canções necessitou, portanto, de uma primeira etapa de muita consulta a jornais e discos antigos, áudios dispersos na internet etc., para assim montar um corpus).
Num país que constantemente procura se encontrar e (re)construir sua identidade, as escolas de samba no Brasil pós-Revolução de 1930 tomaram parte na tradição formativa da literatura brasileira, ao buscar simbolizar aspectos de uma "brasilidade". E mais: mesmo que inconscientemente, os seus compositores inventaram um gênero cancional que reunia elementos do épico, um gênero literário considerado mais complexo, raro na canção popular urbana e que parecia fadado à extinção.
Para averiguar a forma própria do gênero samba-enredo, diversos fatores devem ser considerados. Primeiro, a sua existência se dá por um objetivo pragmático: ser a canção da escola de samba para o seu desfile – o samba-enredo se efetiva no cortejo da agremiação. Como segundo ponto, ressalta-se a sua relação plasmada com a História: os "motivos patrióticos", compulsórios nos primórdios dos desfiles, fundaram uma estética intrinsecamente ligada à história e à cultura brasileiras. Em terceiro lugar, a presença de uma complexa rede de autoria: todo samba-enredo parte de um enredo, cujo autor é (são) outro(s); o próprio samba-enredo, na maioria das vezes, tem autoria coletiva. O quarto fator é o circuito por onde se difunde, assim como o público a que se destina e o papel exercido, que é performático – todo samba-enredo deve ser cantado (em alguns trechos podendo ser coreografado) por centenas, ou milhares, de componentes da escola de samba.
Ao se estudar a formação de um gênero em lugar distante ao seu espaço de origem, o olhar deve atentar tanto para os elementos imitativos perante o modelo seguido, mas também para aquilo que há de "original", ou inovador, na manifestação por ele inspirada. Uma mostra disso é a permanência das tribos carnavalescas em Porto Alegre – hoje apenas duas, Os Comanches e Guaianazes –, que invariavelmente se apresentam com temas indígenas e possuem uma estética, uma canção e um ritmo próprios. Para além disso, porém, é possível identificar na poética cancional das escolas de samba porto-alegrenses vários reflexos e dissensos em relação à matriz carioca.
Ao se trabalhar com as letras (e, sempre que possível, também com o áudio e o vídeo do desfile) de todas as escolas de samba do primeiro grupo de Porto Alegre de 1976 a 2014, foi possível chegar a algumas sínteses. A tarefa, nada simples, já que se analisou um corpus de quase quatro centenas de canções, utilizou como método a elaboração de grandes blocos de sentido. Nesses blocos, algumas características literárias representam verdadeiras "longas durações", presentes, em maior ou menor quantidade, em todas as décadas (o termo, junto de "ciclos" e "eventos", é largamente utilizado na teoria literária pelo italiano Franco Moretti, a partir do historiador francês Fernand Braudel). As principais "longas durações" do Carnaval de Porto Alegre são: o negro e a religiosidade afro-brasileira; a formação e a miscigenação do Brasil; o índio; a cidade de Porto Alegre (visões sobre a cidade, seus personagens, seus lugares, suas instituições, o futebol).
Outras características correspondem a "ciclos", com alguma temática ou discurso tendo presença predominante em determinado momento histórico. O ciclo é o período em que a forma estética está essencialmente amalgamada com a história – segundo Moretti, é o tempo em que se manifesta o gênero literário, onde o fluxo se encontra com a forma. Identifiquei a ocorrência de dois casos de explícitos de "ciclos": o ciclo da exaltação do Carnaval, entre 1979 e 1983, de efervescência do carnaval de rua de Porto Alegre, e também etapa derradeira da ditadura militar, e o ciclo dos sambas-enredo irreverentes e críticos, na segunda metade da década de 1980, tempos de esperança no Brasil redemocratizado e de catarse coletiva após mais de 20 anos de limitações.
No segundo ciclo, a fusão entre forma e história se mostra muito nítida. A Praiana em 1986, por exemplo, lembrava a censura e comemorava o seu fim:
"Provocava um rebuliço / Quem falasse um palavrão / Condenaram o rei da vela / Deram um tapa na canção / Quando penso no assunto / O passado ainda me dói / Perseguiram o pobre Chico / Barraram o balé Bolshoi" (autoria de Jajá).
Três anos depois, meses antes da primeira eleição presidencial pós-ditadura, o samba da Restinga simbolizava o desconforto com a situação política do país a partir do desejo nada altruísta de ser um "marajá" para, resolvido o "monstro da inflação", poder "mamar deitado":
"No meu sonho eu vou ser / Eu vou ser um marajá / Vou arrumar a situação / Vou acabar com o monstro da inflação / Quando tiver tudo arrumado / Vou ser leitão, quero mamar deitado" (autoria de Paulão da Tinga).
A forte incidência das temáticas do negro e da religiosidade de matriz africana (ou afro-brasileira) no samba-enredo da capital gaúcha é uma demonstração da simbiose que há entre objeto literário, produtor/criador e público. O Carnaval de escolas de samba foi e segue sendo essencialmente negro, protagonizado pelas comunidades das periferias da cidade.
Já em 1979, ano do primeiro LP de sambas-enredo da Capital, a matéria do negro e da religiosidade aparecia com destaque, em sambas como o do Bambas da Orgia e da Imperadores do Samba. O da Imperadores desfilava comOxumaré, Oferenda de Amor a Obatalá (Wilson Ney), que prima pela exclusividade dada à religiosidade e à mitologia africana. Os orixás não são apenas motivo de invocação, e sim os protagonistas da narrativa:
"Conta a mitologia africana / Que o criador do universo / Foi Obatalá / Rei supremo e todo poderoso / No templo na ilha de Ifé".
Em 1995, o Bambas apresentou um samba-enredo que se tornaria clássico do gênero. Festa de Batuque (Paulo Dias e Delmar Barbosa) tematiza a religião afro-gaúcha e a própria história do negro no Rio Grande do Sul, com um ritmo dado pela bateria que remonta ao clima de terreiro:
Somos descendentes de africanos, / Da Nigéria e do Congo, / Moçambique, da Angola e da Guiné, / Príncipe Custódio, velho sábio macumbeiro, / Espalhou pelo Rio Grande fundamentos em yorubá...".
O índio, curiosamente, também aparece como elemento constante na poética cancional das escolas de samba de Porto Alegre (em quantidade bem menor, é verdade), apesar de existir na cidade a peculiaridade das tribos carnavalescas.
Parece que uma vontade de expressar a brasilidade permeia a poética das escolas de samba locais. A profusão de sambas-enredos falando do Brasil de forma panorâmica, da formação de seu povo e de elementos como a miscigenação, somada à escassa representação do "gaúcho" e de narrativas generalistas e apologéticas sobre o Rio Grande do Sul, talvez emitam sinais importantes do lugar de onde o sujeito-criador se vê.
O problema aumenta quando se verifica que os "heróis nacionais" comumente homenageados no Carnaval carioca não têm a mesma aderência na canção das escolas de samba de Porto Alegre. Em vez de simplesmente reproduzir um discurso exaltatório a personagens da historiografia oficial, os compositores locais construíram, em boa medida, narrativas que valorizam e dão visibilidade a seus próprios ídolos, lugares etc.
O samba-enredo de Porto Alegre, em suma, consolidou uma poética cancional que evidencia um forte desejo de pertencimento e expressão da brasilidade – porém, com notáveis matizes locais.


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