Breves reflexões sobre a prescrição no Código de Processo Civil de 2015

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CAPÍTULO 1

Breves reflexões sobre a prescrição no Código de Processo Civil De 2015 Venceslau Tavares Costa Filho1 SUMÁRIO: 1. DELIMITAÇÃO CONCEITUAL DA PRESCRIÇÃO; 2. PRESCRIÇÃO E USUCAPIÃO; 3. PRESCRIÇÃO EX OFFICIO?; 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

1. DELIMITAÇÃO CONCEITUAL DA PRESCRIÇÃO Dentre os diversos temas comuns às duas disciplinas, pode-se apontar a prescrição, que se encontra umbilicalmente vinculada à problemática do exercício das pretensões. A prescrição - não obstante o regramento pelo direito material -, é tema relevantíssimo de direito processual civil e, especialmente, para o processo de execução. Tanto é que o enunciado nº 150 da Súmula do Supremo Tribunal Federal preceitua que: “Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação”. A natureza processual de uma regra, ou conjunto de regras, reside na “regulamentação de fenômenos estritamente processuais, quer dizer, na programação do debate judicial em busca de um fim que será a resolução de um conflito de interesses”. As regras sobre prova, ou ainda sobre a oposição ao casamento, são eminentemente processuais, “pouco importando se está incorporado ao Código Civil porque tal fato não lhe tira a condição de lei processual”.2 A prescrição, indubitavelmente, interessa diretamente à chamada “programação do debate judicial” e seu escopo precípuo. A exceção de prescrição resulta no direito do devedor obter a exclusão da “condenação ao adimplemento da prestação, ainda que subsista a obrigação. Quando o devedor fizer uso

1. Advogado. Doutor em Direito pela UFPE. Secretário geral da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes, da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pernambuco. 2. ROCHA, José de Moura. A interpretação e as leis processuais. Revista Acadêmica, n. 73 (1986). Recife: Universidade Federal de Pernambuco, p. 25.

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desse direito, o credor ficará com um crédito que não é exigível judicialmente, porque não constitui uma pretensão”.3 Preocupa-nos, contudo, uma reforma do direito brasileiro no tocante à prescrição que não leve em consideração as nossas melhores tradições e, também, as recentes conquistas da ciência do direito. O advento do Código de Processo Civil de 2015 aprofunda tal preocupação quanto à continuidade da tradição jurídica nacional. Entre nós, ainda grassam as confusões conceituais no tocante ao instituto da prescrição, que ainda é identificada com as idéias de “extinção do direito”, “extinção da ação”, quando não se fala em “extinção do direito de ação”. Sabe-se que as críticas dirigidas ao conceitualismo jurídico são antigas e, em vários aspectos, pertinentes. Sob o ponto de vista retórico, contudo, “não se pode negar que o conceito opera uma função central no discurso dos juristas, pois é um modo eficaz de encaminhar a neutralização da decisão judicial”. As ciências fazem uso dos conceitos, mas não se resumem a eles. A escolha do “caminho conceitual para a construção da justificação da decisão veste a violência do decidir com roupas de saber”. No direito das obrigações, o uso de abstrações constitui-se em uma característica marcante. Tanto que o livro do Direito das Obrigações parece concentrar os trechos mais inacessíveis à leitura dos não-juristas. “O rigor técnico da disciplina espelha-se na regulação legal, construída sobre uma linguagem abstrata, formal e, tanto quanto possível, precisa”.4 A prescrição é uma destas construções conceituais que parecem servir para neutralizar certas tomadas de posição, que pareceriam arbitrárias ou excessivamente autoritárias se não fossem justificadas como são. Um primeiro reparo “conceitual” que devemos fazer, portanto, diz respeito ao texto do enunciado nº 150 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, pois a prescrição não atinge o direito de ação, mas a pretensão. O Código Civil de 2002 neste ponto esclarece que é a pretensão que resta fulminada pela prescrição. A prescrição nem é forma de extinção de um direito, nem muito menos se presta a extinguir a ação. Fala-se em extinção de um direito associada ao decurso de certo prazo especificamente em relação à decadência. Some-se a isto o fato de que o Código de Processo Civil de 2015, conforme estabelece o art. 487, II, no que toca à verificação da prescrição, impõe a extinção do processo com

3. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 108. 4. CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva. Classificação das obrigações. In: CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva; CAMPOS, Alyson Rodrigo Correia (org.). Coletânea do direito das obrigações. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2011, p. 101-102.

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resolução do mérito, e não a extinção do direito de ação. Assim, se se fala em resolução do mérito em virtude da verificação da prescrição, isto “pressupõe a efetiva utilização do direito de ação. Mais adequada, portanto, parece ser a posição adotada pelo atual Código Civil, o qual, em seu artigo 189, define a prescrição como forma de extinção da pretensão, e não da ação ou do próprio direito material”.5 Como adverte José de Moura Rocha, a prestação jurisdicional satisfeita pelo Estado não está atrelada necessariamente a uma pretensão material insatisfeita. O dito perfil “publicístico” da relação jurídica processual não mais identifica o direito com a ação. A ação, sob tal ponto de vista, corresponde ao “poder ou direito de buscar um juízo para que ele se pronuncie sobre ‘direito’ desconhecido ou contrariado, melhor, contestado”.6 A ação, portanto, vai além da pretensão, porquanto o credor, “além de exigir o cumprimento da obrigação, age, valendo-se da espécie adequada, postulando a condenação do devedor para executar a prestação prometida, ou para indenizar as perdas e danos, além da extinção da obrigação” . Mas, será o Estado a executar, via Poder Judiciário, porque se obrigou à prestação jurisdicional. Não fosse a execução forçada, o credor dependeria da boa vontade do devedor, o que seria um fato de insegurança no tráfico negocial. Destarte, a execução forçada busca compelir o devedor a cumprir a prestação, quando for possível conseguir o que foi prometido, com auxílio da força pública. Quando não for possível (por exemplo, a coisa objeto da prestação de dar ou restituir foi destruída, ou a prestação de fazer é personalíssima), executar-se-ão os bens do devedor necessários para obtenção do valor da prestação inadimplida.7

Nos Estados Democráticos de Direito, caso o devedor se recuse à pretensão do credor, como resta vedado o caminho da justiça de mão própria (ou realizada diretamente pelo credor); tal pretensão só poderá ser exercida mediante a tutela jurídica estatal, ou tutela jurisdicional. Destarte, o “credor expõe seu direito, indica a pretensão e a ação e pede que o Estado promova a execução forçada da obrigação, segundo a legislação processual aplicável”.8 5. GUIMARÃES, Jéssica Rayllane Alencar; MATOS, Flavio Henrique Rodrigues Duarte; TOBLER, Gabriela Cavalcanti; SILVA, Patrícia Camilo Caetano; SOUSA, Valdo Henrique Verçosa de Melo. Propostas para o aperfeiçoamento do sistema prescricional brasileiro à luz do direito germânico. In: COSTA FILHO, Venceslau Tavares; CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil: volume I. Recife: Nossa Livraria, 2011, p. 257. 6. ROCHA, José de Moura. Notas sobre a fixação da natureza da relação processual. Anuário do Mestrado em Direito, n. 04 (jan./dez. 1988). Recife: Universidade Federal de Pernambuco, p. 113-114. 7. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 24. 8. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 24.

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A execução forçada, entretanto, não pode ser reduzida a um esquema de satisfação de sanções implícitas, ou ainda a uma mera continuidade do processo de conhecimento. Ainda que se faça necessário em alguns casos o processo de conhecimento para a obtenção de um título executivo judicial em virtude da prolação da sentença, deve-se compreender que esta sentença será apenas o título executivo que possibilitará o processo de execução. A partir daí instaura-se nova relação jurídica processual (executória), que poderá se apoiar em um título executivo judicial ou extrajudicial. O que é necessário para o estabelecimento da relação jurídica processual (executiva) será o título, portanto.9 E o que seria a pretensão? A pretensão é um plus em relação ao próprio direito subjetivo, que é uma categoria eficacial de caráter estático. Quem simplesmente titulariza um direito subjetivo qualquer detém uma situação jurídica ativa do tipo estática porque, em princípio, ela está despida da exigibilidade, do poder de sujeitar o devedor ao cumprimento de seu mister, ou de influir na esfera jurídica de outrem para exigir o adimplemento de certa prestação. Assim, “para diferenciar o momento estático do momento tensionado, parece adequado adotar, para a segunda situação, quando já há pré-tensão, o termo pretensão”.10 Esta precisão conceitual remete à doutrina alemã, que faz uso da expressão anspruch, o que se traduz para nós na idéia de pretensão. Como se pode verificar, “o BGB em sua redação original já trazia o conceito de prescrição como causa extintiva da pretensão (Anspruch), in verbis: ‘§ 198. A prescrição começa a contar-se desde o momento em que nasce a pretensão’”.11 Esta disposição corresponde atualmente ao § 200 do Código Civil alemão vigente, que manteve em linhas gerais a atribuição da pretensão como o momento inicial do lapso prescricional, quando afirma que a prescrição “começa com a aquisição da pretensão” (beginnt mit der Enstehung des Anspruchs).12 O Código Civil brasileiro, entretanto, afirma que a pretensão nasce da violação a um direito (art. 189), de modo que a prescrição começaria a correr a 9. ROCHA, José de Moura. Notas sobre a fixação da natureza da relação processual. Anuário do Mestrado em Direito, n. 04 (jan./dez. 1988). Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 114-115. 10. LEONARDO, Rodrigo Xavier. Pretensões contratuais e prescrição. In: COSTA FILHO, Venceslau Tavares; CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil: volume I. Recife: Nossa Livraria, 2011, p. 307. 11. GUIMARÃES, Jéssica Rayllane Alencar; MATOS, Flavio Henrique Rodrigues Duarte; TOBLER, Gabriela Cavalcanti; SILVA, Patrícia Camilo Caetano; SOUSA, Valdo Henrique Verçosa de Melo. Propostas para o aperfeiçoamento do sistema prescricional brasileiro à luz do direito germânico. In: COSTA FILHO, Venceslau Tavares; CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil: volume I. Recife: Nossa Livraria, 2011, p. 260. 12. “Die Verjährungsfrist von Ansprüchen, die nicht der regelmäßigen Verjährungsfrist unterliegen, beginnt mit der Entstehung des Anspruchs, soweit nicht ein anderer Verjährungsbeginn bestimmt ist. § 199 Abs. 5 findet entsprechende Anwendung”.

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partir do momento da verificação de tal ofensa a interesse juridicamente tutelado. A redação do Código Civil brasileiro pode levar à conclusão equivocada no sentido de reputar que a constituição da pretensão pressupõe a violação a direito. Entretanto, certos direitos já nascem dotados de pretensão, de modo que o titular já poderia exercer a pretensão relacionada ao direito antes mesmo da violação. É o que ocorre, por exemplo, em relação a certas obrigações negativas, como a de não revelar segredos. Neste caso, o titular do direito de crédito poderia exercer a pretensão a uma tutela inibitória antes mesmo da efetiva violação do direito. Até mesmo porque a revelação do segredo poderia tornar inútil a prestação para o credor, restando para ele somente uma pretensão à indenização pelo inadimplemento absoluto da prestação. Nesta toada, o Código de Processo Civil de 2015 admite a possibilidade de exercício da pretensão executiva quanto à obrigação de não fazer, mas sem que seja necessário demonstrar a efetiva violação ao direito; no intuito de prevenir a violação pelo manejo da tutela inibitória, por exemplo. É o que prescreve o art. 497 do Novo Código de Processo Civil: Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.Parágrafo único.  Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo.

A doutrina alemã distingue dever (Schuld) e responsabilidade (Haftung). O dever, dívida, débito, etc.; traduz-se em um dever de prestar (Leistensollen), ou seja, de realizar a prestação assumida por ele. Assim, o devedor enquanto pessoa dotada de vontade deve realizar voluntariamente a prestação. Todavia, caso ele viole o seu dever e deixe de realizar a respectiva prestação, não somente infringe uma regra moral, mas também um “dever de conduta” (Haltensollen), que o vincula à palavra dada. Já a responsabilidade (Haftung) traduz-se na sujeição ou submissão ao poder jurídico do credor. Ainda que o devedor possa fazer uso da sua liberdade para decidir se vai cumprir ou não a prestação e em que medida o fará, aquele a quem se imputa responsabilidade está exposto a uma coação direta. A responsabilidade, portanto, confere poder ao credor, e se traduz na submissão ou vinculação daquele considerado responsável.13 Tal diferença entre dívida e responsabilidade resultará na distinção entre o devedor e o responsável pela dívida. Pode-se dever sem ser responsável

13. PLANITZ, Hans. Principios de derecho privado germânico. Barcelona: Bosch, 1957, p. 198-199.

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(ou obrigado) pela dívida? Eis o “milagre” conceitual operado pela prescrição: trata-se uma dívida que não é munida da responsabilidade, ou seja, sem o aparato da pretensão. A explicação dita “científica”, neste caso, é metafórica: a prescrição, uma vez declarada judicialmente, “encobre” a pretensão. Os estudiosos da obra de Pontes de Miranda asseveram que: “antes do reco-

nhecimento judicial da prescrição, a pretensão era encobrível; após o reconhecimento torna-se encoberta”.14 A prescrição, portanto, extingue a pretensão, e não o direito. O fato jurídico que gerou tal direito permanece no mundo jurídico, e continua no plano da existência e da validade (se se tratar de atos jurídicos). Somente a eficácia é que resta obstada, ou (na linguagem de Pontes de Miranda) “encoberta”. O direito, portanto, continua existindo, mas encontra-se “encoberto” pelo manto da prescrição, que foi tecido nas tramas do tempo. Assim, quando o legislador indica certo prazo para o exercício de determinada pretensão, após o transcurso deste prazo o direito não deixa de existir, mas forma-se um óbice ao seu exercício, pois a pretensão foi fulminada pela prescrição.15 Tais direitos subjetivos desprovidos de pretensão também podem ser chamados de direitos “mutilados”.16 2. PRESCRIÇÃO E USUCAPIÃO No direito civil alemão, tanto se fala em prescrição extintiva (Verjährung), como também em prescrição aquisitiva (Ersitzung).17 A idéia de uma prescrição aquisitiva (ou usucapião), de clara inspiração romanística, não parece ser adequada entre nós. Não nos parece apropriado considerar a usucapião como espécie de prescrição. Isto porque, a despeito do decurso do tempo enquanto elemento comum entre a prescrição dita aquisitiva e a usucapião, cada um dos institutos tem uma estrutura própria, e também cumpre funções próprias, além de possuir características específicas. Ademais, enquanto o alcance do instituto

14. SILVA, Beclaute Oliveira. Obrigação natural: apontamentos analíticos. In: EHRHARDT JR, Marcos; BARROS, Daniel Conde (coord.). Temas de direito civil contemporâneo: estudos sobre o direito das obrigações e contratos em homenagem ao professor Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 119-120. 15. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 106. 16. SILVA, Beclaute Oliveira. Obrigação natural: apontamentos analíticos. In: EHRHARDT JR, Marcos; BARROS, Daniel Conde (coord.). Temas de direito civil contemporâneo: estudos sobre o direito das obrigações e contratos em homenagem ao professor Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 115. 17. LEVANO, Yves. La prescription extinctive en droit allemand après la réforme du droit des obligations. Revue international de droit comparé, a. 56, n. 4 (Octobre-Décembre 2004). Paris: CNRS/Société de législation comparée, p. 947.

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da dita prescrição aquisitiva é amplíssimo, o usucapião (ou prescrição extintiva) encontra-se adstrito ao âmbito do direito das coisas. Some-se a isto o fato de que o usucapião é oponível erga omnes, enquanto a alegação da prescrição dá-se apenas em relação a certo credor ou certos credores.18 Este caráter absoluto da usucapião é o que justifica a necessidade de publicação de editais na ação de usucapião (art. 259, I, do Código de Processo Civil de 2015), a fim de dar conhecimento do pedido para todos os interessados. Tal imposição da publicação de edital também se verifica no usucapião extrajudicial (art. 216-A, § 4º, da Lei n. 6.015/1973), que foi introduzido recentemente no ordenamento jurídico pelo Código de Processo Civil de 2015 (art. 1.071). Destarte, a aquisição do direito à usucapião verifica-se em relação a todos, ou seja, é dotada de eficácia erga omnes. Não se pode afirmar o mesmo em relação à prescrição. Observe-se, pois, a regra do caput do art. 204 do Código Civil brasileiro em vigor: “A interrupção da prescrição por um credor não aproveita aos outros; semelhantemente, a interrupção operada contra o co-devedor, ou seu herdeiro, não prejudica aos demais coobrigados”. O art. 204 do Código Civil vigente esclarece que o devedor pode ter adquirido o direito de alegar à prescrição em relação a certo credor, sem que isto implique na possibilidade de opor tal direito a todos os credores. Isto porque, se um dos credores agiu no sentido de interromper o curso do lapso prescricional, pode acontecer da prescrição continuar a correr em relação aos credores que não praticaram atos capazes de interromper a prescrição. O Código Civil brasileiro, contudo, estende certos aspectos da prescrição para institutos que não se confundem com ela. Nesta linha, o art. 1.244 do Código Civil, por exemplo, socorre-se de certas normas pertinentes à prescrição no disciplinamento do usucapião: “Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”. O Código Civil italiano possui uma disposição similar ao nosso em seu artigo 1.165, estendendo ao usucapião as causas suspensivas e interruptivas da contagem do prazo prescricional. Tal norma de reenvio, contudo, deve ser compreendida como taxativa, de modo que é de interpretação restrita, pois o legislador indicou especificamente até que ponto o reenvio pode e deve operar, sem que o intérprete possa ultrapassar tal limite, inserindo critérios particulares, para além daquele indicado pela própria norma.19

18. MESSINEO, Francesco. Disposizioni in tema di prescrizione applicabili o inapplicabili all´usucapione. In: Studi in memoria di Andrea Torrente, volume II. Milano: Giuffrè, 1968, p. 687. 19. MESSINEO, Francesco. Disposizioni in tema di prescrizione applicabili o inapplicabili all´usucapione. In: Studi in memoria di Andrea Torrente, volume II. Milano: Giuffrè, 1968, p. 687-688.

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Este caráter da prescrição, que transcende um ramo específico do direito civil, faz com que o disciplinamento da matéria no âmbito processual civil repercuta diretamente no direito material, como se deu especificamente com a previsão da possibilidade do juiz conhecer de ofício da prescrição, de acordo com a equivocada redação do § 5º do art. 219 do Código de Processo Civil de 1973.20 A prescrição consiste em uma exceção de direito material, como já afirmado inicialmente. Uma exceção consiste em um contradireito que pode ser manejado pelo indivíduo demandado, em juízo ou fora dele, para “neutralizar, temporária ou definitivamente, os efeitos do direito, da pretensão, da ação ou da exceção a que se contrapõe”.21 A prescrição, portanto, é um contradireito neutralizante, porquanto não extinga o direito do credor ou demandante, mas simplesmente atua sobre a eficácia do direito, impedindo-a ou encobrindo-a (na terminologia de Pontes de Miranda). Mostra-se importante frisar este caráter da prescrição, pois é um dos elementos que a distinguem da decadência. Pois, a decadência atua no sentido de extinguir o direito a que alude. O Código de Processo Civil de 2015, todavia, adotou uma redação que pode gerar confusões, quando parece relacionar a prescrição entre as espécies de causas extintivas da obrigação (art. 525, § 1º, VII).22 3. PRESCRIÇÃO EX OFFICIO? Outrora, o art. 194 do Código Civil prescrevia que o juiz “não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo de favorecer a absolutamente incapaz”. Entretanto, a Lei n. 11.280/2006 revogou o art. 194 do Código Civil e introduziu nova regra no Código de Processo Civil de 1973, qual seja o § 5º do art. 219: “O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”. Como já frisamos anteriormente, parte considerável dos processualistas civis e dos civilistas apresentaram severas críticas a tal reforma legislativa. Em síntese, pode-se relacionar os seguintes argumentos contrários à inserção no parágrafo quinto, do art. 219 do CPC, de norma que autoriza os

20. Para uma crítica fundamentada a esta equivocada reforma do instituto da prescrição, consulte-se: LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no Direito Civil Brasileiro (ou o jogo dos sete erros). Revista da Faculdade de Direito da UFPR, 2010. E, ainda: ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado, n. 25 (jan./mar. 2006). São Paulo: RT. 21. OLIVEIRA, Rafael. Delimitação conceitual de exceção substancial e distinção entre exceções e objeções substanciais. Revista de Processo, v. 193 (março de 2011). São Paulo: RT, p. 27 e ss 22. Art. 525. § 1o Na impugnação, o executado poderá alegar: VII - qualquer causa modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que supervenientes à sentença.

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magistrados a pronunciar, de ofício, a prescrição, cumulado com a revogação do art. 194 do CC/2002, o que decorreu, respectivamente, dos artigos 3º e 11 da referida Lei nº 11.280/2006: (i) representa uma violação à tradição jurídica de países de origem romano-germânica, como seria o caso de Portugal, da Espanha, da Itália, da Alemanha, da França e da Argentina; (ii) relevou sedimentado conceito doutrinário de que a prescrição constitui exceção, especialmente quando considerado que tal instituto não mais se presta à simples punição da inércia do detentor de uma pretensão, e sim à proteção do pretenso devedor das dificuldades progressivas que o tempo impõe à viabilidade de provar a inexistência ou a satisfação do débito, daí porque deveria ser provocada por este último, quando de seu interesse; (iii) seria de constitucionalidade duvidosa, eis que representaria quebra da imparcialidade da jurisdição, já que um agente judicante poderia beneficiar uma parte em detrimento da outra, desequilibrando a relação de direito material sem o pressuposto de uma efetiva nota de hipossuficiência da parte beneficiada.23 O Código de Processo Civil de 2015 não reproduziu a regra contida no § 5º do art. 219 do Código de Processo Civil de 1973, mas parece permanecer no mesmo equívoco. Exemplo disto é a regra do art. 332 do Código de Processo Civil de 2015, que autoriza o julgamento liminar de improcedência nas causas que dispensem a fase instrutória. O § 1º do art. 332 do Novo CPC prescreve que o juiz “também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição”. Neste caso, aparentemente, o juiz poderá julgar o pleito improcedente e pronunciar a prescrição sem a provocação da parte interessada. Entendemos, contudo, que tal possibilidade só se apresenta nas causas que dispensem a fase instrutória, tendo em vista a necessidade de interpretação do § 1º em harmonia com o caput do art. 332. Contudo, ousamos discordar daqueles que concluem a favor da pronúncia da prescrição sem a oitiva do devedor. Isto porque o legislador identificou certas regras como “Normas Fundamentais do Processo Civil”. Entre tais regras, o art. 10 do Novo CPC: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Ora, uma interpretação sistemática do Código de Processo Civil de 2015 impõe sempre a prévia oitiva do devedor e do credor nas causas que envolvam possível pronúncia da prescrição pelo juiz; sob pena da

23. COSTA FILHO, Venceslau Tavares; DANTAS, Rodrigo Numeriano Dubourcq.  Prescrição em face da Fazenda Pública: o âmbito de aplicação do enunciado n. 106 da Súmula do STJ à luz da boa-fé e da segurança jurídica. In: MIRANDA, Daniel Gomes de; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. (Org.). Prescrição e Decadência: Estudos em homenagem a Agnelo Amorim Filho. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 591-612.

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violação de uma norma que ostenta a natureza de garantia fundamental no direito processual civil (art. 10). Tendo em vista a cláusula contida no § 2º do art. 5º da Constituição Federal de 198824, entendemos que o art. 10 do Novo CPC constitui-se em regra que define garantia fundamental no processo civil, o que é reforçado pelo próprio legislador ao definir tais regras como “normas fundamentais”. Contudo, o parágrafo único do art. 487 do Código de Processo Civil de 2015 institui a necessidade de ouvida das partes antes da pronúncia da prescrição, mas ressalva a hipótese de pronúncia da prescrição nos casos de julgamento liminar de improcedência. Esta oitiva prévia à pronúncia da prescrição pelo juiz, todavia, não significa exatamente uma rejeição ao julgamento da prescrição ex officio. O art. 921 do Novo CPC, por exemplo, estabelece a possibilidade de suspensão da execução quando o executado não possuir bens penhoráveis (inciso III). Neste caso, a suspensão da execução implicará também na suspensão do curso da prescrição (§1º). Um ano após a suspensão do prazo, caso o exeqüente não se manifeste, voltará a transcorrer o lapso prescricional (§ 4º), qual seja a prescrição intercorrente. Consumada a prescrição intercorrente, nos termos do § 5º do art. 921 do Código de Processo Civil de 2015: “O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição de que trata o § 4o e extinguir o processo”. Conclui-se, portanto, que o Novo CPC permite que o juízo conheça da prescrição de ofício, ou seja, sem pedido expresso da parte interessada. Contudo, tal pronúncia da prescrição deve ser precedida da oitiva das partes, mesmo nos casos de julgamento liminar de improcedência, tendo em vista a garantia contida no art. 10 do Novo CPC, bem como para permitir que o devedor querendo possa manifestar-se pela renúncia a prescrição, como ainda permite o art. 191 do Código Civil vigente. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado, n. 25 (jan./mar. 2006). São Paulo: RT. CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva. Classificação das obrigações. In: CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva; CAMPOS, Alyson Rodrigo Correia (org.). Coletânea do direito das obrigações. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2011.

24. “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

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