CA NON SEI QUANDO MI O VEREI - A SINGULARIDADE DAS CANTIGAS D’AMIGO NO CANTAR TROVADORESCO EM GALAICO-PORTUGUÊS

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CA NON SEI QUANDO MI O VEREI

CA NON SEI QUANDO MI O VEREI ©RENATO ROQUE

A SINGULARIDADE DAS CANTIGAS D’AMIGO NO CANTAR TROVADORESCO EM GALAICO-PORTUGUÊS

…Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas…

Manoel de Barros, O livro sobre nada

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renato roque

RENATO ROQUE FLUP 2014

Índice

1.

Introdução

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2.

Pequena contextualização histórica do nascimento da poesia trovadoresca

6

3.

As origens dos cantares galaico-portugueses – o caso especial dos cantares d’amigo

9

3.1

Outras teorias

12

3.2

A recepção dos cantares d’amigo

18

4.

O Al-Andaluz

20

4.1

As kharagat

22

5.

Os cantares d’amigo na poesia trovadoresca

25

5.1

Os cantares d’amor

27

5.1.1 Campos sémicos nos cantares d’amor

30

5.1.2 Os cantares d’amor como encomendas?

30

5.2

A singularidade dos cantares d’amigo

32

5.2.1 Aspectos poéticos, métricos e formais

34

5.2.2 Campos sémicos nos cantares d’amigo

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5.3

Os cantares d’amigo e os seus leitores

40

6.

Conclusões

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1. Introdução Para Manoel de Barros, onde sempre descubro aquilo em que estou a pensar

RESUMO: Este artigo pretende ser antes de tudo uma espécie de relatório individual do processo de aproximação e de aprendizagem da poesia trovadoresca em galaico-português, suportado numa bibliografia vasta e diversa sobre o tema, mas, ao mesmo tempo, tenta também expressar uma reflexão pessoal focada na singularidade dos cantares d’amigo. Apesar de não ter tido como base nova investigação, tendo sido construído sobretudo a partir de material publicado de diversos autores, não se coíbe, aqui e ali, de ousar apresentar pontos de vista pessoais e especulativos, baseadas exclusivamente na intuição, depois de ler e de comparar perspectivas diferentes e, nalguns casos, até aparentemente antagónicas, de vários estudiosos da poesia medieval.

…Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia… Manoel de Barros, O livro sobre nada

O estudo académico da chamada poesia trovadoresca galaico-portuguesa não terá sido iniciado antes de 1823, com a primeira publicação do chamado cancioneiro da Ajuda1, identificado normalmente pelos estudiosos pela letra A. Devemo-lo a Charles Stuart2, ainda que a edição mais conhecida desta compilação poética seja posterior, com a coordenação de Carolina Michaelis3, em 1904. Curiosamente, dois não portugueses. Entretanto tinham sido reconhecidas duas cópias sobreviventes do Livro das Cantigas, do século XIV, da autoria de D. Pedro, Conde de Barcelos, onde ele reunira o espólio de todos os trovadores importantes conhecidos. Essas cópias estavam em Roma, sendo identificadas muitas vezes pelas letras B4 (Biblioteca Nacional) e V5 (Biblioteca do Vaticano). Com base nesses três repositórios foram registadas cerca de 1680 cantigas, que se organizam em três géneros maiores (cantiga d’

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Este cancioneiro datará do final do século XIII. É de todos os cancioneiros o menos completo. Contém pouco mais de 300 textos. Foi editado em Paris, em 1823, juntamente com uma cópia do Livro de Linhagens do conde D. Pedro, por iniciativa de Charles Stuart, com a designação Fragmentos de hum Cancioneiro Inedito. 2 Charles Stuart era um diplomata britânico que fora enviado a Portugal em 1810, onde permaneceu até 1814, tendo pertencido ao Conselho de Regência, criado depois das guerras napoleónicas, tendo-se tornado membro da Academia Real de Lisboa. As suas tarefas diplomáticas não o impediram de se interessar por um volume, que ainda repousava no Colégio dos Nobres e que tinha acoplados o Cancioneiro e o Livro de Linhagens de D. Pedro, tendo conseguido publicá-lo. Em 1832, o manuscrito foi transferido do Colégio dos Nobres para a Biblioteca Real da Ajuda e passou a ser-lhe atribuído o nome actual, Cancioneiro da Ajuda. 3 Carolina Michaelis de Vasconcelos casou com Joaquim de Vasconcelos e com ele chegou ao Porto em 1876. Em 1877 passou muitos meses na Biblioteca da Ajuda, a decifrar e a copiar o cancioneiro. Os trabalhos de edição demorariam ainda 27 anos, terminando com a publicação de dois volumes de edição crítica e comentada, em 1904, a que juntou um glossário, publicado na Revista Lusitana nº 23, em 1920. 4 Esta cópia é a mais completa. Foi realizada em Itália por volta de 1525-1526 por iniciativa do humanista Angelo Colocci (1467-1549). Numera as 1664 composições e anota praticamente todo o códice. Foi adquirida pelo Estado Português em 1924 e depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa. 5 Esta cópia foi realizada igualmente em Itália, acredita-se que também por iniciativa de Colocci, e encontra-se depositada na Biblioteca do Vaticano. As cópias B e V têm grandes semelhanças, o que se deverá a terem tido a mesma fonte. 3

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amor, cantiga d’ amigo e cantiga d’ escárnio e maldizer)6 e nalguns géneros menores7, e que são da autoria de cerca de 190 trovadores e jograis8. Uma outra fonte, que deve ser mencionada, é a chamada Tavola Colocciana, identificada normalmente pela letra C, um índice dos cantares elaborado também por Angelo Colocci, e muito importante, nomeadamente, por nomear alguns trovadores de quem todos os textos se perderam. Um outro testemunho de referência é o pergaminho de Vindel, só descoberto em 1914, e por mero acaso, datado do século XIII, porque é um registo exclusivo de época e o único com informação musical. Contém as sete composições do jogral Martin Codax, incluindo a notação musical de seis delas9. Todos os cantares dos cancioneiros correspondem a um período entre 1196 e cerca de 135410, ano da morte do Conde Barcelos, organizador do livro original. Dos cerca de 1700 poemas em galaico-português conhecidos, a partir dos três cancioneiros, cerca de 500 são cantigas d’amigo, de um conjunto de cerca de 90 poetas, tratando-se portanto de um género muito representativo no universo galaico-português. Depois de tantos séculos de esquecimento e de menos de 200 anos de estudo mais ou menos intenso, com recurso a muito poucos registos da época, é natural que a poesia trovadoresca medieval em galaico-português encerre ainda hoje muitos mistérios, quer quanto à sua origem e evolução, quer quanto ao seu significado11. Desde logo nos chamou a atenção o último parágrafo de um artigo de J.C. Miranda onde o autor afirma, para exprimir a atitude de curiosidade e de humildade que um estudioso actual deverá assumir perante tão longínquos textos: “Ver melhor” constitui um dos mais permanentes motivos da literatura medieval. Foi mediante a expressão desse desejo que Galvão iniciou a busca do Santo Graal. E em quantos dos cantares

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Encontramos na literatura formas diferentes para designar esta poesia medieval, ainda que sejam predominantes os termos “cantar” e “cantiga”; mas outros são utilizados ainda que com menor expressão: “cançó”/”canções ; “trobas”; “cobras“; “lais/laix” e “gesta”. J. C. Miranda mostrou, no entanto, no seu artigo CANTAR OU CANTIGA? Sobre a designação genérica da poesia galego-portuguesa que o termo “cantar” seria porventura o mais adequado. É de longe a designação mais utilizada pelos próprios trovadores. Contabilizando 138casos, em 58 composições de 35 autores, J.C.Miranda contou as ocorrências de cada forma: cantar: 121 (88%); cantiga: 12 (9%); cobra: 2; troba:1; cançó/ canções: 2. Por razões meramente literárias, para evitar repetições exageradas do mesmo termo, usaremos neste trabalho duas designações: cantares e cantigas. 7 Um desses géneros, a pastorela, é considerado por alguns autores como próximo da cantiga d’amigo, havendo mesmo poemas com dificuldade de classificação. Mas essa será uma questão que não abordaremos neste trabalho. 8 No cantar trovadoresco em galaico-português há uma clara diferenciação entre trovador e jogral, ao contrário do que aconteceu por exemplo no ambiente occitânico. O trovador era nobre, o jogral não. Alguns cantares reflectem de uma forma clara essa separação social, onde se percebe que cada um tinha o seu lugar e que o jogral não tinha legitimidade para aspirar ao lugar do trovador. Essa rígida diferenciação assentava apenas em critérios de origem social, o que justifica poder afirmar-se que o espaço galaico-português era de todos os o mais aristocrático. 9 A perda das músicas, com excepção das seis notações do pergaminho de Vindel, constitui inegavelmente uma limitação enorme para a compreensão dos poemas e da forma como eram compostos. Na opinião de Ferreira da Cunha havia uma relação estreita entre a métrica, a acentuação e a rima e a composição musical, o que significa que os textos não podem ser analisados como se tivessem sido escritos para ser lidos. 10 Tudo indica que depois de 1325, quando D. Dinis morreu, e sobretudo depois da morte de D. Pedro, Conde de Barcelos, a actividade poética trovadoresca em galaico-português se terá extinguido em poucas décadas e a que resistiu, se resistiu, não foi objecto de recolha. 11 Cerca de 150 anos depois da redescoberta de V e de 90 anos desde que a cópia B foi adquirida pela Biblioteca Nacional, os cantares trovadorescos em galaico-português continuam em grande medida por revelar, segundo os estudiosos. Como um dado revelador houve uma edição do conjunto dos cantares d’amigo em 1926, coordenada por José Joaquim Nunes, mas este autor nem conhecia ainda o cancioneiro V, e tivera pouco tempo para estudar B, adquirido em 1924, e desde aí até 2003 nunca mais foi editado um corpo completo de cantares, que facilitasse o seu estudo. Por isso, a edição crítica das 500 cantigas d’ amigo pelo Campo das Letras em 2003, coordenada por Rip Cohen, parece ser tão importante. Foi-o para nós, porque nos permitiu estudar todo o espólio de cantigas d’amigo conhecidas. FLUP- 2014

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trovadorescos galego-portugueses não se esgota a acção enunciada no simples desejo de “ver mais de perto”, de “ver melhor” o objecto aparecido. J.C. Miranda, O Cantar de Amigo Galego-Português – Notas sobre um estudo recente

Tinha encontrado porventura a objectivação daquilo que inconscientemente me atraíra nesta poesia: “ver melhor”, ao fim e ao cabo, o que tenho procurado fazer sempre desde que, na década de 80, (re)descobri a fotografia. Encontrara assim mais uma ponte levadiça entre poesia e fotografia. O título deste ensaio, que reproduz um verso de uma canção d’ amigo (Madre, quer'hoj'eu ir veer) de Roi Fernandes de Santiago, pretende expressar esta feliz coincidência. Espero terminar este meu trabalho e poder dizer que vi aquilo que esperava ver, Mais ca non sei se lo verei. Nunca se sabe… Notas sobre opções de ortografia: confirmámos que há grafias diferentes de inúmeros vocábulos nos textos medievais, nos diversos autores que sobre eles escrevem. Por exemplo há autores que escrevem ben e non e outros que escrevem bem e nom12. As grafias serão também diferentes nas origens, ou seja, nas próprias fontes medievais. Tal facto não deverá espantar-nos pois não existia então qualquer convenção sobre a ortografia em galaicoportuguês. Estamos conscientes de que neste nosso trabalho poderão aparecer grafias diferentes da mesma palavra, que resultam, não só de usarmos citações, onde mantivemos, como deve ser, a grafia original, mas também por termos consultado fontes diferentes ao longo do tempo e de não termos tomado uma opção definitiva, baseada em argumentos sólidos, sobre qual a melhor opção em cada caso. O mesmo se poderá aplicar aos nomes dos trovadores e dos jograis13. Outra explicação tem a ver com a opção pela forma de escrever cantigas/cantares de amor e cantigas/cantares de amigo. Apenas porque na altura em que iniciámos a escrita líamos o livro de Giuseppe Tavani que usa a designação com elisão da vogal “e” na preposição “de” e a escreve sempre em itálico, optámos por seguir essa regra, mas verificámos que muitos autores o não fazem. Nota importante: este ensaio não pretende ser, pois não poderia sê-lo, o resultado de um trabalho de investigação. Não houve investigação, apenas pesquisa bibliográfica. Limitar-nosemos portanto a tentar unir numa teia coerente o resultado de múltiplas leituras sobre a poesia trovadoresca e em particular sobre os cantares d’ amigo, procurando desta forma registar por escrito, como se disse, o nosso próprio processo de aprendizagem. Decidimos que sempre que encontrássemos na nossa procura opiniões diferentes, ou até antagónicas, de autores publicados, reproduzi-las-íamos, podendo quando muito mostrar mais entusiasmo numa do que noutra, mas sem poder basear essa inclinação subjectiva em novos dados ou em inovador trabalho de pesquisa, que não existiu. Mas, por outro lado, compreendemos que a maior liberdade que teríamos, perante a não necessidade de defender novas teses, baseadas em verdadeira investigação, poderia ter a vantagem de nos permitir, sem riscos demasiado altos, alguns atrevimentos e até a ousadia de colocar questões inocentes ou ingénuas. E mais do que encontrar respostas, talvez consigamos burilar perguntas interessantes. The scientist is not a person who gives the right answers, he's one who asks the right questions. Claude Lévi-Strauss, Le Cru et le cuit, 1964

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Como mera exemplificação do que escrevemos, podemos facilmente confirmar que a antologia 500 Cantigas d’Amigo de Rip Cohen usa as terminações em “n” enquanto o site da FCSH utiliza sempre “m”. 13

Mais uma vez, como um mero exemplo, enquanto em Rip Cohen o nome é Johan Perez d’ Avoin no site da FCSH é João Peres de Aboim.

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L'imagination n'est pas, comme le suggère l'étymologie, la faculté de former des images de la réalité ; elle est la faculté de former des images qui dépassent la réalité, qui chantent la réalité. Bachelard, L'eau et les rêves — Essai sur l'imagination de la matière, 1942

2. Pequena contextualização histórica do nascimento da poesia trovadoresca A leitura e a interpretação da poesia trovadoresca, desde a sua origem em ambiente occitânico e posteriormente em ambiente galaico-português, obrigam a uma contextualização social, política, cultural e literária na Europa da Baixa Idade Média14. A poesia trovadoresca tem de ser decifrada no contexto do feudalismo. Ora, o historiador José Mattoso define o feudalismo como: Os laços reais estabelecidos entre dois homens, com serviços em princípio recíprocos, em virtude da concessão de um bem, normalmente provisória, feita por um senhor a um vassalo no fim de uma série de ritos públicos [...] e um estado de espírito, formado no pequeno mundo dos guerreiros pouco a pouco tornados nobres. José Mattoso, Identificação de um País - ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325)

Pode ser interessante ver como essa troca de serviços vassálicos se revela num documento da época, neste caso na reconstituição crítica do que teria sido o original da primeira crónica portuguesa, supostamente do século XIII15. A crónica inicia-se com o Conde D. Henrique e dá grande relevo ao discurso ao seu filho D. Afonso Henriques, ao morrer em Astorga numa campanha militar perto de Leão. As palavras de D. Henrique possuem uma forte conotação ideológica, são uma exortação do pai moribundo ao futuro rei, desempenhando claramente o papel de legitimação do poder do novo monarca. Nas suas derradeiras palavras D. Henrique exorta o filho a “ser esforçado e companheiro dos filhos d’algo, a dar-lhes os seus direitos e a não deixar por cobiça de lhes fazer justiça”. Ou seja, a respeitar a relação de fidelidade a que está obrigado com os seus vassalos. Filho toma do meu coraçam alguum tanto que sejas esforçado e sejas conpanheiro a filhos d’algo. E dalhes todos seus direitos. E aos concelhos faze-lhes honrra, e aguisa como ajam direitos asi os grandes como os pequenos. E por rogo nem por cobiiça nom lheixes a fazer justiça ca se um dia leixares de fazer justiça huum palmo logo em houtro dia se arredará de ti hũa braça de teu coraçom. E porem meu filho tem senpre justiça em teu coraçam e averás Deus e as jentes. E nom consentas em nem huũa guissa que teus homeens sejam sobervos nem atrevudos em mall nem façam pessar a nem huum, nem digam torto ca tu perderias per taees coussas o teu bõo preço se o nom vedasse. 16

Filipe Moreira, Afonso Henriques e a Primeira Crónica Portuguesa

Os cantares, e em particular os cantares d’amor, não poderão ser compreendidos fora do contexto epocal, se esquecermos os laços de vassalagem entre vassalo e senhor, como formalização da prestação de um serviço, de que fala Mattoso. Se o fizermos, e se 14

Esta constatação é naturalmente verdadeira para qualquer poesia ou literatura, de qualquer época ou de qualquer região, mas parece ser particularmente pertinente para a Idade Média, sobre a qual sabemos tão pouco e temos tantas ideias feitas, que em nada correspondem à realidade desse tempo. 15 No seu livro Afonso Henriques e a Primeira Crónica Portuguesa, Filipe Moreira apresenta um conjunto amplo de argumentos que suportam a teoria de que grande parte do texto da IVª Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra deve ser uma cópia de um original, pelo seu conteúdo certamente anterior a 1282, que seria assim a primeira crónica portuguesa, para a qual ele apresenta uma proposta de reconstrução. 16 Esta passagem confirma também, curiosamente, a tese do historiador José Mattoso, segundo a qual haveria em Portugal do século XII dois tipos de estruturas de organização sócio-política: 1. os senhorios, na posse de senhores 16 feudais com muito poder, ricos-homens ou infanções , que cobriam a região de Entre-Douro-e-Minho 2. os concelhos, onde predominava ainda uma organização comunitária, sobretudo nas regiões de Trás-os-Montes e das Beiras.

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interpretarmos os textos desse tempo à luz de uma cultura contemporânea, seremos com certeza conduzidos a interpretações erróneas e até absurdas. O que resulta evidente é que os trobadores occitanos basearon o esquema de relacións que se establece entre o trobador e a dama, e de ambos co seu contorno, nas estruturas de vasalaxe, e que adoptaron a linguaxe que expresaba todos os elementos formais dos pactos, adaptándoa a esa icción literaria que se elaboraba e interpretaba precisamente nos mesmos círculos aristocráticos e señoriais que se comportaban dese xeito na súa actividade diaria e se rexían por ese sistema xurídico.

Mercedes Brea, Aproximacións ao estudo do vocabulario trobadoresco

De facto, ao contrário do que uma leitura literal do verso de Manoel de Barros “Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia”, que usámos como epígrafe deste capítulo, nos poderia levar a supor, a poesia trovadoresca pode contar-nos muita coisa sobre a época em que foi escrita, e os conhecimentos sobre a sociedade medieval dos séculos XI a XIV podem contar-nos muito sobre os cantares. Essa contextualização histórica é difícil e complexa e obriga os investigadores históricos e literários a uma cooperação e a um trabalho paciente e minucioso de procura e de comparação entre os poucos registos existentes, para tentar (re)escrever o percurso de vida dos muitos protagonistas desta aventura. Por outro lado, a poesia trovadoresca, sendo um fenómeno europeu, que depois do século XII inclui poemas em várias línguas românicas, a partir de uma geração fundadora em occitânico17, ela exige comparar poemas e autores com origens diversas, obrigando a conhecer as diversas línguas e dialectos de escrita, para descodificar os encontros e desencontros entre trovadores. Ao contrário da ideia generalizada, que nos é vinculada no presente, de que na Idade Média as pessoas conheciam e viajavam pouco, os trovadores nesse tempo percorriam frequentemente muitos reinos da Europa. A propagación e expansión do novo código poético polo resto de Francia e polos condados cataláns e os reinos de Aragón e Navarra, así como pola parte occidental do Norte de Italia, non tivo apenas diicultades, dado que as relacións entre todos eses territorios (de fronteiras cambiantes) eran estreitas, e as estruturas políticas semellantes.[…] Na zona non musulmá da Península Ibérica, a organización político-administrativa tiña co mundo galo máis paralelismos que o sistema italiano, e existían co outro lado dos Pireneos moitos vínculos familiares que procuraban alianzas, momentáneas ou permanentes. Ademais, o Camiño de Santiago e, con el, a penetración, primeiro, da orde de Cluny e, logo, da reforma do Císter contribuíron a espallar as novas correntes procedentes das antigas Galias ata a Finis terrae. A poética trobadoresca non atopou diicultades para atravesar os reinos (uns antigos, outros máis recentes) de Castela, Asturias, León, Galicia e Portugal. Mercedes Brea, Aproximacións ao estudo do vocabulario trobadoresco

2. 1 A Hispânia trovadoresca Foi a partir do final do século XII que essa poesia trovadoresca se espalhou por grande parte da Europa do Norte: pelos vários reinos cristãos da Península Ibérica, de França e da Inglaterra, chegando à Itália e à Alemanha. Parece haver um acordo de que esta expansão poética foi feita a partir do sul de França e que estará ligada a migrações de trovadores occitânicos a partir da Provença. A projecção e impacto da poesia occitânica foi, sem dúvida, notável. Foi ela que definiu um princípio de execução formal, fundamentada no verso silábico, na estrofe e na rima, que havia de marcar séculos de poesia europeia … Também do lado do conteúdo, a poesia occitânica assume um papel fundador. A linguagem do amor, assente na contenção e na reverencialidade masculina perante a mulher, encontrou

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Língua românica originária da Provença no sul de França. FLUP- 2014

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nela os seus padrões, o seu vocabulário, as suas imagens e os seus topoi, num caudal imenso que se enraizou na cultura ocidental e ainda hoje encontra ecos que se podem identificar. José Carlos Ribeiro Miranda, Da Fin ‘Amors

Esses poetas ou trovadores provençais, de que há registo desde o século XI e XII, teriam viajado por toda a Europa, visitando as cortes de vários reinos e oferecendo os seus serviços, influenciando assim outros poetas, que (re)escreveriam em cada uma das línguas românicas da sua região, adaptando os temas e as técnicas às particularidades de cada reino, como teria acontecido com o galaico-português. Os próprios trovadores em galaico-português poderão ser chamados como testemunhas nesse reconhecimento genético. Quer’eu en maneira de proençal fazer agora um cantar de amor Dom Dinis

A Península Ibérica, dos séculos XI a XIV, espaço de tempo em que a poesia trovadoresca acontece, era uma área dividida em dois grandes territórios, como se observa na figura abaixo. A sul, existia, desde o século VII, um domínio designado muitas vezes como Al-Andaluz, que correspondia ao emirado e posteriormente ao califado árabe de Córdoba. A norte, vários reinos cristãos dividiam o poder entre si. Esses reinos setentrionais tiveram uma configuração muito volúvel e muito variável durante todo este período. Cada um estava também, em grande parte, retalhado em pequenos domínios senhoriais, em luta permanente pela defesa e expansão do seu pedaço de terra. Havia portanto um sul, ligado ao conhecimento herdado das grandes civilizações do Mediterrâneo, que confrontava com um norte, muito muito mais atrasado, quer em termos culturais, quer no que respeita às tecnologias ou à organização social. É neste norte cristão que vai eclodir, a partir do século XII, a chamada poesia trovadoresca em galaico-português.

Figura 1 - Península Ibérica por volta do ano 1000, durante o Califado de Córdova (929–1031)

A poesia trovadoresca do final da Idade Média parece em muitos aspectos ter constituído uma erupção criativa repentina, para mais utilizando línguas românicas, sem quaisquer tradições literárias anteriores, pois o latim era a língua erudita e de escrita em toda a Europa cristã. FLUP- 2014

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Parece haver consenso entre os estudiosos quanto à ligação umbilical da poesia trovadoresca com a organização social em torno de senhores feudais, que dominavam pequenos territórios de fronteiras indefinidas e dinâmicas, e com o fenómeno da cavalaria, que atravessou a Baixa Idade Média europeia. Foi nestes autênticos viveiros humanos que se desenvolveu o regime senhorial. Sustentou a prosperidade de uma grande quantidade de senhores, que sujeitaram pela posse das armas e o serviço de poderes públicos uma grande massa de homens dedicados à agricultura intensiva e se apropriaram, para sustentar a sua superioridade da capacidade produtiva dos camponeses. Nas regiões mais densamente habitada encontra-se uma enorme quantidade de nobres, mas frequentemente de nível médio ou inferior. Na periferia, os senhores mais poderosos. José Mattoso, História de Portugal …para explicar as transformações que se operam na Europa Ocidental, entre os séculos XI e XII, no seio da aristocracia guerreira libertada da tutela monárquica ou imperial, diremos apenas que os trovadores são obrigatoriamente um testemunho – não o único, mas um, testemunho privilegiado – dessas mutações e de como elas modelaram o panorama humano e civilizacional europeu. José Carlos Ribeiro Miranda, Da Fin ‘Amors

A poesia trovadoresca, e em particular a poesia dedicada ao amor, insere-se pois num contexto cultural e comportamental que reflecte as transformações políticas e sociais da Europa no século XII. É nesse contexto pois que tem de ser entendida. Cortezia é a designação por eles encontrada para a gramática do comportamento colectivo adoptada pela sociedade aristocrática na entrada da baixa Idade Média, com particular incidência no séc. XII, que é, como se sabe, um século de renascimentos vários. Trata-se, pois, de um código e, como tal, possui as suas prescrições, define os seus valores e virtudes, ao mesmo tempo que aponta com clareza o que rejeita, identificando e verberando os vícios e quem os protagoniza. José Carlos Ribeiro Miranda, Da Fin ‘Amors

O estudo e a interpretação dos cantares medievais são, por isso, tarefas que exigem muita perseverança e muito tempo, na busca de registos antigos que validem teorias e nos permitam entender realmente o que aconteceu. Dada essa dificuldade, persistem muitos pontos em aberto, onde autores diferentes apresentam teorias distintas e até contraditórias. Tal é natural e poderemos até antever que haverá perguntas para as quais nunca será possível obter respostas definitivas. A erosão do tempo encarregou-se de apagar a nossa memória. Teremos oportunidade neste nosso trabalho de referir alguns aspectos onde persistem desacordos conhecidos entre os estudiosos. Mas serão porventura, muitas vezes, estes mistérios por desvendar que redobram o interesse por estas cantigas que, numa primeira leitura, nos poderiam parecer simples e até ingénuas. Mas, se o mistério ornamenta todos os cantares, dentro dessa poesia lírica medieval, distante e misteriosa, os chamados cantares d’ amigo parecem constituir uma singularidade muito especial nos cantares escritos em galaico-português. O objectivo central deste ensaio será o de tentar identificar e discutir alguns dos aspectos mais relevantes desta singularidade.

3. As origens dos cantares galaico-portugueses – o caso especial dos cantares d’amigo O cantar trovadoresco mais antigo, escrito em galaico-português, datado com alguma certeza, é de um português chamado João Soares de Paiva, um nobre da região de Paiva, que pertencia

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a uma família influente no reino de Portugal e que teria sido forçado a abandonar o país na sequência da crise que irrompeu com a disputa da sucessão do reinado de D. Afonso Henriques. D. Sancho I vencera essa querela, subira ao trono, sucedera assim ao primeiro rei de Portugal, e todos os apoiantes dos seus rivais teriam sido forçados ao exílio. João Soares de Paiva teria ido para Castela, refugiando-se no domínio de Rodrigo Diaz de Cameros18, situado junto à fronteira com Navarra e com Aragão, e ponto de passagem identificado de muitos trovadores vindos do sul de França. O único poema conhecido de João Soares de Paiva, Ora faz host'o senhor de Navarra, conta um episódio de guerra entre o rei de Navarra e o rei de Aragão, ridicularizando o primeiro, com quem, com certeza, as relações não seriam na altura as melhores. O texto, pela forma detalhada como narra os acontecimentos, pode constituir uma evidência da proximidade do poeta do campo de batalha, o que parece confirmar a sua presença no domínio de Cameros à data, junto à fronteira dos dois reinos, mas permite, por outro lado, datar com precisão o poema em 119619, ano da ausência de Afonso II do reino de Aragão, referida no poema como uma das causas da investida de Sancho VII de Navarra. No seu livro Aurs Mesclatz ab Argen, J. C. Miranda apresenta também um conjunto de argumentos bastante fortes para suportar a ideia de que, por um lado, houve um grupo de trovadores portugueses e galegos que permaneceu ou passou no fim do século XII pelo domínio dos Cameros e para, por outro lado, supor a passagem de trovadores occitânicos pela corte de Rodrigo Diaz, mostrando por exemplo ligações retóricas e lexicais entre o poema referido de João Soares de Paiva e um poema “Ar vem la coindeta sazos” do occitânico Bertran de Born, que teria com certeza de alguma forma chegado às mãos do português20. Os nomes dos poetas desse grupo, que J.C. Miranda designa como núcleo Paiva-Cameros, aparecem juntos na Tavola Colocciana21: João Velaz, Don Juano, João Soares de Paiva, Pero Rodrigues da Palmeira e Rodrigo Diaz dos Cameros22. Mas deste grupo, talvez fundacional da poesia trovadoresca em galaico-português, todos os poemas se perderam, excepto o poema que referimos de Soares de Paiva. Todos os outros, apesar de extraviados, aparecem designados em C como cantigas d’ amor. Se nos basearmos na versão defendida por J.C. Miranda no seu livro Aurs Mesclatz ab Argen, o grupo de Paiva-Cameros, por razões políticas ou outras, teria viajado, na mudança do século, para a corte leonesa, havendo nomeadamente registos da presença de Rodrigo Diaz em Leão no ano de 1201. Esta viagem (terá havido outras?) poderia ter sido motivada também pela 18

Rodrigo Diaz de Cameros era um aristocrata de grande poder, de origem navarra, mas que ao longo da sua vida foi demonstrando vassalagem, ora ao rei de Castela, ora ao rei de Navarra. Tinha ascendência galega, a mãe era de Lugo, e teria por isso uma ligação umbilical forte ao galaico-português. Aparece na lista dos trovadores mais antigos referenciados na Tavola Colocciana, junto a João Soares de Paiva, e poderá, pela sua influência, ter sido o polo aglutinador de um dos núcleos primevos de trovadores em galaico-português. 19 No livro Aurs Mesclatz ab Argen J. C. Miranda apresenta um conjunto de evidências que parecem provar de uma forma irrefutável a data deste poema, estabelecendo relações entre registos históricos e os acontecimentos que o poema narra. Havia anteriormente outras datas propostas por outros autores que vão desde a mesma data, 1196, por Lopez Aydillo, até datas mais tardias: 1213 por Carolina de Michäelis ou 1214-1216 por Lang e De Lollis. 20 Investigação recente de J.C. Miranda leva-o a pensar que Rodrigo Diaz e alguns trovadores portugueses e galegos poderão ter visitado, durante alguns anos antes de 1196 (1190-1195), a corte de Bonifacio de Monferrato em Itália. Nessa corte, frequentada pelos principais trovadores, por exemplo Raimbaut de Vacqueiras, e durante esse período, teria efectivamente ocorrido a troca poética com os occitânicos. 21 A Tavola Colocciana é um índice elaborado por Angelo Colocci, quando copiou o O Livro da Cantigas, com a indicação do folio onde se encontra cada cantiga, o seu género, e com a ordem sequencial em que autores e as cantigas foram recolhidos. 22 Os cinco nomes do grupo são antecedidos na Tavola Colocciana por três trovadores que, na opinião de J.C. Miranda, não pertenceram ao núcleo Paiva-Cameros, mas que pertenceriam ao grupo de trovadores da 1ª geração reunidos mais tarde em Leão, defendendo por isso que o critério de ordenação não foi puramente cronológico. FLUP- 2014

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necessidade de gerir as terras que Rodrigo Diaz possuía na região de Lugo, propriedades que teriam pertencido à sua mãe, que era galega. E teria sido na corte do rei de Leão, onde também existem múltiplas referências documentais a trovadores occitânicos, que se teria finalmente constituído a primeira geração de trovadores, à volta de núcleo de Paiva-Cameros, reunindo os outros nomes referenciados no topo da Tavola Colocciana: Airas Moniz d’Asne, Diego Moniz, Pero Pais Bazoco, Airas Soares, Osoir ‘Anes e Garcia Mendes d’Eixo, todos também com profundas referências a matrizes occitânicas. Mas se há referências e influências, há também “reinterpretação” e até “absolutas singularidades”, segundo J,C. Miranda. Airas Moniz d'Asme, Diego Moniz e Osoir'Anes Marinho podem bem ser os primeiros testemunhos da réplica ocidental às primeiras experiências trovadorescas em galego-portuguesas ensaiadas pelo núcleo PaivaCameros. […] Todavia, a filiação occitânica daqueles três trovadores galego-leoneses não explica todas as opções poéticas que levam a cabo. Por um lado, operam escolhas no extenso manancial provençal, algumas delas absolutamente surpreendentes. A interpretação que fazem do monumental sistema da linguagem do amor occitânica dificilmente será redutível a uma simples e mecânica transposição. Por outro, introduzem desvios e reinterpretações, quando não novidades de proveniência diversa ou fruto da capacidade e do engenho de cada um.

J.C. Miranda, Aurs Mesclatz Ab Argen

A primeira geração resultaria assim da reunião de um núcleo oriental à volta do Senhor dos Cameros e de um grupo de trovadores em Leão, a ocidente23. O mapa da figura abaixo pretende ilustrar as movimentações dos trovadores da primeira geração e os seus locais de encontro. Entretanto, fomos também adiantando a ideia de que a primeira geração possuíra dois núcleos distintos, que então designámos por "oriental" e "ocidental".

J.C. Miranda, Aurs Mesclatz Ab Argen

Figura 2 – Mapa de migrações de trovadores na Hispânia até 1217, quando Garcia Mendes de Sousa volta a Portugal

23

Os poemas que sobreviveram desta geração são todos cantares d’amor, com excepção do poema “mais antigo” e já referido de João Soares de Paiva que é considerado como d’escárnio e mal dizer. Todos revelam fortes afinidades com poemas occitânicos. 11

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Seguir-se-ia uma segunda fase, a que corresponde uma segunda geração de trovadores, já de maturação plena do trovadorismo galaico-português, onde as ligações a padrões occitânicos se diluem. Iniciar-se-ia com a viagem representada no mapa pela seta azul, realizada em 1217/1218, de regresso aos seus domínios em Terras de Sousa, de Garcia Mendes de Sousa, trovador muito relevante para a continuação desta história. Ora cremos não ser demais referir a crucial importância que os Sousas parece terem tido para a implantação da cultura trovadoresca no Ocidente peninsular” […] ao abrigo do mecenato senhorial de Sousas e Soverosas, num meio senhorial que não conhece fronteiras entre a Galiza e o norte do reino de Portugal, terão surgido as primeiras manifestações conhecidas dos cantares d’amigo.

José Carlos Miranda, CALHEIROS, SANDIM E BONAVAL: UMA RAPSÓDIA DE AMIGO

Esta fase estende-se dos anos vinte aos anos quarenta do séc. XIII e inclui quase exclusivamente trovadores e jograis da Galiza e de Entre-Douro-e-Minho, ao serviço de senhores portugueses ou galegos, e já não nas cortes régias de Leão ou de Castela. As relações fecundas com o mundo occitânico mantêm-se mas diluem-se. Na realidade, o fecundo intercâmbio entre os trovadores occitânicos e os meios galego-portugueses, que terá tido lugar tanto nas deambulações do inicial núcleo Paiva-Cameros, como nas adjacências da corte leonesa nos primeiros anos do séc. XIII, intercâmbio promotor de um processo de emulação do qual a obra de alguns dos trovadores da primeira geração pode dar testemunho, parece ter cessado a partir de 1218, para não mais vir a ser retomado até à extinção desse foco de poder régio com a morte de Afonso IX de Leão em 1230. […] Assim, dificultada a possibilidade de um contacto directo com a matriz provençal, a segunda geração terá, na concepção e execução do seu texto poético, obrigatoriamente privilegiado as expectativas dos seus receptores mais do que procedido por um impulso de emulação.

José Carlos Miranda, SOMESSO, A DONA E A DONZELA

O facto de esta geração “ter procurado privilegiar as expectativas dos seus receptores mais do que procedido por um impulso de emulação do occitânico” pode explicar, em parte pelo menos, o nascimento neste período de um novo género, os cantares d’amigo, característico do cantar em galaico-português. J.C. Miranda suporta a teoria de que esta criação singular resulta da necessidade que os trovadores galaico-portugueses sentiram, no contexto concreto em que se inseriam, de introduzir um género diferente, que os libertasse do espartilho do fin’amor, mas herdeiro de pleno direito dos cantares d’amor. Veremos que outros autores defendem outras hipóteses. O período seguinte já será inteiramente dominado pela contribuição de Afonso X, desenrolando-se predominantemente portanto já na corte de Castela, e posteriormente na corte de D. Dinis.

3.1 Outras teorias É necessário no entanto neste momento dizer que existem investigadores que sustentam que o despertar de um “novo” trovadorismo em galaico-português não teria acontecido exactamente como descrevemos na secção anterior mas de uma forma diferente. E mesmo J.C. Miranda, apesar das múltiplas evidências que apresenta, parece ter a percepção de que a sua teoria ainda precisa de ser melhor fundamentada. Está, assim, por revelar, com o detalhe e o rigor possíveis, que João Soares não foi uma figura insólita e isolada, mas que, bem pelo contrário, o seu esforço se inscreveu num daqueles felizes momentos em que uma iniciativa levada a cabo por um grupo de indivíduos veio a encontrar condições para que se tornasse audível e perdurasse no tempo, possibilitando que outros a assumissem como sua e a transformassem numa ampla manifestação de cultura da qual hoje em

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dia vemos essencialmente os cerca de mil e setecentos textos que os testemunhos manuscritos conservaram. J.C. Miranda, Aurs Mesclatz Ab Argen

Iremos aqui apresentar muito sucintamente as que se cruzaram connosco durante esta nossa viagem. Giuseppe Tavani24, por exemplo, considera que o núcleo fundador da poesia em galaicoportuguês se teria formado à volta da cidade galega de Santiago de Compostela que, pela sua importância na Península, teria justificado a força e a importância do galaico-português, como língua adoptada para a poesia lírica na Península. Os argumentos são compreensíveis no plano argumentativo, mas a verdade é que Tavani, pelo menos nos livros a que tivemos acesso, não apresenta documentos da época que suportem essa teoria, que demonstrem por exemplo que alguns trovadores do núcleo fundador tenham de facto vivido ou passado por Santiago. Tavani coincide no entanto com J.C Miranda na datação do poema mais antigo conhecido, de João Soares de Paiva, mas argumenta que, pela idade do trovador à altura, quase 50 anos, ele deveria ter provavelmente composto os outros seis poemas de amor, desaparecidos, antes, provavelmente ainda em terras galaico-portuguesas25. Mas se assim foi, fica por apresentar por Tavani uma teoria para a forma como ele conheceu a poesia occitânica. A argumentação de Tavani, uma vez mais, parece circunscrever-se ao subjectivo. Mas Tavani defende uma outra ideia, que nos sentimos obrigados a explorar, porque ela pode ser central em qualquer trabalho sobre os cantares d’amigo. Ele apresenta a possibilidade de os cantares d’amigo, ou de poemas formalmente próximos, já existirem em terras galaicoportuguesas, quando os poetas portugueses e galegos, em Santiago de Compostela como ele pensa, ou nos domínios de Cameros e de Leão como defende Miranda, se cruzaram pela primeira vez com os trovadores occitânicos; suporta que esses cantares locais existiriam talvez por influência de poesia do Al-Andaluz, onde realmente se podem descobrir soluções poéticas formais idênticas e muitas evidências de vozes poéticas “femininas”, tal como acontece nos cantares d’amigo. Todavia na área galego-portuguesa o problema das origens líricas apresenta-se mais complexo devido à presença de um género, a cantiga d’amigo, cuja ferramenta temática e, em parte, formulística difere da dos outros géneros líricos médio-latinos e vulgares (apesar das vagas semelhanças, se não ilusórias, pelo menos limitadas a ecos rítmicos e temáticos marginais, com sequências, cânticos, hinos e prantos), parecendo, pelo 26 contrário, evocar de perto as da kharagat moçárabes , definidas significativamente por Dâmaso Alonso como «auténticas cancioncillas de amigo», cujos exemplos datáveis mais antigos precedem em mais de um século e meio, as primeiras cantigas d’amigo cronologicamente localizadas. Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis – Introdução à poesia medieval galego-portuguesa

As cantigas d’amigo, ou objectos formalmente idênticos, poderiam assim ter antecedido a tradição trovadoresca vinda de leste27. Mas esses textos não teriam sido escritos ou, se o 24

Giuseppe Tavani é um estudioso muito conhecido da poesia em galaico-português, tendo publicado numerosos artigos e alguns livros de referência: Repertorio metrico della lirica galego-portoghese (1967), Ensaios Portugueses Filologia e Linguística (1987), Dicionário da Literatura medieval Galega e Portuguesa (1993) e Trovadores e Jograis – Introdução à Poesia Medieval Galego-Portuguesa (2002) – ver bibliografia 25 Tendo em conta a ideia que J. C. Miranda desenvolve no presente, como referimos, de ter havido uma visita de João Soares de Paiva à corte de Bonifacio de Monferrato, antes de 1196, onde contactou com trovadores occitânicos, esses outros poemas poderão ter sido compostos aí. 26 O epíteto “moçárabe” designa tanto os cristãos que viviam em territórios árabes como as línguas românicas influenciadas pelo árabe. 27 De facto, já Henry Roseman Lang, que terá a primeira pessoa a fazer um estudo profundo de todas as cantigas d’ amigo, defendera que esses cantares, apesar de terem sido escritos em ambiente cortês, pelos trovadores, que também compunham cantares d’amor, continham evidências de que poderiam ter tido como principal influência 13

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foram, ter-se-iam perdido, pois não se conhece nenhum documento que os registe. Pilar Lorenzo Gradín28 suporta também esta possibilidade. [Los textos] no fueron dignos de ser copiados en una época en la que escribir era realmente un processo costoso e en la que el latin era considerada la lengua de la cultura Pilar Lorenzo Gradín, La Canción de Mujer en la Lírica Medieval

De facto, Tavani defende também a possibilidade de que alguns cantares d’amigo conhecidos, mas não datados e de autor anónimo, poderem corresponder a poemas anteriores a 1196. A confirmar-se esta hipótese, os cantares d’amigo poderiam ter tido como principal inspiração poética essa poesia pré-trovadoresca, a que se juntaria a herança dos cantares d’amor. De novo, os argumentos de Tavani parecem convincentes mas, uma vez mais, ele não apresenta evidências documentais que dêem consistência à teoria, e a verdade é que as primeiras cantigas d’ amigo conhecidas e datadas, são já da segunda geração de trovadores galaico-portugueses, a partir de 1220. Rip Cohen29, no seu artigo intitulado In the Beginning was the strophe, Origins of Cantigas de Amigo Revealed confronta as ideias de Henry Roseman Lang, que suportou a prevalência de uma origem local para os cantares d’amigo, com as posições de António Resende de Oliveira que, a partir de um trabalho minucioso e rigoroso de levantamento histórico, como o próprio Cohen descreve o trabalho do historiador, defende hoje o contrário, desenvolvendo a teoria de que os cantares d’amigo derivam apenas dos cantares d’amor. Nesse artigo, assumindo a cronologia e os dados documentais do historiador português, a quem inclusive dedica o ensaio, o investigador americano elenca um conjunto de evidências formais – a poética, as estrofes, o tipo de actores e de vozes no poema, as repetições e o paralelismo – para considerar que parece haver uma natural linha de evolução entre os chamados poemas tradicionais e os cantares d’amigo. Além disso, segundo Cohen, só esta explicação justificaria a clara separação de género que se observa desde o início: bastará avaliar a produção dos poetas, que Resende assume como os iniciadores dos cantares d’amigo, Fernan Rodrigues de Calheiros, Vasco Praga de Sandim ou Bernal de Bonaval, e verificar que eles compõem também cantares d’amor e confirmar como materializam sempre dois géneros completamente distintos30. Cohen chama a atenção para o facto de que a forma de escrita, a organização das estrofes, a forma de rima, as repetições, etc., também deverem ser consideradas como evidências históricas, ainda que indirectas, podendo desempenhar um papel no desenho de linhas de evolução, tal como acontece quando um paleontólogo escreve a história da terra e dos seus habitantes a partir de uma sequência incompleta de desenhos, congelados pelo tempo na pedra.

canções locais, com estrutura formal e poética muito semelhante. Será natural pensarmos que essas canções locais fossem uma herança de objectos poéticos trazidos do sul. 28

Pilar Lorenzo Gradín é outra conhecida estudiosa da Universidade de Santiago de Compostela – ver bibliografia.

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Rip Cohen é outro pesquisador bastante conhecido que também tem contribuído para a polémica em torno da questão das origens dos cantares d’amigo. 30 Quem não aceita os argumentos de Tavani ou de Cohen poderá argumentar que os cantares d’amigo constituíram uma ruptura com a fórmula trovadoresca, com os cânones de fin’amor, e que, portanto, será natural esses trovadores terem desenvolvido uma forma poética bem diferente desde o início. Os defensores da outra perspectiva argumentarão possivelmente que, se fosse exclusivamente assim, não adoptariam fórmulas comuns a outros géneros. Falta no entanto provar com documentos que esses géneros coexistiam no tempo e no espaço do despertar das cantigas d’amigo. FLUP- 2014

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Existem alguns autores que vão ainda mais longe e que defendem a hipótese de que algumas formas de canção moçárabe podem ter influenciado o nascimento dos cantares trovadorescos occitânicos. Esta forma estrófica, assim como alguns elementos da ideologia amorosa expressa no “zéjel” árabo-andalus, influenciaram o nascimento da poesia provençal, sobretudo o primeiro dos trovadores conhecidos, Guilherme IX, conde de Poitiers e duque de Aquitânia. Menéndez Pidal, Poesía Árabe y poesia Europea

Não sabemos se existe algum suporte documental para tal hipótese, que com certeza será muito polémica para a maioria dos investigadores. Constatámos ainda que existe também um núcleo de estudiosos, centrado na comunidade universitária na Galiza, que pretende, para além de estabelecer uma ligação entre as cantigas d’amigo galaico-portuguesas e as kharagat moçárabes, imaginar uma relação com cantos trovadorescos occitânicos feitos por mulheres trovadoras (trobairitz). Se os provenzais lle conferiram categoria artística á voz feminina (non esquezamo-las pastorelas e as albas nas que intervén a muller, pero tampouco a mesma existência das trobairitz) o caminño estaba aberto para que calquera trobador invertesse o esquema narrativo da cansó… e retomase todo un património de tradicións e temas, que serán acollidos nos médios cultos gracias á intervención dun poeta… e todo isto farao en función dunha muller que se erixe en conductora do canto. Mercedes Brea, Pilar Lorenzo Gradín, A cantiga de Amigo

Se parece haver consenso quanto à existência de mulheres trovadoras provençais, desde o século XII, não conhecemos documentos que indiciem a sua influência nos cantares d’ amigo em galaico-português. Encontrámos ainda referências a poemas franceses, que poderão ser classificados como cantigas de mulher, onde se pode identificar, em muitos casos, um certo hibridismo com as chamadas pastorelas, género que terá tido uma grande difusão no norte França. Existe, sin embargo, una cifra considerable de “refrains” de los siglos XII al XIV, cuyo contenido y forma demuestram que la canción de mujer fue cultivada en el norte de Francia com cierta frequência, ofreciendo una tipologia en la que la influencia de la lírica occitana apenas se dejó sentir…En los textos mixtos incluídos en el corpus, la narración es utilizada para la introducción de dircursos personales, que van a ser, la mayoria de las veces, monólogos femininos. Pilar Lorenzo Gradín, La Canción de Mujer en la Lírica Medieval Hyer main chevauchoie dejouste un vergier flori; bele joenne j’ai choisi, qui cuide, que nus ne l’oie. Si se plaint du dangier son mari et dit seri: Se j’osoie, ge feroie ami. In Monpellier Codex

“Se eu ousasse, fá-lo-ia meu amigo”, lê-se na cantiga francesa. Poderão ter, de alguma forma, influenciado as cantigas d’amigo? Se sim, como e quando? Embora raras, também se encontram canções de voz feminina no sul de Itália, na corte siciliana de Frederico II. O próprio rei – esta autoria será duvidosa - terá composto um poema onde uma mulher se lamenta pela ausência do amante ao serviço do rei. Todas estas evidências permitem-nos afirmar que parece ter havido algumas condições gerais, em grande parte da Europa, que propiciaram o aparecimento deste fenómeno, de um cantar 15

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“feminino”, nos séculos XII a XIV, ainda que no espaço galego-português ele assuma muito maior importância e singularidade. Poderão mesmo as cantigas d’ amigo integrar-se numa tradição muito antiga de poesia e de cantares de voz feminina, de que se conhecem exemplares desde o antigo Egipto31, ou até anteriores? Qual a importância de canções de mulher que integram os códices medievais Carmina Cantabrigensia, Caermina Burana, Carmina Arundelliana e Carmina Rivipullensia? Poderão condenações conhecidas, por parte da Igreja na Idade Média, de práticas que podem ser entendidas como próximas de cantares de mulher, porque incitariam à luxúria e ao pecado, ser usadas como um indício de terem existido formas poéticas locais onde se manifestava uma voz feminina que podem ter influenciado os trovadores e jograis? Depois de tudo o que escrevemos e transcrevemos sobre todos estes cantares singulares com voz de mulher, temos agora e aqui vontade de afirmar que, apesar de não haver provas documentais conclusivas, é difícil aceitar, sem qualquer resistência, que não haja relação nenhuma entre os cantares d’ amigo e as kharagat, nem entre os cantares d’ amigo e outras formas de poesia, local ou vinda de alhures na Europa. Em cada um dos casos que apresentámos, a partir das fontes que consultámos, podem reconhecer-se pontos de encontro e diferenças. Mas é difícil desprezar, nomeadamente as analogias indesmentíveis dos cantares d’amigo com os kharagat, que se podem reconhecer e que tentámos neste texto, na secção dedicada ao Al-Andaluz, identificar, sabendo a dificuldade (impossibilidade?) de acontecer uma criação a partir do nada (creatio ex-nihilo). Seremos capazes de “autenticidade e de veracidade das fontes com a ousadia da imaginação no aproveitamento dos dados …é preciso conciliar o rigor da crítica de autenticidade e de veracidade das fontes com a ousadia da imaginação no aproveitamento dos dados. Aquela obriga a uma grande exigência no estabelecimento de bases sobre que assenta a interpretação, mas já que de interpretação se trata, não de verdade, não precisa de ser limitada por nenhuma espécie de timidez: o seu vigor depende da capacidade para conciliar os dados disponíveis e sobretudo do seu grau de explicabilidade, se é que posso usar este termo. José Mattoso, Afonso Henriques

Será possível encontrar uma teoria unificadora que contemple as duas visões, sem cair em “nacionalismos bacocos” ou “foclorismos conservadores”, como parece ter acontecido a alguns estudiosos, como J.C Miranda se queixa em alguns dos seus artigos sobre as cantigas d’amigo? Poderemos tentá-lo nós, neste nosso modesto ensaio, ainda que num campo meramente especulativo, já que, como avisámos, este nosso trabalho não assenta em investigação? Poderemos imaginar que perante a necessidade de romper com o espartilho dos cantares d’ amor, de que falaremos à frente, os trovadores tenham criado os cantares d’amigo em galaico-português e que, como quase sempre acontece, não os terão criado a partir do vazio, mas recebendo a influência de poemas conhecidos, vindos do contexto local ou europeu ou/e do mundo e da cultura árabe e/ou hebraica a sul?

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O chamado papiro de Chester Beaty contém poemas de amor do século XI a.C. do antigo Egipto, onde se reproduz uma fala feminina. FLUP- 2014

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Competirá aos investigadores, e só a eles, encontrar mais evidências, que suportem ou reforcem esta ou aquela teoria, ou produzam outra, que responda satisfatoriamente a todos os indícios32.

Figura 3 – Diagrama de influências nos cantares em galaico-português

O diagrama acima pretende representar essa possível dupla influência nos cantares em galaico-português, em particular nos cantares d’amigo, uma vinda de norte e a outra de sul. Uma assumida influência da poesia trovadoresca occitânica e uma mais discutível influência de poesia vinda do sul, do Al-Andaluz, que poderá ter penetrado nos ambientes corteses via cantares locais. Como nota final, a experiência ensina-nos que muitas vezes é necessário olhar um objecto de vários lados, de cima, de baixo, da direita e da esquerda, para compreender a sua forma. Tal como um observador num mundo bidimensional tem uma visão limitada de um objecto tridimensional e necessita de o rodar e de o projectar em várias posições, para o vislumbrar na sua cabeça. Cada um dos observadores, se dispuser apenas de umas das visões/projecções vai ter uma perspectiva incompleta e porventura em parte errada.

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Afinal é J.C Miranda, porta-voz de uma das teorias, quem aceita que a dúvida permanece e exige, por isso, investigação e contraditório. Permanece – e permanecerá sempre – a dúvida sobre se teria ou não existido alguma forma poética não documentada, directa ou indirectamente responsável por alguns dos aspectos assumidos pelo cantar d’ amigo trovadoresco. José Carlos Ribeiro Miranda, CALHEIROS, SANDIM E BONAVAL: UMA RAPSÓDIA DE AMIGO

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Figura 4 – O triângulo de Penrose – Somos obrigados muitas vezes a olhar os objectos de vários lados para os compreender

Será necessário integrar todas as vistas, corrigindo as ilusões de cada uma, para ter uma visão nas três dimensões. Pois afinal como escreveu Manoel de Barros, Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas…

3.2 A recepção dos cantares d’amigo A análise da forma como aconteceu a recepção dos cantares d’amigo pelos contemporâneos dos trovadores que os “inventaram” pode oferecer-nos alguns indícios sobre a origem deste objecto singular. Nesta secção basear-nos-emos em três poemas que na opinião de J.C. Miranda estão relacionados entre si: os cantares d’amigo “Madre, passou per aqui un cavaleiro” de Fernan Rodrigues de Calheiros e “- Vistes, madr', o escudeiro que m'houver'a levar sigo?” de Pero da Ponte e o cantar d’ escárnio “Cavaleiro, com vossos cantares” de Martin Soares. Martin Soares é um trovador contemporâneo daqueles que parecem ter sido os primeiros a ousar romper com o formato herdado do occitânico, mas manteve-se fiel ao cantar tradicional e não compôs cantares d’amigo. Não esteve só; outros trovadores da segunda geração assumiram idêntica atitude. Mas se Martin Soares rejeitou esta nova forma poética, na opinião de Miranda, não se lhe manteve de forma nenhuma indiferente. É nossa convicção que Martin Soares não se manteve tão indiferente a este tema quanto pode parecer. Para o comprovar, chamaremos à colação um dos seus mais conhecidos cantares, tentando mostrar que uma releitura desse texto pode fornecer elementos preciosos para entender como o cantar de amigo inicial suscitou nele uma reacção forte. J.C. Miranda, MARTIN SOARES E O “CANTAR DO CAVALEIRO”

Miranda apresenta um conjunto de argumentos que parecem ser suficientes para concluir que Martin Soares pretende com o seu poema “Cavaleiro, com vossos cantares” não só menosprezar a cantiga d’amigo como género, mas também ridicularizar um certo cavaleiro

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que “mal aviltou os trobadores” com pretensos poemas de amor que não são ”fremosos nem rimados” e que servem apenas para ser escutados por gente de condição social menor33.

É perceptível que Martin Soares censura ferozmente um outro trovador, que faz “cantares de amor”, a quem todavia vai qualificando não como “trovador” mas sim como “cavaleiro”. […] As melodias seriam más, os textos difíceis de cantar, as “cores de retórica”, responsáveis pela beleza do discurso, não seriam devidamente utilizadas e, por último, de acordo com o do conteúdo da “fiinda”, também a rima seria deficiente. […] Vai reiteradamente declarando que o público ajustado a tais cantares seria constituído por uma extensa e detalhada galeria de tudo o que cabe na designação social de vilão. […] A alegação segundo a qual todos os outros trovadores deviam procurar “por al servir sas senhores” leva a pensar que também o conteúdo desses “cantares de amor” teria subvertido a linguagem trovadoresca, tornando-a inadequada para a expressão do “serviço”, finalidade que Martin Soares lhe atribui. J.C. Miranda, MARTIN SOARES E O “CANTAR DO CAVALEIRO”

Esse cavaleiro seria precisamente Fernan Rodrigues de Calheiros, que “se atribui” no seu conhecido poema precisamente com esse estatuto. Calheiros terá sido um dos introdutores do género cantiga d’amigo34 e essa poderá ser uma das suas mais antigas composições, pois ela parece introduzir o seu cancioneiro, como afirma J.C. Miranda …a composição "Madre, passou por aqui um cavaleiro" , até por ser aquela que logicamente dá início ao pequeno drama que se detecta no seio deste cancioneiro[ cancioneiro de Calheiros], assume a típica função de exórdio do conjunto dos cantares, enunciando as balizas precisas da situação que os restantes textos irão retractar. J.C. Miranda, CALHEIROS, SANDIM E BONAVAL: UMA RAPSÓDIA DE AMIGO

É natural que Martin Soares procurasse desde o primeiro momento mostrar oposição a um género de que não gostava, podendo eventualmente ter, para além das razões poéticas e estéticas, razões de natureza política, pois os dois trovadores pertenciam a grupos aristocráticos adversários na luta intensa pelo poder35, no Portugal da década de 20 e de 30. …se questionarmos quem era o trovador que se auto-intitulava “cavaleiro”, cujos textos escapavam, por vezes, às regras da rima consoante e da medida igual dos versos, além de possuírem uma estrutura versificatória bem diversa das praticadas por este trovador […] vamos dar directamente a Fernan Rodrigues de Calheiros. […] o cantar de amigo surgiu no contexto trovadoresco – e, provavelmente, surgiu em absoluto – da colaboração entre três poetas, dois deles trovadores – Calheiros e Vasco Praga de Sandim – e um outro, jogral – Bernal de Bonaval –, e ainda que tal terá ocorrido entre 1223 e 1229 num palco de fronteira entre a Galiza e Portugal. […] estamos, portanto, perante uma temporã manifestação de recepção activa do cantar de amigo da fase inicial, que se traduz numa sonora rejeição. J.C. Miranda, MARTIN SOARES E O “CANTAR DO CAVALEIRO”

Mas a referência no poema a um “bando” indica que Calheiros também não estava isolado; fazia parte de um novo movimento poético que Martin Soares pretende arrasar. Ou seja, o poema parece confirmar o nascimento de um novo género poético em torno de Calheiros. Mas podemos afirmar igualmente que também o terceiro poema que referimos parece estar relacionado com o poema de Calheiros. 33

Outras interpretações, como daqueles que afirmam que Martin Soares se refere neste poema a uma poesia popular e não cortês, ou daqueles que identificam o cavaleiro censurado como Sueir’Eanes, que Martin Soares critica noutro poema, parecem pouco fundamentadas. De facto Martin Soares dirige-se a um cavaleiro, que Sueir’Eanes não era, e aconselha-o a respeitar o código do fin’amor, ou seja, falava com clareza de uma poesia de ruptura no interior ao ambiente cortês. 34 Quer em B quer em V, os cantares d’ amigo são introduzidos por uma rubrica onde se pode ler “cantigas d’amigo que fezeron os cavalleiros e o primeiro é Fernan Rodriguiz de Calheyros” 35 O historiador António Resende de Oliveira, a quem se devem muitos dados biográficos destes trovadores, vê como provável a ligação de Calheiros à poderosa família dos Sousas, da qual os seus irmãos eram certamente vassalos, enquanto Martin Soares estaria ligado à família rival dos Soverosas. 19

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O eco que veio a ter, espelhado também no atrás mencionado poema de Pero da Ponte, onde este trovador substitui o termo--chave “cavaleiro” por “escudeiro”, confirma ainda a ideia que adiantámos, segundo a qual esse por nós designado "Cantar do Cavaleiro" ocupava uma posição de exórdio do cancioneiro de amigo de Calheiros, como se de um verdadeiro manifesto poético se tratasse, de tal modo as ideias fundamentais que percorrem o conjunto desse cancioneiro lá estão já presentes. J.C. Miranda, MARTIN SOARES E O “CANTAR DO CAVALEIRO”

A argumentação de J. C. Miranda permite-lhe concluir que estaremos, com Calheiros e com Martin Soares, na presença do registo do nascimento do cantar d’amigo e porventura da primeira reacção social de rejeição, tudo isto acontecendo no seio do ambiente cortês. Isto permite-lhe reforçar a sua posição de que não há nos cantares d’amigo influência de outra poesia com outras origens. No entanto, sem rejeitar todas as interpretações de J. C. Miranda, poderíamos ser conduzidos a uma outra teoria. Martin Soares é um aristocrata e dirige-se a outro aristocrata, concretamente um cavaleiro. Estamos pois na presença de dois autores corteses. É indiscutível. No entanto, a associação dos cantares d’amigo a um público de baixa condição social por Martin Soares - “aldeiãos”, “alfaiates”, “peliteiros” e “medores” – tanto pode ser um elemento de simples escárnio, como pode indiciar precisamente um género ao nível de uma poesia que circulava fora dos ambientes corteses. Não pretendendo tomar posição nesta disputa, o que exigiria estudo e investigação que não fizemos, limitamo-nos uma vez mais a colocar em cima da mesa, ou no branco deste papel a mesma pergunta: “Será possível encontrar respostas que integrem as várias visões e que satisfaçam quer as evidências histórias quer as evidências poéticas?”

4. O Al-Andaluz A possível influência nos cantares d’amigo da poesia árabe, ou de poesia que era escrita no mundo a sul, de dominação árabe, obriga-nos a olhar brevemente para esta região da Península. O Al-Andaluz, nome dado a essa região, era terra de encontro, de partilha, de convivência entre gentes com origem, religião e culturas diferentes. En consecuencia se puede considerar que al-Andalus fue tierra de encuentro: árabes, judíos y cristianos se mezclaban y convivían con plena integración en una sociedad multicultural, una sociedad donde a veces surgían enfrentamientos entre los distintos grupos y otras, por el contrario, daban lugar a un espacio cultural polifacético de arte, literatura, etc. producto de los nexos de unión de estas tres culturas. Nadi Safi, LA IMAGE POÉTICA DE LA MUJER ADALUSÍ ÁRABE Y HEBREA E EL ESPACIO PRIVADO

O Al-Andaluz era também nesse tempo um ponto de encontro para comerciantes cultos, filósofos, matemáticos, músicos e poetas, que vinham desde o oriente, sobretudo de Bagdad, à época o centro mais importante da cultura árabe. Compreender-se-á aliás que desde sempre existissem relações a todos os níveis entre os territórios cristãos, a norte, na Hispânia, e o Al-Andaluz, a sul. Percebe-se que a ciência, a tecnologia e a arte do sul fossem pontos de atracção para os homens cultos do norte. Estas relações seriam particularmente intensas no século XI com o reino de Leão, que integrava a futura Galiza e o que viria a ser o futuro reino de Portugal. Ao contrário da mistificação corrente, não existia nesse tempo uma guerra permanente entre mouros e cristãos mas, pelo contrário, havia longos períodos de paz, que propiciavam trocas e migrações de pessoas nos dois sentidos.

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Os contactos com a civilização árabe alargaram-se durante a conquista, com a integração no reino de Portugal de concelhos e de populações que tinham estado sob o domínio árabe. De acordo com o professor José Mattoso, a decisão de D. Afonso Henriques de ir para Coimbra foi muito importante para o futuro do reino. Coimbra era então uma cidade cosmopolita, onde sobressaía um caldo de culturas. Moçárabes36 e muladis eram maioritários na cidade. A decisão do rei abriu-lhe o contacto com a vida urbana e com a civilização árabe e garantiu-lhe ao mesmo tempo uma distância razoável da nobreza senhorial do Norte. Pôde assim exercer um poder menos dependente desses senhores feudais de Entre Douro e Minho. Ao resolver mudar-se para Coimbra, Afonso Henriques tomou a sua decisão mais transcendente para a sobrevivência de Portugal como nação independente… Coimbra havia sido, entre 1080 e 1116, um importante foco de resistência contra hábitos, instituições e concepções impostos pelos clérigos e guerreiros vindos do Norte. José Mattoso, D. Afonso Henriques

Ora, encontram-se registos poéticos importantes a sul, mesmo bastante anteriores à conquista árabe do sul da Hispânia e da criação do Al-Andaluz. Era uma poesia proeminentemente culta, feita por e para os que viviam na corte, nas principais cidades do sul. Os temas mais recorrentes eram os amorosos, religiosos e laudatórios. Estaríamos em presença, desde o século V e VI d.C. (ver mapa abaixo), de uma poesia cortesã, ou seja, muitas centenas de anos antes do aparecimento da chamada poesia cortesã do norte, a poesia trovadoresca. Como observou Rubiera Mata, a literatura deste período é cortesã no sentido etimológico do termo. Marina Juliana de Oliveira Soares, Noites de Alandalus

Figura 5 – Mapa da Hispânia no século VI

Como momentos especiais dessa poesia árabe do sul da Hispânia, somos obrigados a mencionar dois nomes de poetas de grande importância, nascidos ambos em território

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As comunidades moçárabes teriam muita importância também em cidades que foram sendo conquistadas como Santarém, Lisboa, Évora e Santa Maria de Faro. 21

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português na actualidade: Al Mutamid (1040 — 1095) nascido em Beja e Ibn Ammar (10311086) nascido em Silves.

4.1 As kharagat As kharagat37 eram pequenos poemas de uma tradição moçárabe38, onde correntemente vozes de capa feminina se expressavam, falando das suas experiências amorosas, como nos cantares d’amigo. Constituíam a parte final39 de canções chamadas muwassahat 40, tipo de composição que teria aparecido no Al-Andaluz no século X.

A voz feminina que aparece na kharjah das muwassahat amorosas possui características bem definidas: trata-se de uma mulher concebida no plano terreno; adepta, muitas vezes, do uso de bebidas, como o vinho; permeada de desejo pelo amado, e, sobretudo, protagonista deste desejo e da relação que mantém (ou tenta manter) com seu amigo. É uma figura que insiste na busca pela satisfação amorosa e/ou erótica. Resume-se, portanto, numa mulher fora dos “padrões morais” concebidos até então. Os temas explorados por esta voz feminina vão desde uma simples queixa sobre a ausência do amado (confissão geralmente feita à mãe) até às mais carregadas afirmações acerca de seu intento sexual e sua vontade de satisfazê-lo. O primeiro tópico poderia ser exemplificado por esta kharjah: “O que posso fazer, o que será de mim? Meu amado, não te furtes de meu lado”. Marina Juliana de Oliveira Soares, Noites de Alandalus

A muwassaha e a Kharjah desenvolviam-se muitas vezes em torno do tema do amor e do erótico, recorrendo ao formato poético gazal41. Vários foram os temas explorados pelos poetas na kharjah. Entretanto, parece ser o discurso sobre a mulher, seus encantos e sua sexualidade demasiado recorrente, quiçá inédito. Marina Juliana de Oliveira Soares, Noites de Alandalus

As muwassahat eram monotemáticas, com estrofes escritas com versos curtos e com monorrima42, intercaladas com um refrão rimado, como acontece com muitos cantares d’amigo. Nas kharagat moçárabes, a mulher que cantava o seu amor usava muitas vezes as suas irmãs ou a sua mãe como interlocutoras, tal como sucede frequentemente nos cantares d’amigo. As muwassahat e as kharagat foram escritas por poetas cultos: cristãos, árabes e judeus que viviam no Al-Andaluz. Mas enquanto as estrofes da muwassahat eram compostas em árabe clássico, a kharjah tinha a particularidade de ser escrita frequentemente em língua dialectal (árabe andaluz ou romandaluz, também designado moçárabe). Sendo compostas em

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A palavra kharagat corresponderia ao plural de kharjah , jarcha ou kharga. Termo não muito rigoroso, utilizado muitas vezes para designar povos que viviam em territórios de cultura árabe, por exemplo cristãos, e as suas línguas, miscigenadas com o árabe. 39 Kharjah é de facto uma palavra árabe que significa saída ou fim. 40 A muwassaha ou moachaha era uma composição poética culta, própria da Hispânia Muçulmana, associada a um género musical. Consiste num poema com versos escritos em árabe clássico, usando frequentemente um prelúdio seguido de várias estrofes, normalmente cinco, intercaladas com um refrão rimado. 41 O ghazal, gazal, gazel, ghazel o gacela é um género lírico (forma poética) que se organiza em coblas y estribilhos, com cada verso partilhando a mesma medida – a partir de Corriente, F. Poesía Dialectal Árabe y Romance em Alandalus. 42 A estrutura das muwassahat era: AA bbb.. AA ccc.. AA ddd.. AA … 38

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língua vulgar43, em vez do árabe tradicional, talvez pudessem gozar de uma maior margem de liberdade. Acredita-se que a maioria destes textos terá sido escrita por homens, embora haja evidências da existência de algumas poetisas relevantes no mundo árabe e também no AlAndaluz44. As duas partes da composição deveriam produzir um efeito muito contrastante, não só devido às línguas diferentes em que eram compostas, mas porque na kharjah era habitualmente a mulher que falava, quase sempre para se lamentar da ausência do seu amado. A ligação entre as duas partes do canto fazia-se por formas lexicais do tipo canta ou dice, se queja, etc., que introduziam a voz feminina. A mescla cultural do sul da Península poderá ajudar a explicar a maior liberdade, que parece existir para as mulheres no Al-Andaluz, e que esta poesia reflecte, se compararmos com o que acontecia mesmo noutras regiões de cultura árabe dominante. La imagen de la mujer que nos muestra la poesía andalusí sería el resultado de esse espacio multicultural en el cual vivía, pero en el que se denota el papel dominante de la cultura árabe. Nadi Safi, LA IMAGE POÉTICA DE LA MUJER ADALUSÍ ÁRABE Y HEBREA E EL ESPACIO PRIVADO

Os autores desta poesia teriam sido influenciados por poetas inovadores de Bagdad de cerca de um século antes, os muhdatin, dentre os quais se destacou Abu Nuwas45. Ao contrário dos poetas árabes clássicos, que produziam os seus textos orientados pela pureza da língua, os inovadores faziam emergir preocupações de outra ordem. Passaram a explorar a composição monotemática, a divisão em estrofes e os poemas de curta extensão. É neste cenário de convivência entre formulações poéticas distintas, que se vê surgir a muwassah. Nada mais comum, portanto, do que encontrar nela um intenso diálogo entre as tendências conservadoras e aquelas surgidas em torno do século X d.C. Os temas desenvolvidos nela ensaiam preocupações inéditas até então. Marina Juliana de Oliveira Soares, Noites de Alandalus

As kharagat manifestavam muitas vezes também tanto influências românicas como hebraicas46. A utilização de duas línguas nas muwassahat revelava já o carácter híbrido desta poesia, que agregava formulações árabes mas que também respondia ao contexto de miscigenação da península. Temos pois de pensar na representação feminina em dois níveis: como ela se deu na parte clássica da muwassah, e de que forma apareceu na kharjah, ou seja, na composição dialectal.

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As composições do tipo zajal ou zéjel, embora fossem escritas inteiramente em dialecto, também chegaram a apresentar pequenos poemas finais do tipo kharjah. 44

É caso, por exemplo, de Umm al-Quiram, princesa e poeta al-andaluz do século XI, ou das poetisas árabes Wallada Bint Al-Mustakfi (1001-1091 d.C.), Hafsa bint al-Hayy ar-Rakûniyya (1135 -1190 d.C.) e Muhya bint al-Qurtubiyya (séc. XI). Umm Al-Quiram, que viveu em Almeria, no Al-Andaluz, escreveu: Por quem amo é de tal sorte minha paixão / que se de mim se separasse, o seguiria o coração, ou ainda Fazer eu, que poderia? / Há um caminho p’ra chegar /ao lugar da intimidade, /longe do ouvido de espia? //Que palavras tão estranhas! /A intimidade desejar /de quem ocupa um lugar /no íntimo das entranhas. (tradução nossa a partir da versão castelhana de Nadia Safi). É impossível ficar indiferente à voz de Umm Al-Quiram. 45 Abu-Nuwas (756 - 814) foi um dos grandes poetas árabes. Terá nascido em Ahvaz, na Pérsia. O pai era árabe e a mãe persa. É considerado um mestre em todos os géneros de poesia árabe. Entrou inclusive na tradição popular, sendo mencionado várias vezes no célebre livro As Mil e uma Noites. É considerado, com base na sua poesia de contornos claramente homossexuais, como o primeiro e um dos mais importantes poetas homossexuais islâmicos. 46 Conhecem-se 52 kharagat, datadas entre o século XI e XII, sendo a mais antiga de 1042. 23

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O que temos, aqui, é uma mulher sinalizando, claramente, sua preferência, sua vontade em ficar com determinado homem. Numa sociedade em que o pai escolhia o casamento para sua filha, pode-se pensar que este tipo de atitude guardava sérias desaprovações. Marina Juliana de Oliveira Soares, Noites de Alandalus

Nas kharagat é recorrente a apóstrofe ao amigo47, à mãe ou à irmã, geralmente logo no primeiro verso. As referências naturalistas e as marcas temporais são escassas. Era quase sempre a noite que favorecia o encontro e a união entre os dois apaixonados – nos cantares d’ amigo predominam os lugares ermos – e era a luz da lua que velava a paixão dos amantes. Um tema recorrente é o da perda, o das ausências e da urgência do reencontro, tal como acontece, como veremos, nos cantares d’amigo. A mulher exprime o desejo de ver o seu amado, expressa a extrema felicidade se tal acontecer e a tristeza profunda se tal não for possível, tal como se lê nesta kharja: Digam-me, minhas irmãs como parar o meu mal? Sem o meu amado não viverei: onde o procuro? O meu coração foge de mim. Oh Deus, ele voltará para mim? Tão forte é a minha dor pelo meu amado! Está doente, quando se curará? Que farei, mãe? O meu amado está à porta kharja em Antologia Literatura de Ernesto Sanchez,

Podemos adivinhar nestes versos, mais uma vez, muitos pontos de contacto entre as kharagat e os cantares d’amigo em galaico-português. Mas no Al-Andaluz eram também possíveis versos audaciosos, de sexualidade explícita, realmente impensáveis nos cantares d’ amigo, tais como: Não irei, só com a condição de que juntes calcanhares com minhas orelhas […] Este desavergonhado, mãe, este alvoroçador, beija-me à força e rasgado está meu traseiro […] Que feridas nos meus peitos! Me mordes com mordeduras agudas como lanças, como pontas de diamantes. Marina Juliana de Oliveira Soares, Noites de Alandalus

Se somos capazes de descobrir nas cantigas em galaico-português uma certa subversão à moral rígida da igreja, como afirma José Mattoso, teremos de reconhecer que a expressão do erotismo e do desejo, se se percepciona, é feita de uma forma “mais menos do que mais” livre, já que mantém o desejo na área do metafórico e do imaginário, numa aparente submissão ao enquadramento ideológico do canso provençal. Consequentemente, a existência de uma moral diferente da Igreja não se deduz apenas da expressão mais ou menos livre do desejo – o que acontece, obviamente, nas cantigas de amor e de amigo, como alimento de uma imaginação cujo contacto com o real é impossível de medir –, mas de uma escala de valores aceite e cultivada nos centros produtores desses textos, ou seja, nas cortes senhoriais e, em parte, nas cortes reais. A poesia trovadoresca e alguns outros produtos da literatura cortesã pressupõem esta escala de valores, mesmo quando a ocultam… O hiato entre a imaginação e a realidade conduz à efabulação e à proliferação de um discurso baseado em situações puramente ficcionais. José Mattoso, A Sexualidade na Idade Média

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O amigo pode ser designado por habibi (Amigo ou amado) ou sidi (dono meu). FLUP- 2014

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As kharagat mostram-nos muitas vezes um arrojo no comportamento feminino, uma exposição sem constrangimentos dos seus sinais de prazer no amor, que não existem de forma alguma nos cantares d’amigo. A literatura erótica vive seu apogeu entre os séculos IX e XVI d.C.. Curiosamente, este intervalo de tempo compreende a fomentação da muwassah. Esta poesia, que, no princípio, discorreu sobre temas eróticos e panegíricos, desenvolveu conteúdos muito próximos aos do zajal, cujo propósito era “(...) agradar y alabar a sus compañeros en una vida de placer, del tipo de ‘vino, mujeres y canciones’, en un bello marco primaveral de noches de pleniludio y rutilantes estrelas” (CHEJNE, A., Historia de España musulmán). […] O período de que ora tratamos (X d.C.) defrontou-se com uma pergunta delicada: “Cómo hacer el amor siendo musulmán?”. A esse respeito, começaria a se desenvolver uma vasta literatura. […] E encontraremos em Alandalus correntes de pensamento muito distintas a respeito da mulher e da sexualidade. Marina Juliana de Oliveira Soares, Noites de Alandalus

Esta poesia al-andalusina, tão arrojada na forma como aborda o erotismo e o sexo, pode espantar-nos, mas havia composições orientais, de alguns séculos antes, como o gazal ou nasib, que já tratavam o tema amoroso, e que já vigoravam entre os árabes desde a poesia pré-islâmica. Autores, como Umar Ibn Abi Rabi‘ah (644- 712/719), que “embelesaba a las damas de La Meca y Medina com una poesía tan sensual y erótica que hacía enrojecer a los alfaquíes, aunque no podían dejar de recitarla y admirarla por su beleza” (CHEJNE, A., Historia de España musulmán). E sabe-se que havia contactos frequentes e importantes entre o AlAndaluz e o Oriente árabe-islâmico. Contudo, podemos pensar que foi em Alandalus que a poesia sexual ganhou espaço, chegando, quiçá, a inaugurar um discurso erótico, nunca antes vislumbrado no mundo árabe oriental. E isto pode ser suposto não apenas pelas kharjat descritas acima, como também pela forma como viviam as mulheres andalusinas. […] Lévi Provençal não deixou de assinalar a possível liberdade usufruída pela mulher de Alandalus, sob o califado e nos anos subsequentes. Outros textos diriam que o amor físico foi de grande valor aos olhos deste povo. E que as mulheres atuavam não só como “objetos de placer” mas também como “sujetos activos para complacer a los hombres” (AGUADO, A. Mª. et al. , Textos para la historia de las mujeres en España).

Marina Juliana de Oliveira Soares, Noites de Alandalus

Parece haver na kharjah uma “inversão de papéis”, mesmo para o mundo árabe tradicional: a mulher, passa de simples objecto passivo a uma personagem-sujeito, ainda que ilusória, excepto em casos em que prove a autoria feminina. Poderá isto ser considerado também parcialmente verdadeiro nos cantares d’amigo? Como vimos, muitas são as teorias especulativas que têm aparecido, construindo narrativas mais ou menos fantásticas para explicar uma ligação entre a poesia moçárabe e a poesia trovadoresca medieval. Não sendo aparentemente possível por ora estabelecer essa ligação com bases sólidas, independentemente dos pontos de contacto que possamos descobrir, nomeadamente com os cantares d’amigo, é prudente questionar essas teorias fantasiosas, mas parece ser inegável que a poesia moçárabe, que aqui abordámos, constitui por um lado uma forte candidata a ter servido de modelo para as cantigas d’amigo, e é por outro lado uma evidência de uma poesia bastante mais antiga em língua romanizada do que os cantares dos trovadores occitânicos.

5. Os cantares d’amigo na poesia trovadoresca Os cantares d’ amigo, um género específico do galaico-português, inserem-se indubitavelmente no movimento de poesia trovadoresca que atravessou a Europa Cristã Ocidental entre os séculos XI e XIV. Mas conhecem-se cantares d’amigo apenas a partir da 25

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terceira década do século XIII, ou seja compostos pela segunda geração de trovadores em galaico-português, que identificámos acima, sob a protecção preferencialmente de duas grandes casas senhoriais: os Sousas e os Soverosas. Colocam-se portanto de imediato um conjunto de perguntas pertinentes: “Porquê nesta altura, como e de onde surgem?”. São perguntas simples mas que ainda não têm respostas consensuais. De acordo com J.C. Miranda este género de cantigas seria herdeiro exclusivo da poesia trovadoresca anterior, tendo sido gerado no quadro das contradições que caracterizavam a sociedade cavaleiresca no espaço galaico-português. Outros autores defendem teorias diferentes, mais ou menos coloridas, como vimos. O cantar de amigo histórico – aquele que está registado nos cancioneiros e restante tradição manuscrita, constituindo o único padrão do género sobre o qual nos podemos pronunciar – parece, assim, compreender-se com relativa facilidade como um produto que emergiu do interior da cultura trovadoresca e cortês, cuja implantação no Ocidente peninsular remontará ao início do séc. XIII e terá já atingido na década de vinte uma consistência apreciável. José Carlos Ribeiro Miranda, CALHEIROS, SANDIM E BONAVAL: UMA RAPSÓDIA DE AMIGO

É fácil observar que, desde o início, o novo género aparece perfeitamente caracterizado e bem diferenciado das cantigas d’amor. Não se conhecem formas que possam representar uma transição entre as cantigas d’amor tradicionais e o novo género, que desde o início teve o seu campo formal e poético bem delimitado. As cantigas d’amigo parecem assim ter surgido repentinamente, entre 1220 e 123048. Poder-se-á no entanto argumentar que as primeiras cantigas d’amigo são ainda designadas pelos trovadores, em textos que se lhes referem, como cantares d’amor, como é o caso de Martin Soares no seu poema “Cavaleiro, com vossos cantares”, onde escarnece do género, como vimos, mas em que, curiosamente, o continua a epitetar como cantar d’amor, ou do poema “Pero da Pont', en un vosso cantar” de Afons’Eanes do Coton, dedicado a escarnecer de Pero da Ponte e mais precisamente de um cantar d’amigo onde ele se auto-intitulara escudeiro. Mas tal facto não será de estranhar, pois é inegável que as cantigas d’ amigo são, antes do mais, cantigas d’ amor, ainda que muito diferentes, por romperem com a matriz tradicional occitânica. E podemos ao mesmo tempo verificar que a classificação de cantar d’amigo parece existir desde bastante cedo. A própria Arte de Trovar, texto que encima o cancioneiro B, identifica já a característica diferenciadora dos géneros: E porque algũas cantigas i há em que falam eles e elas outrossi, por en é bem de entenderdes se som d'amor, se d'amigo: porque sabede que, se eles falam na prim[eir]a cobra e elas na outra, [é d']amor, porque se move a razom dele, como vos ante dissemos; e se elas falam na primeira cobra, é outrossi d'amigo; e se ambos falam em ũa cobra, outrossi é segundo qual deles fala na cobra primeiro.

Textos dos próprios trovadores podem também ser invocados como evidência dessa classificação ser contemporânea com o tempo dos cantares. Podemos apontar, como meros exemplos, um cantar de João Baveca, situado seguramente em Castela no segundo terço do século XIII, ou um outro de Estevan Coelho, que se situa já no primeiro quarto do século XIV, que utilizam essa designação.

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Alguns autores, por exemplo Elsa Gonçalves, defendem a hipótese de a cantiga Ai eu coitada! Como vivo en gran cuidado, normalmente atribuída ao rei de Castela Afonso X, poder ser da autoria do rei de Portugal D. Sancho I. Se D. Sancho I for realmente o autor, esta cantiga seria então indubitavelmente a mais antiga, tendo de ser datada ainda antes do fim do século XII. Mas essa autoria parece ser discutível, pois no único manuscrito onde o poema aparece (B) ele vem precedido de indicações atributivas contraditórias, referindo-se os dois nomes como autores do mesmo texto. Há no entanto outras evidências associadas a este poema que parecem contrariar a hipótese de D. Sancho I. A polémica permanece portanto. FLUP- 2014

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Amigo, sei que há mui gram sazom / que trobastes sempre d'amor por mi, /e ora vejo que vos travam i; /mais nunca Deus haja parte comigo /se vos eu des aqui nom dou razom /per que façades cantigas d'amigo… Sedia la fremosa seu sirgo torcendo, /sa voz manselinha fremoso dizendo /cantigas d'amigo…

A partir de determinada altura a diferença entre os dois campos que praticavam os dois géneros – d’ amor e d’ amigo – parece ter-se acentuado e encontramos muitos cantores que só compuseram cantigas d’amigo, muitos de condição social não aristocrática, sendo designados jograis. Ou seja, podemos afirmar que desde sempre as cantigas d’ amigo, já com ou ainda sem essa designação distintiva oficial – que no entanto surgiu cedo - seriam aquelas em que “são elas que falam”, em que “se move a razon delas” 49. A unidade temática e poética desses poemas, que os diferencia claramente das cantigas d’amor, demonstra também a consciência clara dos trovadores/jograis, desde o momento inicial, enquanto fazedores de um objecto diferente50. Mas o que existe então de tão singular que, não só as distingue de toda a outra poesia cortês da Idade Média, mas que torna as cantigas d’amigo objectos misteriosos e de interesse muito especial? O que contêm, para além deste atributo, já de si tão especial, que as caracteriza desde o início, de usarem vozes femininas para expressarem o sentir masculino, pois curiosamente os trovadores parecem recorrer a vozes de mulher para recuperarem o poder de controlar a acção amorosa que não tinham nos cantares d’amor. Para responder a esta pergunta fundamental teremos de fazer um mergulho curto e rápido nas cantigas d’amor, o único género de objecto poético de amor escrito pela primeira geração, como herança dos occitânicos.

5.1 Os cantares d’amor Durante toda a primeira geração, os trovadores em galaico-português compuseram cantigas d’amor. Este género manteve-se pujante durante a segunda geração e mesmo durante todo o período trovadoresco; uma evidência desse facto são os cantares d’amor que integram os cancioneiros, perfazendo cerca de dois terços do total de poemas que sobreviveram. As cantigas d’ amor em galaico-português são um género herdado do cantar d‘amor occitânico que reflecte o comportamento amoroso característico da sociedade feudal de senhores guerreiros do século XII no sul de França. A fin’amors51 dos trovadores occitânicos fundia amor vassálico com um erotismo muito contido52, usando uma linguagem simbólica, codificada e datada, que possuía alguns

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Talvez fosse mais correcto, em vez de “são elas que falam” ou “se move a razon delas”, escrever “os trovadores se escondem por detrás de vozes ou de sentimentos femininos” ou “os trovadores expressam as suas razões, através das razões delas”. Parece por isso muito difícil compreender quem associa a estes cantares um conteúdo feminista, pois eles mais não parecem ser do que uma expressão do pensar masculino, ainda que recorrendo a personagens femininas. 50 As conclusões do anexo deste trabalho sobre a importância nos cantares d’ amigo da palavra “amigo”, como marca de género, em particular como fonte de rima ou de refrão, parece poder constituir outra evidência com muito significado. 51 A designação occitânica fin’amors – amor fino – era como que os trovadores designavam o amor cortês que praticavam. 52 Essa contenção necessita de uma contextualização social e cultural para a tentarmos compreender, sobretudo se lermos por exemplo a poesia de Guilherme IX de Poitiers que, cerca de 100 anos antes, escrevia: Lembro-me ainda de uma manhã / em que pusemos à guerra fim /e em que me deu um dom tão grande: /o seu corpo amado e o seu 27

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condicionantes irrepetíveis e que, por isso, teria de mudar ao ser recebida no espaço galaicoportuguês. O “amor cortês” – vamos designar genericamente deste modo as várias modalidades do amor que vão tomando corpo na literatura ao longo da Idade Média – apresenta formulações diversas, conforme as línguas e as culturas no seio das quais se exprimiu, conforme ainda as modalidades literárias, as épocas e os locais onde tal sucedeu, não podem restar dúvidas de que em todos esses casos se operou uma transformação relativamente a um modelo inicial, que é o occitânico. […] Mas foi necessário que o mais profundo da sua voz se desvalorizasse ou até omitisse para que o legado poético que lhe deu corpo pudesse ser retomado e transformado em património comum da cultura e da literatura europeias. José Carlos Miranda, Da Fin ‘Amors

De facto, como todos os autores ressalvam, a sociedade em que o cantar galaico-português se desenvolve já é diferente da sociedade provençal e o cantar d’ amor terá assim de ter uma leitura diferente, ainda que marcada pela ideologia occitânica do amor cortês, que ele herda. …bastará um breve e sumário inquérito para apurar que alguns destes vectores encontraram nos meios sociais galegos, portugueses e do ocidente ibérico em geral um eco muito escasso, sobretudo na fase de adaptação e assimilação desta problemática, o que leva a pensar que o processo de reordenação semântica global da linguagem do amor terá forçosamente começado logo no acto da assimilação, por meio de uma operação de transformação dos diversos elementos ideológicos, temáticos e lexicais herdados. José Carlos Miranda, Somesso, A Dona e a Donzela Mas a ideologia amorosa profunda na qual assentou esse fazer poético dificilmente poderia resistir à prova do tempo ou à imigração para um espaço – geográfico, social, cultural... – fundamentalmente diferente. José Carlos Miranda, Da Fin ‘Amors O sistema feudal de finais do século XII nos reinos de Portugal, León e Castela tiña pouco que ver co que, case un século antes, dera lugar á aparición da lírica trobadoresca na rexión do Poitou, pero asimilou o código poético da fin’amor como unha estrutura perfectamente construída e adaptable ao contexto 53 presente, que pode conxugar elementos transpirenaicos con outros procedentes da lírica tradicional que se incorporan sabiamente a esta produción culta e propia de ambientes nobiliarios (aínda que se trate de pequena nobreza ou de cabaleiros de escasa fortuna). A integración de todo o relativo ao servizo amoroso foi tan completa que, a carón das palabras que se correspondían case exactamente no romance de partida e no de chegada, mesmo se admitiron moitos termos alleos ao sistema lingüístico galego-portugués e que non tiñan unha tradución doada (en boa medida, porque as realidades que relectían non eran idénticas) pero eran necesarios para non desvirtuar ese mundo de ficción literaria do que formaban parte. Mercedes Brea, Aproximacións ao estudo do vocabulario trobadoresco

Se bem que influenciada pela poesia provençal, a cantiga d’amor galego-portuguesa assume, no entanto, mesmo no plano formal, algumas características que a diferenciam: é em geral mais curta e frequentemente inclui um refrão. Desaparecem as referências naturalistas que caracterizavam os cantares occitânicos e a incorporeidade da dama acentua-se. Daqui deriva quer a impressão de incorporeidade da deuteragonista da cantiga de amor galegoportuguesa – em contraste com a carnalidade, ainda que por vezes tenuemente velada, da dama provençal – quer a ausência de dimensões espaciais e temporais do senhor em relação à localização precisa da domna, num contexto histórico-ambiental, na maior parte das vezes bem determinado. Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis

Uma das razões para a evolução dos cantares d’amor no ambiente galaico-português poderá ter residido no esvaziamento de sentido da prática occitânica de “partilha” pública da mulher anel; /que me deixe Deus viver o bastante /para ter minhas mãos sob o seu mantel! E escrevia mesmo versos, onde o erotismo se transformava numa forma brejeira. 53 Mercedes Brea também defende aqui, tal como outros autores que referimos, a influência que uma poesia tradicional poderia ter tido nas cantigas em galaico-português. Esta é uma polémica em aberto, como vimos. FLUP- 2014

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pelo senhor54, que aparece como explicação do fin’amor no contexto provençal, tal como alguns autores realçam. A explicação de Duby para a canção provençal é conhecida: o fin’amor, ou amor dito cortês, como lhe chama, tendo como destinatária a mulher aristocrática casada (cultivando, portanto, o desejo adúltero), seria a expressão de jovens nobres, em geral filhos segundos, cavaleiros sem fortuna excluídos da herança paterna e, portanto, do matrimónio, e que, através da poesia, dariam “largas à sua imaginação, sonhando amar, até, a mulher do seu senhor ou sonhando morrer de amor por ela” (como resume José Mattoso em “A sexualidade na Idade Média Portuguesa”, Naquele tempo. Ensaios de história medieval), sob o olhar tolerante desse mesmo senhor. Um divertimento refinado entre homens, portanto, no qual a mulher não seria mais do que um pretexto, ou objecto segundo, permitindo a esses jovens vassalos uma homenagem indirecta ao seu senhor, o qual, por sua vez, admitindo-os no seu círculo e permitindo-lhes a corte imaginária à sua esposa, fortalecia, deste modo o seu controlo sobre esses bandos de jovens cavaleiros irrequietos. Duby propõe mesmo que, em última análise, haveria em tudo isto uma dimensão de homossexualidade mais ou menos oculta: “Poderemos mesmo perguntar-nos se, nesta figura triangular, o jovem, a dama e o senhor, o vector maior que, abertamente, se dirige do amigo para a dama, não faz ricochete sobre esta personagem, para se dirigir para o terceiro, o seu verdadeiro destinatário, ou mesmo se não se projecta simplesmente e sem desvio em direcção a ele”.

Videira Lopes, E DIZEM ELES QUE É COM AMOR

Outra razão para a transformação poderá derivar da posição social da maioria dos trovadores, que é distinta nos dois mundos. No mundo galaico-português a maioria dos trovadores, tem condição social mais elevada, pertence a uma aristocracia com algum poder, alguns mesmo com posição de relevo na hierarquia senhorial55 e, como tal, a sua posição perante a dona do senhor e a forma de prestar um serviço ao senhor e à sua mulher não podem ser as mesmas. …quando olhamos para o perfil dos que vieram a dedilhar a cítola e a tentar guarir por meio da arte de trovar – reiteramo-lo pelo carácter central desta circunstância –, não vemos pequenos cavaleiros nas margens da aristocracia, tentando fazer valer uma nobreza do cor quando não a possuíam do cors, mas sim homens com uma posição secundária, é certo, mas membros de pleno direito do grupo aristocrático, para quem a mulher nobre não é uma referência de um mundo que lhes era alheio, mas uma possibilidade plenamente alcançável.

José Carlos Miranda, Somesso, A Dona e a Donzela

Esta diferença no estatuto de classe dos trovadores, entre o mundo occitânico e galaicoportuguês poderá também justificar o agudizar de tensões sociais, poéticas e eróticas nas cantigas, que poderão explicar em parte o aparecimento, passados poucos anos, dos cantares d’amigo. A cantiga d’ amor apresenta-nos sempre uma voz masculina, que canta a beleza e as qualidades de uma dona inatingível e imaterial, “Une belle dame sans merci”, um canto que lamenta a indiferença ingrata da senhora amada ou, nalguns casos, a própria incapacidade do trovador para lhe expressar o seu amor secreto e que, por fim, lastima a coita (sofrimento do poeta) por não conseguir que o seu amor seja correspondido.

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O senhor feudal occitânico, para assegurar a vassalagem dos seus, tinha o dever da partilha dos seus bens; era assim obrigado, por exemplo, a dividir com generosidade os proventos da guerra. Essa prática incluía num plano simbólico a partilha da sua mulher, ainda que de uma forma limitada e controlada. 55 Muitos trovadores no espaço galaico-português eram ricos-homens ou infanções, como lhes chama José Mattoso, designações que adoptou da terminologia da época, embora ele mesmo advirta que estes epítetos, usados nos séculos XII e XII, tinham muitas vezes contornos pouco claros. Os jograis, de origem não aristocrática, e que são, por isso mesmo, claramente diferenciados, como vimos, só aparecem em grande número em meados do século XIII. 29

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5.1.1 Campos sémicos nos cantares d’amor As cantigas d’ amor são caracterizadas por uma homogeneidade formal e de conteúdos que nos surpreende56. Nas palavras de Giuseppe Tavani57 todas resultam da justaposição de um preâmbulo – que pode ser mínimo, por vezes um único verso - com quatro campos sémicos que se repetem poema após poema. Tavani considera os dois primeiros como secundários e os dois últimos como principais. Esses campos são: 1. o elogio da dama (panegírico), que nunca se alarga numa descrição corpórea, restringindo-se a uma muito abstracta e indeterminada qualificação estética; 2. o amor do poeta por ela, que é quase sempre um dado adquirido e está condensado em enunciados muito sintéticos; 3. a reserva da dama, que admite uma maior variedade de situações, já que a atitude da senhora, apesar de sempre incapaz em fazer ben ao seu apaixonado, pode ir da condescendência cauta à ira ou até a uma sádica represália; em certos casos este campo traduz-se numa proibição, que obriga o poeta a afastar-se; 4. a coita de amor, a pena por um amor não correspondido, que vai da tristeza à loucura por amor e até à morte; morrer por amor torna-se mesmo o topos mais frequente do cantar d’ amor galaico-português58. E como afirma Tavani: A evasão ocasional a certos topoi não altera, quase nunca, a estrutura interna do género cantiga d’amor: por norma, a tendência desviante num dos campos sémicos – contida geralmente dentro de limites bem marcados – é acompanhada pela adesão escrupulosa aos esquemas tradicionais em todos os outros. Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis

5.1.2 Os cantares d’amor como encomendas? Chegamos ao momento da estupefacção e da perplexidade. Como entender que os trovadores tenham repetido vezes sem conta esse modelo em que a dona é um objecto de amor inatingível e em que ela nada lhes oferece a não ser a coita, variando apenas a forma e o grau de coita, que pode ser pesar, doo, alan, penar, dano, sofrer, lazerar, tromentar, padecer, nuzer, mal aver, mal pesar, etc., como enuncia Tavani. Com base na nossa cultura contemporânea é completamente impossível perceber este comportamento, que até nos poderá parecer obsessivo. Por isso, é tão importante contextualizar os cantares na sociedade feudal de senhores, occitânicos primeiro, e galaico-portugueses depois na Galiza e em Portugal. É o que fazem com algumas nuances, como vimos, JC. Miranda ou Giuseppe Tavani e outros autores que nos têm servido de guias nesta viagem através do tempo e do espaço. Arriscar-nos-emos nós a tentar também uma explicação, que justifique este comportamento, que nos parece tão “insólito”, a ousar uma comparação, que torne mais compreensível esse 56

Giuseppe Tavani apresenta uma possibilidade, normalmente não admitida por outros autores, para justificar esta homogeneidade exagerada. Segundo ele, teria sido possível que a selecção de cantigas feita no século XIV por D. Pedro, no seu Livro das Cantigas, e que é a fonte principal do nosso conhecimento actual, tenha sido feita com base em determinados cânones de qualidade, recusando poemas menos ortodoxos. Esta explicação permitiria também perceber o facto de alguns trovadores terem tão poucas cantigas identificadas, o que é de facto difícil de compreender. 57 Giuseppe Tavani, na sua obra Repertorio metrico della lirica galego-portoghese, fez um levantamento exaustivo das formas, conteúdos, métricas de toda a poesia galaico-portuguesa, onde realça com percentagens e com indicadores diversos essa enorme homogeneidade da poesia trovadoresca em galaico-português e em particular das cantigas d’amor. 58 Segundo Tavani, nos cantares d’amor, as formas do verbo “morrer” aparecem mais de 800 vezes e o substantivo “morte” mais de 300 vezes, a um ritmo de presença de um por cada oito ou dez versos. E se se juntar outras formas como “viver”, “vida”, “matar”, onde têm o mesmo valor semântico, temos uma presença de uma vez em cada copla. FLUP- 2014

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fenómeno e que não contrarie as várias teorias que tivemos oportunidade de ler? Para o fazer, tentaremos interpretar a atitude dos senhores e dos poetas, usando como termo de confronto a pintura ou as artes visuais em geral. Vejamos então: os trovadores eram vassalos do senhor, estavam ao seu serviço, tal como os pintores estiveram ao longo da história da arte, durante séculos, até à modernidade, ao serviço dos seus mecenas. Os pintores viviam à custa do senhor que os acolhia e dele recebiam encomendas; pintavam nomeadamente retratos da família do seu protector e nessa sua missão eram com certeza “obrigados” a descobrir a beleza das senhoras e das senhorinhas e a realçar a dignidade na postura dos senhores. As pinturas que realizavam serviam afinal para os senhores mostrarem o seu poder, como lemos em Lévy Strauss ou em John Berger. For Renaissance artists, painting was perhaps an instrument of knowledge but it was also an instrument of possession, and we must not forget, when we are dealing with Renaissance painting, that it was only possible because of the immense fortunes which were being amassed in Florence and elsewhere, and that rich Italian merchants looked upon painters as agents, who allowed them to confirm their possession of all that was beautiful and desirable in the world. The pictures in a Florentine palace represented a kind of microcosm in which the proprietor, thanks to his artists, had recreated within easy reach and in as real a form as possible, all those features of the world to which he was attached. Lévi-Strauss, in a discussion about painting in the western cultural tradition, quoted by John Berger

Lady with a Drawing of Lucretia, by Lorenzo Lotto, c. 1530-33 Oil Painting, as a genre, used extreme realism to communicate wealth and possession. […] Thus painting itself had to be able to demonstrate the desirability of what money could buy. And the visual desirability of what can be bought lies in its tangibility, in how it will reward the touch, the hand, of the owner. John Berger59, Ways of Seeing

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John Berger é um crítico de arte inglês muito conhecido. Tem escrito várias colecções de ensaios sobre arte. Também é romancista e pintor. Ganhou em 1972 o prestigioso Booker Prize pelo seu romance G. 31

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Tal como afinal hoje um fotógrafo, que recebe uma encomenda, tem de ser capaz de realçar ou de descobrir a beleza de qualquer celebridade. Não há retrato, em revista ou jornal, que não seja embelezado pelo photoshop.

Figura 6 – Retrato de estrela de cinema sem e com photoshop

Poderíamos então interpretar os cantares d’ amor como "encomendas" destinadas a realçar a beleza da senhora e assim também a generosidade do senhor? Seria este amor “encomendado” ao poeta pelo senhor que lhe dava protecção traduzido pelo trovador em coblas, com um padrão previamente acordado, o que justificaria o uso das fórmulas repetidas que encontramos, onde apenas sobressai a imaginação de cada poeta, na forma como se restringe à malha do espartilho do cantar d’amor? Podemos imaginar que o trovador, ao aceitar e ao cumprir essa “encomenda,” pudesse obter prestígio social, importância junto do seu senhor e até fortuna pessoal, enquanto o senhor se dignificava aos olhos dos seus vassalos? Uma troca vantajosa para as duas partes, portanto. Mas esta fórmula tão apertada deverá ter provocado muitas tensões: poéticas, sociais, eróticas. As cantigas d’amigo poderão ter surgido como uma tentativa por parte dos trovadores galaico-portugueses de romper estas tensões, assumindo controlo sobre o amor e sobre a acção amorosa.

5.2 A singularidade dos cantares d’amigo O cantar d’amor no mundo galaico-português deixava o trovador entregue à coita, sem escapatória ao sofrimento e sem poder ter alguma esperança de um dia alcançar o objecto da sua dedicação. Perante um tal futuro sem expectativas, parecia-lhe ser muitas vezes preferível a morte. As tensões que tal situação poderia ter provocado, juntamente com uma relativa desadequação do modelo de fin’amor ao mundo galaico-português poderão ter constituído o leit motiv do aparecimento em ambiente cortês, na segunda geração de trovadores, dos cantares d’amigo. De facto, enquanto no cantar d’amor o homem é impotente perante a esquiva ou até a repulsa da dona, nos cantares d’amigo é a mulher que fala60, que se lamenta 60

É necessário realçar de novo que a voz é representada no cantar d’amigo como se fosse feminina mas, de facto, é um trovador-homem quem compõe e quem canta. Isto implica que essa voz traduzirá sempre uma visão masculina sobre a mulher. Estas cantigas …vêm confirmar a imagem psicológica da amiga como uma pobre criatura submissa, permanentemente disponível, que espera, chora e se zanga por vezes para logo perdoar. M. Rosário Ferreira, Águas Doces, águas salgadas FLUP- 2014

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e se entrega completamente à vontade do amigo. O amigo passa a ser o senhor do destino de ambos. Poderemos afirmar que o cantar d’amigo é revolucionário, na medida em que parece romper com as relações feudo-vassálicas na sua poética? Terá sido esta uma das razões para a rejeição do género, que alguns manifestaram, quando apareceu, como referimos? A omissão da terminologia feudo-vassálica que era utilizada nos cantares de amor para definir a relação homem-mulher é completa e radical. Há "amor" ou termos seus derivados, mas não há "serviço", nem "gualardon", nem "fazer ben" ou "aver ben", nem designações como "dona" ou "senhor". José Carlos Miranda, CALHEIROS, SANDIM E BONAVAL: UMA RAPSÓDIA DE AMIGO

Na opinião de J.C. Miranda, o poema Ũa donzela quig'eu mui gran bem de Joan Soares Somesso, onde o poeta desenvolve um jogo de sentidos equívocos, recorrendo aos termos dona e donzela, poderá ilustrar poeticamente essa tensão e esse caminho que os trovadores sentiram necessidade de trilhar, indo dos cantares d’amor para os cantares d’amigo. Como escreve J.C. Miranda para realçar a contradição: “A "donzela" é um bem, mas está fora do alcance do trovador; a "dona" é o objecto do serviço, mas é um mal. E todavia são semelhantes...” É com Joan Soares Somesso que vemos ser colocada em primeiro plano a questão do sentido do canto não na sua dimensão meramente formal, mas antes discursiva e essencial, ou seja, representando o propósito que o canto masculino persegue para além dos seus próprios limites materiais. […] O que Somesso diz à posteridade, por meio dos seus muito equívocos versos, é que o trovador está disposto a acatar a ordem do mundo do qual depende, e a servir tanto quanto lhe for imposto, mas o seu desejo de obter, para si e inteiramente, uma mulher que vem do alto, uma "donzela" guardada, permanece na raiz do canto, constituindo a atitude fundamental que o move. O desejo de obtenção dessa mulher é superior às imposições de qualquer serviço dirigido a uma "dona" meramente nominal, sem conteúdo e sem materialidade, incapaz de produzir qualquer satisfação, mesmo que esse desejo tenha uma expressão recalcada, clandestina, necessariamente em colisão com os implícitos literais da linguagem do serviço de amor. José Carlos Miranda, Somesso, A Dona e a Donzela

Numa primeira abordagem as cantigas d’ amigo poderão parecer muitas vezes uma espécie de imagem ao espelho das cantigas d’ amor, já que exprimem as mesmas ideias de desamor e de separação, mas apresentando a mulher como a sofredora e como dependente da vontade do seu amigo. Mas na opinião de Tavani, a voz da mulher que fala nas cantigas d’amigo também parece ser de um tipo de mulher diferente da dona, da senhora distante e abstracta dos cantares d’amor. A cantiga d’amor embora semelhante pelo conteúdo à cantiga de amigo … diferencia-se todavia dela por um carácter aristocrático mais marcado de tom e de forma. […] A mulher que se lamenta ou se indigna pela ausência ou pela indiferença do amigo não é a requintada senhor aristocraticamente esquiva e feudalmente distante da cantiga d’amor. […] A mulher da cantiga d’amigo … é quase sempre uma rapariga, uma dona-virgo, aparentemente simples e ingénua, mas com efeito maliciosamente consciente da sua feminilidade, umas vezes apaixonada e dolente, outras indignada e ressentida, ao mesmo tempo vulnerável e disposta a defender a sua relação contra qualquer interferência. Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis

Enquanto a mulher, objecto do amor do trovador nas cantigas d’amor, é claramente uma dona de estrato social mais elevado, a mulher do senhor, objecto de um desejo contido e abstracto, e que por isso rejeita com maior ou menor vigor a aproximação do poeta, a mulher cuja voz ouvimos nas cantigas d’ amigo é mais corpórea e poderão até ser identificados pequenos

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indícios que podem significar que ela é de um estrato social idêntico ou até inferior ao do trovador ou jogral. O amigo é identificado nalgumas cantigas como cavaleiro/escudeiro ou até como filho d’algo, o que poderá denunciar uma forma simples de acentuar a origem social do amigo. E não encontrámos indícios que revelem verdadeiramente a superioridade social da dama nos cantares d’amigo. Aliás, só assim teria sido possível ao próprio D. Dinis, como rei de Portugal, escrever cantigas d’ amigo. O mesmo poderá ser dito sobre os jograis, cujo cantar, se assim não fosse, poderia ser considerado desrespeitoso. E, se assim tiver sido, é natural que os poetas tenham sentido ainda uma maior liberdade na escrita, podendo mais facilmente ultrapassar certas regras do comportamento social requeridas pela cortezia feudal.

5.2.1 Aspectos poéticos, métricos e formais Tentemos caracterizar um pouco melhor do ponto de vista formal e poético este objecto singular, que desperta (subitamente?) no cantar galaico-português na década de 1220-1230, com base nos cantares d’amigo datados com alguma certeza. Dois trovadores e um jogral parecem ser os seus primeiros intérpretes. Tivemos a oportunidade de defender que o cantar de amigo surgiu no contexto trovadoresco – e, provavelmente, surgiu em absoluto – da colaboração entre três poetas, dois deles trovadores – Calheiros e Vasco Praga de Sandim – e um outro, jogral – Bernal de Bonaval –, e ainda que tal terá ocorrido entre 1223 e 1229 num palco de fronteira entre a Galiza e Portugal, situado entre Toronho a norte e as terras de Riba de Lima a sul. Pareceu-nos então que – e continuamos a afirmá-lo –, pela consistência e intencionalidade dos textos que os três apresentam, terá sido Fernan Rodrigues de Calheiros o grande promotor desta experiência poética, que se caracterizou pela abertura de um espaço imaginário que rompia com a doutrina da vassalagem de amor típica dos cantares de amor. J.C. Miranda, MARTIN SOARES E O “CANTAR DO CAVALEIRO”

Para além da diferença fundamental e inicial, que caracteriza o cantar d’amigo como um género autónomo e imiscível, de dar voz a uma dona ou a uma donzela, o que parece constituir no panorama trovadoresco europeu uma inovação relevante e até surpreendente, o cantar d’amigo distingue-se também por muitas especificidades poéticas e formais. Embora apresentando algumas afinidades temáticas com a cantiga d’amor – visto que o argumento essencial de ambas é o amor não correspondido ou contrariado de diferentes maneiras e, portanto, fonte de sofrimento e motivo de lamento – a cantiga d’amigo distingue-se da outra pela perspectiva, pela atmosfera, pela entoação e pelos esquemas formais em que manifesta a situação amorosa. Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis

A estrutura da cantiga d’amigo caracteriza-se, tal como sublinhámos com a cantiga d’amor, por uma grande homogeneidade. Partilha aliás muitos elementos com a cantiga d’amor, desde aspectos formais, a poéticos e a métricos, o que parece evidenciar, por si, a forte ligação entre os dois géneros. Recorre também à utilização de muitos elementos lexicais das cantigas d’amor e da tradição occitânica, tais como: 1. fremosa, mesurada, de mui bom prez no elogio da dona 2. fazer ben como metáfora da relação amorosa 3. fazer/outorgar preito ou fazer menagem como expressões de conteúdo vassálico 4. coita ou fazer mal como expressões associadas ao sofrimento de amor, o que origina a sandice ou el morrer de amor. Mas essa estrutura também se distingue por apresentar alguns elementos específicos e por propiciar uma maior variedade temática. A homogeneidade temático-estilística e métrico-rítmica das cantigas d’amigo não é menos consistente do que a já delineada a propósito das cantigas d’amor, ainda que a poesia feminina se preste, mais do que a outra a uma proliferação de campos sémicos e à introdução de elementos heterogéneos. Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis

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As cantigas d’amigo apresentam um paralelismo formal que, não sendo completamente ignorado numa ou noutra cantiga d’amor, é aqui muito mais presente. Alguns autores distinguem três tipos de paralelismo, que tanto podem aparecer isoladamente como misturarse nos cantares: 1. o paralelismo verbal que é o que melhor caracteriza os cantares d’amigo. Distingue-se por repetir versos integralmente ou parcialmente variando apenas a parte final, usualmente obtendo um sentido semântico idêntico, ou aprofundando o conceito; 2. o paralelismo estrutural onde a repetição afecta a construção sintáctica e rítmica das estrofes, mas onde cada estrofe utiliza um material verbal diferente; 3. o paralelismo semântico em que o conteúdo das estrofes no seu todo se repete, mas com uma variedade de forma, que permite alterar o ritmo e os tempos. A repetição deixa de ser verso a verso mas para o conjunto da estrofe. Este terceiro tipo é menos frequente e mais tardio. Como evidência desse paralelismo formal exacerbado observamos que mais de cem (117) cantares d’amigo recorrem à fórmula rítmica aaB (dístico monorrima, muitas vezes dissonante, com refrão), enquanto apenas nove cantares d’amor a utilizam. Este esquema de paralelismo impõe além disso regras de repetição de versos tão rígidas que permite até “adivinhar” coblas perdidas em textos incompletos, como mostra Tavani. De acordo com Tavani no seu Repertorio Metrico esse modelo linear foi utilizado em muitas das mais notáveis cantigas d’amigo, nomeadamente de D. Dinis. Trata-se de um dístico mono-assonante (raramente também, ou apenas, monorrimo), seguido de um verso de refram, segundo o esquema aaB: na maioria dos casos este modelo aplica-se numa extensão de seis cobras, mas não faltam exemplos de cantigas em que a concatenação se desenvolve em quatro ou em oito e, de qualquer modo, sempre num número par de unidades estróficas. As repetições ligam sempre os versos de cada par de dísticos com os primeiros versos do para seguinte em sequência alternada, enquanto nas variações estão implicados sempre os primeiros versos de cada para de dísticos em sequência contínua. Daqui resulta que o primeiro verso do primeiro par e o segundo do último par não são nunca objecto de repetição, mas somente de variação. Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis

Ainda segundo Tavani, utilizam este modelo linear de paralelismo e de repetição todas as cantigas de Martin Codax, uma parte importante das cantigas de Johan Zorro, Martin de Ginzo, Pero Meogo, Nuno Fernandez Torneol, muitos textos de D. Dinis, a célebre canção de Mendinho Siia meu na Ermida de San Simion, e algumas canções mais, ou seja um número muito importante de cantigas. Há no entanto outros esquemas paralelísticos mais flexíveis, sobretudo depois de 1240, quando Castela se torna o centro trovadoresco na Península, e assim mais maleáveis ao discurso poético e, porventura, às exigências musicais. Um exemplo de aplicação deste modelo é a cantiga de D. Dinis “Nom chegou, madre, o meu amigo,”, tal como poderia ser a célebre cantiga “-Ai flores, ai flores do verde pino,”.

Nom chegou, madre, o meu amigo, e hoj'est o prazo saido; ai madre, moiro d'amor!

E hoj'est o prazo saido; or que mentiu o desmentido? ai madre, moiro d'amor!

Por que mentiu o desmentido, pesa-mi, pois per si é falido; ai madre, moiro d'amor!

Nom chegou, madr', o meu amado, e hoj'est o prazo passado; ai madre, moiro d'amor!

E hoj'est o prazo passado; por que mentiu o perjurado? ai madre, moiro d'amor!

Por que mentiu o perjurado, pesa-mi, pois mentiu per seu grado; ai madre, moiro d'amor!

A regularidade dos cantares d’amigo também se manifesta: 1. no número de estrofes, normalmente três ou quatro61, ou no caso das cantigas paralelísticas, que descrevemos acima, 61

Há cantigas nos cancioneiros com apenas uma ou duas coblas, mas muitos estudiosos pensam que corresponderão a poemas incompletos, já que a Arte de Trovar não contempla tal possibilidade. 35

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entre seis a oito, pois o próprio esquema de paralelismo o exige; 2. no número de versos por cada estrofe, sendo três62, seis ou sete versos o mais comum; 3. nos modelos de rima em cada cobla, repetidos em muitos poemas – ver anexo. 4. no facto de quase todos os cantares d’ amigo serem isossilábicos entre estrofes, se permitirmos equivalências do tipo n’=n, como os trovadores permitiam, jogando com situações de rimas agudas e de rimas graves que em muitos casos alternam; Outrossi as cantigas, come o disse, [podem] fazer em rimas longas ou breves ou em todas mesturadas. …Porque convém que o trobador que trobar quiser, se começa em longas ou per curtas sílabas, que per elas a acabe; pero que poderá meter na cobra das ũas e das outras, se quiser, atanto que, per qual guisa as meter em ũa cobra, per tal guisa as meta nas outras. Pero convém que, como as meter, que assi as faça rimar longas com longas e curtas [com curtas]. Arte de Trovar em Cancioneiro da Biblioteca Nacional

5. no recurso frequente ao refram - segundo Tavani quase todos os cantares d’amigo (468 93%)63 utilizam o elemento refram, o que constitui uma percentagem enorme, ao contrário do que acontece nos cantares d’amor64; 6. na utilização da fiinda65, não tão frequente como o refram, mas ainda assim como presença significativa (112 - 26%)66 7. na utilização de processos repetitivos de dobre67 e mozdobre68; 8. o recurso a palavras-rimas e a rimas derivadas69 9.recurso a esquemas fixos na forma como as rimas se repetem ao longo das coblas70. Os trovadores criam assim composições que exploram e intensificam as virtualidades rítmicomusicais do discurso poético. Todas estas técnicas parecem além do mais facilitar a memorização e o canto. E, como sabemos, os cantares assim eram chamados porque eram cantados, sendo intermediados com música dedilhada. Observa-se também que existe para alguns autores, para além de um isomorfismo de género que descrevemos, uma muito grande congruência intertextual, podendo mesmo atribuir-se à série de cantigas que escreveram valores semânticos próprios. Entre outros, é caso de Martin Codax, cujas sete cantigas d’amigo aparecem sempre ordenadas da mesma forma em todos os testemunhos, como se de uma série assim pensada se tratasse, e onde a sequência parece enriquecer a semântica do conjunto. O mesmo se pode dizer de outros autores. Só através da leitura da série na sua totalidade parece possível ultrapassar a interpretação fragmentária dos textos individualmente considerados, e decifrar correctamente a alusão ritualística de certas fórmulas que se repetem.

Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis

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Três versos por cobla é o modelo mais habitual nas cantigas paralelísticas. Nós contámos 462 – ver anexo – não sabemos a que se deve esta pequena diferença, talvez à classificação diferente de alguns poemas (por exemplo pastorelas) como cantigas d’amigo. 64 As cantigas sem refram são chamadas cantigas de mestria por oposição às cantigas de refram. 65 A finda (fiinda) termina o poema, constituindo uma espécie de conclusão, buscando a máxima unidade conceptual e formal do poema em poucos versos. 66 Contámos 112 casos – ver anexo 67 O dobre consiste na repetição de uma palavra várias vezes numa cobla. 68 O mozdobre consiste numa rima derivativa, usando formas diferentes de uma mesma base verbal. 69 Palavra-rima: utilização da mesma palavra em posição de rima (confunde-se às vezes com o dobre); Rimaderivada: emprego de formas diversas da mesma palavra em posição de rima (confunde-se, às vezes, com o mozdobre). 70 Tipos de coblas: coblas unissonantes: a mesma rima em toda a estrofe; coblas singulares: a rima varia a cada estrofe mas respeita normalmente a rima masculina e feminina; coblas duplas: a mesma rima num par de estrofes e diferente no par seguinte; coblas alternadas: os versos ímpares têm uma rima e os pares outra; coblas encadeadas: acaba uma estrofe com una rima e começa a seguinte com a mesma rima. 63

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A narração dramática intradiegética71, baseada em monólogo, constitui o modelo fortemente dominante dos cantares d’amigo, mas há também alguns exemplos de diálogos. Nesses poucos cantares dialogados, a protagonista dialoga com a mãe72, com uma amiga confidente73, e até com o seu amigo, construindo, neste último caso, um objecto híbrido, onde parecem misturar-se dois géneros74. Mas os elementos narrativos são sempre escassos e os poemas curtos. Merece referência especial o poema dialogado - Ai fremosinha, se bem hajades do jogral Bernal de Bonaval, pela sua singularidade, que o transforma em objecto único. Apesar de ser considerado uma cantiga d’amigo, a primeira voz no diálogo não é identificada, embora pareça ser masculina. Alguns estudiosos dão relevo a este poema, como podendo constituir uma forma de um jogral mostrar que um poema poderia ter um protagonista independente, que não coincide com o amigo e, assim, da mesma forma, o autor pode não ser a personagem “amigo”, validando socialmente com este artifício os seus cantares d’amor. Se não fora assim, eles poderiam ser interpretados como uma ousadia inaceitável de um não nobre.

5.2.2 Campos sémicos nos cantares d’amigo Quase todas as cantigas apresentam um pequeno preâmbulo, tal como nos cantares d’amor, normalmente composto com um ou dois versos, que dão desde logo o tom da composição, centrado quase sempre no elemento lexical “amigo” em todas as suas combinações. São também comuns os vocábulos “madre” e “irmã”, no caso da mãe ou de uma irmã desempenharem um papel importante no que diz a dama. O seu ofício [das madres] é guardar, precaver, admoestar, castigar quando as filhas se demoram na fonte ou na igreja, teimam em ir à romaria, ou voltam do bailado com o brial roto. Compassivas e favorecedoras do amante só por excepção e cálculo, mostram-se ciumentas e rivaes das filhas de longe em longe. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Cancioneiro da Ajuda

A citação de Carolina Michaëlis denota o principal papel atribuído à madre nas cantigas d’ amigo, o papel de guardadora, mas podendo também desempenhar o papel de cúmplice, de favorecedora dos encontros amorosos e, “de longe em longe”, o de “rival” da filha75. Já o papel da irmã (por vezes de uma amiga) é sobretudo de confidente dos lamentos ou das felicidades da amiga. Segundo Tavani, 71% das cantigas d’amigo são assinaladas desde o primeiro verso com um dos vocábulos distintivos do género76. Tal valor, só por si, poderia constituir uma primeira

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Para além da narração dramática, intradiegética, que é muito dominante, encontram-se alguns exemplos de narração heterodiegética omnisciente de que é um exemplo [Levou-s'aa alva], levou-s'a velida de Pero Meogo, ou poemas com narração mista de que é um exemplo Sedia la fremosa seu sirgo torcendo de Estevan Coelho. 72 São os diálogos mais comuns e aparecem muito cedo com Johan Soarez Coelho e Pero da Ponte, à volta de 1230. 73 Estes diálogos são os que aparecem mais tardiamente, já no último quartel do século XIII. 74 É o caso das cantigas - Ai meu amig'e meu lum'e meu bem de Afonso Anes de Cotom ou - Amig', havia queixume de Martin Padrozelos. A primeira data ainda do segundo quartel do século XIII, sendo por isso ainda um exemplar da primeira geração de cantares d’amigo. 75 Há cantigas d’amigo onde a madre parece ser a protagonista, como na cantiga Ai mha filha, por Deus, guisade vós de Johan Airas de Santiago, onde é a mãe quem aconselha a filha sobre como conduzir a sua relação de amor com o amigo. Podem identificar-se outros papéis principais. Alguns autores defendem por isso que os cantares d’amigo podem dividir-se em quatro subgéneros, em função precisamente do protagonista: 1.de amiga enamorada, 2. de madre, 3. de narrador e 4. de amiga confidente. O primeiro género domina fortemente e corresponde a cerca de 86% do total de cantigas d’amigo; as cantigas de madre representam apenas cerca de 6% do total e os outros dois subgéneros ainda menos um pouco. 76 No anexo deste trabalho mostramos que há 362 versos nas cantigas d’amigo com rima em “igo”, o que também evidencia a importância de assumpção do género pelos poetas. 37

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evidência, quer da homogeneidade formal que mencionámos, quer da clara distinção de género. Tavani identifica nas cantigas d’amigo quatro campos sémicos primários. A paisagem77 é na sua opinião um quinto campo, mas secundário e opcional, e que, por isso, nem sempre aparece. De facto, as referências à natureza, se aparecem nas cantigas, parecem desempenhar um papel onde se mistura o carácter real e simbólico. Os quatro campos sémicos primários não são compatíveis entre si, como veremos, e vai haver portanto apenas algumas combinações possíveis: 1. O panegírico é o único campo compatível com todos os outros, inclui um elogio da dama, utilizando muitas vezes fórmulas idênticas às do campo equivalente nas cantigas d’amor, mas acrescenta algumas vezes o auto-elogio da habilidade poética do amigo78. Se a protagonista for nomeada, é-o normalmente por amiga ou filha. Mas, mais uma vez nas palavras do próprio Tavani, o panegírico apresenta frequentemente “uma mais acentuada corporalidade da mulher, ainda que continuando limitada a elementos genéricos: corpo velido, corpo delgado, cos bem talhado, en cabelos, miàs garcetas.” 2. O amor não correspondido é um campo incompatível com os dois campos seguintes, por razões óbvias. Abunda em séries lexicais que caracterizam um amor de mulher que não encontra eco no seu amante: a separação, o abandono, a infidelidade, o ciúme, o sofrimento. O afastamento é motivo de martírio frequente, tal como acontecia nos cantares d’amor, mas aqui é o amigo quem o comanda. Este campo aparece nas cantigas que mais podem ser vistas como o reverso do cantar d’amor. A mulher expressa os mesmos sentimentos e sofre coita equivalente à que o trovador sofria, ainda que algumas vezes pareça ultrapassar o que seria considerado aceitável no código do fin’amor: a mulher recorre à repreensão, ao impropério, à ameaça, às lágrimas à vingança perante a rival. 3. A concórdia de amor ou o amor correspondido é um campo que, como se esperaria, tem poucas correspondências com os campos sémicos das cantigas d’amor. Aparece em alternativa ao campo anterior. A marca específica, e que não aparece em nenhum outro, é a de felicidade, a que corresponde uma série lexical inédita que expressa a alegria dos amantes: andar ledo, seer tan ledo, ficar ledo, tan ledo, leda dos amores, 77

Verifica-se que há nas cantigas d’amigo um enquadramento ambiental e geográfico mais concreto e menos vago do que nas cantigas d’amor. Nestas as referências ou não existiam ou resumiam-se a algo tão vago como “o lugar em que se encontra a minha senhor”. Esta constatação leva Tavani a considerar a existência de um campo sémico secundário de paisagem, normalmente nas suas palavras “uma paisagem bucólica primaveril, dominada pelo verde da erva, rica de árvores em flor, sobretudo pinheiros e avelaneiras, com algumas romãzeiras, semeada de nascentes e fontes, e atravessada por um ou outro rio e povoada exclusivamente por pássaros, de que todavia se não precisa a espécie…e para além dos pássaros, resume-se aos veados “ e ainda com referência algumas vezes a outros elementos naturais como o mar, lagos, ou a lugares conhecidos, como por exemplo capelas ou igrejas, mas quase sempre lugares isolados, não urbanos, próprios portanto para encontros amorosos mais ou menos secretos. Tanto a ermida como a ambientação naturalista – que, por vezes se complementam na construção do cenário do encontro amoroso – assinalam espaços que, quer pela distância real e psicológica que separa o ermo do mundo humanizado e socializado, quer por se encontrarem dominados por forças atávicas e poderosas da Natureza e das obscuras divindades que a habitam, se subtraem à ordem humana, social e divina instituídas. M. Rosário Ferreira, Águas Doces, águas salgadas 78

Segundo Tavani os poetas que usam este expediente são quase todos comprovadamente jograis, compreendendo-se melhor a sua necessidade de realçar a habilidade poética do amigo. FLUP- 2014

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rir, aver prazer, folgar, lezer, solaz, guarir, querer bem, fazer-aver bem, fazer prazer, etc, como o poema “Filha, de grado queria saber”, de Johan Baveca expressa: Quero-lh’eu ben e que-lo el a mi, E bem vus digo que non a mais i, …

Muitas vezes as palavras parecem adquirir um sentido claramente eufemístico, que encobre valores eróticos que se subentendem - os sintagmas fazer bem e fazer prazer são os mais frequentes - como na cantiga de Johan Airas de Santiago: Que mui de grad'eu faria prazer ao meu amigo, … Faria-lho mui de grado, porque sei que me deseja …

Podem aparecer neste campo também elementos lexicais ligados ao segredo do amor: non dizer, guardar-se de saberen, encobrir-se, etc., tal como acontecia nos cantares d’amor, mas que neste caso serve para proteger a intimidade dos amantes e não para esconder o amor do trovador da sua senhor. 4.

A proibição tem alguns elementos lexicais comuns com o campo do amor não correspondido, pois a dama sofre igualmente, ainda que por uma razão diferente, pela proibição do encontro. A proibição pode tanto ser devida a deveres ou a razões de força maior do amigo, que o obrigam a viajar por exemplo79, como protagonizada pela figura da mãe. À proibição correspondem elementos lexicais específicos como “non pode falar migo nem veer-me” ou outras formas em que é comum o sintagma verbal “non pode”. A esse impedimento exterior são também muitas vezes associadas formas com o verbo guardar: guardan-me, guardada, mi guardou, etc. A rebelião da mulher contra essa proibição pode assumir muitas formas, chegando a desobediência pura, como no cantar de Johan Soarez Coelho: Hoje quer'eu meu amigo veer, porque mi diz que o non ousarei veer mia madre; de pran, veé-lo-ei … A escolha entre a permanência no cosmos conhecido e seguro e o impulso em direcção ao espaço exterior, desconhecido e desejado mas, ao mesmo tempo, temido, está subjacente a muitas composições, sendo matizada de variadas colorações emocionais.

M. Rosário Ferreira, Águas Doces, águas salgadas

É possível no entanto encontrar uns quantos cantares d’amigo que parecem destoar, por não se circunscreverem facilmente ao modelo e aos campos sémicos de Tavani. Destes podemos destacar as três cantigas d’amigo de Pae Soarez de Taveiros, que parecem subverter o esquema, quando a dama adopta um discurso agressivo, irónico e crítico relativamente ao amigo e parece assumir o controlo da acção, o que tanto pode ser interpretado como um regresso ao modelo de poder dos cantares d’amor e, nesse caso, como uma cedência ou um retrocesso, ou como um passo mais no sentido da mulher não só falar, mas comandar o 79 Enquanto a dama permanece no seu local, muitas vezes indefinido e resumido a um simples “aqui”, onde espera ou desespera, é o amigo que se move, por ali e alhures, e muitas vezes é essa liberdade de movimento que lhe permite controlar a acção amorosa.

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desenvolvimento da acção, como se verdadeiramente o trovador estivesse a expressar o que uma dama lhe pede para expressar. Poderá parecer no entanto surpreendente esta ruptura no modelo tradicional em Taveirós que terá composto as suas cantigas d’amigo durante a primeira década (entre 1220 e 1230).

5.3 Os cantares d’amigo e os seus leitores Poderá, uma vez mais, a pintura ajudar-nos a responder a esta questão intrigante: “Afinal por que razão há tantos poemas em galaico-português, na Baixa Idade Média, onde o poeta masculino fala com uma voz feminina?”. Existem cerca de 500 textos com uma voz adoptada de mulher, em cerca de 1700 conhecidos80, e uma percentagem tão elevada de cantares em voz feminina não pode resultar de factores circunstanciais, não pode deixar de ser considerada como muito significativa. As interpretações deste fenómeno original e singular, que apresentámos neste trabalho, transcrevendo o que lemos em diversas fontes de diferentes autores, parecem muitas vezes contradizer-se, ainda que, ao mesmo tempo, como já dissemos, no nosso modesto entender mas também porventura na nossa ignorância, possam eventualmente completar-se. Como a nossa distância mental do século XIII feudal, senhorial, dificulta a compreensão do fenómeno, poderá o recurso, uma vez mais, à história da pintura abrir alguns horizontes? Tentemos! John Berger tem um ensaio onde discute o papel do nu feminino na pintura ocidental. Faz parte do seu livrinho Ways of Seeing, que já serviu para nos ajudar a tentar compreender o fenómeno dos cantares d’amor. A certa altura nesse ensaio, ele escreve: In the average European oil painting of the nude the principal protagonist is never painted. He is the spectator in front of the picture and be is presumed to be a man. Everything is addressed to him. Everything must appear to be the result of his being there, it is for him that the figures have assumed their nudity. But he, by definition, is a stranger - with his clothes still on.

E o autor prossegue o seu raciocínio: Consider the "Allegory of Time and Love" by Bronzin. The painting was sent as a present from the Grand Duke of Florence to the King of France. The boy kneeling on the cushion and kissing the woman is Cupid. She is Venus. But the way her body is arranged has nothing to do with their kissing. Her body is arranged in the way it is, to display it to the man looking at the picture. This picture is made to appeal to his sexuality. It has nothing to do with her sexuality. Women are there to feed an appetite, not to have any of their own.

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Nestas contas teremos ainda de considerar que nem todos os 1700 textos conhecidos têm como tema o amor. Existe por exemplo nesse total também um número significativo de cantares d’escárnio e maldizer (cerca de 30) ou de cantares de tenção (cerca de 30) e mais alguns subgéneros pouco representativos onde o tema pode não ser o amor. FLUP- 2014

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Figura 7 – Allegory of Time and Love" de Bronzin,c. 1545 It is true that sometimes a painting includes a male lover. But the woman’s attention is very rarely directed towards him. Often she looks away from him or she looks out of the picture towards the one who considers himself her true lover - the spectator-owner.

E John Berger indica-nos, como exemplo do que acabou de afirmar, o quadro Bacchus, Ceres and Cupid, de Hans von Aachen.

Figura 8 – Bacchus, Ceres and Cupid, de Hans von Aachen, c. 1600 Almost all post-Renaissance European sexual imagery is frontal - either literally or metaphorically because the sexual protagonist is the spectator-owner looking at it.

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Foi o curioso ensaio de Berger, sobre o nu feminino na pintura europeia, que nos sugeriu a possível aproximação, porventura despropositada, entre os cantares d’amigo e a pintura e, dessa forma, talvez possibilitar uma outra leitura sobre o fenómeno das vozes “femininas” nos cantares trovadorescos. Tal como acontece na pintura, e Berger ilustra-o bem no seu texto, também num poema podemos identificar vários papéis. Temos obviamente o autor e o texto do poema. O texto do poema dará vida às suas personagens, se elas existirem. Mas existe um terceiro elemento sempre presente e muito importante: o leitor (ou ouvinte), tal como existia o observador da pintura, como Berger realça. Ora, poder-se-á supor que a maioria dos leitores (e ouvintes) de poesia medieval seriam homens, por razões várias e até porque a iliteracia feminina seria bastante maior do que a masculina na Idade Média. Sendo isso verdade, podemos imaginar que um poema de amor, escrito para ser lido e ouvido maioritariamente por homens, teria um muito maior impacto sensual e sexual se aparecesse ao leitor ou ouvinte como escrito por uma mulher. Não a mulher fria e distante dos cantares d’amor mas a amiga apaixonada dos cantares d’amigo. Tal como os nus femininos eram pintados para ser vistos por observadores masculinos. Tal como na pintura, a poesia parece poder estar ao serviço do desejo masculino, o que não será de estranhar, pois os trovadores e jograis, tal como os pintores, eram homens.

6. Conclusões Tal como realçámos, logo quando começámos a escrever este trabalho, ele pretendeu alcançar a qualidade de uma espécie de relatório do nosso processo de aproximação e de aprendizagem dos cantares trovadorescos. Apesar de focado nos cantares d’amigo, escolhidos pela sua singularidade e pela sua especificidade do espaço galaico-português, sentimo-nos obrigados, na descrição desse tal processo de aprendizagem, a também viajar pelos cantares occitânicos e naturalmente pelos cantares d’ amor que constituem, sem sombra de dúvidas, se não a fonte, pelo menos uma das fontes dos cantares d’amigo. Tentámos discutir o contexto social e político e a origem das cantigas d’ amigo, apresentando não só as hipóteses discutidas em sala de aula, mas todas as outras que conhecemos durante o nosso estudo, ao ler de autores diversificados, mesmo se antagónicas. Tentámos também caracterizar as cantigas d’amigo de um ponto de vista poético e literário. Realçando mais uma vez o carácter de não-investigação deste trabalho, não nos coibimos de aqui e ali dar uma pincelada de ponto de vista, quase sempre partindo das opiniões dos autores que lemos e recorrendo depois à nossa intuição, tirando partido da liberdade que um trabalho como este nos dá. Verificámos finalmente que, se o universo das cantigas é bastante limitado no espaço e no tempo e sobretudo no número de cantigas conhecidas, reunidas em três cancioneiros, existe ainda um sem número de questões por esclarecer. As respostas que se procuram continuam a obrigar a um estudo aprofundado da época, de que se sabe ainda pouco, podendo as cantigas ser por um lado uma fonte importante de estudo histórico e por outro ter a sua interpretação enriquecida com novos conhecimentos históricos dessa época. FLUP- 2014

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Ou seja, está quase tudo por fazer? Ou estaremos a exagerar? Restar-nos-á apresentar como argumento final, para justificar mais do que certas falhas nossas, o que Fr. João Álvares escreveu no seu Tratado da vida e dos feitos do muito vertuoso Senhor Infante D. Fernando: O que vos parecer digno de repreensão ou de corregimento seja posto à minha ignorância e simpleza, e não a outro malicioso engano.

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