CAÇA E PODER NO DISCURSO MUSIVO AFRO-ROMANO

May 28, 2017 | Autor: Regina Bustamante | Categoria: Roman North Africa, Political Power, Roman Mosaics
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CAÇA E PODER NO DISCURSO MUSIVO AFRO-ROMANO Prof.a Dr.a Regina Maria da Cunha Bustamante

Introdução Até meados dos anos 1960, a História privilegiava como fonte de informação os textos escritos com os quais o historiador se sentia mais à vontade (GASKELL, 1993, p.237). As imagens eram consideradas quase como que “fotografias”, quer de fatos históricos, quer da “vida cotidiana”, reduzindo-as à condição de confirmar ou não um texto escrito (METZ, 1973, p.12-13). Tradicionalmente, os historiadores da Antigüidade utilizavam a cultura material para extrair uma informação pitoresca sobre a vida privada e a arte, visando complementar ou ilustrar a história “real” advinda da documentação escrita1. A partir de meados dos anos 1960, surgiram novas perspectivas de abordagem da imagem. Historiadores, antropólogos e arqueólogos, participando das grandes discussões referentes aos saberes relativos às Ciências Humanas, ao tratarem de problemas ligados a teoria e métodos dos referidos saberes, levantaram questões relativas à comunicação social, à circulação e aos significados das mensagens. Os historiadores da Antigüidade sentiram a necessidade de se aproximarem das teorias da Comunicação e da Semiótica ao trabalharem com imagens, na medida em que estas constituíam parte significativa da documentação existente do período estudado. Atentaram, pois, para a relação entre imagem e mensagem, considerando a primeira como “texto” permeado de um código visual, construído socialmente através dos seus elementos icônicos. Nesta perspectiva, as imagens produzidas pelas sociedades antigas tornaram-se suportes de informação – documentos históricos – tão importantes quanto os textos escritos. A imagem é uma maneira de se reconhecer e se elaborar o dado sensível (THEML, 2002, p.17), porém não numa perspectiva isomórfica em relação ao real. Ela se insere na ordem do texto, no sentido em que precisa ser lida para ser compreendida. Para tanto, os historiadores devem deixar de ser “visualmente analfabetos” (BURKE, 2004, p.12). Seria simplista considerar que a escrita e a imagem sejam um todo homogêneo de tal forma que se possa passar o olhar de um a outro: o texto escrito e a imagem textualizada apresentam duas formas de apropriações diversas, em termos de interações e de comunicações sociais. Esta distinção se baseia não apenas na forma material dos suportes (papiro, livro, vaso, tinta, pedra, etc.), mas por existirem diferentes lugares de produção e usos sociais e culturais assim 

Professora Associada e pesquisadora do Laboratório de História Antiga (LHIA) e do Instituto de História da UFRJ.

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como por possuírem códigos diferentes. O texto escrito estava restrito aos círculos aos quais se dirigia (ao teatro, ao simpósio, aos discípulos; nada parecido com o jornal ou as midia no mundo contemporâneo); as imagens, pelo contrário, proliferaram quase como um discurso social anônimo e de amplo alcance, levando, por exemplo, a presença de Augusto aos municípios mais longínquos do Império Romano através das moedas, estátuas, camafeus... (ZANKER, 1990) A imagem se inseria ainda, e muito mais profundamente que a escrita, na vida cotidiana do mundo clássico, recontando narrativas míticas, nas quais se apresentavam deuses ou reis, mas também familiarizando seus integrantes uns com os outros através de representações de situações vivenciadas e idealizadas. No presente estudo, privilegiou-se o modo de produção de sentido da imagem através da sua interpretação, ou seja, como provocam significações, suas mensagens. Desta forma, a imagem torna-se um signo, pois, exprime a relação entre o significante e o significado que se transforma em idéias e demanda dos seus leitores uma atitude interpretativa. Tal como o signo, a imagem está no lugar de alguma coisa para alguém e possui alguma relação ou alguma qualidade analógica desta coisa, constitui-se, portanto, numa representação visual. Apresenta-se como uma ferramenta de expressão e comunicação, pois transmite uma mensagem visual para outro, composta de diversos signos, sendo então passível de interpretação; é, portanto, uma linguagem (JOLY, 1997, p.48). O produtor da imagem encontra-se numa relação dialógica com a sociedade na qual está inserido: produz por diversas motivações culturais e sociais e seus produtos retornam à sociedade reforçando, criticando ou formulando novos valores e práticas. Dificilmente, alguém cria alguma coisa que não seja compreendida, que não tenha um significado para os membros da sociedade em que vivem (ECO, 2004b). Seguindo Bérard (1983, p.5-37), consideramos que as imagens correspondem a uma narrativa e seus criadores as fizeram a partir de um repertório comum de elementos estáveis e constantes na sua sociedade. A combinação destes elementos constitui-se numa imagem de conteúdo narrativo. Através destas combinações associativas, podemos passar da relação de referência à relação de significação, daí a pertinência da aplicação da leitura semiótica. Eco (2007a) defendeu o papel ativo do intérprete na leitura de textos dotados de valor estético. Este aspecto foi aprofundado em três ensaios (1991, 2004b e 2007b), em que abordou a idéia de Pierce da semiótica ilimitada. Porém, isto não implica dizer que a interpretação não tivesse critério nem que a interpretação fosse desprovida de objeto nem, muito menos, que corresse por si própria. No esquema pierceano (1992 e 2000), o signo mantém uma relação solidária entre os três pólos que compõem a dinâmica de qualquer signo

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como processo semiótico: o significante ou o representamen (a face perceptível do signo), o objeto ou o referente (o que é representado pelo signo) e o significado ou o interpretante (que depende do contexto do seu aparecimento e da expectativa do receptor). No presente estudo, aplicaremos este esquema para a leitura do mosaico ora selecionado, observando sua composição pictórica, seu conteúdo imagético e seu contexto de produção, objetivando inferir a interação entre o discurso visual e as relações de poder na sociedade afro-romano do período imperial.

1. Representamen ou significante: representação musiva A difusão do mosaico foi uma característica marcante do Império Romano: exemplares foram encontrados desde a Síria à Inglaterra. A África do Norte oferece uma rica coleção de mosaicos exposta tanto nos museus quanto in situ. Apresentam uma gama muito variada de temas (geométrico, floral e/ou figurativo) e cores (bicromático ou policromático). Por sua qualidade e quantidade, os mosaicos constituem-se em importantes suportes de informação deste período (KHADER & SOREN, 1987, p.132-135; FANTAR et al., p.16-59; FRADIER, 1997, p.9-20; LING, 1998, p.77-97; DUNBABIN, 1999, p.101-129). Desde o período púnico, já havia uma tradição musiva. Com o domínio romano, houve sua interrupção, embora subsistisse em algumas cidades púnicas. Por volta do final do século I e do início do II, mosaicistas criavam mosaicos geométricos em preto e branco com padrões muito simples, semelhantes aos italianos do mesmo período, relegando suas próprias tradições (GERMAINE, 1971, p.155-159). Durante a segunda metade do século II e o início do III, principalmente com a ascensão da Dinastia Severa (193-235) de origem afro-síria, quando as cidades da África Romana passaram por um período de prosperidade econômica, as suas oficinas se dissociaram dos cânones dos mosaicos italianos e estabeleceram seu próprio estilo com a gradual introdução da policromia nas bordas e da integração de elementos florais e geométricos (FOUCHER, 1959, p.263-274). Das regiões mais intensamente romanizadas da África Proconsular, os mosaicos se espalharam para o oeste em direção a Numídia e Mauritânia. Cada região desenvolveu seu próprio estilo e seus temas a partir das tradições locais. A representação do cotidiano oscilou entre o realismo, a caricatura e alguma idealização, recorrendo em certas ocasiões ao uso de cenas mitológicas. A predileção por assuntos tomados da vida real e a forma de representação com distribuição de cenas trabalhadas em cores sobre uma ampla superfície branca não diferenciada são características distintivas do “estilo musivo africano”, que chegou a sua maturidade a partir do século III e se difundiu pelo Império Romano (CARANDINI, 1967, p.93-120; FANTAR et al., 1994, p.59 e

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240-259). Os mosaicos eram realizados pelas oficinas especializadas localizadas da região costeira de Cartago a Tanger, que produziam uma grande quantidade de mosaicos policromáticos, geométricos, florais e figurativos com desenhos sofisticados em fundo branco. O pertence

mosaico

em

análise

“estilo

ao

musivo

africano”. É um mosaico figurativo dividido em três níveis horizontais superpostos



originalmente,

seriam quatro, contudo o nível mais

inferior

não

sobreviveu

(YACOUB, 1993, p.189, n. 172). Utilizaram-se

tesselas

policromáticas em fundo branco. De

formato

retangular,

suas

dimensões são 3,15m x 1,63m. Não possui inscrições musivas. Atualmente, compõe o acervo do Museu Nacional do Bardo da Tunísia (Inv. 3231).

QUONIAM, 1959, p.109-122; YACOUB, 1993, p.189-190 e fig. 166, p.235; FANTAR et al., 1994, p.137-139; KHADER, BALANDA & URIBE ECHEVERRÍA, 2003, fig. 155 e p.525, fig. 364 e p.537.

2. Objeto ou referente: caçada aristocrática No registro superior do mosaico, ao fundo, há uma construção em forma semicircular com um pavilhão central e dois laterais que são interligados por uma galeria de dois andares em arco. Atrás do pavilhão central, oito árvores com copas coníferas distribuem-se simetricamente, enquanto, na frente de cada pavilhão lateral, há uma árvore com duas

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ramificações frondosas, sendo que, na da esquerda, está amarrado um cavalo. Próximo a este, num chão com relva baixa e esparsa, há, em pé, um homem de cabelos curtos castanhos e imberbe, vestido com uma túnica curta colorida e manto sobre o ombro esquerdo e portando faixas, as fasciae crurales, para proteger as pernas e nos pés, botas de cano curto. Um pouco mais atrás, à direita, há um altar, onde arde um fogo. O homem segura a lança com uma das mãos e a outra está estendida, na mesma direção do seu olhar, para outro homem2, que está com a cabeça virada para aquele que lhe aponta a mão. Ele veste uma túnica curta e porta uma bolsa atravessada ao peito. Com um dos pés apoiados na pedra, prepara a corda e tem ao seu lado um cão com coleira, que fareja o chão. Na registro logo abaixo, num ambiente pedregoso, há dois cães com coleiras, que acossam um javali, que busca se defender. Próxima a um arbusto e acompanhando a cena, uma figura humana, em grande parte perdida, sendo visível apenas uma de suas pernas com as fasciae crurales, o outro pé com a bota curta e parte do ombro. Por fim, no registro mais inferior, daqueles que sobreviveram, também num ambiente predominantemente pedregoso, há um leão, identificado por sua juba já que as tesselas da sua cara se perderam, morde o dorso de um onagro (espécie de burro selvagem), fazendo-o sangrar e segura para baixo, com uma de suas patas, o pescoço da sua vítima. Um outro onagro, com a cabeça voltada para esta cena, está com suas patas anteriores levantadas, indicando galope na direção contrária da cena. O mosaico apresenta uma caçada para deleite da elite terratenente. Há diversos sinais diacríticos deste grupo social: a residência imponente3, o cavalo4, as roupas distintivas (túnica colorida e manto; o comprimento curto da túnica permitia liberdade de movimento para exercer a atividade de caça) e o assessoramento de um serviçal, que cuida do cão e do equipamento de caça. Tradicionalmente, nos textos imagéticos musivos afro-romanos, os cavaleiros eram acompanhados por suas matilhas de cães e por empregados, que serviam de guias, portavam a rede e a lança, colocavam as armadilhas, arrancavam o couro e a carne dos animais caçados e tratavam dos cães (BLANCHARD-LEMÈE et al., 1996, p.167-187; BUSTAMANTE, 2008, p.251-276). Justamente, em virtude desta última função, que Yacoub (1993, p.190) identifica os vestígios da figura humana do segundo registro do mosaico como sendo o valete do senhor. A caçada aristocrática distinguia-se dos outros tipos de caçada: caça de animal de pequeno porte para defesa das plantações pelos camponeses e para a alimentação; expedições de caça de animais em grande quantidade e variedade para os espetáculos no anfiteatro; as próprias caçadas na arena (venationes), que faziam o público partilhar das emoções da captura, o que era muito apreciado pela população e motivo de cuidados por parte das

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autoridades e das elites locais, que subvencionavam este tipo de espetáculo. A caçada aristocrática seguia um plano costumeiro: homenagem aos deuses protetores da caça, o que era recomendado no século II pelo historiador Ariano (Cinegética XXXIV) visando assegurar bons resultados5; a partida do grupo de caça; cenas de perseguição; a tomada da presa; e finalmente, o retorno. Um recurso, desenvolvido pelos mosaístas norte-africanos, para mostrar esta seqüência temporal foi a divisão em níveis sucessivos, como no presente caso. O mosaico em análise apresenta algumas destas etapas: sacrifício aos deuses, partida para caça e tomada da presa com auxílio de cães. Talvez, o quarto nível fosse o retorno com o javali, como representado em outros mosaicos6. Há, entretanto, a inserção de uma cena que figura com crueza os perigos da fauna selvagem da região: o ataque do leão ao onagro. Desde os tempos pré-históricos, a África era conhecida como terra de caça. A região era famosa pela riqueza da sua fauna tanto de grande quanto de pequeno porte, que foi figurada em diversos mosaicos antigos. Além disso, havia outras condições favoráveis para o desenvolvimento de uma vigorosa cultura de caça: uma longa tradição devotada a melhorar as linhagens de cavalos barbos7, típicos da região; e excelentes cães de caça, tais como o Sloughi (AYMARD, 1951, p.271-274) e o galgo, indispensáveis para uma caçada. Freqüentemente, os cavalos e os cães foram nomeados nos mosaicos 8, indicando a afeição dos seus donos por estes animais.

3. Interpretante ou significado: cinegética, atividade identitária da elite provincial afroromana

3.1. Contexto de aparecimento do signo: localização espaço-temporal Os mosaicos eram utilizados na decoração de obras públicas e de ricas residências (domus) da elite. Segundo Veyne (1990, p. 303), a arquitetura privada da elite, cristalizada na domus, é uma das criações mais belas da arte grega e romana. Um dos elementos decorativos mais admirados era os mosaicos de cores vivas nos chãos, nas paredes e nos tetos. Estes mosaicos não trouxeram apenas leveza às domus da elite local, decorando aposentos como se fossem afrescos e tapetes, mas também revelaram os prazeres aristocráticos, cujas repercussões sociais e políticas são relevantes para a compreensão da cosmovisão daquele grupo. A caça era um dos temas decorativos mais recorrentes nos mosaicos africanos antigos (BLANCHARD-LEMÉE et al., 1996, p.178-185), o que comprova a sua importância e valorização para aquela sociedade. O mosaico em foco decorava o cômodo de recepção de

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uma rica villa rural em Cincari (atual Henchir Toungar, Tunísia), cerca de 50 km da moderna Túnis. Sua datação é do século III9, período de grande prosperidade para a África Romana. A partir do século II, a viticultura e, em especial, a oleicultura expandiram-se pelas terras norte-africanas (DECRET & FANTAR, 1988; FÉVRIER, 1989/1990; JULIEN, 1994; MAHJOUBI, 1983, p.473-509; MANTON, 1988; PICARD, 1990; RAVEN, 1984) Verdadeiras florestas de oliveiras passaram a cobrir a região. O plantio da oliveira foi particularmente bem sucedido, devido à peculiaridade da terra e às condições climáticas norte-africanas. Outros fatores também se conjugaram para a promoção deste processo: a conquista de novas terras para a produção cerealífera na Numídia tornou mais leve o encargo da África Proconsular; a crise da produção do vinho e azeite italianos; a política mais liberal de imperadores de origem provincial para com as regiões não-italianas; a existência de terras nas estepes que eram insatisfatórias para a triticultura, mas propícias para a arboricultura; e a rentabilidade do comércio do vinho e do azeite. A Lex Manciana10 estimulou a olivocultura, ao favorecer a exploração de terrenos adversos, como matagais, pântanos, estepes, terrenos acidentados e terras esgotadas pelos trigais. A produção de azeite norte-africano era exportada para o restante do Império Romano, em especial, para a própria cidade de Roma. Escavações arqueológicas submarinas em Óstia (RANDSBORG, 1991, p.128), porto de entrada para Roma, atestam a importância econômica da África no período da confecção do mosaico (século III). A prosperidade da região acentuou-se com a ascensão da dinastia dos Severos (193-235), de origem afro-síria, ao poder imperial (GONÇALVES, 2002), que promoveu um período de grande desenvolvimento para as províncias norte-africanas, materializado na intensa atividade edilícia (LEPPELEY, 1981).

3.2. Expectativa do receptor: caça, poder e prestígio A caçada ocorria no espaço da natureza, do selvagem, à margem do mundo civilizado. Nesta atividade, a superioridade humana era testada e comprovada ao capturar o animal em seu ambiente. Por mais astutas e rápidas que fossem a lebre e a raposa, por mais fortes que fossem o felino e o javali, por mais ariscos que fossem os pássaros, o homem os superariam. Rica em simbolismos (SCHNAPP, 1979, p.36-59), a caçada de animais pelos homens foi considerada pelos filósofos gregos Platão (Protágoras 322 b) e Isócrates (Panatenaico 163) como a garantia da identidade humana, fundadora da política e da vida dos homens em sociedade, permitindo-lhes livrar-se da bestialidade do mundo selvagem. Por outro lado, havia também o caráter de domínio e autoridade: os senhores a cavalo, escoltados por seus empregados e cães. A concepção decorativa da temática da caça exaltava o poder do senhor e

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lhe permitia assumir suas funções sociais dentro de um marco de prestígio. O senhor se distinguia pela vestimenta e por estar a cavalo. A roupa era uma forma de distinção social (AGOSTINHO. Sobre a Doutrina Cristã II, 25). Os grandes proprietários eram apaixonados por tudo que tivesse a ver com cavalgar e se entregavam à atividade da caça com prazer. A julgar pelos mosaicos afro-romanos, a caçada ocupava um lugar considerável na vida e no lazer da elite. O bispo Agostinho (354-430), em Contra acadêmicos I, 2, descreveu a vida de um de seus membros: “Tu passavas a vida, Romiano, em moradias esplêndidas, banhando-te voluptuosamente, em caças, em jogos, em festins”. É a mesma descrição expressa sucintamente em uma inscrição encontrada em Thamugadi (atual Timgad, Argélia): “Caça, banhar-se, brincar e rir: eis a vida”. (CAGNAT, 1912, p.70) Era essa idilicamente a vida da elite, aquela que deixou mais registros de si mesma, cuja fortuna se registrava nos magníficos mosaicos domésticos. Uma visão mais realista da caçada foi dada por Agostinho no Sermão LXX, 2: (...) sem se preocuparem com o frio e o calor, barrancos ou torrentes, feridas nas pernas ou mordidas, comendo miseravelmente e bebendo água muita suja. E tudo isto para receber um javali ou um cervo que alegra mais o coração do caçador quando vê o animal exposto, que propriamente pelo seu paladar quando o servem assado à mesa. Para o bispo católico, era incompreensível e motivo de repreensão a paixão pela caça. Esta postura se chocava com a tradição clássica, que considerava a cinegética um meio de tornar os homens mais virtuosos (XENOFONTE. A Caça 1, 5 e 12, 18) e aptos para a guerra (XENOFONTE. A Caça 12, 8-9,11 e15). Assim sendo, todo aquele que trilhava este caminho encontrava a saúde do corpo, aperfeiçoava a vista e a audição, retardava a velhice e, acima de tudo, educava-se para a defesa da sua pólis, tornando-se um bom soldado (XENOFONTE. A Caça 12,2-5). A caça estabelecia uma linha demarcatória entre a aristocracia e os outros grupos sociais (MOURA, 2000, p.68-71). A caça de pequenos animais era indigna para um aristocrata e ainda mais através de armadilhas, pois não envolvia o combate direto com a fera. O tipo de animal e a forma de caçá-lo eram sinais da superioridade do senhor. Platão (Leis VII, 823 e, 6-7; VII 824 a, 15-17) já condenava a caçada noturna de pássaros que empregava armadilhas, não lhe reconhecendo valor educativo nem virtude cívica; considerava-a pouco digna de um homem livre: uma cena cinegética sugere atividades corajosas (virtus) por parte da aristocrata. Yacoub (1993, p.144, n. 114) nos informa que o tema da caça às grandes feras constitui uma das criações mais originais e autênticas do “estilo musivo africano”, em particular, das oficinas cartaginesas

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cuja influência se estendeu até a Sicília. Há de se considerar a noção de perigo presente na caça às grandes feras. No próprio desempenho desta atividade, impunha-se um risco (calculado ou não) não só pelo enfrentamento caçador/caça, como também pelas condições adversas das áreas geográficas, onde essa prática era desenvolvida. Este risco era externado nos exemplos que os próprios caçadores tinham das narrativas dos heróis, muitos deles amantes da caça, cujas vidas terminaram muito mal (SCHNAPP, 1993, p.375-403 e 1997). A atividade da caça era típica dos deuses, heróis, príncipes e imperadores 11. Thébert (1990, p.392.) considera que este tema reproduz o modelo imperial, na medida em que a perícia da caça, em particular a do leão, era uma virtus do imperador, uma manifestação do favor divino e uma garantia de prosperidade para o mundo. Ao vencer a força animal, o imperador demonstrava sua potência, inteligência e destreza, elementos distintivos do poder. A caça ao felino seguia o modelo heróico e guerreiro ao oferecer ao governante a ocasião de demonstrar à coletividade sua coragem. Tal concepção ganha um significado ainda mais patente quando se sabe que a caça ao leão era monopólio do imperador até Honório (395423). Entretanto, o imperador poderia consentir a algum senhor caçar a fera imperial (CTh XV, 11, 1), levantando então a hipótese de que os mosaicos de caça ao leão poderiam retratar a concessão deste privilégio. Por outro lado, a elite afro-romana, ao se retratar em combate com as feras, em especial com o leão, chamaria para si o poder. Assim, nos mosaicos de caça, poderia estar presente a intenção de uma imitação respeitosa do modelo imperial ou a evidência de uma concorrência potencial entre o poder do imperador e o da elite local. Este tipo de decoração refletiria então que o senhor dentro dos seus domínios privativos era como um imperador em menor escala. Assim, a elite local construiria sua concepção de poder reproduzindo em nível de imagens e ritos cerimoniais, expressas nos mosaicos de caça, o poder imperial. A caça à fera exaltava sua força física do aristocrata, sua coragem e seu dom de caçador, capaz de dominar as feras. A cavalo, perseguia o animal, como nas expedições de caça do tipo imperial, ou derrubava a fera num confronto direto, digno das cenas heróicas; o senhor do domínio se apresentava como verdadeiro dominus, dominator. Era uma maneira de se aparentar, de se situar e de se identificar. A imagem desvelava a cultura; era enobrecedor se identificar, se lembrar da “sua memória” e se colocar ao lado daqueles que podiam e sabiam se lembrar: reconheciam-se apenas aqueles que tinham uma história que sabiam contá-la para seduzir e se fazer admitir.

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Conclusão Para Precheur-Canonge (1962) e Parrish (1979, p.281-283), a decoração musiva precisava o modo de vida da aristocracia, cuja riqueza advinha dos seus domínios rurais. Na mesma linha de interpretação, posiciona-se Sarnowski (1978): as imagens não se relacionavam, portanto, à realidade do ambiente imediato, a cidade, mas publicizava, nas salas de jantar (triclinium) ou de recepção (exedrae e oeci) destas domus urbanas a propriedade rural, fonte de riqueza e prestígio. Este aspecto social da arquitetura e decoração domésticas não escapava aos antigos: Vitrúvio (Tratado sobre a Arquitetura VI, 8) já atentava para a vinculação existente entre a planta das casas e o status social do seu proprietário. O arquiteto romano (VII, 5) ainda recomendava cuidado na adequação da decoração ao tipo de cômodo. Temas de caçadas decoravam lugares de recepção, onde se homenageavam os hóspedes e se recebiam os convidados; assim, o proprietário afirmava sua posição privilegiada frente à sociedade. Février (1981, p.95-101) destaca a função prevista das imagens, qual seja, a decoração concebida para fazer sonhar e reportar ao ócio rural, expressando uma sociabilidade condizente com a unidade cultural do Império Romano ao buscar manter as tradições e formas clássicas e utilizar um código visual comum com símbolos conhecidos no Mediterrâneo. Duval (1986, p.163-174) compartilha desta posição de Février. Para ele, os mosaicos reproduziriam alguns modelos e convenções, tais como perspectiva e atividades caracteristicamente mediterrâneas, dentre elas, a caça. Constatamos, no discurso musivo, o reforço da relevância da propriedade agrícola, na medida em que as relações de poder se fundamentavam na propriedade e exploração da terra. Para entendê-lo, é necessário inseri-lo no interior de uma cultura com matizes rurais e com a elite fundiária gozando de um importante estatuto sócio-político. Desde o Alto Império, predominou na África do Norte a grande propriedade. Tertuliano já o denunciava em Da Alma XXX: “Agradáveis domínios substituíram os desertos mais recalcitrantes, campos cultivados invadiram as florestas, rebanhos domésticos colocaram em fuga os animais selvagens.” Gradativamente, terrenos foram desmatados e transformados em campos de trigo, vinhedos e plantações de árvores frutíferas, sobretudo oliveiras, contendo também a casa do proprietário contornada por uma linha de aldeias, onde viviam os agricultores. Formaram-se imensas explorações agrícolas. Estas propriedades era fator de riqueza e prestígio social. Os mosaicos de caça na África Antiga coadunaram referências realistas e idealizadas da caça como forma de afirmação de prestígio por parte da elite, que encomendava estas obras. A própria natureza do suporte – o mosaico – constitui-se em um vetor para potencializar o status e o prestígio da elite em diversos momentos: nos gastos de recursos significativos para

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a decoração dos interiores de suas residências com opulentos pavimentos evidenciando assim o aumento da importância da esfera do privado, bem como uma maior hierarquização social e o crescimento de seu poder político em detrimento do poder central; na seleção dos temas retratados relacionados a um estilo de vida faustoso condizente com a fortuna da elite e expressando uma unidade cultural do Império Romano. A escolha da temática do mosaico não fica a critério exclusivo do mosaicista, mas era o resultado dos interesses e do gosto do cliente, que estava em situação de poder impor. Refletia, portanto, as necessidades da elite daquela sociedade. Através dos mosaicos, é possível inferir o estilo de vida da elite local e desvelar a imagem que a elite tinha de si própria. A temática cinegética estava condizente com a situação social que caracterizou este período.

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NOTAS 1

Ver críticas a esta postura em MENESES, 1984 e TRABULSI, 1990. Uma outra interpretação para este gesto (KHADER et al., 2003, p.537) é que o homem estaria estendendo a mão para alimentar o fogo do altar. Entretanto, há dois aspectos que refutam esta leitura: o altar está num plano mais afastado do homem e o jogo de olhares entre os dois personagens deste registro mostra uma interação. De acordo com Calame (1986), que analisou a representação da figura humana, e, em particular, do jogo dos olhares, na cerâmica clássica, os olhares não foram feitos por acaso. Inferiu, para as imagens da cerâmica grega, um jogo de olhares entre os elementos que compõem o enunciado icônico e o receptor. O estudioso deduziu três situações: o olhar de perfil, quando os personagens olham-se entre si, não se preocupando com o receptor nem se interessando pela sua presença; o olhar de ¾, quando o personagem, ao mesmo tempo, olha para a situação do enunciado – para o interior do texto – e para o receptor, como se o estivesse convidando a participar junto com ele da situação; e o olhar frontal, em que o personagem estaria diretamente voltado para o receptor e dialogando com ele. No mosaico em análise, os olhares entre os personagens são de perfil. 3 Slim (1994, p.139-140), ao tratar das representações campestres nos mosaicos afro-romanos, aventa a possibilidade, tal como Dunbabin (1978), de que a residência deste mosaico não seja uma representação realística de uma villa da região, pois se assemelha às representações pictóricas de villae italianas, oriundas do repertório de origem helenística. O autor ainda insere a villa deste mosaico no grupo musivo, datado entre o século II e o início do IV, que se caracterizava por ser um elemento secundário destes mosaicos, compondo a paisagem da ação (cenas de pesca, caça, atividades agrícolas...), distintamente dos mosaicos de períodos posteriores (e.g., mosaico do Dominus Iulius, ver BUSTAMANTE, 2002). Ressalta, entretanto, que a similitude arquitetônica das representações de villae em diferentes partes do mundo romano pode conter elementos da realidade local, não especificamente africana, mas mediterrânea para estas construções, convergindo para uma unidade cultural das elites provinciais durante o Império Romano. 4 Distanciava-se do modelo grego de Xenofonte (c. 427 a 355 a.C.) no seu tratado A Caça, em que a atividade de caça era desenvolvida basicamente a pé (FOX, 1996, p.136). 5 Além do presente mosaico, há um outro com o sacrifício aos deuses num altar antes da caçada: ele ficou conhecido como “A oferenda do grou para Diana e Apolo”: Proveniência: Sala de recepção (oecus) de uma residência em Cartago (Tunísia); Data: Séculos V-VI; Dimensões: 7,30m X 5,25m; Acervo: Museu do Bardo; Ref. Bibl.: BLANCHARD-LEMÉE et al., 1996, p.187, fig. 134; BUSTAMANTE, 2006, p.321-351. 6 Proveniência: Grande sala em abside de uma residência em Khartago (atual Tunísia); Período: Início do século IV; Dimensões: 8,50m x 7,00m; Acervo: Museu de Cartago; Ref. Bibl.: KHADER & SOREN, 1987, p.64, 213-217; BLANCHARD-LEMÉE et al., 1996, p.17; fig. 4a-b, p.22-23; fig. 133, p.186; fig. 147, p.200; fig. 157-159, p.212-213; LAVAGNE, BALANDA & URIBE ECHEVERRÍA, 2000, fig. 92 e p.215; KHADER, BALANDA & URIBE ECHEVERRÍA, 2003, fig. 156 e p.525 e fig. 170 e p.526; TROMBETTA, 2004, p.27; Proveniência: Khartago (atual Tunis, Tunísia); Período: Início do século IV; Dimensões: 4,14m x 3,55m; Acervo: Museu do Bardo. Ref. Bibl.: YACOUB, 1993, p.190 e fig. 167, p. 236; FANTAR et al., 1994, p.167; FRADIER, 1997, p.94-95; LING, 1998, fig. 65, p.92; TROMBETTA, 2004, p.240-241, pr. LXXII. 7 Os cavalos da região eram da raça barba, tipo de eqüino de pequena estatura, linha convexa entre a testa e o focinho, dorso proeminente, espinha dorsal com cinco vértebras lombares e garupa em declive, bem distinto do cavalo árabe-oriental de perfil retilíneo. A raça barba apresentava pontos positivos e negativos. No rol dos primeiros, havia: sua pequena exigência alimentar, sua maior docilidade para a domesticação, sua maior resistência para distâncias longas e a não preocupação com cuidados especiais no seu trato. Em contraposição, havia: sua mediocridade no salto, sua pouca capacidade de carga e menor velocidade em distâncias curtas. Porém, durante o período púnico, houve o cruzamento entre o barbo e o árabe, que resultou em um tipo de cavalo mais rápido. 8 Por exemplo, o cão Sagitta (flecha em latim) foi descrito como pernicies leporum (terror dos coelhos) e ainda se nomearam os cavalos Narcisus e Pallas Ivnior: Proveniência: Casa da Carruagem de Vênus em Thuburbo Maius (atual Henchir Kasbet; Tunísia); Período: Século IV; Dimensões: 1,45m x 1,51m; Acervo: Museu do Bardo; Ref. Bibl.: YACOUB, 1993, p.174; BLANCHARD-LEMÉE et al., 1996, p.182; KHADER, BALANDA 2

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& URIBE ECHEVERRÍA, 2003, fig. 143 e p.524; TROMBETTA, 2004, p.238-239, pr. LXII. Em outro mosaico, são nomeados os cães Ederatus e Mustela: Proveniência: Passagem central do oecus da Casa dos Laberii (também conhecida como Casa de Icário) em Uthina (Oudna, Tunísia); Período: Século IV; Dimensões: 2,31m x 1,81m; Acervo: Museu do Bardo; Ref. Bibl.: YACOUB 1993, p.112 e fig. 66, p.195; FANTAR et al., 1994, p.245; BLANCHARD-LEMÉE, et al., 1996, fig. 74, p.112; FRADIER, 1997, p.104-105; KHADER, BALANDA & URIBE ECHEVERRÍA, 2003, fig. 152 e p.525; TROMBETTA, 2004, p.250-251, pr. LXXVII. Para mais referências, ver BUSTAMANTE, 2008, p.257. 9 Há algumas divergências sobre a datação do mosaico: para Quoniam (1959) e Blásquez Martinez (1992), segundo quartel do século III; para Yacoub (1993), meados do século III; para Fantar et al. (1994) e Khader et al. (2003), século III; e, por fim, para Picard (1990), fins do século III e início do IV. Em vista da predominância do século III como elemento comum, optamos pelo século III. 10 A organização dos domínios no período imperial é conhecida principalmente através da Lex Hadriana e da Lex Manciana (originada do nome de Curtilio Mância, talvez procônsul da África na época do imperador Vespasiano, 69-79), que são os regulamentos de sua exploração. Há controvérsias quanto à abrangência da aplicação destes regulamentos: ao conjunto do ager publicus em todo o Império Romano, à África do Norte ou à região dos saltus imperiais do vale médio do Bagradas. Os dois documentos determinavam os direitos e deveres dos conductores, dos uillici e dos coloni. Os domínios eram arrendados a ricos e poderosos empreiteiros chamados conductores, que empregavam uillici para dirigi-los. Estes exploravam diretamente uma parte do domínio, na qual utilizavam o trabalho de escravos e de trabalhadores agrícolas além das corvéias devidas pelos coloni, que eram agricultores livres a quem os conductores sublocavam a maior parte do domínio. O contrato com os coloni estabelecia que estes tinham direito de uso de uma parcela de terra, que poderia ser transmitida por herança ou vendida contanto que o novo detentor não interrompesse o cultivo por dois anos consecutivos, em troca entregariam um terço de sua colheita (confere com o CIL VIII, 10570) e prestariam um número determinado de dias de corvéia (variável conforme o domínio, cf. CIL VIII, 10570 e 14428) na terra controlada diretamente pelos uillici. De acordo com CIL VIII, 14428, os produtos, entregues pelos coloni, seriam: trigo, cevada, vinho e azeite, um quarto de favas e um sesteiro de mel por colméia. 11 A caça sendo uma invenção divina, só poderia levar os homens para o caminho da perfeição. Vários heróis haviam conseguido, por meio dela, alcançar fama entre os homens e foram honrados pelos deuses ainda em vida. Xenofonte (A Caça 1,18-2.1) aconselha os jovens aristocratas a não a desprezarem. Cultivava-se, entre os membros da aristocracia, o princípio de que a caça deveria aparecer bem cedo na vida do jovem. (PLATÃO. Alcibíades 121e)

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