Caixa de Pandora: processos criativos em redes de colaboração

August 26, 2017 | Autor: Danilo Baraúna | Categoria: Photography, Contemporary Art, Video Art, Amazonia, Intersemiotic Translation, Videoinstallation, Videoart
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Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação. Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação Curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária

Danilo Nazareno Azevedo Baraúna

CAIXA DE PANDORA: PROCESSOS CRIATIVOS EM REDES DE COLABORAÇÃO

Belém-Pa 2013

BARAÚNA, Danilo Nazareno Azevedo Caixa de Pandora: processos criativos em redes de colaboração / Danilo Nazareno Azevedo Baraúna – 2013 65 f.: il. Color. 30 cm Orientadora: Profa. Dra. Lucilinda Teixeira Trabalho de conclusão de curso (Especialização) – Universidade do Estado do Pará, Curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária, 2012. 1. Arte Contemporânea paraense. 2. Imagem. 3. Espaço. 4. Caixa de Pandora. I. TEIXEIRA, Lucilinda. II. Universidade do Estado do Pará. Centro de Ciências Sociais e Educação. III. Título. CDD – 700.730

Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação. Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação Curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária

Caixa de Pandora: processos criativos em redes de colaboração

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará como requisito final para obtenção do título de Especialista em Estudos Linguísticos e Análise Literária, sob orientação da Profa. Dra. Lucilinda Teixeira.

Belém 2013

Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação. Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação Curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária

Danilo Nazareno Azevedo Baraúna

Caixa de Pandora: processos criativos em redes de colaboração

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Josebel Akel Fares Universidade do Estado do Pará Profa. Dra. Lucilinda Ribeiro Teixeira (Orientadora) Universidade da Amazônia Profa. Dra. Renilda Rodrigues Bastos Universidade do Estado do Pará

Data de Aprovação: 12/03/2013 Nota: 10

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Luiz e Marlise, e meus irmãos Rafael e Fabíola, minha família, maior fotaleza. Aos meus tios, primos e avós. Com especial agradecimento ao Tioi Paulo, Tia Alcina, Tia Edna, Tio Rubens, Tia Marluce, Tio José e aos meus avós Lélia (in memoriam) e Manoel. Aos amigos que passam pela minha vida e me fazem querer estar com eles a todo o momento. Nigel Anderson, Pedro Ivo, Rosiana da Paz, Tayanne Cid, Paulo Wagner, Anne Chagas e Rafael Reis. A Professora Lucilinda Teixeira, orientadora deste trabalho Ao professor Orlando Maneschy, pela orientação durante a graduação. Aos professores da Universidade Federaldo Pará e da Universidade do Estado do Pará. Aos artistas Cláudia Leão, Flavya Mutran, Mariano Klautau Filho e Orlando Maneschy, integrantes do grupo Caixa de Pandora, ao qual me debruçei nesse estudo. À Fundação Amazônia Paraense de Amparo à Pesquisa (FAPESPA) pela bolsa de iniciação científica concedida ainda na graduação e da qual os resultados geraram esta monografia.

O espaço é cheio de buracos: nós, as coisas, os mundos. A perfeição seria o espaço puro, fica ele a pensar com os seus buracos ... Mas isso, Sr. Espaço, é uma coisa tão impossível como a poesia pura. Mário Quintana

RESUMO Neste estudo buscamos identificar os modos de espacialização e expansão da fotografia e do vídeo em suas relações com o conteúdo literário no processo de criação do Grupo Caixa de Pandora e algumas ações individuais dos integrantes deste grupo nas décadas de 1990 e 2000. Atuamos metodologicamente de maneira a nos aproximarmos de uma Crítica de Processo, percorrendo a análise de documentos como dossiês de obras, portfólios, registros das instalações, fotografias e vídeos que compunham as instalações e entrevistas. Constatamos a presença de práticas poéticas a partir do que propomos chamar de Redes de Colaboração, interconectadas a partir de Nós de Interação, ou seja, pontos que servem de referência ao processo criativo de cada integrante do grupo e revelam em conjunto a identidade do Caixa de Pandora. Identificamos três Nós de Interação no processo criativo do grupo: 1) o processo de tradução do conteúdo literário, 2) a fotografia expandida e 3) espacialização da imagem. A identificação desse processo nos levou a encaminhar a análise das exposições levando em consideração os seguintes aspectos: 1) O trânsito intersemiótico entre literatura, fotografia e vídeo, principalmente no que se refere ao Mito de Pandora; 2) A construção dos personagens em imagem relacionando à fotografia expandida; 3) A interferência desses trânsitos de personagens e processos de tradução na escolha do modo de espacialização da imagem fotográfica ou videográfica. Essas imagens se espacializam em micro-espaços instalativos, macro-espaços instalativos e seus respectivos desdobramentos, perspectivas teóricas que estão intrinsecamente ligadas às especificidades do lugar onde esta imagem esteve instalada, articulando desde a presença de pequenos objetos até projeções que interferem no espaço físico expositivo. Lançamos a hipótese de que a tentativa de rearticulação de conteúdos literários foi um dos fatores responsáveis pela expansão da linguagem do vídeo e da fotografia nos trabalhos do grupo. O estudo dos processos criativos do Caixa de Pandora traz à tona algumas das primeiras experiências instalativas realizadas no circuito de arte paraense na década de 1990, instituindo, assim, um importante objeto de pesquisa na arte contemporânea no Pará e suas possibilidades de inserção no cenário artístico nacional. Palavras-Chave: Caixa de Pandora; Espacialização; Redes de colaboração.

Processos

de

tradução;

Modos

de

ABSTRACT This study aims to identify ways of spatializations and expansion of photography and video in its relations with the literary content in the process of creating the Pandora's Box Group and some individual actions of the members of this group in the 1990s and 2000. We operate methodologically in order to approach a Process Review, covering the analysis of documents as file works, portfolios, records of installations, photographs and videos that made up the facilities and interviews. We noticed the presence of poetic practice from what we propose to call Collaboration networks, interconnected from Interaction points, in other words, items that serve as reference to the creative process of each member of the group and together reveal the identity Pandora’s Box. We identified three points of interaction in the creative process of the group: 1) the process of translation of literary content, 2) the expanded photo and 3) spatializations of image. The identification of this process led us to forward the analysis of exposures taking into account the following aspects: 1) The traffic between inter-semiotic literature, photography and video, especially when it comes to the myth of Pandora; 2) The construction of the characters in the image relating expanded photography; 3) The interference of these transits of characters and translation processes in choosing the spatial mode for a picture or video image. These images are spatialized in installative micro-spaces, installative macro-spaces and their developments, theoretical perspectives that are intrinsically linked to the specific characteristics of the place where it was installed, linking from the presence of small objects to projections that interfere in the exhibition space. We hypothesize that the attempt to re-articulation of literary content was one of the factors responsible for the expansion of the video language and photography in the group's work. The study of the creative processes of Pandora's Box brings out some of the first experiments on installative works of Pará art circuit in the 1990s, establishing thus an important subject of research in contemporary art in Pará and its ability to join the art scene national. Palavras-Chave: Pandora’s Box; Translation Processes; Spatialization Modes; Collaboration networks.

LISTA DE TABELAS

Tabela 01: Mapeameto de obras e exposições, pág. 17

LISTA DE FIGURAS FIGURA 01: Tajá (1985) – Luiz Braga, pág. 21 FIGURA 02: Sem título (1985) – Emanuel Nassar, pág. 21 FIGURA 03: Rede de Criação do Grupo Caixa de Pandora, pág. 31 FIGURA 04: Pandoras de Lata (1993) – Flavya Mutran, pág. 35 FIGURA 05: Pandoras de Lata (1994) – Flavya Mutran, pág. 36 FIGURA 06: Pandora de Sangue (1995) – Orlando Maneschy, pág. 37 FIGURA 07: Pandora de Sangue (1995) – Orlando Maneschy, pág. 37 FIGURA 08: Pandora de Vidro (1993) – Cláudia Leão, pág. 38 FIGURA 09: Pandora The Eletronic Box (1993) Mariano Klautau Filho, pág. 39 FIGURA 10: Faustine ou a Cidade e os Olhos(1996) – Orlando Maneschy, pág. 40 FIGURA 11: Faustine ou Cidade e os Olhos (1996) –Orlando Maneschy, pág. 41 FIGURA 12: O jardim dos caminhos que se bifurcam (2000) – Cláudia Leão, pág. 43 FIGURA 13: O jardim dos caminhos que se bifurcam (2000) – Cláudia Leão, pág. 43 FIGURA 14: Fotogramas (1995) – Cláudia Leão, pág. 46 FIGURA 15: Livro de espelhos (1995) – Cláudia Leão, pág. 47 FIGURA 16: Pandora de água (1995) – Flavya Mutran, pág. 48 FIGURA 17: Pandora de lata (1994) – Flavya Mutran, pág. 48 FIGURA 18: Dandi (1993) – Orlando Maneschy, pág. 50 FIGURA 19: Buba (1993) – Orlando Maneschy, pág. 50 FIGURA 20: Instalação Caixa de Pandora (1995) – Orlando Maneschy, pág. 51 FIGURA 21: O beijo das bubas (1993) – Orlando Maneschy, pág. 51 FIGURA 22: Pandora de Lata (1993) – Flavya Mutran, pág. 54 FIGURA 23: Pandora de Lata (1994) – Flavya Mutran, pág. 54 FIGURA 24: Pandora The Electronic Box (1995) – Mariano Klautau Filho, pág. 55 FIGURA 25: Pandora The Electronic Box (1995) – Mariano Klautau Filho, pág. 56 FIGURA 26: Pandora de espelhos (1995) – Cláudia Leão, pág. 57 FIGURA 27: Pandora de espelhos (1995) – Cláudia Leão, pág. 58 FIGURA 28: Caixa de Pandora (2006), pág. 59 FIGURA 29: Caixa de Pandora (2006), pág. 60

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, pág. 11 CAPÍTULO 01 – Mapeamento e considerações históricas, pág. 16 CAPÍTULO 02 – Processos criativos em redes de colaboração, pág. 25 CAPÍTULO 03 – Processos de criação no caminho da tradução, pág. 32 CAPÍTULO 04 – A fotografia expandida, pág. 45 CAPÍTULO 05 – A espacialização da imagem, pág. 52 1. Micro-espaços instalativos e seus desdobramentos, pág. 53 2. Macro-espaços instalativos e seus desdobramentos, pág. 56

CONSIDERAÇÕES FINAIS, pág. 62

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, pág. 64

INTRODUÇÃO A produção de imagens no estado do Pará tem desde a década de 1980 se destacado em âmbito nacional e internacional. A partir década de 1990 uma geração singular de fotógrafos e suas propostas inseriram as bases para a construção de um pensamento instalativo no circuito de artes visuais de Belém do Pará. É essa produção de imagens e suas articulações com a literatura que o projeto se propõe a investigar, construindo uma base de dados e aprofundando estudos acerca desta imagem que extrapola os tradicionais objetivos fotográficos de simples registro e apresenta uma imagem inserida no território de produção contemporânea de artes visuais, como um meio de desconstrução, re-articulação de poéticas, manipulações não convencionais e construção de outras memórias, identidades e temporalidades em obras de artistas locais. Tal fato nos leva a acreditar na importância de sistematizar dados e registros desses trabalhos, bem como aprofundar a compreensão acerca dos mecanismos de tradução na direção Literatura – Artes Visuais a partir do viés de leitura de pesquisadores da área de artes visuais, um ramo de investigação que no contexto de pesquisa científica em nossa Cidade ainda é pouco explorado. Corroboramos a importância de voltarmos às atenções do projeto para o amadurecimento de uma cultura de pesquisa sobre imagem na região amazônica, especificamente na cidade de Belém, tendo em vista a descentralização geográfica dessa produção no que se refere ao sistema de arte nacional. Para a compreensão de todos esses processos, articulamos o levantamento e análise dessas produções a discussões sobre imagem, tradução e arte contemporânea

realizadas por autores como Jacques Aumont, Vilém Flusser,

Cecília Almeida Salles, Rubens Fernandes Júnior e Affonso Romano de Sant’Anna, os quais nos apoiarão conceitualmente durante o estudo da imagem em um contexto mais amplo. O mapeamento prévio dessas produções na década de 1990 nos levou ao contato com a produção do grupo Caixa de Pandora, atuante neste período como disseminador de uma nova cultura de produção fotográfica. A partir deste primeiro contato pudemos notar a intrínseca relação que este grupo de jovens artistas mantinha com a apropriação de conteúdos literários para a produção de seus 11

trabalhos artísticos. O próprio nome do grupo já faz menção ao Mito de Pandora, o qual se encontra constantemente nas discussões por eles realizadas. A partir deste dado passamos a compreender a necessidade de pensar a instauração desse conteúdo literário no processo criativo do Caixa de Pandora como norteador de grande parte das ações por eles realizadas em suas exposições que se iniciaram na década de 1990 e chegaram à década de 2000, sempre com constantes e variabilidades poéticas. No entanto, é importante ressaltar que para a compreensão desse processo de apropriação do conteúdo literário não pode ser pensado sem levar em consideração os embates locais realizados com relação a expansão da linguagem fotográfica, no diálogo com o espaço (a partir do surgimento das instalações) e de uma fotografia construída (nomenclatura recorrente na década de 1990) que extrapola os convencionalismos do que vinha sendo produzido em Belém na Época. Para isso, é importante o estabelecimento conceitual dessa pesquisa como um estudo de processos criativos do grupo Caixa de Pandora em suas instâncias macro, embasado nas teorias da Crítica de Processo (outrora denominada Crítica Genética) de Cecília Almeida Salles, que por sua vez tem suas discussões fundamentadas nas teorias da Semiótica de Charles Sanders Peirce. Falamos, portanto,

essencialmente,

do estudo semiótico de processo criativo para

compreendermos como o conteúdo literário perpassa a produção do Grupo Caixa de Pandora a partir da relação entre três elementos teóricos fundamentais, a imagem, o espaço e o conteúdo literário, para buscarmos, enfim, possíveis generalizações do “movimento criador” a partir da concepção da criação como tradução de signos. O processo de tradução traz consigo grandes discussões, iniciadas por Roman Jakobson e bem desenvolvidas no livro “Tradução Intersemiótica” de Júlio Plaza. Essas discussões surgem a partir da necessidade de fomento às discussões e reflexão acerca de práticas artísticas que envolvem o trabalho com meios e linguagens diversas e tendo também como base a Semiótica de Pierce Nos trabalhos propostos para análise a relação com a literatura é ponto chave para a discussão do processo de criação dessas exposições, no entanto, a relação com outras modalidades de produção artística se entremeiam à análise como já explicitado anteriormente. Cecília Almeida Salles (2006) denomina Nós de Interação esses elementos que compõe a rede de criação de uma obra de arte. Neste contexto de pesquisa, identificamos três Nós de Interação: 1 – Processos de 12

tradução; 2 – A fotografia expandida e 3 – a espacialização da image. É importante perceber que a concepção de tradução implica um estudo interdisciplinar, uma vez que promove o diálogo entre diferentes disciplinas, linguagens e culturas, lançando bases para o pensamento da tradução como criação. É nesse sentido que nos apropriamos do conceito de Entre-Imagens de Raymond Bellour (1997) para pensar aqui não as especificidades da linguagem fotográfica ou literária, mas os possíveis cruzamentos poéticos e construtivos destas obras de arte. Devemos levar em conta que toda a tradução estabelece relações de equivalência com seu original, e para isso, é importante perceber os pontos de ligação ou Nós de Interação entre conteúdos originais e traduzidos, identificando os encaminhamentos metodológicos da tradução em cada unidade caso analisada. Para a compreensão específica das relações entre conteúdo literário e artes visuais, utilizamos como referência os modelos de análise propostos pelo autor Romanno de Sant’Anna no livro “Paródia, Paráfrase & Cia.” (1988), em que o autor parta das concepções de paródia e estilização lançadas por Bakthin e Tynianov e reconfigura esses conceitos, atribuindo a este processo macro ainda as concepções de paráfrase e apropriação. Aqui a fotografia é linguagem em cruzamento com outras linguagens para a construção de ambientes de articulação imagética. A ação do signo percorre territórios que expandem os conceitos, trazem consigo o que Rubens Fernando Junior (2002) denomina Fotografia expandida (que vai além da fotografia construída). Trabalhos de fotógrafos que dialogam teoricamente com Vilém Flusser (1985) e constroem narrativas em imagens sem deixar que o aparelho fotográfico tome conta de seus objetivos, articulando a relação com o objeto e o ambiente a partir de suas imagens manchadas, borradas e que solicitam ao espectador presente uma atenciosa análise. Para isso, instituímos como objetivo de pesquisa identificar os modos de espacialização e expansão de linguagem da fotografia e do vídeo em suas relações com o conteúdo literário no processo de criação do Grupo Caixa de Pandora. Os procedimentos metodológicos desta pesquisa estão fundamentados nas proposições de trabalho científico de Antônio Carlos Gil (2009). O trabalho se configura tipologicamente em primeira instância como pesquisa descritiva, na medida em que se vale do levantamento de dados padronizados, e também está 13

inserida em um âmbito de pesquisa explicativa, já que procurará identificar a natureza dos fenômenos compreendidos no recorte específico. No que se refere ao delineamento de pesquisa, instituímos um caráter de Estudo de caso coletivo a partir de múltiplos casos em determinado recorte. Este recorte foi espacialmente delimitado em produções de artes visuais do grupo Caixa de Pandora. Como estudo de caso, falamos da instauração de amostragens estratificadas de pesquisa, que servirão de índice para a implantação de discussões que estão relacionadas a um contexto maior de produções. Uma abordagem teórica da Crítica de processo fundamentou os nossos estudos, no que se refere aos procedimentos de coleta e análise de dados. Nesta vertente levamos em consideração não apenas o processo comunicativo de instauração da obra, mas também os processos de gênese dessa criação a partir de um diálogo direto com os artistas e sua relação com a criação das obras selecionadas para análise. Nesse momento, nos preocupamos em delimitar que tipos de dados melhor nos serviriam para uma posterior análise dos objetos de estudo, e para isso instituímos os procedimentos e materiais abaixo especificados:

- Pesquisa iconográfica: levantamento de imagens fotográficas e videográficas das obras selecionadas para compor o mapeamento. - Pesquisa bibliográfica: levantamento de fontes bibliográficas, tais como livros de leitura corrente (Obras literárias), livros de referência remissiva (Catálogos) e publicações periódicas (Jornais e revistas). - Pesquisa documental: levantamento de materiais como dossiês de obra, portfólios de artistas e elaboração e aplicação de entrevistas com os artistas.

As entrevistas foram realizadas como uma espécie de questionário, com alguns dados padronizados para os artistas, tais como: principais referenciais teóricos no desenvolvimento das poéticas; o possível conceito de instalação; os limites conceituais entre certas categorias produtivas que trabalham essencialmente com relações espaciais; a necessidade do artista em categorizar suas produções; os possíveis referenciais teóricos acerca dos conceitos de Imagem e Espaço e os referenciais locais na produção de obras de caráter instalativo e as possíveis relações entre sua produção e o conteúdo literário por ele apropriado. 14

A pesquisa bibliográfica buscou identificar importantes autores (já citados) que estabelecem discussões de caráter histórico-conceitual acerca das relações de instauração da imagem (fotografia e vídeo) em um espaço físico e como a literatura influenciou o processo de criação do nosso objeto de estudo. Para efeito de análise dos objetos coletados procuraremos compreender os significados conceituais propostos pelas produções mapeadas e traçar uma teia de significações entre estas e quais territórios pretendem abranger, levando em consideração os seguintes critérios e procedimentos de caráter quantitativo e qualitativo:

- Locais e períodos de exibição. - As características físicas e materiais da obra. - Descrição dos componentes e dispositivos em geral. - As relações entre os elementos compositivos e o espaço físico. - As possíveis condutas, atitudes e comportamentos suscitados ao espectador em sua experiência com a obra. - As poéticas empregadas em cada unidade-caso. - Os modos de apropriação do conteúdo literário nas obras analisadas (paráfrase, paródia, estilização e apropriação).

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CAPÍTULO 01 – MAPEAMENTO E CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS A exploração do conceito de lugar personifica os objetivos desta pesquisa em certo ponto. Procuramos compreender como este “lugar” é apropriado pela produção de arte contemporânea para analisar a instauração da produção de imagens nesses espaços dentro do circuito paraense de arte contemporânea. Segundo Anne Cauquelin, “um local é uma área dentro de um ambiente que foi alterado de maneira a tornar o ambiente geral mais perceptivo” (CAUQUELIN, 2005, p. 142). A consulta ao acervo de dados (imagens, textos, vídeos) do projeto de pesquisa “A relação da Imagem nas Artes Visuais: mapeamento da produção imagética na arte contemporânea paraense” 1 e o contato com alguns textos de Rubens Fernandes Junior nos indicou algumas ações do grupo Caixa de Pandora, que na década de 1990 instaurou as primeiras experiências de caráter instalativo no circuito de artes visuais no estado do Pará. Ainda nesse período, o contato com os estudos da Crítica de Processo, implementados no Brasil principalmente por Cecília Almeida Salles, nos abriu a possibilidade do emprego de uma abordagem teórico-metodológica em que o estudo dos processos criativos de um artista ou grupo de artistas pode servir a um entendimento global do processo de criação em arte, o que nos encorajou a lançar o olhar sobre as especificidades do processo criativo do grupo Caixa de Pandora, para a partir disto compreender os fatores que os levaram a uma compreensão mais expandida da imagem e seus mecanismos de espacialização. Mais do que uma leitura ou “interpretação” da obra entregue ao público, a Crítica de Processo se preocupa com a reconstituição dos fatores que tornaram possível a materialização do pensamento artístico, levando em consideração conceitos como a Criação em Rede e o Inacabamento. Ao falarmos em Crítica de Processo devemos ter em mente uma abordagem de estudo de Documentos de Processo, aqueles que trazem a tona os elementos constitutivos do processo de criação. Estes documentos que por algum tempo se restringiram aos manuscritos dos artistas tomam hoje outras proporções, e uma

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Projeto de pesquisa desenvolvido no âmbito da Faculdade de Artes Visuais / Instituto de Ciências da Arte / Universidade Federal do Pará, coordenado pelo Profº. Dr. Orlando Franco Maneschy e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no período de 2005 a 2010. 16

infinidade de outros materiais podem servir à compreensão dos processos de um artista, inclusive o diálogo direto através de entrevistas e questionários. A coleta destes documentos foi também realizada a partir do acervo dos próprios artistas, em diálogo com publicações que nos forneceram uma perspectiva teórica sobre o grupo. Nesse sentido, realizamos a coleta de fotografias de registros das instalações bem como de imagens que compunham os trabalhos, catálogos das exposições mapeadas (tabela de exposições abaixo), notícias de jornal da época, textos de teóricos e críticos de arte, especificamente Marisa Mokarzel, Cláudio De La Rocque Leal e Rubens Fernandes Junior e dossiês das obras expostas. Abaixo tabela com os artistas, exposições e obras mapeadas. EXPOSIÇÃO

ARTISTAS LOCAL Cláudia Leão; Flavya Galeria Theodoro Braga Caixa de Pandora Mutran; Mariano Klautau (Belém – PA) Filho; Orlando Maneschy Caixa de Pandora Cláudia Leão; Flavya Galeria do Instituto Cultural (2ª Edição) Mutran; Mariano Klautau Itaú Filho; Orlando Maneschy (Brasília – DF) Caixa de Pandora Cláudia Leão; Flavya Galeria Theodoro Braga (3ª Edição) Mutran; Mariano Klautau (Belém – PA) Filho; Orlando Maneschy Caixa de Cláudia Leão; Flavya Liceu de Artes e Ofícios da Pandora Mutran; Mariano Klautau Fundação Cultural de (4ª Edição) Filho; Orlando Maneschy Curitiba (Curitiba – PR) Cláudia Leão; Flavya Galeria da FAOP – Festival Caixa de Pandora Mutran; Mariano Klautau de Inverno da UFMG (5ª Edição) Filho; Orlando Maneschy (Ouro Preto - MG) Caixa de Pandora Cláudia Leão; Mariano Laboratório das Artes – (Projeto “Coletivos” / Klautau Filho; Orlando Espaço Cultural Casa das Anos 90) Maneschy Onze Janelas (Belém – PA) Fotografia Grupo Caixa de Pandora; Contemporânea do Flavya Mutran, Walda Galeria de Arte da UFF Pará – Novas Visões Marques e Arthur (Niterói – RJ) Leandro Fotografia Grupo Caixa de Pandora; Palácio Gustavo Capanema Contemporânea do Flavya Mutran, Walda (Rio de Janeiro – RJ) Pará – Novas Visões Marques e Arthur Leandro Galeria do Centro Cultural O Rosto e os Outros Cláudia Leão Brasil-estados Unidos (Belém – PA) NÃO Orlando Maneschy Galeria Theodoro Braga (Belém – PA) Faustine ou A Cidade Orlando Maneschy Galeria de Arte da UNAMA e os Olhos (Belém – PA) Galeria de Fotografia do O Jardim dos Cláudia Leão Alpendre – Casa de Arte, caminhos que se Pesquisa e Produção bifurcam (Fortaleza – CE)

PERÍODO 18/06/1993

25/10/1994 25/04/1995 – 14/05/1995 03/05/1996

18/07/1996 18/08/1996 31/10/2006 – 12/11/2006 26/11/1997 – 14/12/1997 13/01/1998 – 06/03/1998

03/1995 1994 19/12/1996 04/01/1997 2000

Tabela 01: Mapeamento de obras e exposições 17

Nessa tabela identificamos a presença das cinco edições da exposição “Caixa de Pandora” bem como de exposições individuais ou coletivas em que alguns integrantes apresentaram propostas que muito se aproximavam das discussões estéticas articuladas nas exposições do Caixa de Pandora. É importante frisar que o crítico de processo não quer apenas reconstituir ou identificar a gênese da criação da obra, mas compreender os fatores que influenciam o artista na construção de determinado trabalho, desde mecanismos intuitivos até rigorosos planejamentos de execução, da mais primitiva ação criadora até o momento de apresentação da obra ao público que, diga-se de passagem, não se configura como uma versão final da obra, mas como uma entre diversas outras possibilidades de materialização do processo. Sobre essa questão, Cecília Almeida Salles (2006) pronuncia: Devemos pensar, portanto, a obra em criação como um sistema aberto que troca informações com o seu meio ambiente. Nesse sentido, as interações envolvem também as relações entre espaço e tempo social e individual, em outras palavras, envolvem as relações do artista com a cultura na qual está inserido e com aquelas que ele sai em busca. A criação alimenta-se e troca informações com seu entorno em sentido bastante amplo. (SALLES, 2006, p 32).

É pensando nessas infinidades de relações que o artista estabelece com seu meio que a Crítica de Processo também atua. Dessa maneira, iniciamos a análise dos processos de criação do grupo Caixa de Pandora a partir de um viés histórico de identificação do ambiente cultural em que esses produtores estavam inseridos. Para reconstruir um panorama histórico das ações do grupo Caixa de Pandora em âmbito local e nacional recorremos a escritos de Marisa Mokarzel, Cláudio De La Rocque Leal e Rubens Fernandes Junior, de modo a identificar como as ações do grupo acabaram por modificar certos paradigmas locais de produção de arte. Quando do surgimento do grupo o circuito de fotografia na cidade de Belém ainda se pautava em produções que caminhavam no território do fotojornalismo e da fotografia documental, com autores como Elza Lima, Luiz Braga e Miguel Chikaoka. Marisa Mokarzel delimita a importância de retornar à década de 1980 para entender a formação do panorama que o Caixa de Pandora encontra ao início de sua produção. O início da década de 1990 é fortemente marcado pelas reminiscências da atuação da Fundação Nacional de Arte (FUNARTE) na década anterior, na qual 18

instituiu importantes ações de caráter de fomento à produção fotográfica nacional. Nesse período vimos o surgimento de um trabalho de mapeamento e estímulo à realização de exposições fotográficas, que na região amazônica resultou no I FOTONORTE Viver a Amazônia, realizado em 1985. Ainda nos anos 1980 a FUNARTE investe na articulação de pesquisa para a delimitação de uma “Visualidade Amazônica”, no que se refere a trabalhos que se pautam em referências advindas da cultura popular local e suas especificidades relacionadas às cores puras e fortes da visualidade dos bairros periféricos e região ribeirinha das localidades. Neste período, importantes teóricos locais passaram a pensar essas questões e instituíram um campo profícuo de pesquisa acerca de uma Amazônia que traz em seu cerne de criação poética a visualidade popular e ribeirinha. Osmar Pinheiro foi um dos grandes responsáveis pela estruturação de um pensamento teórico acerca desses fatores quando em 1982/1983 realizou também para a FUNARTE o projeto denominado Fontes do Olhar, um mapeamento de materiais que perpassavam textos e depoimentos de artistas e documentação fotográfica acerca dessas relações entre as visualidades populares e periféricas e a produção de artes plásticas na Amazônia naquela época. A respeito desse processo Pinheiro cita como principais referências artísticas Luiz Braga, Jair Jacmont, Roberto Evangelista, Helio Melo e Emmanuel Nassar, construindo um pensamento de que: Estamos numa região pluricultural, que se manteve historicamente dentro de uma perspectiva de confronto. Penso que a fronteira cultural, talvez como em nenhuma outra região, se faz sentir aqui de uma forma muito nítida, essa fronteira de divisão de mundos diferenciados em confronto, porque fazendo parte da estrutura maior das relações de poder [...] A prática das artes plásticas aqui diz respeito muito de perto, a essa coisa que eu conheço muito em particular, que é a questão da visualidade, porque na verdade nós colocamos a visualidade do ponto de vista de sua relação com a arte. (PINHEIRO, 1985, p. 92-93).

O embate que surge entre visualidade e artes plásticas faz emergir uma série de experimentações dos citados artistas, de modo a conferir à Amazônia naquela década uma especificidade de lugar, uma produção que reflete, diagnostica e corrobora para a existência dessacralização de uma produção de arte e surgimento de um teor lúdico e compromissado com a existência de uma arte que extrapola o circuito convencional de exibição de produtos artísticos, dialoga com a cidade, com o rio, com a brincadeira, com a floresta e transparece seu apelo de cunho socialmente 19

marcado. Sobre o processo criativo de artistas nessa época, ainda Osmar Pinheiro declara: As organizações cromáticas que informam as pinturas de fachadas e embarcações oriundas da tradição mestiça, de admirável rigor e inteligência e que estão presentes também na geometria de papel de seda dos papagaios, rabiolas (pipas) revelam as condições particulares de uma outra ordem, onde não existe mercado de arte, onde o suporte da obra é a casa, o barco, o boteco, o papagaio, o brinquedo, o instrumento de trabalho. [...] Onde arte e trabalho são partes de um mesmo movimento cuja razão é o afeto [...] são artefatos de múltiplo uso, transitando entre o prazer e a necessidade [...] São paisagens pintadas em botecos, puteiros, fachadas, resíduos acadêmicos, assimilações, apontando às vezes para uma figuração surpreendente [...] Pinturas com a obsessão de cobrir todo o espaço e dentro deste os micro espaços e assim por diante até a exaustão da forma e da cor. Metáfora de uma região de vastidões [...] Há nesse universo de referências uma relação densa entre o utilitário e o lúdico, um perpassando o outro. Silenciosa estratégia de resistência cultural. Estética do prazer. (PINHEIRO, 1985, p. 96-97).

Nessa perspectiva, a Fundação Nacional de Arte contribui na década de 1980 para a edificação de um pensamento que vai permear toda uma geração de produtores nos anos seguintes, o que ajuda na expansão do mercado de arte paraense, principalmente no que se refere à pintura e fotografia. No entanto, a respeito da existência de fato de uma possível “visualidade amazônica” concordamos com Marisa Mokarzel na compreensão de que esta visualidade discutida acaba se subvertendo em um sentido de “localização” exacerbada que proporciona um distanciamento no diálogo com outros lugares. A exaltação dessas especificidades nos parece distanciar discussões que poderiam claramente estar apoiadas em fluxos de teor nacional, já que pensamos não ser essa visualidade um privilégio amazônico.

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Figura 01: Tajá (1988) Artista: Luiz Braga Fonte: www.colecaopirelli.masp.art.br

Figura 02: Sem título (1985) Artista: Emmanuel Nassar Fonte: www.catalogodasartes.com.br

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O grupo Caixa de Pandora, a partir de exposição homônima realizada em 1993 na Galeria Theodoro Braga, se integrou ao circuito fotográfico de Belém articulando discussões imagéticas que fugiam às especificidades relatadas acima. Os membros do Caixa de Pandora detinham fortes relações com a cultura contemporânea, a moda, o teatro, o cinema e as artes visuais, a literatura, propiciando rupturas nos paradigmas da fotografia local, tomando lugar no que passou a ser chamado nacionalmente de Fotografia Expandida2(discutiremos melhor este conceito mais à frente)

de modo a estabelecer diálogos entre repertórios

diversos “para falar de imagem, tempo, memória, ausência, medo e desejo” (MANESCHY, 2007, p. 31). A grande maioria dos trabalhos construídos pelo grupo Caixa de Pandora se pautava na relação entre a fotografia, principalmente, e o vídeo, com a apropriação de objetos ditos não convencionais para servirem de suporte à produção dessas imagens. Neste momento chegamos a corroborar a hipótese de que o grupo Caixa de Pandora atuou como um embreante para a quebra de fronteiras entre o território da fotografia e das artes visuais na cidade de Belém, e também foram pioneiros na produção de trabalhos nos moldes do que hoje chamamos de “instalação”. As ações do grupo encorajaram fotógrafos como Walda Marques, Sinval Garcia e Maria Christina a romperem as barreiras da fotografia tradicional, de cunho mais documental, e passarem a articular experiências de desconstrução dessa imagem produzida, e abriram caminho para o surgimento de uma geração de artistas que a partir dos anos 2000 potencializa as estruturas instalativas e suas relações com a produção de imagem, como Roberta Carvalho, Armando Queiroz, Carla Evanovitch, Luciana Magno e Victor De La Rocque. É justamente essa ruptura do grupo com as noções dessa “visualidade amazônica” que os torna uma pontual referência para a construção de outras perspectivas para a produção da imagem fotográfica na cidade, da inserção da produção em vídeo e da articulação desses elementos para além do plano bidimensional, estabelecendo relações com objetos e constituindo ambientes instalativos. A partir desses desdobramentos Cláudio De La Rocque (1996) abre a possibilidade de pensar o Caixa de Pandora como um Movimento e em matéria 2

Termo amplamente trabalhado pelo pesquisador e crítico de fotografia Rubens Fernandes Júnior para referir-se a uma produção fotográfica que se construía a partir de manipulações, elaborações laboratoriais, construções estéticas, etc. que ocorreu no referido período. 22

publicada no caderno Cartaz do Jornal O Liberal de 23 de abril de 1996 preconiza que “o grupo passa a ser um movimento quando experimenta de forma sistemática e os experimentos geram propostas diferenciadas de trabalhos, diferentes das que vêm sendo produzidas em fotografia”. Em 1994 os integrantes do grupo fundam o Caixa de Pandora – Núcleo de Imagens, com o objetivo de promover eventos e espaços de discussão e fomento dessa produção imagética. Em entrevista ao caderno Mulher do jornal A província do Pará do dia 10 de janeiro de 1998, Cláudia Leão explica como ocorreu esse processo: Primeiro Nasceu a caixa de Pandora – exposição – feita através do convite de André Lima, para juntar fotógrafos com uma linguagem pouco convencional. Depois, em 1994, quando resolvemos fazer um encontro de fotografia, aqui em Belém, houve a necessidade de criar algum trabalho que representasse todos os fotógrafos envolvidos, assim nasceu O caixa de Pandora – Núcleo de Imagens. Porém, ainda mantínhamos uma mesma forma de criar, ou seja, nós, individualmente, arcávamos com todo o custo para criar os projetos individuais. No entanto, ficava a cargo do NI – Caixa de Pandora buscar recursos para a saída dela daqui e conseguimos muitos parceiros. (LEÃO, 1998, p. 05).

Formado inicialmente pelos fotógrafos Orlando Maneschy, Cláudia Leão, Mariano Klautau Filho e Flavya Mutran, o grupo Caixa de Pandora tem suas inquietações pautadas no processo de manipulação fotográfica em que a colaboração e a individualidade se entremeiam o tempo inteiro, tornando difícil dissociar o projeto poético do grupo do projeto poético de cada integrante. Mariano Klautau Filho define o Caixa de Pandora como um “grupo de pessoas que estavam experimentando. Havia a ideia de não obedecer territórios. Precisava-se trabalhar em conjunto. Era um trabalho coletivo”3. Todos eram advindos das oficinas e ações da Fotoativa na década de 1990 e se preocuparam em distanciar o conceito localizado de Amazônia para pensar um lugar que para eles era global e onde poderiam transbordar suas inquietações para o mundo, tornar a fotografia paraense deslocalizada e parte de um conjunto conceitual que dialogasse com as discussões iminentes acerca da construção da imagem na contemporaneidade. Como afirma Marisa Mokarzel (2008), embora os artistas não tivessem noção da dimensão histórica que seus trabalhos estavam proporcionando à concepção de fotografia na época em Belém, suas construções poéticas conseguiram desviar a 3

Entrevista realizada por Marisa Mokarzel com Mariano Klautau Filho em 23 de junho de 2008 e publicada no texto “Caixa de Pandora: Deslocamentos, novas linguagens e práticas na fotografia paraense dos anos 1990”. 23

direção para a qual a produção paraense estava caminhando e inseriram no circuito de arte local a necessidade de surgimento de um novo pensamento acerca da arte, de uma arte contemporânea que a partir deste contexto surge como possibilidade de deslocamento dos padrões da década anterior, que de certa maneira moldaram a produção local para uma iniciativa de discussão extremamente localizada.

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CAPÍTULO 2 - PROCESSOS CRIATIVOS EM REDES DE COLABORAÇÃO Com o auxílio da Semiótica Peirciana, as teorias do processo de criação delimitam cinco etapas que constituem a criação: a ação transformadora, o movimento tradutório, processo de conhecimento, construção de verdades artísticas e o percurso de experimentação. Essas fases de desenvolvimento do percurso criativo é que possibilitam uma materialização, o surgimento de um produto que chegará ao público. Segundo os estudos de Cecília Almeida Salles (2006) este caminho criador é um percurso construído a partir de tendências que muitas vezes se repetem ao longo da história de criação de um artista, que diferente da ciência não busca uma verdade sistematizada, mas trabalha, também, no campo da intuição. A autora chama a atenção para a necessidade de lançarmos um olhar para os meios e técnicas utilizadas por esse artista, pois estes se revestem da vontade poética deste produtor. A escolha pela utilização da linguagem fotográfica em detrimento de uma pintura não é aleatória. No entanto, é importante ressaltar que esse processo de escolha de linguagens na arte contemporânea é essencialmente híbrido e transpassado por mais de uma escolha técnica. O que hoje conhecemos como Crítica de Processo tem seus subsídios na Crítica Genética, os estudos da gênese do processo de criação, embasada na perspectiva de que uma obra é construída a partir de uma série infinita de agregação de idéias que por aproximação se materializam em um objeto de arte. As metodologias de análise preocupam-se em compreender, além de uma interpretação do produto artístico, alguns dos caminhos conceituais que levaram um artista a determinada materialização de um pensamento em processo. Para alcançar alguns desses caminhos a Crítica de Processo se vale do que denomina “Documentos de processo”, materiais como rascunhos, fotografias, entrevistas, arquivos digitais, manuscritos, entre outros. Foram estes os materiais que nos serviram de base para a prospecção desta pesquisa. Nesse caminho, lançamos mão de um mecanismo indutivo de formulação de hipóteses e generalizações a partir da observação desses documentos em sua relação com a obra entregue ao público. Ao discutirmos no capítulo anterior o contexto histórico em que o Grupo Caixa de Pandora estava inserido na ocasião de seu surgimento procuramos já neste 25

momento trazer a tona o tempo e espaço externos que configuraram e influenciaram de alguma maneira aqueles artistas e seu movimento criador. A concretização da obra se dá, portanto, na relação indissociável entre forma e conteúdo, o que reforça a necessidade de compreender o movimento tradutório em sua relação com linguagens e materialidades outras. Apesar do produto final se materializar em uma linguagem, seu percurso é essencialmente intersemiótico. A partir da Semiótica Peirciana, a Crítica de Processo encontrou um caminho para a construção de bases de discussão da generalização do movimento criador. Começamos a falar de Semiótica chamando atenção para o fato de que por justamente ser uma teoria generalista faz-se necessário a busca por outras referências específicas para a compreensão dos casos estudados. Neste ponto surge a necessidade de buscarmos um aporte teórico em estudiosos da imagem, como Jacques Aumont, e da Literatura, como Affonso Romano de Sant’anna. Segundo os estudos de Cecília Almeida Salles (2006) o conceito de semiose (ação do signo) possibilita a formulação de teorias para uma generalização da criação. Ainda de acordo com Salles (2006): A principal função do signo é interpretar e ser interpretado simultaneamente. Interpretação é, para Peirce, um momento indispensável de qualquer signo. Nada é um signo por ele mesmo, mas somente por conta de outro que o decifra como um signo. (SALLES, 2006, p. 163).

A partir deste excerto podemos compreender que a criação, essencialmente signo, se dá em uma constante mutação de interpretações e que do primeiro insight do artista ao primeiro contato do público com a obra as ativações estão em um movimento transformador que percorre tempo e espaço em um contínuo. Isso nos faz inferir que todo objeto artístico, como processo sígnico, é apenas uma versão possível do que poderia vir a ser, a partir do contato com qualquer uma mente criadora. Essa ausência de autonomia sígnica, que afeta diretamente a criação, é o que a semiótica Peirciana denomina sinequismo. Esta própria pesquisa, como criação é, portanto, apenas uma versão interpretativa possível. Embora contínuo o processo de criação surge com tendências, direcionado a determinado caminho, o que Salles (2006) denomina “causação final”, ou “desejo operativo” segundo Charles Sanders Peirce, que se finda em uma materialização qualquer, em nosso campo de análise uma obra de arte. Esta obra possui um teor 26

essencialmente comunicativo, ou seja, produz signos a serem interpretados, o que torna essa concepção de sinequismo mais clara. É a partir dessa característica da criação como processo sígnico que Cecília Almeida Salles lança as bases para pensarmos essa criação como “movimento tradutório” em signos, o que está relacionado à “coexistência dinâmica das três categorias da fenomenologia Peirciana: primeiridade (sentimento, sensação), secundidade (ação, confronto) e terceiridade (interpretação, síntese intelectual)” (SALLES, 2006, p. 173). Em suma, a autora preconiza que: Esse percurso sensível e intelectual pode ser descrito como um movimento falível com tendências, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de idéias novas. Um processo onde regressão e progressão são infinitas, portanto, sem definição de origem, nem final. (SALLES, 2006, p. 173).

Para pensar o processo criativo por meio da Crítica de Processo é essencial também ter em mente dois importantes conceitos, o da Criação como Rede e do Inacabamento. Por Criação como Rede entendemos uma legitimação do processo criativo como formado por uma infinidade de fatores, ações e percursos que constituem a poética de um artista, e que estão intrinsecamente ligados entre si, perfazendo uma organicidade dinâmica. Cecília Almeida Salles sustenta seus estudos nas teorias de Pierre Musso acerca do pensamento em rede. Segundo o autor, uma rede pode ser determinada como: [...] uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento. Pode-se distinguir Três níveis nessa mesma definição: A rede é uma estrutura composta de elementos em interação; [...] A rede é uma estrutura de interconexão instável no tempo; [...] a modificação de sua estrutura obedece a alguma regra de funcionamento.. (MUSSO, 2007, p. 31).

Ainda na perspectiva de definição do conceito de rede, Pierre Musso cita Henri Atlan e declara que “A rede é mais que a máquina, porém menos que o vivente; mais que o linear, porém menos que o hipercomplexo; mais que a árvore, porém menos que a fumaça” (MUSSO, 2007, p.30). Esta rede ainda segundo o autor é construída por uma pluralidade de pontos que se interligam por uma variedade de ramificações. Cada ponto, ou pico, é nada mais que o encontro entre ramificações, um edificador de passagens que se

27

encontram para o surgimento de uma racionalidade que permitirá a aparição de novas ligações e assim sucessivamente. O contato com os processos do grupo Caixa de Pandora nos permitiu identificar uma relação de auto-suficiência poética de cada integrante bem como concomitantemente uma relação dialógica entre os percursos criadores dos artistas. Os espaços expositivos construídos pelo grupo constituíam uma totalidade que ao mesmo tempo era coletiva e individual. Cada artista integrava a exposição com um trabalho individual que, no entanto, mantinha relação direta com questões que perpassavam em conjunto as inquietações poéticas de todos os integrantes. Este fato nos fez levantar a hipótese de que o Caixa de Pandora trabalhava em uma perspectiva do que propomos denominar de processos criativos em Redes de Colaboração, dialogando com o conceito de Rede proposto por Pierre Musso e seus desdobramentos na Crítica de Processo. Devemos levar em consideração que ao falarmos de Criação em Rede preconizamos em duas instâncias: o processo criativo de cada artista; e o processo criativo colaborativo entre os artistas, nosso principal objeto de análise neste momento. Como já discutido por Salles (2006), estes processos organizados em rede se constituem de uma infinidade de elementos que se interconectam para a formação do pensamento criativo em rede. Esses elementos fundadores da rede da criação, o que Musso (2007) chama de picos, recebem a denominação de Nós de Interação na Crítica de Processo, delimitando mais especificamente as questões que sustentam a formação dessa rede. Para pensar os processos do Caixa de Pandora em Redes de Colaboração foi necessário identificar justamente esses elementos interconectados que sustentam o pensamento criativo coletivo, ou seja, elementos que encontraremos como base de configuração criativa no trabalho dos quatro artistas que compõem o grupo, na medida em que partem de discussões comuns para a produção de suas obras. Esse percurso investigativo nos levou a três principais Nós de Interação centrais à criação: 1- O processo de tradução do conteúdo literário; 2- A Fotografia Expandida; 3- A espacialização da imagem. Ao falarmos de processo de tradução é importante termos neste trabalho uma diferenciação clara, já que essa terminologia nos servirá para dois momentos. Em primeira instância, e como Nó de interação, esse processo de tradução se refere às apropriações de conteúdos literários feitas pelos integrantes do Grupo Caixa de 28

Pandora para a construção de seus trabalhos em fotografia, vídeo, objeto e instalação. Em segunda instância a noção de tradução toma um sentido mais amplo ao dialogarmos com a semiótica Peirciana para compreendermos o processo de criação como essencialmente tradução de signos, como já anteriormente discutido. Esses dois âmbitos de tradução são, no entanto, complementares, já que procuramos compreender este processo de tradução do conteúdo literário como uma ação que perpassa todo o processo criativo do grupo. Esta tradução de conteúdos outros integra, veremos mais à frente, um dos principais fatores para a expansão da linguagem fotográfica e audiovisual nos trabalhos do Grupo Caixa de Pandora. Ao integrar a esse discurso a noção de Inacabamento, proporcionamos a edificação de uma das principais características da rede, a dinamicidade e mobilidade. Isso significa dizer que o processo criativo de um artista, ou os pontos de interação do processo de vários artistas, como em nosso objeto de análise, se encontram em constante mutação e continuidade, e que a criação é um contínuo de interconexões, ou seja, uma obra exposta acaba por ser apenas a materialização de um projeto poético maior que direciona o artista. Identificamos com maior clareza nos processos individuais de Orlando Maneschy e Cláudia Leão esse princípio de continuidade em um projeto artístico que permeia também as suas produções “fora” do grupo Caixa de Pandora. Orlando Maneschy nas exposições “Não” (1994) e “Faustine ou a Cidade e os Olhos” (1996), e Cláudia Leão nas exposições “O rosto e os outros” (1995) e “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” (2000) acabam por partir de alguns dos mesmos Nós de Interação que sustentam a Rede da Criação do processo colaborativo no Caixa de Pandora. É importante ressaltar que em função dessa continuidade das interações gerativas da rede, os trabalhos individuais desses dois integrantes acabam por compor também a rede de criação do grupo, na medida em que se torna dificultoso delimitar onde termina o processo do artista inserido coletivamente e onde começa a rede individual de criação. Cláudia Leão em entrevista concedida ao projeto discorre sobre essa perspectiva: [...] entendo que no meu caso eu utilizava materiais tanto para o meu trabalho quanto para as exposições (Caixa de Pandora), para mim não havia um limite, talvez por esse motivo a minha intenção nunca foi fazer um trabalho específico para ela (Pandora), sempre utilizei espelhos, vidros, as imagens borradas e com alterações nos processos químicos, nunca achei 29

esse limite. Na verdade para mim faço o meu trabalho, e não um trabalho específico para essa ou aquela exposição. Por exemplo, na pandora dos espelhos, que são três espelhos que estiveram na minha individual, eu vou utilizar esse três espelhos e retomar as imagens do Man Ray e fazer uma nova possibilidade para aquelas imagens. 4

Nos

trabalhos

individuais

de

Orlando

Maneschy

e

Cláudia

Leão

visualizaremos o retorno de uma série de discussões e personagens que permeiam as exposições do Grupo Caixa de Pandora, como as personagens Faustine e Maria, que aparecem horas em exposições individuais, hora nas exposições em grupo. Falamos da construção de exposições que primam pela edificação de ambientes que são unificados a partir de uma linha temática única. No entanto, esse ambiente fundado no espaço da galeria não é matericamente unificado. O que conseguimos visualizar a partir da coleta de materiais foi a existência de trabalhos individuais que caminham para o que conhecemos hoje como instalação, mas que na época, ainda não eram entendidos como tais em âmbito local, com exceção da experiência realizada no ano de 2006 em Belém no Laboratório das Artes do Espaço Cultural Casa das Onze Janelas. Discutiremos estes Nós de Interação no processo criativo do grupo levando em consideração a noção do Inacabamento como fundamental para compreender como a atuação coletiva interfere ou é na verdade um elemento que proporciona uma continuidade poética das relações estabelecidas nas produções expostas. Abaixo apresentamos um esquema conceitual de como estaria construído essa rede de criação do Grupo Caixa de Pandora a partir das obras produzidas pelos artistas para essas exposições e seus principais inquietamentos propulsores.

4

Entrevista concedida pela artista para a pesquisa em 14 de agosto de 2012 30

FIGURA 03: Simulação da Rede de criação do Grupo Caixa de Pandora. 31

CAPÍTULO 3 - PROCESSOS DE CRIAÇÃO NO CAMINHO DA TRADUÇÃO

A primeira discussão pertinente aos processos criativos do grupo refere-se ao processo de Tradução Intersemiótica que perpassa toda a sua produção, principalmente em relação às traduções realizadas a partir do Mito de Pandora. Devemos ao autor Roman Jakobson (2007) a distinção e definição da Tradução Intersemiótica como um fenômeno, que consiste em transposições de um sistema sígnico para outro. Nesta direção, Julio Plaza publica o livro “Tradução Intersemiótica”

(1987)

e

confere

a

este

termo

uma

fundamentação

e

aprofundamento teórico mais especificamente aplicado às artes visuais, Para construir uma teorização acerca destes aspectos de tradução Júlio Plaza assim como Cecília Almeida Salles se vale dos estudos do semioticista Charles Sanders Peirce. Como essencialmente semiose, o processo de tradução intersemiótica está também ligado a uma transposição, mas nesse âmbito estamos falando especificamente de ações artísticas que partem de uma determinada linguagem para resultarem em outra enquanto objeto artístico. Da fotografia para o vídeo, do desenho para a escultura, da literatura para a fotografia, por exemplo. O autor delimita a tradução como leitura, metacriação: como ação sobre estruturas, como diálogo de signos, como síntese e reescritura da história. Quer dizer: como pensamento em signos, como trânsito dos sentidos, como transcriação de formas na historicidade. (PLAZA, 1987, p. 14).

Plaza (1987) lança subsídios para pensarmos a tradução como um mecanismo muitas vezes indistinguível da criação, como processos que por meios diferentes podem produzir efeitos análogos. “Nessa medida, traduzir lato sensu, é uma operação metalingüística embutida na própria produção de linguagem (PLAZA, 1987, p. 27). Para a teoria da tradução intersemiótica a concepção de original é, portanto, um dado ineficiente, já que mesmo o conteúdo que poderia se pensar original é resultado de uma semiose que por sua vez surge de um processo indefinido de traduções. Nesse sentido a ideologia da fidelidade mostra-se metodologicamente também ineficiente para compreender a complexidade das ações de tradução. A diferença entre criação e tradução intersemiótica, se resume basicamente ao fato de 32

que existe uma escolha consciente de determinado signo a ser traduzido no processo de semiose, o que não ocorre necessariamente na criação de maneira mais abrangente. Plaza ainda nesta publicação estabelece uma relação com as três tipologias principais de signo instituídas por Peirce (ícone, índice e Símbolo) para a partir de suas características pensar também tipologias de tradução. O autor institui então a Tradução Icônica como aquela em que existe uma similaridade ou equivalência de estruturas com o objeto de tradução. Tradução Indicial como um contato transitório entre objeto traduzido e objeto tradutor, uma relação de proximidade que, no entanto, desajusta certas estruturas em comum. Por fim, a Tradução Simbólica, que opera a partir de metáforas, ações de caráter convencional. Essas tipologias em nossa concepção tocam em alguns momentos as categorias estudadas por Affonso Romanno de Santa’Anna em seu livro “Paródia, Paráfrase e Cia” (1988). Neste livro o autor parte dos estudos de Tynianov e Bakhtin acerca dos conceitos de paródia e estilização para então reconfigurá-los e incluir neste âmbito outras duas categorias, a paráfrase e a apropriação. Para Romanno de Sant’Anna essas quatro categorias aparecem em instâncias de intertextualidade (na utilização de textos de terceiros) e intratextualidade (na retomada de seus próprios textos e percursos), o que nos rememora a concepção de inacabamento da criação, proposta por Cecília Almeida Salles. Para fins de análise de conteúdos diversos, Romanno de Sant’Anna lança mão de algumas propostas metodológicas apresentadas no mesmo livro. Esses conceitos servem como suporte para tentarmos compreender os diálogos existentes entre objeto tradutor e objeto traduzido partindo, para isso, da noção básica de “desvio” como o fio condutor da instauração dessas quatro categorias em determinado repertório. A concepção de desvio nos aparece como uma medida da maneira como a tradução se distancia ou se aproxima do conteúdo traduzido, como reforça, reconstrói ou desconstrói este elemento poético. Para melhor compreensão desses modelos é importante entendermos que Tynianov e Bakhtin desenvolveram uma oposição entre paródia e estilização, em que a primeira existe numa discordância com o “original”, enquanto a estilização implica uma concordância de estruturas. Por discordar deste dualismo Romanno de Sant’Anna propõe em seu primeiro modelo que pensemos a estilização como uma técnica geral de “desvio”, ou 33

deslocamento conceitual de determinado conteúdo, tornando a paródia e agora a paráfrase efeitos particulares. Nesse sentido, a paródia configura-se como uma espécie de estilização negativa, que transgride o conteúdo traduzido, enquanto a paráfrase seria como uma estilização positiva, que segue e dialoga em consonância com a estrutura traduzida. Em um segundo modelo o autor apropria-se da concepção de desvio em nível mais restrito. Assim, em relação ao conteúdo objeto de tradução, a paráfrase aparece como um desvio mínimo da estrutura do conteúdo, a estilização como um desvio tolerável e a paródia no sentido de desvio total. Um terceiro modelo inclui uma categoria ainda não discutida, a apropriação, que se configura como a “radicalização da paródia (...), uma técnica que se opõe à paráfrase e diverge da estilização” (SANT’ANNA, 1988, p. 46). Este último modelo opera a partir das seguintes características: paráfrase e estilização como um conjunto de similaridades em que a paráfrase apresenta um desvio mínimo e a estilização um desvio tolerável. Já paródia e apropriação atuam no âmbito do conjunto das diferenças. Paródia como desvirtuadora do conteúdo e apropriação como uma radicalização da paródia. Para efeito de análise do nosso objeto de estudo optamos pela utilização do segundo modelo proposto por Romanno de Sant’Anna por dialogar com as características e níveis de tradução instituídos por Júlio Plaza. Vislumbramos nessa relação a paráfrase como tradução icônica, estilização como tradução indicial e a paródia como tradução simbólica. No que se refere aos processos de tradução, identificamos nas ações do grupo Caixa de Pandora a transposição do Mito de Pandora, um conteúdo literário, para obras visuais como fotografias e vídeos. Nesse sentido, os integrantes do grupo criam suas interpretações do Mito a partir de particularidades que lhe tocam invocadas pelas questões que a própria metáfora do mito discute, como memória, tempo, esquecimento, desaparecimento, inclusive nomeando o grupo. Pandora foi mitologicamente a responsável pela abertura da Caixa que continha todos os males do mundo, tais como as pragas, o despeito, a inveja e a vingança. A partir desta figura vimos surgir as Pandoras de Lata e Pandoras de Água (Flavya Mutran), Pandora de Vidro e Pandora de espelhos (Cláudia Leão), Pandora The Electronic Box (Mariano Klautau Filho) e a Pandora de Sangue (Orlando Maneschy). 34

Compreendemos as ações do Caixa de Pandora em dois principais processos, o da estilização e da paródia. Podemos entender, por exemplo, as Pandoras de Lata de Flavya Mutran perpassando pelo processo de estilização, na medida em que mantém uma similaridade com seu original, no que se refere, por exemplo, à representação da figura feminina e a utilização de objetos, caixas, que guardam estas imagens, fazendo clara alusão à caixa presente no mito. O objetivo de Flavya mutran, bem como de todos os outros integrantes do Caixa de Pandora, não é, no entanto tanto, primar por uma linearidade e regularidade de discurso no que se refere à narrativa do Mito de Pandora, mas buscar estabelecer um diálogo com os seus pontos chaves de modo a fazer emergir discussões de cunho onírico e de uma pessoalidade poética de interpretação do signo em personagens fictícios que não são a própria Pandora, mas sua reminiscência na consciência de cada artista.

Figura 04: Pandoras de Lata (1993) Artista: Flavya Mutran Fonte: Acervo da artista

Ao apresentar suas Pandoras Mutran lança mão do universo feminino e instaura um discurso de gênero, da potencialidade poética desta mulher que toma um rumo de descoberta em sua relação com o espaço, o olhar como metáfora do cuidado, a que guarda um segredo e o torna sua maior arma de manipulação de uma realidade. Os pontos entre fotografia e mito aqui se interconectam justamente nessas questões, como a vontade de guardar, o cuidado de si, o elemento que 35

metaforicamente abriga a mulher, abriga a possibilidade de vida, a caixa que conforma e tem a possibilidade de deformar no momento em que escapa de si própria.

Figura 05: Pandoras de Lata (1994) Artista: Flavya Mutran Fonte: Acervo da artista

Em outra direção, Orlando Maneschy ao apresentar sua Pandora de Sangue em 1995 acrescenta um dado de inquietação à interpretação do Mito, pois institui sua

Pandora

como

uma

figura

masculina,

caminhando

para

algo

que

compreendemos como localizado entre a estilização e a paródia, ou seja, um desvio abrupto que, no entanto, é tolerável às especificidades do original, e que embora traga novos dados, não chega a romper completamente. Como um dado de inquietação ao Mito, Maneschy propõe a existência de uma Pandora masculina em seu retrato coberto de sangue humano. Diferente de Flavya Mutran, o artista quer imbuir Pandora de uma aura mais que simplesmente feminina. Maneschy converte esta especificidade em uma generalização de gênero, opondo-se a Mutran. A imagem dessa figura masculina prensada em vidro e suja de sangue dialoga com um espaço de medo, em que velas acesas no chão vão ao longo da exposição derretendo e trazendo escuridão à imagem, uma metáfora do tempo como norteador de percursos. O espaço adquire um teor de ritual, de sacralização da imagem, uma Pandora que existe nas conexões entre fotografia e ambiente, no teor de discussão 36

da efemeridade da matéria, no sangue, na vela. Vislumbramos, portanto, conexões entre imagem e mito a partir de relações de concordância e discordância, na presença da figura masculina e na relação ritualística que envolve esta figura.

Figura 06: Pandora de Sangue (1995) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista

Figura 07: Pandora de Sangue–Detalhe (1995) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista

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Maneschy também desdobra a personagem Pandora, ao apropriar-se de um auto-retrato de Cláudia Leão nessa mesma edição do projeto (1995), constituindo uma Pandora que parece anunciar o que viria a acontecer em seu espaço expositivo. Esta mesma obra apareceria na instalação Faustine, ou a cidade e os olhos (1996) como se possuísse uma identidade movente, fluida. Além do Mito de Pandora, os autores trabalham com outras relações de tradução do conteúdo literário e também de outras linguagens. Cláudia Leão insere uma imagem da personagem Maria, do clássico longa-metragem Metrópolis de Fritz Lang em sua Pandora de Vidro, como numa tentativa de aprisionar aquela realidade cinematográfica em sua base de produção, a fotografia, que a partir de manipulação incorpora uma estética do “sujo”, do excesso, uma grande lâmina de vidro que coberta por vários vidros côncavos e poeira dourada representa a própria ação do tempo em um trabalho direto de referência, o que poderíamos compreender como uma paráfrase. Em 1995, Mariano Klautau Filho apresenta o trabalho Pandora The Electronic Box, um desdobramento de Pandora The Eletronic Box de 1993, e traz a tonas referências estéticas à montagem e sequências cinematográficas e à linguagem dos quadrinhos, a partir da construção de personagens que atuavam na imagem fotográfica e eram também transfigurados para o trabalho em vídeo, além de inserir em meio às imagens fragmentos do poema “O Homem e sua Hora”, de Mário Faustino.

Figura 08: Pandora de Vidro (1993) Artista: Cláudia Leão Fonte: Acervo do artista 38

Nesta obra, Mariano Klautau Filho parece também aglutinar a concepção de paráfrase, por incluir diretamente a obra de Mário Faustino ao seu trabalho, bem como uma estilização ao propor uma narrativa viva, orgânica que viesse a apresentar e não representar o texto traduzido em imagens fotográficas de uma mulher que a partir de um processo de edição tornam-se vídeo, intercaladas por trechos do citado poema. No vídeo esta série de imagens apresenta um ensaio sobre a cidade, e a presença de uma mulher que percorre espaços com ar de nostalgia e busca de memórias.

Figura 09: Pandora The Eletronic Box (1993) Artista: Mariano Klautau Filho Fonte: Acervo da artista

Ainda nessa vertente de tradução, Orlando Maneschy na exposição “Faustine ou a Cidade e os Olhos” (1996) parte do livro “A invenção de Morel” de Adolf Bioy Casares para a materialização em fotografia da personagem principal do romance, Faustine, a qual Maneschy insere em uma perspectiva local de discussão de patrimônio, identidade, espaço, em que a imagem de Cláudia Leão assume o papel da mítica personagem. Segundo o próprio artista:

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“Tempo e memória foram pontos de partida para este projeto fotográfico, onde os personagens que habitam meus sonhos e lembranças trilharam os caminhos de minha cidade imaginária, numa busca interior, onde o caminho possível para o encontro é a imagem” (MANESCHY, 1995) 5

O livro de Bioy Casares traz consigo um potencial discursivo acerca da imagem como linguagem, uma realidade existente na ilha onde a personagem Faustine é o resultado em imagem de uma máquina que capta os cinco sentidos do homem, perdurando-o imageticamente para a eternidade. Uma metáfora da ideia de que “não há seres humanos, mas imagens humanas. A vida é feita da matéria das imagens”, segundo Fernando Gerheim (2008).

Figura 10: “Faustine ou a Cidade e os Olhos” (1996) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista 5

Texto retirado do folder de divulgação da exposição. 40

Figura 11: Fotografia da exposição “Faustine ou a Cidade e os Olhos” (1996) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista

Cláudia Leão também apresenta tais discussões na exposição “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” (2000), em que faz alusão ao conto homônimo de Jorge Luis Borges e discute principalmente a fragilidade da matéria, a conservação do patrimônio e a questão do duplo, de forte presença na literatura de Borges e tão intrinsecamente relacionado à fotografia. Em um de seus documentos de processo, o dossiê da devida exposição, Cláudia Leão incorpora a própria fala de Borges em um jogo claro de intertextualidade: “... imaginar as estrelas, ao amanhecer, caem lentamente, como caem as folhas das árvores; isso, se fosse certo, mostraria que a imagem é frívola. A imagem que em um único homem pode formar é a que não toca ninguém. Infinitas coisas existem na terra; qualquer uma pode comparar-se a qualquer outra. Comparar estrelas com folhas não é compensação, ninguém nunca sentiu que o destino é forte e é rude, que é inocente e é também inumano. Para essa convicção, que pode ser passageira ou

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contínua, mas que ninguém evita (...) o tempo, que despoja as fortalezas, enriquece os versos (...)” Jorge Luís Borges. 6

Borges traz à tona as relações com o próprio sentido de signo, metáforas introduzem o leitor em uma perspectiva de escolhas constantes realizadas pelo personagem para conduzir a narrativa, e destas relações parte Cláudia Leão para a construção de seu próprio labirinto de imagens e a discussão de um duplo que contempla o conteúdo literário e a produção imagética a partir da fotografia e da utilização do espelho e suas metáforas de duplicação como suporte artístico. Leão ainda em seu dossiê declara que: “Os personagens que construo e que formam está série, compõem um projeto de ambientação/instalação utilizando obras montadas em espelhos oxidados, vidros de janelas e projeções de slides. Criando uma atmosfera de sonhos sobrepostos interferidos por quem atravessa as imagens que refletem em espelhos e se soltam dos vidros fazendo caminhos de luz, tendo como resultado diálogos sobre um estranho território para a felicidade de alguns desejos que são inatingíveis, porque me parece que o passado resta nos olhos.” (LEÃO, 2000).7

Orlando Maneschy chegou a se dedicar a análise dos trabalhos de Cláudia Leão e institui a saudade como uma palavra fundamental para compreender os percursos discursivos da artista. Para Maneschy tempo e saudade se articulam nas fotografias de Leão que atua como uma “semeadora de memórias possíveis” pondo em cheque situações de nostalgia, do tempo de uma cidade não vivida, mas refletida a partir de seus prédios, praças e personagens, um desejo do passado, a busca e a perda.

6 7

Texto retirado do memorial descritivo da exposição “O jardim dos caminhos que se bifurcam”. Texto retirado do memorial descritivo da exposição “O jardim dos caminhos que se bifurcam” 42

Figura 12: Instalação “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” (2000) Artista: Cláudia Leão Fonte: Acervo da artista

Figura 13: Fotografia integrante da instalação “O Jardim dos caminhos que se bifurcam” (2000) Artista: Cláudia Leão Fonte: Acervo da artista 43

No memorial descritivo deste projeto encontramos um dado interessante e que muito pode nos servir à compreensão de como as materialidades escolhidas por Cláudia Leão interferiram ou sofrem interferência dos mecanismos de tradução. A artista apresenta os dados necessários para a materialização da obra segundo o descrito abaixo: “No Laboratório Fotográfico trabalho um tempo para as minhas imagens, através da manipulação do filme – baixando a densidade sugerindo uma luz tênue; e suave deixada nas sombras – papel fungado. O resultado é que na cópia a imagem parece se perder junto com a memória. (...) Os personagens que construo e que formam esta série, compõem um projeto de ambientação/instalação utilizando obras montadas em espelhos oxidados, vidros de janelas e projeções de slides. Criando uma atmosfera de sonhos sobrepostos interferidos por quem atravessa entre as imagens que refletem em espelhos e se soltam dos vidros fazendo caminhos de luz, tendo como resultado diálogos sobre um estranho território para a felicidade, porque me parece que o passado resta nos olhos” (LEÃO, 2000).

Ao trabalhar com a apropriação de imagens de família e subverter seus caracteres tradicionais de tempo, Cláudia Leão embute nestas um passado que elas não possuem. O labirinto proposto por Cláudia Leão, tal como Jorge Luís Borges em seu conto, se faz pela intermitência entre pequenos detalhes de narrativas que poderão nos levar a percursos diferenciados no que poderíamos classificar como uma estilização das discussões majoritárias que também se entremeiam a obra de Borges. Os casos aqui relatados consideram a tradução do conteúdo literário como o princípio mais imediato do processo de criação do Grupo Caixa de Pandora, o que nos leva a corroborar a existência deste mecanismo como essencial para as discussões que seguirão nos próximos dois Nós de Interação apresentados. Estas relações com a literatura e suas possibilidades tradutórias são, portanto, o fio condutor para o entendimento de como esta fotografia contemporânea se expandiu e espacializou de modo a criar uma nova configuração que desestruturou as certezas da arte no circuito local, conforme analisado nos próximos capítulos.

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CAPÍTULO 4 - A FOTOGRAFIA EXPANDIDA

O segundo Nó de interação da Rede de Criação do grupo é um dos fatores mais importantes que tornou o trabalho do Caixa de Pandora um marco histórico na produção contemporânea paraense. Rubens Fernandes Junior define a Fotografia Expandida como: livre das amarras da fotografia convencional (…) têm ênfase no fazer, nos processos e procedimentos de trabalho cuja finalidade é a produção de imagens que sejam essencialmente perturbadoras (...) é desafiadora porque subverte os modelos e desarticula as referências (...) Essa denominação fotografia expandida tem como base teórica os textos de Rosalind Krauss (onde em um deles ela discute a questão da escultura expandida) e o texto de Gene Youngblood, que discorre sobre o Cinema Expandido. (JUNIOR, 2006, p.11).

Para Rubens Fernandes Junior o fotógrafo que trabalha nessa linha é aquele que constrói suas fotografias em função de operações que não são previstas pelo aparelho fotográfico. O autor dialoga essencialmente com o teórico Vilém Flusser, na medida em que estabelece que esse fotógrafo é justamente aquele que não se tornou o que Flusser (1985) denomina como “funcionário” do aparelho, aquele que segue suas determinações sem uma busca poética que transcenda suas limitações. A noção de expansão da linguagem fotográfica surge a partir das reverberações do clássico texto “A escultura no campo expandido” (2008) de Rosalind Krauss, em que a autora discute as ampliações que a escultura adquiriu na contemporaneidade a partir do contato com outras linguagens, tornando-se um objeto híbrido e resultando em projetos de caráter instalativo e muitas vezes em diálogo com o ambiente social, urbano e natural (intervenções urbanas e Land Art). A fotografia, portanto, se expandiu neste mesmo sentido, e o fotográfico ampliou seu campo de atuação para a relação entre os elementos de linguagem, no diálogo com o objeto, com o espaço, a fotografia que é instalação e pode também ser pintura, e assim por diante. Rubens Fernandes Junior delimita três tipos de relações que esses fotógrafos personalizam na produção de suas imagens. Em primeiro a relação do artista com objeto, em que o processo de criação está ligado a uma interferência no mundo visível a partir de arranjos e construção da cena fotográfica, como simulação de uma realidade. Em segundo, o artista e o aparelho, usando-o contrário ao seu programa de funcionamento e possibilitando a produção de imagens de estranhamento a partir 45

de embaçamentos, cortes não usuais, utilização de filtros sem intenções corretivas, superposição de imagens, entre outros. Por fim, o artista e a imagem, em que o grupo Caixa de Pandora personifica suas principais produções, a partir de processos de interferência no próprio suporte fotográfico, como as fotomontagens, as solarizações, superposições a partir de processos químicos. Cláudia Leão, por exemplo, institui um intenso trabalho de laboratório na construção de fotogramas, além de trabalhar com a interferência da imagem fotográfica em objetos como espelhos e articulação com a projeção de slides que interferiam diretamente sobre a fotografia, bem como no espaço expositivo. Ao apropriar-se de fotografias de revistas ou retiradas de álbuns antigos para a construção de seus fotogramas Leão instiga o processamento de memórias individuais que passam a ser coletivas, misturadas, hibridizadas, em sonhos pessoais de criação de novas imagens e a reorganização de histórias de vida que a partir da imagem construída pela artista fixam um sentimento de pertencimento àqueles que têm contato com esta produção. Somos tomados pela sensação de estarmos presenciando uma verdadeira luta fantasma pela sobrevivência desses retratos que, um dia esquecidos por alguns, tomam vida a partir de uma imagem que já nem é a sua original, mas uma nova possibilidade, outra memória e identidade criadas por Cláudia Leão.

Figura 14: Fotogramas (1995) Artista: Cláudia Leão Fonte: Acervo da artista 46

Num caminho semelhante a artista “imprime” também em espelhos essas imagens, espelhos que também guardam poeticamente muitas memórias. Podemos nas exposições nos ver por entre as imagens daqueles desconhecidos rostos que nos tornam íntimos do processo de criação e nos induzem ao esquecimento de nossa identidade para partilharmos de um poder ser o outro, tornar-me o próximo e entender por imagens seus percursos.

Figura 15: Livro de espelhos (1995) Artista: Cláudia Leão Fonte: Acervo da artista

Já Flavya Mutran produziu para as exposições do Caixa de Pandora trabalhos que estavam muito mais relacionados com uma fotomontagem e com alterações ou interferências realizadas na fotografia já revelada. Em suas duas séries de Pandoras de Lata (1993 e 1994) e na série de Pandoras de Água (1995) atribui à fotografia um sentido de objeto de cuidado, sempre encapsuladas, guardando uma memória na tentativa de manter aqueles personagens em seu ambiente de conforto, um lugar em que a artista tem controle sobre suas imagens, que mais que isso, são histórias de sua relação com o mundo. Estes personagens que são também metáforas de uma realidade visível se interconectam no espaço e propõe uma narrativa desconstruída de lembranças e até “vontades de ser”, ideologias de um encaminhamento de vida.

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Figura 16: Pandora de água (1995) Artista: Flavya Mutran Fonte: Acervo da Artista

Figura 17: Pandora de Lata (1994) Artista: Flavya Mutran Fonte: Acervo da Artista 48

A vertente de construção de motivos e de cenas para a produção da imagem fotográfica também fez parte de um recorte da produção do grupo, em trabalhos como os de Orlando Maneschy, por exemplo. Na primeira exposição do Caixa de Pandora, em 1993 na Galeria Theodoro Braga, Maneschy apresenta uma série de retratos de personagens por ele construídos inseridos em uma cena direcionada pelo fotógrafo. O artista instaura, portanto, um ambiente, uma ação e relações interpessoais imaginárias e explora sua condição de criador no jogo de criação de identidades, de especulação de sentimentos que tornam vivos os personagens que dominam seus retratos. Personagens estes que parecem emergir dos sonhos do próprio artista, pois se relacionam diretamente às vontades de um relacionamento afetivo do artista com essas pessoas por ele criadas, como partes de sua própria personalidade que, destrinchada em imagens, criam vínculos de heterogeneidade dos sonhos, nos torna sonâmbulos, partilhamos de suas loucuras e identificamos seus fantasmas em cada uma dessas imagens impregnadas de medo, sexo, insanidade e paixão. Em diálogo com esses personagens instaurados na parede da galeria, Orlando Maneschy insere alguns objetos que acabam construindo um ambiente único de dimensão poética. Nesse contexto, podemos falar que a Fotografia Expandida converte-se em uma discussão que vai muito além do plano de desconstrução

da

fotografia

convencional

e

construção

de

uma

imagem

perturbadora, e lança princípios para pensar a Fotografia Expandida como aquela que é essencialmente instauradora de relações com outras linguagens, como a literatura, o vídeo, o cinema, como já discutido, e também suas relações com o espaço onde a imagem fotográfica está instalada. Para identificação dessas relações no próximo capítulo nos valemos dos estudos de Jacques Aumont, Raymond Bellour e André Parente.

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Figura 18: Dandi (1993) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista

Figura 19: Buba (1993) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista 50

Figura 20: Instalação Caixa de Pandora (1993) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista

Figura 21: O beijo das Bubas (1993) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista 51

CAPÍTULO 5 - A ESPACIALIZAÇÃO DA IMAGEM

Ao vislumbrarmos essa relação que a imagem estabelece com seu ambiente de exibição, logo nos remetemos à discussão que o teórico André Parente (2007) institui no que se refere à ampliação da noção de dispositivo. O autor define o dispositivo como o conjunto de elementos que constituem uma subjetivação coletiva, intimamente ligada ao modo como a sociedade em determinado recorte espaçotemporal se relaciona com os aspectos materiais de uma situação, no caso, o sistema de arte. Interessa-nos compreender o momento em que o dispositivo de um trabalho artístico se distende de modo a proporcionar o aparecimento de trabalhos em que a hibridização de linguagens é característica fundamental. Atuando nesse dialogismo de linguagens, alguns outros autores instituem estudos que potencializam esta discussão. Retomamos os estudos de Raymond Bellour ao dissertar acerca do conceito de Entre-Imagens, como justamente um pensamento analítico não das especificidades das linguagens, mas dos mecanismos que tornam possível o diálogo substancial entre elas. Portanto analisamos, em nosso caso específico, a fotografia e o vídeo não em suas particularidades, mas nas relações que eles estabelecem com conteúdos verbais (mais especificamente a literatura), e como essa fotografia e o vídeo se espacializam. Faz-se importante ressaltar que todas as considerações até aqui realizadas foram relevantes para que pudéssemos compreender em parte o modo como opera a rede da criação do grupo Caixa de Pandora, e como todas essas questões surtem efeito nas escolhas de espacialização realizadas pelo artista. Falar dessas espacializações significa convocar compreensões teóricas acerca de como esta imagem (fotografia ou vídeo) edifica mecanismos para levar esta mesma imagem e se tornar uma composição unificada que foge ao plano bidimensional. Antes de entramos nas especificidades de mecanismos do grupo Caixa de Pandora, é importante trazermos à tona os estudos de Jacques Aumont (1993), o qual delimita a atuação desta imagem que se posiciona neste dispositivo instalativo. O autor lembra-nos que a imagem fotográfica ou videográfica é também um objeto no mundo e, portanto, possuem dimensões e características físicas que a tornam perceptível. Aumont considera que entre estas características uma é fundamentalmente importante no que se refere ao deslocamento do dispositivo, o tamanho da imagem. Sobre esta consideração Aumont pronuncia: 52

É portanto capital ter consciência de que toda imagem foi produzida para situar-se em um meio, que determina a visão dela (...) O tamanho da imagem está portanto entre os elementos fundamentais que determinam e especificam a relação que o espectador vai poder estabelecer entre seu próprio espaço e o espaço plástico da imagem. Mais amplamente, a relação espacial do espectador com a imagem é fundamental: em todas as épocas, os artistas perceberam, por exemplo, a força que podia ter uma imagem de grande tamanho apresentada sem recuo, obrigando o espectador não só a lhe ver a superfície, mas a ser dominado e até mesmo esmagado por ela. (AUMONT, 2007, p. 144)..

Percebemos a importância de considerar justamente esse critério de dimensão da imagem produzida pelo grupo Caixa de Pandora como imprescindível para o entendimento das relações que foram estabelecidas com o espaço que está fora do plano bidimensional da imagem técnica. A partir de primeira análise, pudemos identificar duas principais ações de espacialização que perpassam o percurso criativo do grupo e das ações individuais de alguns dos integrantes, abaixo especificadas.

1. Micro-espaços instalativos e seus desdobramentos

Definimos como micro-espaços instalativos os mecanismos de espacialização da imagem “ao seu redor”, em um contexto de pequenas dimensões físicas. Nesse sentido, incluímos neste item as propostas do grupo Caixa de Pandora onde a fotografia ou o vídeo estabeleciam uma relação principal com um objeto. Ainda nessa perspectiva, pudemos identificar dois momentos de construção, um deles, aquele em que a imagem se torna um objeto e se espacializa dentro desse mesmo espaço matérico, ou seja, a fotografia já não está mais no estatuto da relação com o objeto, mas no caráter de próprio objeto imagético. Nessa linha, identificamos principalmente os trabalhos da primeira edição da exposição Caixa de Pandora, realizada em 1993, mas que também encontra reverberações ao longo de toda a história de produção do grupo. Na obra Pandoras de Lata de Flavya Mutran, por exemplo, a artista constrói uma série de caixas que abrigam fotografias. Neste ano, Flavya Mutran compõe três latas que guardam as estranhas imagens de uma série de olhos femininos triplicados, em outra lata um gato preto, enquanto na última, a figura de uma mulher que parece desafiar o espectador a entrar em seu universo e desvelar o território sombrio que a abriga. Em 53

1994 Flavya constrói outra série das Pandoras de Lata, em que uma série de imagens femininas e a de um bebê encontram-se encapsuladas. A fotografia da mulher, ao ser manipulada pela artista parece estar em busca de um rosto sem identidade individual ou mascaramento desta identidade, e que se torna, portanto, o retrato de um imaginário feminino. A espacialização aqui se dá na imagem como objeto tridimensional de fato, não apenas como representação, bem como na relação que se estabelece entre os objetos construídos, na medida em que o sentido poético do trabalho só é completo a partir das relações entre as três ou quatro Pandoras de Lata instaladas no espaço expositivo.

Figura 22: Pandora de Lata (1993) Artista: Flavya Mutran Fonte: Acervo da artista

Figura 23: Pandora de Lata (1994) Artista: Flavya Mutran Fonte: Acervo da artista 54

Partimos para um possível desdobramento destas relações espaciais iniciais, encontradas principalmente nos trabalhos de Flavya Mutran, e nos deparamos com trabalhos como Pandora The Eletronic Box (1993), Pandora The Electronic Box (1995) de Mariano Klautau Filho, e Pandora de Sangue (1995), de Orlando Maneschy. Em ambos os trabalhos visualizamos uma relação imagem-objeto.

Figura 24: Pandora The Electronic Box (1995) Artista: Mariano Klautau Filho Fonte: Catálogo da exposição “Fotografia contemporânea do Pará – Novas Visões” (1998)

Mariano Klautau em The Eletronic Box, ao propor uma caixa de pandora eletrônica, edifica um processo de espacialização da imagem a partir do próprio aparelho de televisão, articulando-o como objeto inerente ao vídeo que ela abriga, o próprio aparelho por ele instalado no espaço é sua Pandora. O artista ainda institui uma espacialização em outro nível, na medida em que junto ao aparelho televisivo posiciona diversas imagens fotográficas que também fazem parte do vídeo apresentado, o personagem em imagem estática e em movimento, o que significa que a Pandora de Mariano Klautau Filho se espacializa em si mesma como imagem (a caixa eletrônica como personagem) e se distende para as fotografias ali instaladas.

55

Figura 25: Pandora The Electronic Box (1995) Artista: Mariano Klautau Filho Fonte: Acervo do artista

A espacialização da imagem neste contexto designa,

portanto,

as

intermitências de construção de um objeto tridimensional que abrigará fisicamente a imagem produzida, bem como o desdobramento deste objeto em sua distensão para o espaço expositivo, articulando-o com outros elementos que compõem um dispositivo imagético único onde a Pandora de cada integrante do grupo se materializa.

2. Macro-espaços instalativos e seus desdobramentos

Ao instituirmos como objeto de análise a noção de Macro-espaços instalativos estamos falando essencialmente de duas vertentes. Em um primeiro momento, incluímos trabalhos onde o processo de espacialização é resultado da apropriação de imagens diversas em grandes proporções que interferem umas nas outras, em que já não podemos mais falar da relação imagem-objeto, pois justamente as grandes proporções da imagem caminham para “dominar e esmagar” o espectador, como propõe Jacques Aumont. A relação com a imagem se institui a partir da consciência do corpo do espectador naquele espaço em que esta imagem passa a interferir.

56

Como exemplo, podemos identificar a obra Pandora de Espelhos, de Cláudia Leão. No trabalho datado de 1995, a artista se apropria das imagens expostas em sua individual “O Rosto e os Outros” e realiza sobre elas interferências com projeções de slides, sobrepondo fotografias de Man Ray, uma de suas principais referências, sobre suas imagens incrustadas em espelhos antigos e danificados. Em Pandora de Espelhos, Cláudia Leão instaura uma perspectiva de diluição de uma imagem em muitas. A fotografia projetada sobre os espelhos, e dividida entre estes, se projeta também no espaço expositivo e no corpo do espectador que se intercala entre a fonte de projeção e os espelhos com as imagens das Pandoras da artista. As ações de Leão nos fazem relembrar aqui o princípio do Inacabamento, haja vista que a artista se apropria de suas próprias imagens exibidas em diferentes exposições e retoma suas particularidades dando a elas uma nova razão poética ao proporcionar o diálogo com diferentes tempos de sua produção.

Figura 26: Pandora de Espelhos (1995) Artista: Cláudia Leão Fonte: Catálogo da exposição “Fotografia Contemporânea do Pará – Novas Visões (1998)

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Figura 27: Pandora de Espelhos (1995) Artista: Cláudia Leão Fonte: Catálogo da exposição “Fotografia Contemporânea do Pará – Novas Visões (1998)

O desdobramento deste macro-espaço instalativo se dá como o próprio espaço ou projeto expositivo como todo. Nesse sentido, propomos pensar a exposição como uma confluência de micro-espaços instalativos (as obras de cada integrante) com objetivo de construir um macro-espaço instalativo. Para isso, devemos lembrar a configuração que fundou as cinco primeiras edições de “Caixa de Pandora”: “Embora houvesse, num primeiro momento, uma certa separação do espaço físico dedicado a cada um dos artistas, todos sempre estiveram interligados, já que a exposição em seu resultado final assumia a configuração de uma grande instalação em que fotografia, objeto, vídeo e outros materiais não fotográficos estruturavam toda a poética concebida pelo grupo”.8

Ao chegarmos à edição de 2006 da exposição “Caixa de Pandora”, vislumbramos uma série de novos dados inseridos ao percurso de criação do grupo. Em primeiro lugar, a artista Flavya Mutran já não mais o compunha. Em segundo lugar, esta exposição de fato se configurava como uma única instalação proposta pelo grupo, ou seja, a noção de autoria aqui acaba se diluindo em função de uma construção coletiva comum. O espaço expositivo era composto por pequenas fotografias dos três artistas dispostas de maneira irregular nas paredes da galeria e 8

Texto não publicado e escrito por Mariano Klautau Filho, cedido pelo artista para compor o acervo da pesquisa. 58

uma grande lamina de vidro proposta por Cláudia Leão, onde um vídeo de Orlando Maneschy era projetado. Na outra extremidade da galeria, uma mesa com um pequeno gravador e um caderno com poemas de Mário Faustino, que deveriam ser lidos e gravados pelo espectador, uma proposta de “performance para o público”, segundo denominação de Mariano Klautau Filho.

Figura 28: Caixa de Pandora (2006) Artistas: Cláudia Leão, Mariano Klautau Filho e Orlando Maneschy Fonte: Acervo Orlando Maneschy

Esse é um dos dados mais interessantes que essa nova configuração do Caixa de Pandora traz consigo, a possibilidade inerente de ativação de uma participação efetiva do público, que se torna elemento fundamental para a construção e completude da finalidade poética deste trabalho, possibilitando o lançamento de hipóteses para pensar o possível aparecimento de uma situação performática desses agentes participadores, antes espectadores, nesses ambientes.

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Figura 29: Caixa de Pandora (2006) Artistas: Cláudia Leão, Mariano Klautau Filho e Orlando Maneschy Fonte: Acervo Orlando Maneschy

No entanto, devemos levar em consideração, que ao levantarmos essa discussão não estamos definindo este participador como de fato um performer, mas propiciando mecanismos de entendimento de como este dispositivo instalativo contribui para a inserção deste espectador como construtor de sentidos de maneira bastante ampla, de possibilidades de manipulação da matéria dos trabalhos. Sobre o caráter mutável das exposições do grupo Mariano Klautau Filho declara: A cada exposição apresentada, havia uma modificação em função do espaço expositivo. Essa modificação também se dava na própria obra de cada artista. O importante era manter o conceito proposto a partir das imagens que poderiam variar em quantidade, suporte, montagem. Portanto foram 6 exposições, de 94 a 98 a partir de uma série de imagens que tiveram uma configuração específica para cada espaço. O grupo voltou a se reunir em exposição em 2006 em Belém. Desta vez, já com uma outra série de imagens e proposições e com o apagamento total da fronteira entre as autorias.9 9

Texto não publicado e escrito por Mariano Klautau Filho, cedido pelo artista para compor o acervo da pesquisa. 60

Esses mecanismos de espacialização aqui compreendidos, portanto, se edificam a partir da construção de uma configuração poética de proximidade e interferências imagéticas no espaço de atuação do dispositivo. Percebemos que as proposições estabelecidas pelo grupo Caixa de Pandora constituíram uma ruptura nos limites entre espaços instituídos no período para a fotografia e artes plásticas nas suas relações de processos tradutórios, causando desconforto e estabelecendo um marco fundamental para a arte contemporânea paraense, o que nos leva a crer na importância dessa pesquisa para a história da arte local e para a compreensão dos percursos estabelecidos.

61

CONSIDERAÇÕES FINAIS As considerações aqui realizadas tomam como principal referencial de discussão os estudos da imagem como uma construção de reflexões que levam em consideração o potencial relacional de sua atuação como um dispositivo de caráter instalativo na arte contemporânea. A delimitação de estudos da arte produzida no estado do Pará traz consigo a perspectiva de potencialização de uma cultura de pesquisa sobre a atuação da imagem em âmbito local, especificamente no que se refere aos mecanismos empregados pelo grupo Caixa de Pandora para a espacialização dessa imagem e como o processo de tradução de certos conteúdos literários exerceram influências sobre essas expansões de linguagem. Ao articulamos um trabalho baseado nos estudos da Crítica de Processo buscamos conferir dinamicidade à rede criadora do grupo Caixa de Pandora e trazêla a tona como importante referencial para pensar o desenvolvimento das propostas instalativas no circuito de arte local. Ainda assim, admitimos como essencial a continuação da pesquisa na medida em que podemos identificar uma variedade ampla de discussões a serem desenvolvidas a partir do trabalho do grupo. É importante ressaltar a relevância histórica que devemos conferir às exposições do grupo em âmbito local, e como estas produções estiveram na década de 1990 conectadas com as discussões que circulavam no Brasil acerca da Fotografia Expandida. A partir do desdobramento de pesquisa iniciada em 2009, vislumbramos a possibilidade de configurar um panorama mais amplo das duas décadas que delimitam o surgimento dessas relações de espacialização da imagem no circuito de arte local. Estas configurações espaciais levam-nos, portanto, a compreender como a produção contemporânea se articula em questão de expansão do dispositivo que compõe os trabalhos de vertente instalativa e, como propõe a Crítica de Processo, partir das especificidades do processo de um artista (em nosso caso um grupo de artistas) para compreender questões que perpassam essencialmente todo o sistema de arte contemporânea, inclusive o diálogo essencial que as produções do grupo instauram com linguagens como a literatura. Passamos a delimitar teoricamente a perspectiva de que no momento em que a obra de arte, que antes articulava-se principalmente como objeto (enquanto estrutura física), passa a se espacializar, tenciona também o dispositivo a se 62

distender em caracteres matéricos e de compreensão global do sistema que o constitui, o que inclui a percepção do público imerso no espaço que constitui a obra. Concordamos, portanto, com Jacques Aumont ao pensar que potencialmente este tipo de proposta passa da configuração de Objeto para uma configuração expandida de Situação, nos termos de Vilém Flusser, como uma “cena onde são significativas as relações-entre-as-coisas e não as coisas-mesmas” (FLUSSER, 1985, P. 05). É nesse âmbito de Situação que encontramos amalgamadas as poéticas do grupo Caixa de Pandora. Embora tenhamos divido cada nó de interação do grupo Caixa de Pandora para fins metodológicos de análise, temos a consciência de que estes elementos estão essencialmente interligados e nenhum consegue existir, sobreviver e se expandir sem a devida colaboração do outro. A partir deste estudo nos propusemos justamente a expandir nosso próprio mecanismo de análise teórica para compreender a criação como rede e, dessa maneira, partir da análise das conexões entre literatura, fotografia, vídeo e espaço, pensando de maneira unificada suas atuações e desdobramentos na materialização das obras estudadas. Apesar do processo de unificação, levantamos também a hipótese de que foi justamente o processo de tradução do conteúdo literário o responsável pelo surgimento de um pensamento ampliado, deslocalizado e expandido com relação às linguagens artísticas nesta geração da década de 1990, já que possibilitou o olhar para um universo externo a Amazônia, um diálogo universal com a cultura contemporânea, sem vícios de especificidades do lugar de onde se vive. A tradução tornou-se, portanto, o elemento essencial para a o processo de distensão dessas linguagens, na medida em que ao tentarem de alguma maneira subverter este conteúdo literário se viram obrigados a também aglutinar subversões nos próprios meios e técnicas (fotografia e vídeo) por eles utilizados para assim alcançarem seus objetivos finais de tradução intersemiótica. Imagem e espaço assumem um importante papel no contexto produtivo do sistema de arte em Belém a partir das experiências do Caixa de Pandora. Grande parte dos trabalhos aqui registrados e analisados são marcos para a história da arte contemporânea no Pará e conferiram a essa conjuntura uma nova maneira de visualizar as relações entre arte e público, burlaram as “leis” de produção tradicional e trouxeram um dado de inquietação à população local. Modificaram a situação de fruição do espectador em sua experiência com a obra e tornaram o Corpo e Espaço uma Imagem. 63

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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