Capítulo IV - O poder da palavra: há limites sobre o que a História pode narrar

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Capítulo IV O poder da palavra: há limites sobre o que a História pode narrar? Fernanando Gomes Garcia

Originalmente apresentado em 25 de maio de 2012, este texto iniciou-se com um pedido de desculpas. Feito de improviso, sob o incentivo de amigos para apresentar algo no Simpósio Temático que, conjuntamente com Breno Mendes, participei da coordenação, sua concepção padecia de um duplo constrangimento. Acabara, então, de me juntar ao PPGH/UFMG e não houvera tempo suficiente para dar desdobramentos significativos para minha pesquisa que merecesse divulgação pública. Não queria, portanto, precipitar-me. Tampouco, gostaria eu de retomar textos antigos ou, simplesmente, apresentar uma programação do que deveria consistir minha pesquisa futura. Convencido no momento, todavia, de que seria bem-vinda uma intervenção minha, mesmo sem saber como poderia ela contribuir para qualquer coisa, escrevi algumas reflexões sobre o tema da minha pesquisa, seus dilemas e desafios que eu deveria, futuramente, resolver; escrevi-as de maneira despretensiosa, em princípio, retirando as citações da cabeça e sem mesmo colocar referências bibliográficas, essenciais num trabalho acadêmico. O resultado foi um texto muito informal, ensaístico, e talvez, precário. A recepção do trabalho e a discussão que se seguiu, ao final da apresentação de toda a mesa, foi positiva, e mesmo com todas as deficiências originais do texto, pareceu-me haver nele qualquer coisa de meritoso e interessante; e surgindo a possibilidade de publicá-lo nesta coletânea, pareceu-me que não seria a pior coisa do mundo. Sem dúvidas, o texto que utilizei como 79

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base na apresentação era deficiente, e seria prudente, para uma sua publicação futura, remendar seus equívocos, acrescentar-lhe os resultados parciais da pesquisa – posto que já vai quase um ano de sua escrita –, corrigir alguns pontos de vista, reparar as citações retiradas da memória falha e adicionar uma bibliografia que fundamentasse o trabalho e o tornasse, de alguma maneira, mais sólido do que o improvisado texto apresentado há já bastante tempo. Mesmo sendo este o procedimento indicado, atrevi-me a não fazê-lo, devido a um excesso de pudor, talvez, injustificado, que preferiu mantê-lo o máximo possível idêntico ao que foi apresentado, para não transtornar seu caráter e mantê-lo fiel ao contexto da mesa onde, originalmente, ele foi a público pela primeira vez. Talvez, procedendo desta forma, cometo eu um equívoco. Mas por honestidade intelectual e fidelidade, quis manter inalterado, não apenas em sua base, como por inteiro, o texto que ora é publicado. Além de manter aquilo que foi apresentado e estimulou a coletânea; afinal, este estudo tornou-se um documento da minha ainda curta trajetória acadêmica. Não me pareceria lícito modificá-lo mesmo sob os princípios mais nobres e justos, nem ocultar-lhe as falhas iniciais. Do que era recomendado fazer, ative-me apenas ao essencial, que constituía em prover-lhe de notas explicativas e referências bibliográficas, para não ficar de todo desguarnecido. Mesmo isso não quis deixar no corpo do texto, para não alterá-lo nem mesmo em sua apresentação formal; até as referências e citações encontram-se em notas de rodapé. Estas, ainda, são compostas por observações críticas de um leitor mais experiente, ou, ao menos, menos ingênuo, insatisfeito com o trabalho de um autor, que foi ele mesmo, tempos atrás. Acrescentei dezenas de notas onde explico alguma coisa, incorporo algo da discussão, lamento certas falhas, explico alguns conceitos, justifico o modo de empregar uma ou outra palavra, refiro-me a desdobramentos posteriores da pesquisa, mostro como alguns problemas desembocaram em outros e indico futuros rumos que a pesquisa deve tomar. 80

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Pode-se dizer que o esforço de completar o texto com essas notas foi uma tentativa de reescrevê-lo e, ao mesmo tempo, um desejo de manter-lhe inalterado. Afinal, um texto anteriormente nu de notas e referências, passou a ter mais de vinte comentários ao pé das páginas. Além disso, a única modificação que se encontra neste texto em relação ao rascunho original é esta pequena introdução em substituição às primeiras palavras com que o texto começou – cada uma dando conta do contexto de sua feitura, um em 2012, outro em 2013. Em suma, tudo o que foi feito foi acrescentar algum aborrecimento – o excesso de notas e referências – a um texto anteriormente desprovido delas, ao invés de reparar-lhe as falhas identificadas posteriormente. Um leitor atento ou excessivamente entediado com o texto poderá bem observar este excesso de notas, e se por acaso reclamar que há mais notas do que propriamente texto, asseguro – ele não está nem um pouco enganado! Isto é sintomático do há pouco confessado desejo de ao mesmo tempo manter o texto original e reparar suas falhas. Mas em meu benefício, fique registrado – para não aborrecer tanto o leitor, as adições estão completamente restritas ao rodapé, de forma que se não houver interesse nelas, o leitor poderá prosseguir incólume. Da mesma forma como sua apresentação no Simpósio foi-me útil e inteiramente agradável – passei a acreditar que até o mais deficitário trabalho pode ter como trunfo recolher as melhores críticas e sugestões –, suponho que publicá-lo, agora, juntamente a outros trabalhos, excelentes, que também foram apresentados no Simpósio (alguns idênticos, outros modificados, e uns ainda bastante diferentes da versão original), possa resultar em ganho para o desenvolvimento atual e posterior da minha pesquisa. Assim encaro o risco de expor em público, mais uma vez, o mesmo texto.

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I Fui tentado a apresentar meu projeto de pesquisa, cujo tema é a possibilidade de se narrar o Holocausto, centrando-me no debate entre Carlo Ginzburg e Hayden White, dois autores que trocaram farpas no início da década de 1990. O italiano acusa o americano de relativismo, de não levar em conta, em sua teoria, os fatos, a pesquisa, considerando a História uma ficção apenas por se apresentar discursivamente em forma de texto, tal como o literário, estando, pois, sujeito à equiparação com as narrativas ficcionais. Mais além, Hayden White ao falar de sua teoria tropológica, define diversas maneiras de como o discurso narrativo pode ser organizado; e que cada autor poderia montar uma narração de acordo com seu estilo, levando-se em conta a ideologia, os modos de explicação e de elaboração de enredo. Além disso, o autor leva em conta também a maneira como determinadas partes do texto são organizadas, destacadas e privilegiadas, podendo o estilo do narrador alcançar findáveis, porém incontáveis formas de se apresentar uma História. Partindo de Hayden White e de sua narratologia surgiu a questão do meu trabalho: cada evento pode ser narrado de diferentes maneiras? Carregam eles um em-si, algo intrínseco ao seu ocorrer e que das fontes temos a possibilidade de conhecer? Aceitei o desafio imposto por Hayden White para os historiadores e – temerosamente! – concordei que cada evento poderia ser narrado de maneiras diferentes. Afinal, senão dessa maneira, como se constitui a historiografia? Como, a cada tempo e lugar diferente, determinada História é narrada? Ou, o que é ainda mais problemático, no mesmo tempo e no mesmo lugar, historiadores diferentes acusaram versões igualmente assimétricas daquilo que narram.1 Ao aceitar esse desafio, tomei 1. Sobre a possibilidade de múltiplas narrativas para constituição da identidade de um grupo, faço referência a David Carr: “Granted the diversity of groups that most individuals are involved with, we need to explore further the nature of the 82

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individual’s identification with and participation in any of them. Our claim is that the group is posited by its members as subject of experiences and actions in virtue of a narrative account wich ties distinct phases and elements together into a coherent story. (...) [Admitida a diversidade de grupos com que a maioria dos indivíduos está envolvida, precisamos explorar mais a natureza da identificação e participação do indivíduo em qualquer um deles. Nossa reivindicação é que o grupo é posto por seus membros como sujeito de experiências e ações, em virtude de uma narrativa que ata distintas fases e elementos em uma história coerente] // In our view such existence would require that a “story” be shared by the members of the group, such that is formulation and eventual reformulation would be constitutive of the group and its common undertakings. But such a story can be told by an individual or individuals on behalf of the we; indeed using the we as the subject not only of action and experience but of narration itself. [Em nossa visão, tal existência requere que a “história” seja partilhada pelos membros do grupo, de modo que suas formulação e eventuais reformulações seriam constitutivas do grupo e empreendimentos comuns. Mas tal história pode tanto ser contada por um indivíduo ou por indivíduos em nome de um nós; deveras, usando nós como sujeito não apenas da experiência, bem como também da própria narração] // Such leaders may spring up spontaneously or they function may be elaborately institutionalized, but their role is the same: to effect the group’s collective Besinnung on its own nature and activity. (...) But such a story must be shared if it is to be constitutive of a group’s existence and activity. Other participants may not tell the story, but they must belive or accept it as the genuine account of what the group is and what it is doing. Thus, in the relation between formulating and communicating, on the one hand, and receiving or accepting a narrative account, on the other, the group achieves a kind of a self-awareness as a “subject” that is analogous to what we found in the individual” (Carr, 1991, p. 155-156). [Tais líderes podem emergir espontaneamente ou suas funções podem ser elaboradamente institucionalizadas, mas sua função são as mesmas: realizar a Besinnung [atar o antes com o depois através da reflexão] coletiva do grupo na sua própria existência e atividade. Os outros participantes podem não contar a história, mas devem acreditar ou aceitá-la como o relato genuíno daquilo que o grupo é e está fazendo. Então, na relação entre formular e comunicar, de um lado, e receber e aceitar uma narração, de outro, o grupo chega a um tipo de auto-consciência como “sujeito” que é análoga àquela que encontramso no indivíduo.] // Em suma, podemos resumir tudo ao dizer que ser alguém ou fazer parte de um grupo é ter ou aceitar determinada História sobre si, que diz quem você é e o que faz. Sobre a possibilidade de haver múltiplas Histórias concorrentes, uma perspectiva fenomenológica, diferentemente da perspectiva narrativista que representamos na figura de Hayden White, garante que a própria experiência fornece de 83

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si diferentes significados que podem concorrer entre si para forjar a identidade de um sujeito-coletivo, permitindo, então, uma pluralidade de relatos diferentes: “Is it not the case that much communal activity at all levels, from the smallest and most intimate to our huge modern nation-states, consist in the clash of incompatible story-lines, a battle over wich account of who we are and where are we going is to be accepted? [Não é o caso de que muito das atividades comunais, em todos os níveis, do mais baixo e íntimo aos grandiosos e modernos Estados-nações, consiste no choque de urdiduras incompatíveis, uma batalha sobre qual deve ser o relato aceito de quem somos e para onde vamos?] // Thus differences concern not only the present and future, but also the past and indeed the whole story wich encompasses all three temporal dimensions” (Carr, 1991, p. 157-158). [Portanto, diferenças dizem respeito não apenas ao presente e ao futuro, mas também ao passado e, deveras a toda história que envolve as três dimensões temporais] // A existência mesmo da comunidade depende da existência de História concorrentes que podem, inclusive, levar à fragmentação do grupo: “These considerations bring to mind the importance of opposition in the formation and maintenance of groups (...). Hegel suggested that the independence and integrity of the individual is won in a struggle with others (...)”(Carr, 1991, p. 158). [Essas considerações trazem a lume a importância da oposição na formação e manutenção dos grupos (...). Hegel sugeriu que a independência e integridade do indivíduo é ganha na luta com outros(...)] // Ainda devemos ressaltar a possibilidade de mudança das Histórias, levando-se em consideração nossa argumentação de que nem tudo que aconteceu torna-se passado, mas somente aquilo que tem o potencial de orientar o homem no tempo. Carr também tem observações nesse sentido, dialogando, inclusive, com Hayden White: “As participants and agents in our own lives, according to this view, we are forced to swim with events and take things as they come. We are constrained by the present and denied the authoritative, retrospective point of view of the story-teller. (...) narrative requires narration; and this activity is not just a recounting of events but a recounting informed by a certain kind of superior knowlodge. // [Como participantes e agentes das nossas próprias vidas, de acordo com essa visão, somos forçados a nadar com os eventos e tomar as coisas assim como elas vêm. Somos constrangidos pelo presente, e a autoridade, o ponto de vista retrospectivo do narrado nos é negado. (...) narrativa requer narração; e essa atividade não é apenas um recontar de eventos, mas um recontar informado por um tipo de conhecimento superior] This point is related to the distinction, long standard in the phillosophy of history, between narrative and chronicle: the chronicler simple describes what happens in the order in wich it happens. The narrator, by contrast, in virtue of his restrospective view, picks out the most important events, traces causal and motivational connections among them, and gives us an organized, co84

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como missão livrar os historiadores do medo que os assombram quando apenas se sussurra o nome de Hayden White, mas não apenas isso – comprei uma querela epistemológica, ética e política. Mas não é para falar disso que escrevo este texto que, hoje, trago aos presentes, e, portanto, peço desculpas. Peço também desculpas, tendo-se em vista as escusas que adotei acima ao despir-me de uma pretensão anterior de escrever este texto, uma vez que graças a ela apresento algo bastante informal; um texto não definitivo cujas referências não cito em bibliografia, senão da própria memória – portanto, um texto bastante antiacadêmico com sérios riscos de parecer precário e improvisado. Mesmo sob herent account. (...) [Esse ponto se relaciona com a distinção, há muito pardão na filosofia da história, entre narrativa e crônica: o cronista simplesmente descreve o que acontece. O narrador, ao contrário, em virtude da sua visão retrospectiva, escolhe os eventos mais importantes, delinea conexões causais e motivacionais entre eles e nos dá um relato organizado e coerente. (...)] // It is in this sense, perhaps, that Hayden White can compare the events of “real life”, “reality as it presents itself to perception,” to chronicle rather than narrative.” (Carr, 1991, p. 59). [É nesse sentido, talvez, que Hayden White pode comparar os eventos da “vida real”, “realidade como se apresenta à percepção” com a crônica ao invés de com a narrativa.] Sobre a mesma questão ainda vale citar: “more often, however, it is concerned with the past in order to render it coherent with or comprehensible in terms of a present and a future. (...) But a multiplicity of activities and projects, spread over time and even existing simultaneoulsy in the present, calls for an active reflection that attemps to put the whole together. (...). Psychoanalysis and other forms of psychotherapy often involve a similar sort of radical revision” (Carr, 1991, p. 75-76). [mais frequente, talvez, é a preocupação com o passado no sentido de torná-lo coerente com com, ou compreensível, em termos de um presente e de um futuro. (...) Mas uma multiplicidade de atividades e projetos espalhados pelo tempo e, mesmo, existindo simultaneamente no presente, requere uma reflexão ativa que intenta por junto o todo. (...) Psicanálise e outras formas de psicoterapias, frequentemente, implica uma sorte de revisão radical similar] // Isso Carr diz em defesa de que a narração, quando muda, não significa uma operação de ficcionalidade sobre a experiência, mas apenas uma reorganização do sentido (Bedeutung) do todo que compõe alguma identidade. A posição de Hayden White a respeito da diferença entre crônica e História, demonstrando como ficção e verdade se relacionam, pode ser verificada em White (1990). 85

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essas suspeitas, escrevo este texto, aceitando que as críticas desferidas a ele provavelmente não são indevidas ou impertinentes. Do que falei até agora, chamo atenção apenas para um aspecto: aceitando o desafio de White, sobre as múltiplas possibilidades de se narrar uma História, de se construir um enredo, paira a pergunta: e sobre os acontecimentos traumáticos, é possível escrevê-los de qualquer maneira? Tomei o Holocausto como tema da minha pesquisa para, a partir dele, estudar os limites da representação na História, portanto, uma discussão sobre o que a História pode narrar. É comum dizer e ouvir que todos os acontecimentos humanos são objetos da História, mas temo ter que discordar desta afirmação canônica, uma vez que os acontecimentos são apenas potenciais objetos da História, e a decisão sobre o tornarse ou não objeto é promovido por uma carência do homem em se orientar no mundo.2 Ao contrário do que estamos acostumados 2. Algumas referências à Rüsen, aqui, podem mostrar-se proveitosas. “As carências de orientação no tempo são transformadas em interesses precisos no conhecimento histórico na medida em que são interpretadas como necessidade de uma reflexão específica sobre o passado. Essa reflexão específica reveste o passado do caráter de “história”. // Se as carências de orientação no tempo são dirigidas ao pensamento sobre o passado, então são requeridos critérios de sentido. São estes que regulam o trato reflexivo dos homens com seu mundo e consigo mesmos. Eles decidem como deve ser interpretada a mudança do homem e de seu mundo, a fim de que se dêem orientações práticas da vida humana no tempo que tenham “sentido”, sem o que as carências de orientação não poderiam vir a ser satisfeitas” (Rüsen, Razão Histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica, p. 31). “Experiências que podem ser interpretadas para se constituírem como orientadoras da práxis humana da vida no tempo são sempre experiências do passado. À luz das idéias que consistem em perspectivas gerais orientadoras da experiência, o passado adquire, como tempo experimentado, a qualidade do histórico.” (Rüsen, 2001, p. 32.) Rüsen ainda distingue com mais precisão o que pode ser considerado como histórico: “Por princípio, nega-se aqui à história como suma de todos os objetos possíveis do conhecimento histórico qualquer objetividade: história é entendida como resultado de uma concepção de ações humanas (feitos) que somente se produz quando essas ações já ocorreram. Com outras palavras: nem tudo o que tem a ver com o homem e seu mundo é história só porque já aconteceu, mas exclusivamente quando 86

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a ouvir e falar, a História não é uma ciência do passado, mas sim do presente, uma vez que impelidos pela tradição e pela necessidade de orientação no mundo – portanto, de servir a uma práxis humana e conduzi-la de uma maneira ética – é que nos voltamos para o passado, e nesse retorno decidimos o que fará e o que não fará parte da História;3 deixando um escombro de possíveis fatos para trás e carregando consigo somente aquilo que pode iluminar presente e futuro. Dentre todos os acontecimentos da vida humana, brilha, ainda que fosca, a luz do passado, daquilo que foi. A ciência histórica ocupa-se dela, desse lumiar latente no agora, não do esplendor de sua cintilância. Porém, em meio à poeira do contingente e insignificante, que compõe toda a res gestae, este fraco lampejar destaca-se como um verdadeiro farol. Assim relacionam e distinguem-se passado e tradição; tudo aquilo que se torna presente, como passado, em um processo consciente de rememoração. // Parece então necessário concluir que só é história o que os historiadores extraem do que aconteceu. Ela não existiria “em si”, mas consistiria apenas no que se extrai do passado post festum”. (Rüsen, 2001, p. 68). Ainda: considerando uma situação onde um determinado ator ou comentadores contemporâneos acreditam estar fazendo/presenciando a História, ele adiciona: “Os contemporâneos supõe, por conseguinte, que uma consideração posterior do que está acontecendo agora, uma consideração, portanto, na qual o acontecimento é passado, conduz a uma avaliação que pensam poder antecipar desde já” (Rüsen, 2001, p. 69). Uma ação que pode ser considerada histórica é somente aquela capaz de, no presente, suprir uma carência de orientação do homem em sua práxis. Nisto Rüsen está evidentemente em consonância com Droysen, que diz: “O que nele [no mundo ético] ocorre diariamente não é feito ou desejado por nenhum estudioso como história. Somente o modo peculiar de encarar o acontecimento vivido diferente dos feitos comuns “faz do passado história” (Droysen, 2009, p. 61) 3. Cabe distinguir aqui duas coisas bastante diferentes, mas que nunca é demais deixar claro. A história-vida, ou seja, o mundo fenomênico que nos cerca, independentemente de alcançar ou não o apontado “potencial” em se tornar objeto da ciência histórica, é distinguido por mim, também, na forma de grafia, iniciando-se com uma minúscula. Já esta, a ciência histórica, a história-narrada, a disciplina histórica, feita somente pelos elementos fenomênicos relevantes para o agir humano actual, é grafada com maiúscula. Feita a observação, assim, o leitor poderá distinguir que se fala de história ou História pela forma como aparece escrita ao longo do texto. 87

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aconteceu e o que é, verdadeiramente, capaz de orientar a práxis humana no presente, consoante a suas ambições futuras. A proposta, então, deste estudo, é perscrutar se o Holocausto é um desses possíveis temas da História, se ele pode nos fornecer esta luz, se pode nos servir de orientação – se pode ser narrado. A resposta não necessariamente será unívoca, e realmente não será, uma vez que, adiantando a conclusão do texto, pretendemos demonstrar que o Holocausto não pode ser narrado, reconhecendo um limite da historiografia em temas que podem ser abordados; o que não tira do Holocausto esta capacidade de orientar o homem no tempo. A duplicidade da resposta que será dada pode ser difícil de compreender, mas, no fundo, a pretensão aqui é demonstrar que o Holocausto não pode ser narrado justamente pelos mesmos motivos que o permitem de suprir carências do homem de História e servir de exemplo para a construção de um futuro possível, diferente daquilo que o passado nos impele a ser, pela tradição que nos empurra e pela identidade que nos informa. Creio, portanto, que o primeiro passo para iniciar esta discussão será examinar o que entendo por evento traumático, que recairá, por conseguinte, num outro conceito chave que utilizo – a de evento-limite.4 A compreensão do que é um evento traumático não parece ser complicada, pelo contrário, é bastante óbvia. São eventos que marcaram negativamente a história-vivida de um povo, que abalaram o mundo, chocaram os sentidos e provocam em seus agentes e pacientes a sensação do trauma, uma sombra que ficará na memória coletiva não apenas daqueles que os vivenciaram diretamente, mas também de gerações futuras ou expectadores coetâneos desses eventos. Um evento traumático é, por assim dizer, uma ruptura naquilo que vejo ser a tarefa de uma História – construir uma identidade para aqueles que dessa 4. Cf. Nota 6 88

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narrativa fazem uso.5 A construção dessa identidade, falando brevemente só pode existir a partir de uma comunidade de sentido entre o narrador, o historiador, que tira do mundo da vida, das relações sociais, das práticas humanas o seu material para escrever uma narrativa. Essa narrativa, portanto, não pode escapar dos limites do público consumidor da História, daqueles que pretendem orientar-se por ela, ou seja, daqueles que pretendem construir uma identidade coletiva a partir de um passado em comum. Aplico aqui um par analítico trabalhado por Rüsen, para quem a História é a vontade do homem de alcançar uma transcendência, impor seu triunfo através do autoconhecimento cada vez maior, frente à fatalidade do tempo natural, tempo do ser-para-morte, o tempo do Lethes, que leva tudo ao esquecimento ao ser atravessado. Nessa tentativa de superar a morte, pois, é que o homem constrói sua identidade, e essa identidade não pode ser desprovida 5. Jeffrey C. Alexander, falando da “lay theory” do trauma (ou seja, uma teoria não científica, tal como é formulada no senso comum), define: “traumas are naturally occurring events that shatter an individual or collective actor’s sense of well-being”. [Traumas são eventos ocorridos naturalmente que danificam o senso de bem-estar de um ator individual ou coletivo]. // Uma formulação mais elaborada do que consistem os traumas é oferecida, citando Cathy Caruth. Eventos traumáticos são aqueles que não conseguem ser deixados para trás, sendo constantemente revividos. “The event cannot be left behind because “the breach in the mind’s experience,” according to Caruth, “is experienced too soon.” This abruptness prevents the mind from fully cognizing the event. It is experienced “too unexpectedly... to be fully known and is therefore not avaiable to conciousness,” Buried in the unconscious, the event is experienced irrationally, “in the nightmares and repetitive actions of the survivor” (Alexander; et al. 2004, p. 2-5). [O evento não pode ser deixado para trás porque “a violação na experiência da mente”, de acordo com Caruth, “é experimentada “muito inesperadamente... para ser conhecida em sua completude e é, portanto, indisponível para a consciência”. Enterrado no inconsciente, o evento é experimentado irracionalmente, “nos pesadelos e ações repetitivas do sobrevivente”.] Podemos entender o trauma como algo que não é apreendido em sua inteireza, cognitivamente, retornando e assombrando sempre quem dele padece; é um conhecimento reprimido que, para ser expurgado pela memória, necessita um trabalho de luto. 89

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de sentido e significado. Através do conceito de identidade muito precariamente esboçado aqui, podemos entender que um evento traumático é aquele que agride essa identidade a ser construída, colocando uma mancha na História desse povo, uma quebra na construção da identidade. É uma impossibilidade de se construir uma identidade posto que ela é quebrada, e sobre esse passado é impossível dar algum sentido. Um evento traumático é, portanto, historiograficamente falando, um evento-limite, e este limite trata justamente da sua possibilidade de ser narrado. Considerando o que foi dito acima a respeito do estilo de cada historiador e da variabilidade de narrativas que podem ser engendradas a partir de um mesmo evento ou um mesmo conjunto de fontes, entendemos que este evento-limite é o que não dá margem a duplas interpretações, várias atribuições de sentido, múltiplas e diferentes narrativas, considerando que além das condições de possibilidade de se estudar um assunto, da possibilidade de sua explicação e das diferentes formas de se organizar um enredo, ele está eticamente cerceado, podendo haver somente uma ou nenhuma narrativa a seu respeito. Podemos também considerar um evento-limite de outra forma, colocando-nos a seguinte questão: sendo a historiografia um exercício de reescrita do que já aconteceu e entendendo cada momento histórico em seus próprios termos, fugindo assim ao anacronismo, podemos historicizar estes eventos traumáticos? Podemos colocá-los em seus próprios termos e simplesmente dizer que o nazismo foi um fenômeno peculiar na Alemanha do pós-guerra, ou que o Holocausto foi entendido como uma necessidade do país em exterminar os judeus? Sendo mais direto: é possível historicizar o Holocausto?6 Aqui a resposta é uma negati6. Colocado o problema da historicização do Holocausto, podemos fundamentar o conceito de evento-limite pela tensão entre a transcendência dos valores, especialmente éticos, e a validade dessas normas éticas em cada estágio da humanidade. A possibilidade de narrar o Holocausto, vista pelo ângulo da possibilidade de sua historicização, emerge através do seguinte dilema: é possível entender uma época 90

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por seus termos sem que, com isso, tenhamos que renunciar valores de nosso próprio tempo? Ou ainda, conceber que há valores trans-históricos, no caso, uma concepção de homem, de bem e de mal, que possam ser considerados válidos em qualquer época? Colocando de maneira mais dramática o problema: a História em sua tarefa de compreender, necessariamente, implicaria um perdão ao passado, ou caberia espaço a julgamentos éticos? Martin Broszat, na conhecida e importante troca de missivas com Saul Friedländer, produz uma argumentação nesse sentido, ao defender a historicização do Holocausto. “The concept of historicization of National Socialism wich I make use of is ambiguous and can easily be misunderstood – in this I agree with you completely. In your critique, you proceed basically from the premise of the pervertibility of this concept, the ease wich it can be abused and misused, and not from what I indicated quite expressly as its objective and motivation (...). Due the fact that misunderstanding and distrust can nonetheless apparently remain extremely powerful factors, I would lie, at the outset of our discussion, to underscore quite clearly the following point. My concept of historicization was – and remains – bound up with two postulates wich are mutually conditioning and thus indispensable: First, it is based on a recognition of the necessity that, in the final analysis the Nazi period cannot be excluded from historical understanding – no matter how much the mass crimes and catastrophes wich the regime perpetrated challenge one again and again to take a stance of resolute political and moral condemnation. Secondly, my concept of historicization is founded on a principle of critical enlightening historical undestanding (Vestehen) this understanding, shaped in essential terms precisely by experience of National Socialism and the nature of man as revealed by the Nazis, should be clearly distinguesehd from the concept of Vestehen in the frame of German historicism of the 19th century, with its Romantic-idealistic basis and the one-sided pattern of indentification bound up with this notion. [O conceito de historicização do Nacional Socialismo, do qual eu faço uso, é ambíguo e pode facilmente ser mal-compreendido – nisso eu concordo com você completamente. Em sua crítica, você segue, basicamente, da premissa da perversibilidade desse conceito, da facilidade com que ele pode ser abusado e mal empregado, e não daquilo que eu indiquei muito expressamente como seu objetivo e motivação (...) Devido ao fato de que equívocos de compreensão e desconfiança podem, todavia, permanecer faotres extremamente poderosos, no princípio da discussão, gostaria de pontuar bem claramente o seguinte ponto. Meu conceito de historicização era – e continua sendo – ligado com dois postulados que são mutuamente condicioávies e, portanto, indispensáveis: Primeiro, ele é baseado no reconhecimento de uma necessidade que, ao cabo, o período Nazista não pode ser excluído da compreensão histórica – não importa o quanto os crimes em massa e catástrofes que o regime perpetrou desafiem agora e de novo, e de novo, para tomar 91

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como posição resoluta condenação política e moral. Segundo, meu conceito de historicização se fundamenta no princípio de crítica, iluminadora compreensão histórica (Vestehen) essa compreensão, formada em termos especiais, especialmente pela experiência do Nacional Socialismo e pela natureza do homem, tal como revelada pelos Nazistas, deve claramente ser distinguida do conceito de Vestehen no contexto do historicismo alemão do século 19, com sua base idealista-romântica e com a identificação parcialista ligada a esta noção.] // From my perspective, the concept of historical “insight” (Einsicht) appears more pertinent and to the point than that of “understanding” in regard to the ambivalence of post-National Socialism historicization. Insight in a double sense: seen, on the one hand, as a distancing explanation and objetification to be achieved analytically; and, on the other, viewed as a comprehending, subjective appropriation and emphathetic reliving (Nachvollzug) of past achievements, sensations, concerns and mistakes. Historical insight in this dual sense is quite generally – and not only in respect to Nazi period in German history – charged with the task of preventing historical consciousness from degenerating once more into a deification and idealization of brute facts of power, as exemplified by the Prussian-German historical tought of a Heinrich von Treitschke. A historicization wich remains aware of this double objective in gaining and transmitting historical insight is in no danger whatsoever of relativizing the atrocities of National Socialism (...)”. [Da minha perspectiva, o conceito de insigth histórico parece mais pertinente e direto ao ponto do que o de “compreensão”, no que diz respeito à ambivalência da historicização pós-Nacional Socialismo. Insight em duplo sentido, visto, por um lado, como uma explicação distanciadora e objetificação a ser alcançada analiticamente; e, por outro, visto como entendimento, apropriação subjetiva e revivescência empática (Nachvollzug) de feitos passados, sensações, preocupações e erros. Insight histórico, neste sentido dual é bem genérico – e não apenas em respeito ao período Nazista na Alemanha – carregado da tarefa de prevenir a consciência histórica de degenerar uma vez mais numa deificação e idealização de fatos brutos do poder, como exemplificado pelo pensamento prussiano-germânico de Heinrich von Treitschke. Uma historicização que permaneça informada deste duplo objetivo, de todo modo, não corre nenhum risco de relativizar as atrocidades do Nacional Socialismo] Esta citação é da primeira carta de Broszat para Friedländer, datada de 28 de Setembro de 1987. A questão volta e é largamente discutida ao longo das três trocas de missivas entre os dois autores, devido, especialmente, à incapacidade de Friedländer em aceitar a proposta de historicização de Broszat. Entretanto, fazer recurso às várias aparições do problema na discussão entre os eminentes historiadores seria inoportuno. Cabe, para pontuar a questão, demonstrar a resistência de Friedländer, expressa de maneira decisiva na última carta, datada de 31 de Dezembro de 1987: “In my opinion, the possibility 92

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of a historical narrative reaching a high degree of plastic representation, in the sense of the “historical narration” as you explained it in a very interesting way in your third letter, is relatively easy to achieve within realms of normality, but becomes a growing problem when you move to the other side of the spectrum. By the way, even within the real of normality, the image of the common “fellow-traveler” (Mitläufer) has become something of a stereotype, possibly the most widely used one in the representation of the Nazi era. In fact, stereotypization is very difficult to avoid when we approach this epoch, possibly because behind each specific case one tends to establish, implicitly or explicitly, the category of political-moralbehavior to wich the specifc case may be linked, this in itself being imposed by the existence of na outer limit of criminalty within the system. (...) [Na minha opinião, a possibilidade de uma narrativa histórica alcançar o alto grau de representação plástica, no sentido da “narração histórica”, como a explicou de um modo muito interessante em sua terceira carta, é relativamente fácil de alcançar dentro do domínio da normalidade, mas se torna um problema crescente quando você move para o outro lado do espectro. Aliás, mesmo dentro domínio da normalidade, a imagem do “companheiro viajante [seguidor]” comum (Mitläufer) se tornou algo como um estereótipo, possivelmente o mais largamente usado na representação da era Nazista. De fato, é muito difícil de evitar a estereotipização quando abordamos essa época, possivelmente porque detrás de cada caso específico se tenta estabilizar, implícita ou explícitamente, a categoria de comportamento político-moral ao qual o caso específico deve ser conectado, isto por si só sendo imposto pela existência de um limite externo da criminalidade interna ao sistema. (...)] // At some stage, a new style has to be introduced for the purpose of historical description, something we have not yet encountered very much in historiographical work. One could say, in fact, that for the historian who chooses narration regarding the immense majority of topics covered by historical inquiry, the duty is, in a sense, to try to render them with all the necessary plasticity: When we approach the immense domain of Nazi criminalty, the duty of the historian may well be to forgo the attempt to visualize, precisely so that he can fulfill his task in terms of documentary precision and rendition of the events”. [A algum estágio, um novo estilo tem que ser introduzido para o propósito da descrição histórica, algo que ainda não encontramos muito no trabalho historiográfico. Poder-se-ia dizer, de fato, que para o historiador que escolhe a narração dentre a imensa maioria dos tópicos contemplados pela pesquisa histórica, seu dever, em certo sentido, é tentar provê-los com toda a plasticidade necessária: quando nos aproximamos do imenso domínio da criminalidade Nazista, o dever do historiador pode muito bem ser o de renunciar a visualizar, precisamente para que possa cumprir sua tarefa no que diz respeito à precisão documental e capitulação dos eventos.] Ao “Bavarian Project”, que tentava estudar o Nazismo 93

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va, demonstrando, portanto, que um evento traumático informa um evento-limite, e este limite, por sua vez, pode ser entendido como uma necessidade de o presente acertar suas contas com o passado, não deixar escapar seus “monstros”, que o que sucedeu em determinada época não pode ser entendido restritamente em seus domínios contextuais, com sua temporalidade extrapolando a cronologia e se universalizando como um evento anormal e que deve ser julgado. Não há historicização que salve eventos como o Holocausto, as ditaduras na América latina, os crimes contra a Humanidade e os Direitos Humanos. É sobre este par conceitual que desdobrarei a minha análise.7 pelo cotidiano das pessoas normais, do qual Broszat foi colaborador, Friedländer opunha uma aproximação moral-pedagógica da História do Holocausto, impregnada de memória viva, tendo-se em vista a suposta necessidade do acontecimento de Auschwitz. “Moreover, we have not yet given proper consideration to what is a very new problem, namely that of historical “boundary event”. As I see it, Auschwitz constitutes just such a “boundary event” – a phenomenon that is not necessarily singular, but wich remains unprecedented. To return to Habermas, whom I quoted in my last letter: “A deep layer of solidarity between all that bears a human countenance was touched here”(Gigliotti, 2005). [Ademais, ainda não demos apropriada consideração àquilo que é um problema muito novo, nomeadamente aquele do “evento-limite” histórico. Como eu o vejo, Auschwitz constitui um tal “evento-limite” – um fenômeno que não é necessariamente singular, mas que permanece sem precedentes. Para retornar a Habermas, a quem citei na minha última carta: “Uma camada profunda de solidariedade entre tudo que carrega a aparência humana foi, aqui, tocado.”] Assim, Friedländer, contrapondo à necessidade de historicizar o Holocausto, coloca-o sob o mesmo rótulo que nós, de um “evento-limite”. A tensão dialética entre manter a memória viva e provocar o esquecimento pelo perdão fica bem exemplificada aqui. É, ao fim, uma tensão existente no conceito de representação, que ao mesmo tempo faz algo viver e diz respeito a algo ou alguém (Cf. nota 16). Enfim, toda a questão pode ser reduzida ao problema: narrar, compreender, historicizar e compor identidades passariam, necessariamente, pelo perdão, uma memória feliz, reconciliada consigo mesmo? Poderíamos compreender a historicização de uma maneira compatível também com o julgamento moral? 7. Aqui se pode aventar, também, se os diferentes eventos traumáticos, todos eles, seriam impossíveis de se narrar. Acredito que não, por vários motivos, e aqui apenas destacarei dois. O primeiro é que os traumas incidem de maneiras diferentes sobre 94

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II O poder da palavra: este sim é o tema deste pequeno trabalho que pretendo apresentar. A narração histórica, sendo como é uma narração - e aqui não distinguiremos entre narração ficcional e narração histórica, posto que neste momento isso não teria valor para a nossa análise – é formada por palavras; e a elas credito um poder. A palavra, enquanto historiografia, é a actualização8 do passado em linguagem, é um trazer à vida aquilo que já não existe mais, é colocar no texto uma sensação de presença daquilo que existiu, mas que não podemos tocar. A palavra, portanto, as identidades coletivas, podendo o silêncio variar, de caso para outro em sintoma ou motivo do trauma, na medida em que aqueles que constroem suas identidades se vêem mais como vítimas ou perpetradores do episódio desencadeador do trauma – mas essa diferença não omite o papel da dor que causa falar desses eventos; creio, apenas, que o trabalho de luto se desenvolve de maneiras diferentes em casos diferentes. Deve-se observar também a volatilidade com que se pode aplicar o conceito de trauma. Seu uso indiscriminado pode ser prejudicial para o procedimento analítico, uma vez que uma larga escala de eventos pode ser, com maior ou menor grau de justiça, considerados traumáticos. Nesse sentido, tanto para expurgar o temor da imprecisão e arbitrariedade ao se rotular traumático determinado passado, creio ser importante o exercício comparativo – e, de tal maneira, identificar a unicidade de cada um dos eventos. Julgo, portanto, ser o Holocausto um evento único e que, especificamente ele, não pode ser narrado – sobre os demais eventos que eventualmente sejam taxados de traumáticos, antes de verificar a possibilidade de sua narrativa ou não, deve ser investigada a especificidade desse trauma. De resto, é necessário adicionar, levando-se em consideração a relação entre História-Identidade Coletiva, acredito que o potencial narrativo dos eventos traumáticos também varia. Tendo isto em mente, uma assertiva peremptória a favor ou contra a possibilidade de narrar o Holocausto, dada como definitiva, é imprudente e passível de erro. Entretanto, estes, que são desdobramentos posteriores da minha pesquisa, não devem ser mais do que evocados aqui, posto não ser este o espaço mais apropriado para levar a termo à discussão. 8. Uma nota para explicar uma aparente excentricidade da escrita. Prefiro grafar actualidade, da maneira como está, para explicitar sua derivação da palavra acto, actualizar. Narrar, portanto, é uma performance – ela faz algo com o passado – uma sua presentificação. 95

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é aquilo que constrói o passado, tornando-o presente. Eventos traumáticos como o Holocausto e outros fenômenos do século XX engendram uma nova temporalidade histórica, diferente da moderna, onde, depois de tanta destruição, guerras, genocídios, violências, pretende-se preservar o quanto mais o passado, com medo de que ele desapareça, e construímos uma fobia do futuro, com medo daquilo que ele pode nos oferecer. Queremos andar a passos lentos ou ficar parados, não queremos destruir nada e colocar tudo o que existe à disposição de nosso tempo, a despeito de sua visível aceleração. Usando as categorias antropológicas temporais forjadas por Koselleck, não quero com isto dizer que o espaço da experiência e o horizonte de expectativa voltaram novamente a se aproximar e tornar a evolução lenta. Paira sobre nós o discurso do progresso e do tempo acelerado, mas temos uma ânsia de presente, fenômeno e experiência que Hartog define como presentismo e Gumbrecht descreve como um cronótopo do presente amplo.9 Essas considerações a respeito 9. Sobre a temporalidade, muito se pode discutir a respeito e as opiniões não são concordantes. Coloco-me contrário à posição de que o “tempo presente” é da inação, ou seja, desprovido daquilo que Koselleck chama de “horizonte de expectativas”. Acredito que, mais do que apenas planejar ou vislumbrar um futuro, seja ele matizes de um futuro radicalmente diferente do agora, ou uma perfeita perpetuação do passado – acredito, com o próprio Koselleck e suas fontes de inspiração, que considerar um tempo diferente do agora, tanto recuado ou adiantado, é um dado antropológico inescapável, do qual um contexto histórico não pode constituir exceção. Portanto me coloco à parte dos que entendem o “presentismo” como uma moléstia ou incapacidade do homem para agir e pensar no futuro. Também não entendo esta “nova temporalidade”, que talvez nem exista, como a imutabilidade dos tempos. Ao contrário, devido a grande velocidade das mudanças, típica da modernidade, é que se faz necessário um apego ao passado, que resulta no desejo de tudo manter, de preservar, transformar as coisas, por natureza perecíveis e temporárias, em monumentos à eternidade. Também não compactuo com os que enxergam a contemporaneidade como “pós-modernidade” – que, ironicamente, expõe em si a necessidade de cortes e superação, caracteristicamente modernas. Entendo, ao contrário, nosso tempo como a manifestação da face melancólica da modernidade. Cf. Hans Ulrich Gumbrecht. Graciosidade e Estagnação: Ensaios Escolhidos. Rio 96

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do tempo são necessárias para argumentar que a tarefa da história de tornar o passado presente, em relação ao Holocausto, não é totalmente compatível – uma vez que o próprio Holocausto é algo presente, contemporâneo a nós.10 Ao mesmo tempo o Holocausto é a morte de milhões de judeus, ciganos, apátridas e associais. Considerando a possibilidade de ele ser um passado, seria desejável a sua atualização enquanto presente? Seria agradável lembrarmo-nos de tais terríveis acontecimentos? Tê-los diante de nós, pela escrita, tornados existentes? Creio que para responder a estas perguntas posso recorrer a uma metáfora, onde um homem desfigurado, mas com uma vaidade narcísica encara um espelho e não se reconhece na imagem refletida. Nega-a como sua ou simplesmente, por opção, prefere enxergar o espelho refletindo o nada, como se sua feiúra não existisse. O mesmo se dá com o Holocausto, encarnado como o Mal. O Homem venerando suas virtudes e crendo-se Humanista, por reconhecer no outro ele mesmo, ao encarar este espelho que mostra-lhe seu lado perverso, opta por não vê-lo. Narrar um fato, portanto, é uma forma de lhe dar vida. Em qualquer outro evento que não seja limite, que não seja traumático, que não desafie os limites da representação histórica, a realização do passado pela palavra serviria como cura; sua presentificação seria algo grato, fazer o passado viver novamente, ultrapassar os limites da morte e alcançar a eternidade. Em todos os casos, desconsiderando-se os de Janeiro: Contraponto, PUC-Rio, 2012. Hans Ulrich Gumbrecht .Atmosphere, Mood, Stimmung: on a hidden potential of literature. Palo Alto: Stanford University, 2012. François Hartog. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, para listar apenas algumas referências nas quais, recentemente, esses autores trabalharam o tema da temporalidade. 10. Uma impertinente pergunta se coloca: qual é a tarefa da História, em temporalidades que se querem eternas? Como se opera a relação em transformar algo passado em presente, se tudo pretende ser coetâneo a tudo? E, mais especificamente, considerando o que foi dito sobre a tradição enquanto passado-presente: que tipo de presença é o Holocausto, uma vez que, supostamente refratário à historicização, é-lhe vetada a actualização? 97

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eventos limites, a palavra teria o poder de cura da perda do que se foi e da construção da identidade. Mas, como algo que queremos negar, que quebra a nossa identidade, essa realização do passado em presente pela linguagem deixa o seu poder de cura de lado e passa a ser uma violência contra a pudicícia deste Homem. Creio que pelas palavras escolhidas aqui, ao falar da presentificação do passado pela narrativa histórica e ao usar a metáfora de um espelho, quando falo em negar, não quero de maneira nenhuma inspirar o negacionismo do Holocausto. Pelo contrário, quero demonstrar como ele é refratário aos tipos de representação a que podemos ter acesso historiograficamente; negar, aqui, não é dizer que não aconteceu, é simplesmente não se reconhecer no horrível e não conseguir admitir no humano tamanho horror capaz de dar vazão a violências terríveis – é a incapacidade humana de reconhecer seu próprio potencial de Maldade. Daí, portanto, para descrevermos estes eventos, os colocamos como limites e descrevemos os personagens que deles participaram como monstros. Queremos negar sua humanidade, pois esta é a única forma de tentar compreendê-lo, como, até então, acredito. Falamos aqui do poder da palavra com seu potencial curativo e eternizador do passado. Como, por exemplo, um homem que perde seu filho e, para fazê-lo viver, narra histórias sobre ele, ou mesmo conta sua perda. Isto provoca a ilusão de que o filho ainda está vivo, e de fato estará enquanto puder ser narrado. Esse potencial de atualização da linguagem é uma das facetas de seu poder, mas há outra, nefasta, da qual passarei a falar adiante para, em seguida, chegar à conclusão já anunciada no princípio: de que o Holocausto não pode ser narrado e, ao mesmo tempo, possui esse potencial orientador necessário ao homem – não o potencial de construir uma identidade, coisa a que destrói, mas sim para servir de lição, para que não se repita novamente, para que nós permaneçamos atentos a qualquer sussurro que possa se tornar um berro ensurdecedor, a qualquer goteira que possa tornar-se cachoeira, para que todo pequeno acontecimento aparentemente despretensioso 98

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não desencadeie os horrores que a humanidade é capaz de produzir, justamente por sua incapacidade em Ser Humano. Fica e serve de lição do Holocausto a perseguição do homem pela sua humanidade e pelo reconhecimento de si no outro, a fim de que não criemos monstros mais.

III Num de seus diálogos, “Fedro”, Platão discute com este sobre o amor e a beleza.11 No início, confundidos pelo discurso de Lísias que afirmava ser melhor para o amante escolher o não amado, posto que as loucuras da paixão desnorteavam o homem e tiravam-no de seu juízo perfeito, levando-o a cometer atos insanos, o próprio Sócrates é levado por seu interlocutor a defender semelhante doutrina. Porém, depois, cai-lhe uma luz e percebe o esquecimento de que não se dera conta. O amor, a paixão é, sim, algo de loucura, não uma loucura por parte da razão humana, mas sim de inspiração divina – pois não era Eros, deus do amor erótico, filho de Afrodite, a deusa virgem da beleza? Dando-se conta disso, Sócrates, como é de se esperar em qualquer diálogo platônico, leva seu interlocutor a concordar com ele. As atrocidades do século XX, em especial o Holocausto, tema que adotei como pretexto para analisar a Teoria da História em sua vertente narrativista é uma mostra bastante pertinente da falta de amor dos homens. Necessitaríamos de um sopro divino, de uma Afrodite ou de um Eros para começarmos a amar uns aos outros? A razão e a emoção humana não bastam para reconhecer que há um outro, por mais diferente que ele e por mais diferente que ele se apresente, ele é o mesmo que o si? É uma tarefa tão ardorosa amar e não excluir, contrapor o idêntico ao não-idêntico? Em uma absolutização do Geist hegeliano, excluirmos os outros, 11. Cf. Platão (2008) 99

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como aponta Adorno em sua Dialética Negativa?12 Sim, tudo nos leva a dizer sim. Amar é um vir-a-ser, um acontecimento, uma tarefa que deve ser encarada de frente, do contrário o Holocausto não poderá servir de lição para ninguém e será incapaz de lançar luz sobre qualquer perspectiva de futuro harmonioso. Não retomamos a Historia Magistra Vitae, como dito acima, ao explicitar que a nova temporalidade engendrada pelos eventos-traumáticos não se tratava de uma reaproximação do espaço de experiência e do horizonte de expectativa, mas sim a criação de uma jaula, onde tudo deve permanecer, nada perecer. Voltando ao diálogo platônico, é interessante notar que nele é explicitado o mito de Fedro. A conversa entre Sócrates e Fedro, na constante crítica platônica aos filósofos pré-socráticos, ditos sofistas, para quem a verdade não importaria, mas sim o poder de convencimento da retórica, e que mesmo num tribunal essa era a lei que prevalecia. Ou seja, a verdade, junto com a palavra, é vista sob olhares suspeitos. Ela pode enfeitar, disfarçar, convencer que o errado é o correto; portanto não é de se admirar com o mito que nos narra Sócrates. Em Naucrátis, uma colônia grega no Egito, o deus Toth, deus egípcio associado à mágica, sabedoria, palavra falada e escrita, inventor de diversas coisas, presenteia Tamos, o rei de todo Egito na época narrada com várias destas invenções, a mais importante delas, a palavra escrita. Tamos, ao comentar os presentes dados pelo deus, suas vantagens e desvantagens, teceu comentários sobre a escrita. De acordo com o ele, a escrita ampliaria a memória dos egípcios e lhes daria o poder da memória eterna, através da fixação da palavra falada, transformada em escrita. A escrita é eterna, perene, enquanto o verbo falado se perde e cai no esquecimento. Porém esta invenção não agradou o rei egípcio que declarou ao deus ser ela muito perigosa. Fixando a palavra em escrita, ela tiraria 12. Cf. Adorno (2009);Adorno (1995); Alves (2003). 100

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a verdadeira memória dos homens, a memória que carregavam na consciência e, ao escrever, essa memória da consciência seria esquecida, uma vez que agora possuía um suporte que garantiria sua eternidade. Temos aqui um segundo exemplo do poder da palavra. Antes, acima, a escrita era caracterizada como aquilo que fazia o passado presente, aquilo que lhe dava visibilidade, inteligibilidade e vida, antes de tudo – e principalmente! – a eternidade. O passado poderia ser feito presente. Mas agora, sob as suspeitas de Platão sobre aquilo que se escreve, explicitada pelo mito de Fedro, a palavra escrita seria justamente um alívio para a verdadeira memória e escrever tornou-se um ato de esquecer. O fardo do passado, posto em narrativa, deixava de ser um fardo da memória, que poderia esquecê-lo, enquanto a escrita supostamente lhe garantiria a vitalidade necessária. Assim, hemos de dar razão ao rei egípcio! Este invento, antes de ser um remédio contra o esquecimento, era uma droga contra a própria memória verdadeira! Escrita, ela não era a mesma, senão para aquele que a escreveu, releu e lembrou-se do que era. Transitando pelo tempo histórico, essa palavra escrita perderia seu sentido, seu significado, não semearia nada, nenhuma memória, tornar-se-ia inteligível e os homens do futuro não a compreenderiam como o homem que a escreveu o compreenderia. Isto fica explicitado, por exemplo, no anti-historicismo de Ricoeur, quando diz que a carta de Paulo aos Coríntios foi tanto escrita para eles quanto para ele próprio, uma vez que era capaz de atravessar os tempos e tornar-se acessível a todos os homens. Ou seja, perdeu seu mundo, perdeu seu contexto e viajou pelos tempos onde uma espiral hermenêutica, se encontra com outros mundos, outros públicos.13 13. “Não é a intenção do autor, que se encontra supostamente oculta por detrás do texto; não é a situação histórica comum ao autor e aos seus leitores originais; não são as expectativas ou sentimentos desses leitores originais; nem sequer a compreensão que de si tinham como fenómenos históricos e culturais”. Em seguida: “O laço entre o desvelamento e a apropriação é na minha opinião, a pedra angu101

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Esse phármaco era indesejável – em altas doses poderia ser fatal e levar o homem ao completo esquecimento do passado, uma vez que escreveria para esquecer, e o escrito, que deveria lembrá-los, perderia essa vivacidade da palavra que acima mostramos. Atrevome aqui a uma comparação entre a palavra escrita e a memória verdadeira, ao mundo das formas de Platão – enquanto a verdade estaria neste mundo intangível, no mundo das ideias, a realidade apenas seria uma imitação, uma mímesis do real. Assim seria com a palavra escrita, uma mímesis da verdadeira memória, portanto, uma memória falsa. E como ao dizer isto já entro no campo da impertinência, concedo a mim mesmo a liberdade para transpor essa metáfora do mito de Fedro em outros termos – para a fenomenologia-hermenêutica. Assim interpreto livremente os conceitos de Lebenswelt, o mundo da vida, e o de Textwelt, o mundo do texto. O mundo da vida é agitado. É a experiência em seu desdobramento. O homem vive nesse mundo da vida. Ao transferir a experiência para o texto, é esta mesmo que se perde. No texto, o mundo perde seu colorido e transforma-se em sentenças, frases, parágrafos. O mundo do texto não é o mundo da vida e jamais poderia lar de uma hermenêutica que pretenda superar as deficiências do historicismo e permanecer fiel à intenção original da hermenêutica de Schleiermacher”. Ainda: “De acordo com um segundo equívoco, a tarefa hermenêutica deveria reger-se pela compreensão do endereçado original do texto. Semelhante tarefa é, como convicentemente demonstrou Gadamer, concebida de um modo totalmente errado. As cartas de Paulo não são menos dirigidas a mim do que aos Romanos, aos Gálatas, aos Coríntios e aos Efésios. Só o dialogo tem um , cuja identificação precede o discurso. O sentido de um texto está aberto a quem quer que possa ler. A omnitemporalidade da significação é o que abre a leitores incógnitos. Por isso, a historicidade da leitura é a contrapartida desta omnitemporalidade específica; porque o texto se subtraiu a seu autor e à sua situação, subtraiu-se igualmente ao seu destinatário original” (Ricoeur, 2009, p. 129-131). Em seus ensaios sobre hermenêutica, Ricoeur também trabalha a questão da “perda-do-mundo” por que passa um discurso escrito. Cf. RICOEUR, Paul. Do texto à acção: Ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés, 1989. 102

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conhecer sua riqueza. O mundo do texto é um discurso produzido sobre a verdadeira experiência, onde esse discurso produzido tomaria o lugar do real acontecimento.14 Portanto, se nos atre14. Como dito, a metáfora acima trata-se, realmente, de uma grande impertinência no uso dos conceitos husserlianos de “mundo-da-vida” e “mundo-do-texto”, somente permitida pelo espírito subversivo do autor e de sua inconsequência jovial. Mesmo tendo consciência disto, ela não será corrigida, porém, será melhor localizada. Seguem-se algumas referências a respeito do significado de “mundo” [Welt], “mundo-da-vida” [Lebenswelt] e “mundo-circundante” [Umwelt] nas obras de Husserl, levando-se em conta as mudanças em sua trajetória. Em seu Ideias, quando buscava fundamentar uma ciência fenomenológica pura, cujo objeto deveria abstrair-se de todas as suas referências sociais, culturais e históricas, Husserl define: “O conhecimento natural começa pela experiência e permanece na experiência. Na orientação que chamamos “natural”, o horizonte total de investigações possíveis é, pois, designado com uma só palavra: o mundo. As ciências dessa orientação originária são, portanto, em sua totalidade, ciências do mundo, e enquanto elas predominam com exclusividade, há coincidência dos conceitos “ser verdadeiro”, “ser efetivo”, isto é, ser real e – como todo real se congrega na unidade do mundo – “ser no mundo” (Husserl, 2006). Consta, esta citação, do parágrafo primeiro. Ainda no mesmo livro, talvez pelos limites da sua pesquisa identificados pelo próprio autor, ou por já conhecer o trabalho que vinha sendo desenvolvido por seu pupilo Heidegger a respeito da “historicidade” [Geschichtlichkeit], Husserl percebeu que toda a ciência de orientação eidética estaria limitada ao mundo onde são feitas as reduções fenomenológicas, chegando a um impasse. Portanto, antes ainda de desenvolver plenamente o conceito de Lebenswelt, Husserl falou, especialmente nos parágrafos 28 e 29 do Ideias, sobre o Umwelt, onde a possibilidade de se chegar a uma verdade estaria condicionada ao próprio tempo do investigador. “Os complexos de minhas espontaneidades de consciência, em suas diversas variações, tais como o ato de considerar de maneira investigativa, de explicitar e conceitualizar na descrição, de comparar e distinguir, coligir e contar, pressupor e inferir, em suma, a consciência teórica em suas diferentes formas e níveis se refere, portanto, a este mundo, o mundo em que me encontro e que é ao mesmo tempo mundo que me circunda.” Isto no parágrafo 28. No seguinte: “Tudo aquilo que vale para mim mesmo, vale também, como sei, para todos os outros seres humanos que encontro no mundo que me circunda” (Husserl, Idéias para uma fenomenologia pura e para um filosofia fenomenológica, 2006). Ao perceber a importância da intersubjetividade para a fenomenologia, Husserl avança em seus estudos sobre o significado do mundo, desenvolvendo o conceito de Lebenswelt. Coincidentemente também no parágrafo 28 de Crise¸ Husserl, analisando os méritos e as deficiências do trabalho 103

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vermos a narrar o Holocausto, este não seria o Holocausto, mas um discurso qualquer produzido sobre ele. O Holocausto em-si perder-se-ia numa multidão de palavras que seria o texto. Reconhecemos agora a segunda face do poder da palavra – o de fazer esquecer, o de substituir o real pelo produzido, o transformar a coisa acontecida em mera narração – por mais forte e impactante que essa narração possa ser. Reunindo agora o poder da palavra em ambas suas dimensões, a do fazer reviver o passado e a de substituir o passado por um discurso, podemos esboçar uma conclusão. Dissemos que o Holocausto enquanto evento-limite-traumático sobrevive a qualquer historicização que tente justificá-lo e escapa ao ser humano, não cognitivamente, mas a sua vontade de se ver representado por estes fatos. Atualizar o Holocausto, dar-lhe uma vida com esse poder institutivo da palavra, seria dar vida à morte. Por outro lado, narrar o Holocausto seria extingui-lo da sua facticidade e torná-lo eterno, sim, mas eterno enquanto um discurso sobre ele. Entendemos, portanto, que o Holocausto não pode ser narrado por sua capacidade refratária à formação de uma identidade Kant para fundamentar o conhecimento, elucida o “mundo-da-vida” como algo ainda não elaborado filosoficamente. “É claro que, nas problematizações kantianas, o mundo circundante cotidiano, onde todos nós e também eu que, em cada caso, filosofo, de maneira consciente, existimos, se encontra de antemão pressuposto como existente; o mesmo vale para as ciências, como fatos da cultura deste mundo, com os seus cientistas e teorias: também elas existem no mundo circundante quotidiano. Em termos do mundo da vida, somos nele objetos entre objetos, como estando aqui e ali, na certeza simples da experiência, antes de quaisquer verificações científicas, sejam elas fisiológicas, psicológicas, sociológicas etc” (Husserl, 2012). Adiante, Husserl elabora melhor esta mesma noção. Podemos dizer que o “mundo da vida” é o mundo pressuposto, mesmo que dele não tenhamos consciência, para nosso agir ativo e passivo, e do qual deriva toda a ciência natural. Como aqui apenas elaboro um esboço de tais noções para aliviar a impertinência da metáfora que utilizei, não posso ir adiante. Porém a noção de mundo da vida e da experiência ganha contornos de grande importância no decorrer da minha pesquisa. 104

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de, a uma atribuição de sentido e de significado15 à História e, ao mesmo tempo por ser uma substituição de algo que aconteceu por um discurso que poderia levá-lo ao esquecimento.16 Tendo-se em vista as limitações éticas, defendo que o Holocausto foge a qualquer17 narratividade, pois é impossível narrar sem atribuir sentido. No máximo podemos colocá-lo em um formato de crônica, uma espécie de escrita pré-historiográfica. Para tornar mais claro a impossibilidade de narrar o Holocausto, tomemos como exemplo as palavras de Primo Levi, sobrevivente e o escritor mais lúcido que conheço a respeito das experiências num campo de concentração. Em os Afogados e Sobreviventes,18 os sobreviventes não podem ser testemunhas do Holocausto, pois este foi a erradicação de milhões de pessoas – os 15. Esta é a segunda vez no texto que utilizo, conjuntamente, por considerar distintas, as palavras sentido e significado. Uso-as como traduções respectivas do alemão Sinn, e Bedeutung. Sentido seria uma espécie de verdade revelada, operada pela historiografia – que seria construção ou reforço da identidade. Significado, por sua vez, seria a coesão que os eventos narrados possuem entre si, sua conexão, e sua “redenção” no final, como sugere Kermode (2000 [1965]). 16. Aqui, o problema da historicização do Holocausto é colocado novamente, porém em outras roupagens. Este segundo poder da palavra, esboçado aqui, seria o poder de perdoar. Escrever História seria uma tensão entre lembrar e esquecer, entre actualizar, tornar presente o passado, presentificá-lo, e livrar-se dele (Cf. nota 6). A tarefa de forjar uma identidade seria levada a cabo tanto pelo poder de orientação, quanto pela sensação de reconhecimento, forças opostas que operam dialeticamente na escrita da História. Isto explica, ao mesmo tempo, nossa conclusão dúbia a respeito da possibilidade do Holocausto ser um objeto da História. Ao mesmo tempo em que tem esse potencial orientador da práxis, a inibe, ao não conseguir constituir uma identidade. Dá-se um passo em relação ao problema sobre que tipo de presença é o Holocausto, enquanto evento traumático: a força de sua memória, relutante em se modificar e ceder à historicizações, seria o empecilho a sua narrativização. Poderíamos, ainda, acrescentar à metáfora acima, tomando como referência o mito de Fedro: que a memória “verdadeira” do Holocausto persevera em compensação à impossibilidade de torná-la uma narrativa eterna. 17. Um exagero da época em que escrevi este texto, com o qual não mais concordo, como se vê na nota 7. 18. Cf. Levi (1990) 105

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afogados. Os sobreviventes não experimentaram o Holocausto e, inclusive, perderam a sua humanidade.19 Talvez essa morte, sim, mereça ser contada. A SS, responsável pelos campos de extermínio, sabia fazer os judeus entenderem que a morte, a cremação e o gás não eram as piores coisas que poderiam acontecer com os prisioneiros, mas sim uma série de medidas que os desumanizavam, que os agrediam e violentavam de diversas maneiras – estas sim podem ser contadas. Como a de um senhor, citado por Levi, que deitado em seu catre agradecia e rezava a deus por não ter sido escolhido para ir ao crematório. Mas não sabia ele que outro havia ido em seu lugar? Não sabia que amanhã ele poderia ser o próximo? Uma narrativa do Holocausto é, portanto, impossível também quanto às testemunhas. Não porque os nazistas tinham sido experts em apagar seus rastros, desenterrar os corpos, destruir os crematórios e queimar seus documentos. Mas porque aqueles que verdadeiramente experimentaram o Holocausto não podem nos contar sobre ele. Eles não existem mais, e sobre a morte – é impossível falar.20 Os sobreviventes, em sua ânsia de contar suas experiências, recorrentemente deparavam-se com a incredulidade dos outros, pois este terror extrapolava os sonhos mais terríveis que alguém poderia ter. O genocídio, principalmente o judeu perpetuado pelos alemães, não era concebível para nenhuma mente sensata. Logo, a ânsia de contar, de narrar, de fazer sobreviver sobre as cinzas aquilo que aconteceu com os outros recaía num desses poderes da linguagem. Contar a expe19. Acrescendo à imagem do homem feio que não se reconhece no espelho, por outro lado, podemos pensar também em um corpo que, simplesmente, não reflete uma imagem no espelho – esta seria a sua humanidade, a capacidade de se reconhecer e reconhecer o outro, perdida nos Läger. A perda de nitidez deste reflexo, sim, teria uma História. 20. Outra questão impertinente, portanto importante, surge aqui: se escrevemos Histórias justamente por não termos presenciado o passado, para colocar algo em seu lugar, a mesma situação que se afigura às testemunhas do Holocausto não seria uma metáfora da própria condição do historiador? Esta sugestão exige um estudo do papel da especificidade “do que restou de Auschwitz”, como diria Agamben. 106

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riência do Holocausto era algo libertador ou algo que impingia às próprias testemunhas dor, tristeza e culpa de ter sobrevivido enquanto outros morreram – sim! – em seu lugar? Tendo mais a crer nessa culpabilidade do sobrevivente de uma experiência traumática, mas bem sei que existem os casos libertadores. Não obstante, em vários relatos de sobreviventes, nos amarguramos com o ódio que eles sentem pelo que sofreram e uma quase necessidade de revanchismo.21

IV Para concluir, volto a Rüsen, mas em texto diferente. A primeira menção a ele tratou-se de um recurso à sua obra Razão Histórica, onde, na edição brasileira, há um capítulo especial para tratar do Holocausto. Posteriormente, em um artigo em que se ocupou de pensar se o passado pode se tornar melhor,22 ele concluiu, com base em relatos de sobreviventes que sim, o Holocausto pode ser narrado. Isto porque o sentimento de culpa, de querer morrer, de desesperança não triunfava sobre a necessidade de contar às gerações futuras e preocupar-se com que nada de parecido jamais ocorresse novamente. Tratava-se de um “mais” que o homem, carente de História, sempre, para conseguir ser orientado no tempo, adicionava, em sua práxis, um desejo de um futuro melhor. Agora Rüsen não analisava o fenômeno da História apenas pelo ângulo da construção de identidades, mas incorporando uma das teses sobre a História de Benjamin, vislumbrava o triste anjo olhando para o passado em ruínas e desejava um «agora», para que a construção do futuro fosse uma ruptura, uma realização de desejos passados e de suas

21. Cf. Levy (2006). Alguns desses casos encontram-se exemplificados aqui. 22. Cf. (Rüsen, 2011, p. 32). 107

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possibilidades que não se concretizaram. Mas seria viável, hoje, essa nova postura de Rüsen?23

V Não, não creio. Ainda não. Enquanto o homem não aprender o que é amor, enquanto esta tarefa e dever não for levado a sério, o Holocausto será sempre refratário a narrativas. Repito algo que já disse, tirado de Jaspers:24 enquanto o homem não se reconhecer como homem e também ao outro como tal, e por serem ambos homens, estabelecerem os direitos humanos e se reconhecerem numa comunidade universal, sem fronteiras, chamada Humanidade, seremos incapazes de narrar o Holocausto. Para narrá-lo é preciso superar alguns obstáculos, ao menos é o que creio até o momento. Fazendo agora coro com Ricoeur, é preciso aprender a perdoar. Somente quando houver o perdão entre as partes, somente quando a culpa for assimilada e o ressentimento extinto, novamente recorro a um impressionismo sobre o qual não posso, agora, afirmar nada de definitivo, será possível tratar o Holocausto não mais como um evento-traumático-limite, mas sim como outro evento. Não qualquer evento também – não podemos apagar a tristeza e a amargura que nos inspira tamanha crueldade. É por seu terror que ele é tanto uma experiência para orientar o homem quanto um não-objeto da historiografia. Mas poderemos pelo menos tratar do assunto historiograficamente, uma vez que ele apenas se encontra no âmbito da memória, atualmente. E que jamais seja esquecido. 25 23. A resposta a esta pergunta requer um estudo da constituição de diferentes gerações de sobreviventes e perpetradores do Holocausto, bem como de seus historiadores, especialmente, alemães e judeus. O próprio Rüsen tem um artigo a esse respeito. Cf. Rüsen (2002). 24. Cf. Jaspers (2000). 25. Não poder narrar o Holocausto historiograficamente não significa, porém, que não se possa construir discursos sobre ele. O choro, o grito entalado na garganta 108

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