Captain America and Bucky: Socando Nazistas, Esmagando Comunistas. Uma breve analise dos Comic Books do Captain America (1941-1954)

October 18, 2017 | Autor: Carlão Botto | Categoria: Comic Book Studies, Comic books
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ANAIS DO EVENTO

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COMISSÃO CIENTÍFICA:

Prof. Dr. Rodrigo Paziani, Prof. Dr. Gilberto Calil, acad. Lucas Gaspar, acad. Caio Machado, acad. Rafael Krupiniski, acad. Franciele Turatto, acad. Janaina Rodrigues, acad. Heliab Borges.

COMISSÃO ORGANIZADORA: acad. Paloma Mariano, Prof. Joselene Ieda, acad. Alex Griebeler, acad. Alex Sanoto, acad. Vanessa, acad. Julia Borelli, acad. Fernando Alflen, acad. Alessandro Pimentel, acad. Pedro Miranda, acad. Raiane Ramirez, acad. Diogo Mattiello, acad. Saieny Phlippsen, acad. Iracema Paiva, acad. Raquel Oliveira, acad. Danieli Gish, acad. Kalitha Mariano, acad. Aline Michele, acad. Alessandra Bastos, acad. Juliano Konrad, Prof. Poliane Brunetto, Prof. Guilherme Andrade, acad. Mariah Fank, acad. Marcos de Oliveira, acad. Nicolas Pacheco.

PROMOÇÃO: Centro Acadêmico de História Zumbi dos Palmares – Gestão “O Importante é Transformar” Colegiado do Curso de História – UNIOESTE campus de Marechal Cândido Rondon APOIO: Laboratório de Ensino de História – LEH; Observatório do Mundo Contemporâneo – OMC; Programa Institucional de Bolsas de Incentivo à Docência (PIBID) – História.

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SUMÁRIO MASSACRES E NOTÍCIAS: O GENOCÍDIO ARMÊNIO PELO JORNAL “A REPÚBLICA” Alessandra de Melo .................................................................................................................. 6 CONCEITO DE LOUCURA E HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA NO BRASIL Álvaro F. Sotarelli. ................................................................................................................. 22 MEDICALIZAÇÃO – UMA EXPRESSÃO DA “QUESTÃO SOCIAL” SILENCIADA E REDUZIDA À NORMAS, DISCIPLINA E CONTROLE Andreia Regina Lopes de Sousa Camila Fernanda Daniel Koeche .......................................................................................... 31 A MORTE NA TRAGÉDIA EURIPIDIANA E A “PAIDEIA” HELÊNICA Caio Cesar Machado Gomes ................................................................................................. 45 CAPTAIN AMERICA AND BUCK: SOCANDO NAZISTAS, ESMAGANDO COMUNISTAS. UMA BREVE ANALISE DOS COMICS BOOKS DO CAPTAIN AMERICA (1941-1954) Carlos Eduardo Boaretto Pereira ......................................................................................... 57 MEMÓRIAS SOBRE A AÇÃO DE MADEIREIRAS NO MUNÍCIPIO DE CASCAVEL /PR (1950-1970) Daniele Brocardo .................................................................................................................... 76 O MUSEU DO HOLOCAUSTO EM CURITIBA: GLOBALIZAÇÃO DA MEMÓRIA E TRANSLOCALIDADE Danielle Beiersdorf ................................................................................................................. 89 A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE HISTÓRIA NA CONSTRUÇÃO DO CIDADÃO CRÍTICO DESDE O INICIO DA TRAJETÓRIA ESCOLAR Danielli Maria Neves da Silveira......................................................................................... 104 A FRONTEIRA BRASIL E ARGENTINA: ASPECTOS HISTÓRICOS E SÓCIOCULTURAIS NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NO CONTEXTO IGUAÇUENSE PÓS-ERVATEIRO Edson Matias Militelli .......................................................................................................... 109 EDUCAÇÃO PARA REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES: 21 ANOS DE PRÉVESTIBULAR PARA NEGROS E CARENTES (PVNC) Diogo da Silva Nascimento Vanessa Silveira de Brito ..................................................................................................... 122 RESISTÊNCIA E REPRESSÃO EM SANTA HELENA NO PERÍODO DITATORIAL (1964-1985) Fabiana StahlChaparini ...................................................................................................... 132 FOMOS OS VILÕES: O JAGUNÇO COMO SUJEITO TRANSFORMADOR NA CIDADE DE CASCAVEL (1940-1979) Fabio Lino de Freitas ........................................................................................................... 138

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MÚSICAS POPULARES NO OESTE DO PARANÁ: ESTUDOS SOBRE IDENTIDADES E MEMÓRIAS DO GRUPO SERESTA Franciele Turatto.................................................................................................................. 150 O DESAFIO TEÓRICO METODOLÓGICO DO USO DO CONCEITO DE FASCISMO E DE EXTREMA DIREITA Guilherme Ignácio Franco de Andrade ............................................................................. 159 IGUALDADE, LIBERDADE E PARTICIPAÇÃO DAS MINORIAS: VISÕES CONTRATUALISTAS Mateus Henrique Carvalho Garcia de Souza Gustavo Biasoli Alves ........................................................................................................... 174 DO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO: UMA REFLEXÃO SOBRE EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E TRABALHO Giovane Lozano Pamela Pecegueiro................................................................................................................ 182 DIÁLOGOS COM GRAMSCI: IMPRENSA E A CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS SOBRE A REGULARIZAÇÃO DO “POUSO FRIO” DE TOLEDO/PR (1970-1990) Maria Cristina de Castro Pereira A LUTA POR MORADIA EM FOZ DO IGUAÇU E AS OCUPAÇÕES URBANAS Lucas Eduardo Gaspar ........................................................................................................ 205 CIDADE E SUAS CONTRADIÇÕES: OS “BAIRROS DE MÁ FAMA” DE GUAÍRAPR Joselene Ieda dos Santos Lopes de Carvalho ..................................................................... 216 INTERPRETAÇÕES DO BRASIL: CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NO MODERNISMO KarlineWolfart ..................................................................................................................... 223 A LEI DE COTAS NO CONTEXTO DA REALIDADE BRASILEIRA Leila Aparecida Garcia Vanessa Cairony Cardoso ................................................................................................... 231 A IDEOLOGIA RACIAL NO BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO XX Murilo de Almeida Brasil .................................................................................................... 239 A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL NO EXTREMO OESTE DO PARANÁ: repressão, coerção e formas de convencimento na cidade de Guaíra durante a ditadura civil-militar (1964 – 1985) Mara Dhulle dos Santos Silva ............................................................................................. 250 COLONIZAÇÃO DO OESTE DO PARANÁ: POSSIBILIDADE DE PESQUISA ATRAVÉS DAS FOTOGRAFIAS DO MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (MIS) DO MUNICÍPIO DE CASCAVEL Janaina Rodrigues dos Santos Sara Munique Noal .............................................................................................................. 261

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RELIGIÃO E LUTA DE CLASSES EM “AS GUERRAS CAMPONESAS NA ALEMANHA” DE ENGELS Jonas Christmann Koren..................................................................................................... 273 ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA DOCENTE: O ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DAS CONCEPÇÕES DE PAULO FREIRE Paloma Mariana Caetano .................................................................................................... 284 “O PODER DA FÉ”: PRESENÇA DA CONGREGAÇÃO BENEDITINA EM NOVA SANTA ROSA- PARANÁ (1970/1985) ShaienyPhilippsen Cardoso ................................................................................................. 292 TRABALHO E ADOECIMENTO DOS TRABALHADORES NAS LINHAS DE PRODUÇÃO Simone Teresa HeckMumbach ........................................................................................... 299 CONFLITOS POR TERRAS E EXPERIÊNCIAS DE VIDA Tatiane Karine Matos da Silva ........................................................................................... 308 SERTANEJOS DO CONTESTADO: A DISPUTA PELA MEMÓRIA DO MOVIMENTO E SEUS SUJEITOS Vagner Melo Figueiredo ...................................................................................................... 314 RELIGIOSIDADE E RESISTÊNCIA DOS ÍNDIOS AVÁ- GUARANI NO OESTE DO PARANÁ Vanessa Bueno Arruda ........................................................................................................ 323

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MASSACRES E NOTÍCIAS: O GENOCÍDIO ARMÊNIO PELO JORNAL “A REPÚBLICA” Alessandra de Melo1 A história armênia e sua diáspora pelo mundo foi marcada por um dos atos mais cruéis contra um povo, o genocídio. Imigrando para o Brasil, assim como diversas outras etnias, o povo armênio busca até hoje o “reconhecimento” do genocídio perpetrado pelo Império Turco Otomano. Durante o século XIX e XX, as notícias sobre os massacres e situações das cidades armênias chegavam ao Brasil através de telegramas e eram divulgadas através de jornais, como A República e A Província. As análises desses periódicos ajudam a compreender como eram divulgadas tais informações e quais eram as posições dos jornais. Dessa forma, a partir do periódico paranaense A República, o artigo pretende analisar seu posicionamento sobre o genocídio armênio e, como a mídia trazia as informações dos massacres, abordando o período de 1896 à 1923. Acredita-se, que mesmo buscando a neutralidade, os periódicos acabam deixando intrínseca sua posição a respeito de determinados temas que causam impacto e repercussão. E, dessa forma, influenciam na construção da opinião do público leitor, repercutindo em grupos sociais. Antes de aprofundar a respeito de imigração e identidade, é necessário entender o contexto internacional, que se enquadra o nosso objeto de estudo. Tendo como base os primeiros massacres ocorridos com os armênios, ainda em 18952 com o Grande Massacre, relata-se uma breve explanação da situação mundial no período. No período de 1871 a 1914, a Europa3 vivia um estado de alerta, com problemas ameaçando a paz. Atritos entre países balcânicos colocavam em choque interesses Russos e Austríacos, competições econômicas entre Alemanha e Inglaterra são apenas exemplos da situação. Dependendo a hegemonia européia da força militar de cada país, a rivalidade gerou uma corrida armamentista, crescendo contingentes militares e armamentos, enquanto tornava deficitário o orçamento de nações, gerando crises que alargavam o risco de uma possível

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Graduada do curso de pós-graduação em História, Arte, Cultura e Sociedade Brasileira, da Universidade Paranaense – UNIPAR, campus Cascavel – PR. (e-mail: [email protected]) 2 MARTINS, Antônio Henrique Campolina. O Genocídio da Primeira Nação Inteiramente Cristã. Revista Ética e Filosofia Política – Volume 10 – N° 1. Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Juíz de Fora, pg. 02, Junho de 2007. 3 Para uma abordagem maior contextualizada ver: HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX : 1914-1991 / Eric Hobshawm; tradução Marcos Santarrita; revisão técnica Maria Célia Paoli — São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 6

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guerra. No entanto, não só a questão política pesou decisivamente, mas também o avanço da indústria, ferrovias e frotas mercantis. Era necessário escoar os produtos industrializados e obter matéria-prima. Assim, chamados a intervir nesse imperialismo econômico, os países optaram pelas conquistas coloniais, protecionismo alfandegário e empréstimos aos países subdesenvolvidos (que eram investimentos lucrativos). 4 A paz dependia de interesses conflitantes de diferentes potências, tornando problemas locais em questões internacionais5, dessa forma, qualquer acidente poderia detonar a I Guerra Mundial, como ocorreu posteriormente com o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando. Segundo Bertonha (2011), o elemento de fundo para explicar a primeira guerra, foi a mudança do contexto político, econômico e cultural a partir da metade do século XIX. Antes, as nações estavam, em parte, satisfeitas com seu papel no mundo, com elites mais preocupadas com a ordem interna do que com o exterior. Vemos que o início do século XX, ideais nacionalistas/militaristas ascendem, causando nas nações européias maior ambição de poder e territórios. A Primeira Guerra, assim, poderia ter sido evitada em vários momentos. Se a mentalidade europeia não tivesse se modificado em favor de um “clima” mais expansionista e belicoso e um grande e poderoso país não tivesse decidido contestar a distribuição de riqueza e poder mundiais, talvez não houvesse motivos para o conflito. Se esse “clima” de conflito não tivesse se corporificado em alianças fixas e planos militares rígidos, talvez tivesse sido possível evitá-lo e/ou a guerra poderia ter sido mais localizada.6

A Armênia localiza-se no Cáucaso entre a Turquia, Geórgia e o Azerbaijão, possui uma área de 29.743 km² e população de 2.969.081 habitantes em 2012 segundo o The World Bank. Foi frequentemente atentada pela sua posição geográfica, planícies férteis e reservas minerais, a região já foi disputada por diversos impérios entre eles os turcos otomanos. Vivendo em terras de seus antepassados, durante os séculos XIX e XX, os armênios 4

Para mais, ver: FALCON, F. & MOURA, G. A formação do mundo contemporâneo; a fase de formação da sociedade liberal. 14. Ed. RJ, Campus, 1989. 5 MAGNOLI, Demétrio; BARBOSA, Elaine Senise. Liberdade versus igualdade, vol. 1: o mundo em desordem: 1914 - 1945. São Paulo: Record, 2011. 6 BERTONHA, 2011, pg. 37. 7

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foram vitimas de diversos ataques do Império Turco Otomano, que buscava seu extermínio. Como sendo uma minoria étnica e religiosa sob o poder do Império Turco, sua situação se tornou precária com a decadência do Império. “Assim, em fins do século XIX começa uma série de pogrons que tinham nos armênios um dos alvos principais que, em conseqüência desses infortúnios, começam a emigrar.” 7 Os massacres8 iniciaram no final do século XIX, entre 1894 e 1896, com um número estimado entre 80 e 300 mil armênios foram mortos por tropas turcas, segundo Bertonha. O massacre começou em setembro de 1895. Estendeu-se quase instantaneamente a toda a Anatólia Oriental. [...] Foram os mesmos horrores em toda parte; alguns episódios, entretanto, foram particularmente atrozes: notadamente em Urfa, onde, na semana de Natal, 3.000 armênios foram queimados vivos na capital onde haviam procurado refúgio. 9

Assim, viam que uma política de apoio ao Império Otomano estava ultrapassada, tendo em vista sua desagregação, deveriam se por em acordo para a partilha de seus despojos, a Rússia, que cobiçava os Estreitos, começou a preparar a guerra balcânica. Posteriormente, com o surgimento do partido dos Jovens Turcos, os armênios os viam como uma esperança para o fim dos massacres que ocorreram no sultanato anterior. No entanto, com os armênios em uma situação econômica favorável (sendo o comércio uma de suas áreas de interesse), ocasionou que os turcos viram nos armênios “uma ameaça ao seu crescimento e a sua hegemonia na região, além da questão racial e religiosa, também agravante nesta delicada questão”. 10 Além da questão econômica, outros elementos se associaram e desencadearam o genocídio11, entre eles, o “Nacionalismo turco; Necessidade de conquistar as terras armênias; 7

GRÜN, 1992, p. 16. BRYCE, James Lorde; TOYNBEE, Arnold. Atrocidades turcas na Armênia em 1915: denuncias de grandes personalidades. São Paulo: Paz e Terra, 2003. 9 ALEM, 1961, p. 53. 10 LOUREIRO, 2007, p. 09. 11 Segundo Mazzuoli, por genocídio entende-se a destruição, no todo ou em parte, de qualquer grupo de pessoas, em razão de sua raça, etnia, credo religioso ou outras condições ou características suas, tal como assassinato de membros do grupo, dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo, submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasione a destruição física total ou parcial, medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e transferência forçada de menores do grupo para outro grupo 19. 19 É o que dispõe o art. 2° da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948. Frise-se que o Brasil é parte nesta Convenção, tendo a mesma sido aprova entre nós por meio do Dec. Legislativo 2, de 11 de abril de 1951, e promulgada pelo Dec. 30.822, de 6 de maio de 1952. A Lei 2.889, de l° de outubro de 1956, 8

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Aspirações a dominar o comércio e as fábricas controladas por armênios; divergências religiosas”12. O governo turco pretendia exterminar a nação Armênia. A A ordem era o aniquilamento total, amplo e irrestrito dos infiéis através de deportações e de chacinas sucessivas a partir de 1895, com o Grande Massacre, passando pela Carnificina Selvagem de Adana, comandada pelos Jovens Turcos traidores (1909), culminando no Genocídio Sistemático de 1915. 13

Mesmo com evidências de que foi um genocídio14, o governo turco ainda hoje não reconhece o crime como tal, apesar disto, foi “reconhecido como genocídio pela ONU, União Européia e 22 países”. 15 Desse modo, a imigração iniciou no final do século XIX com o início das matanças, surgindo dessa forma, a Diáspora. Entre países como Síria e Líbano, a América também foi alvo de imigrantes, inclusive o Brasil, segundo Grün, ocorreram duas fases de imigração para o Brasil, “a primeira delas, [...] data do final do século passado, quando imigrantes tinham como alvo principal o trabalho nas obras dos portos do Rio de Janeiro e de Santos” 16. Os primeiros imigrantes entraram no país por São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, atuando como mascates e instalando-se em cidades como Osasco e São Paulo. A segunda fase de imigração Armênia ocorreu por volta de 1920, onde a maioria dos indivíduos eram sobreviventes dos massacres. Sem condição financeira, estes imigrantes eram acolhidos pelos seus antecessores da primeira leva, que já estavam estruturalmente estabelecidos no país. Dessa forma, ao se trabalhar com imigrantes, fica intrínseca a questão de identidade. Manter uma identidade em um novo país se torna algo complexo, posto que o imigrante tende a querer preservar sua tradição e cultura em meio a uma nova. Segundo Hall (2005), com as transformações que ocorrem nas sociedades modernas, há também a mudança das identidades pessoais, causando um deslocamento ou descentralização do sujeito, sendo um dos aspectos envolvidos, a globalização e seu impacto na identidade cultural, sendo consideradas as sociedades modernas como sociedades de define e pune o crime de genocídio. Cf., sobre o assunto, Celso Lafer, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, 2° reimp., São Paulo: Cm. das Letras, 1998, pp. 167-186. 12 LOUREIRO, 2007, p. 10. 13 CAMPOLINA, 2007, p. 02. 14 Para jurisdição sobre genocídio, ver: CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: conceitos, realidades e implicações para o Brasil / Elio Cardoso; prefácio de Marcel Biato. ─ Brasília: FUNAG, 2012. 15 SUMMA, 2007, p. 6. 16 GRÜN, 1992, p. 19. 9

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mudança constante permanente e rápida. Destaca Hall (2000) a necessidade de vincular discussões a respeito de identidade com os processos e praticas que tem afetado o status estabelecido de populações e culturas: os processos de globalização. As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico, com o qual elas continuariam a manter certa correspondência. Sendo as identidades construídas dentro do discurso, é necessário compreende-las como surgidas em locais históricos e institucionais específicos, com formações, praticas discursivas, estratégias e iniciativas específicas. No Brasil, as informações a respeito dos massacres, foram noticiadas em alguns jornais, entre eles, destacamos A República, periódico que circulou no Paraná entre 1886 e 1930. Dessa forma, para a análise dos periódicos, utilizamos a metodologia de Análise do Discurso. Independente do momento histórico, os discursos sempre estiveram presentes em todas as classes sociais de diversas formas. Um discurso não é obrigatoriamente um “texto”, mas sim, todas as formas de transmissão de uma mensagem, seja ela escrita, ditada ou em forma de imagem. Conforme destaca Fiorin:

O discurso são as combinações de elementos lingüísticos (frases ou conjuntos constituídos de muitas frases), usadas pelos falantes com o propósito de exprimir seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu mundo interior, de agir sobre o mundo. A fala é a exteriorização

psico-físico-fisiológica

do

discurso.

Ela

é

rigorosamente individual, pois é sempre um eu quem toma a palavra e realiza o ato de exteriorizar o discurso. 17

Tais elementos linguísticos possibilitam a estruturação de um discurso, dessa maneira, nota-se que o discurso não é apenas um texto, Maziere expõe que “é uma manifestação da materialidade da língua”. Assim, o mesmo discurso pode ser manifestado em diferentes meios de expressão, onde atuarão coerções do material, agregando-se os conteúdos concebidos pelos efeitos estilísticos da expressão. Também destaca Brandão (2005) que, para a AD, a linguagem deve ser estudada não

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FIORIN, 2000, p. 11. 10

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só em relação ao seu aspecto gramatical, exigindo de seus usuários um saber lingüístico, mas também em relação aos aspectos ideológicos, sociais que se manifestam através de um saber sócio-ideológico. O jornal A República, surgiu em 15 de março de 1886, como órgão do Club Republicano, destinado a propagar o ideal antimonarquista, sua existência durou 44 anos, posto que seu último número é de 1930. A República teve como fundador Eduardo Gonçalves (engenheiro civil) e possuiu colaboração de Álvaro Teixeira Ramos, e de membros que compunham o Club Republicano. O jornal traz inúmeras informações a respeito da situação da população bem como do país da Armênia, sendo uma rica fonte. Contudo, torna-se impossível apresentar detalhadamente todas as notícias, manchetes e citações ao longo do período proposto para estudo. Dessa forma, dar-se-á maior ênfase as notícias dos massacres, e far-se-á uma rápida menção as notícias gerais. De forma geral, o jornal traz informações a respeito do Sultão Abdul Hamid, o entitulando de “Sultão Vermelho”, por causa das matanças ocorridas durante o seu governo, criando uma áurea repulsiva em volta de sua figura. Além disso, traz também, discursos de grandes nomes da política internacional, como Lloyd George e Gladstone, que citam a situação dos armênios. Quanto aos massacres, as notícias no jornal iniciam em 1895 e prosseguem aproximadamente ate década de 1920, no regime de Mustaphá Kemal. Inicialmente, em 19 de outubro de 1895, A República traz como notícias do exterior:

Receberão-se esta tarde despachos da Armenia communicando que novos e lamentaveis factos derão-se hontem e hoje nesta provincia ottomana. Os turcos residentes em Trebisonde [...] sublevarão-se e massacrarão famílias inteiras de armenios. As casas forão em seguida saqueadas e os corpos das victimas barbaramente mutilados. Os soldados percorrem a cidade levando as cabeças dos degolados na ponta das lanças, sem que as autoridades procurem por termo a esta profanação. A situação é muito critica [...]. O numero de victimas é considerável e a indignação causada por estes tristes acontecimentos é geral. 18

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A REPÚBLICA, 1895, pg. 01. 11

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Na edição do dia 17 de novembro, o jornal traz a noticia de Sophia, do dia 10 novembro de 1895.

Não podem ser mais graves do que estao sendo os despachos da Turquia aqui recebidos. Os vilayets de Erzezvum e da Tubizonda na Armenia communicam factos constristadores, os quaes, provocam aqui uma Viva indignação. Innumeros cadaveres de Armenios, horrorosamente mutilados, juncão as arcadas. Estão em maior numero as mulheres e os velhos, tendo muitos delles a cabeça decepada na ponta da lança pelos turcos e mahometanos, [...]. 19

Como comenta Gomes20:

Mesmo no nível fundamental já há uma valoração dos pólos, uma orientação axiológica, segundo o jargão semiótico, que indicará, mesmo que de maneira insipiente neste nível, a inclinação ideológica que se concretizará no nível discursivo. 21

Nota-se no discurso, parcialmente o posicionamento do jornal, utilizando termos como “lamentáveis”, “victimas barbaramente mutilados” e “viva indignação”. A chamada á violência reflete-se de forma sensacionalista causando um apelo emocional quanto ás vítimas do massacre, sabendo-se que se torna repulsiva tal atitude contra mulheres e idosos. Já em 1901, no mês de dezembro, temos a notícia do dia 31: O Daily News, publica um telegramma em que o seu correspondente de Berlim communica que os Turcos recomeçarão a matança dos christãos da Armenia. 22 Vemos que ao identificar e ressaltar as matanças com o termo “cristão”, o jornal procura de certa forma causar empatia no público brasileiro (sendo este a maioria cristão), 19

A REPÚBLICA, 1895, pg. 02. MANCINI, R. C. ; Gomes, Regina S. Textos midiáticos: uma introdução à semiótica discursiva. In: IX FELIN e I Congresso de semiotica, 2007, Rio de Janeiro. Atas do IX FELIN e I Congresso de Semiotica. Rio de Janeiro, 2007. v. I. p. 1-15. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixfelin/trabalhos/pdf/66.pdf 21 GOMES, 2007, p. 4. 22 A REPÚBLICA, 1901, pg. 01. 20

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utilizando o termo como forma de identificação. Posteriormente, no ano de 1905, temos a notícia do dia 28 de abril: Os grandes criminosos encontram, cedo ou tarde, a punição dos seus delictos no brado horrisono da consciencia que os tortura até os limites da outra vida. Nesse caso está Abdul Hamid, o sultão vermelho [...], o torvo assassino de milhares de armenios e covarde matador de indefezas mulheres* e creanças, que acaba de enlouquecer por completo, [...]. Enlouqueceu Abdul Hamid ! ... . Não é de recente data a duvida de todos os subditos ottomanos sobre a sanidade mental do sultão. Sempre que uma ordem precipitada, absurda e não motivada [...] ia cousar um massacre de christãos na Armenia ou mostrar aos atterrados habitantes de Pera o repugnante espectaculo da asphixia de desgraçadas odaliscas no Bosphoro, pairava sobre a Turquia esta interrogativa : o sultão esta louco? [...]. 23

Prossegue o jornal trazendo mais informações na mesma matéria:

Cruel e sanguinario por indole, a loucura veio nos últimos tempos requintar lhe os instinctos de ferocidade, convertendo o, segundo o velho Gladstone, na hyena coroada que andava a revolver famelica os cemiterios da Armenia. [...] nada mais impróprio que suppor-se possa governar um idiota [...], e ainda mais dominado por um homem audaz e ambicioso e que espera auferir essa melindrosa situação os maiores prazeatos. Este homem a quem se pode considerar o verdadeiro sultão da Turquia, é o grão vizir Ferid Pachá, [...] que ao seu lado desapparece Abdul Hamid, cuja vontade se dobra a um leve aceno do primeiro ministro! [...] Conhecedor do estado de loucura do sultão, tem elle obstado a execução de muitas ordens absurdas [...]. A attitude de Ferid Pachá tem sido muito admirada pelos ministros [...] e talvez a elle venha ainda a dever esse vetusto império a unidade

23

A REPÚBLICA, 1905, pg. 02. 13

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e a soberania em parte perdidas durante o dominio da imbecil dynastia dos Hamids. 24

Vemos que a matéria citada acima, rechaça o sultão Abdul Hamid, o qualificando de “torvo”, “covarde matador”, “cruel e sanguinário”, “idiota”, trazendo inclusive o termo usado por Gladstone de “hyena coroada”. Nota-se uma pequena satisfação vingativa na matéria deixando supor a loucura de Hamid por causa de seus atos (desaprovados pelo jornal) de massacres contra as minorias. Transpassa também, certa aprovação ao grão vizir, Ferid Pachá, ao fato dele possuir poder sobre o sultão, não obedecendo todas as suas ordens. Como comenta Gomes25, “depreendemos, na análise da sintaxe discursiva, os procedimentos de persuasão utilizados pelo destinador para fazer o destinatário crer nos valores disseminados no discurso”. Em 1915, ano oficialmente marcado como o início do genocídio, as notícias são diversas, entre elas, destacamos em 24 de fevereiro sob o subtítulo Atrocidades musulmanas: LONDRES, 24. – Communicações de Ardanach dizem que os ottomanos praticaram ali grandes atrocidades, saqueando a cidade e assassinando muitas pessoas. Nas ruas da cidade foram encontrados 152 armenios degolados, além de 50 que foram lançados ao abysmo de Tanoot. Os turcos assassinaram mais 250 armenios, carregando as mulheres. Os cães famintos devoram as cadaveres pelas ruas. 26

Ressaltar o termo vinculado a violência e uma religião especifica, no caso “atrocidades musulmanas”, acaba por colocar tal religião como algo pejorativo frente a população cristã, que como sabe-se já teve embates com o islamismo. As informações contidas posteriormente, conectam-se com o termo, dando a supor que o “turco” é um “musulmano” e o muçulmano é um assassino cruel. No dia 07 de outubro, o jornal traz uma considerável matéria com o titulo de As atrocidades praticadas pelos turcos contra os armenios:

24

A REPÚBLICA, 1905, pg. 02. GOMES, 2007, pg. 10. 26 A REPÚBLICA, 1905, pg. 02. 25

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“Foi aqui recebida confirmação dos boatos correntes sobre atrocidades do caracter mais cruel e indigno, ocommettido contra os armenios. Sem duvida, como de outras vezes, esses crimes foram machinados em Stambul. Ha motivos para acreditar que o ataque aos armenios foi resolvido no regresso de Enver Pachá, depois que elle, [...], se mostrou irritadissimo pelo auxilio ali prestado aos russos pelos armenios. Talaat Bey aproveitou, [...] para exercer represalias sobre as colônias [...], servindo-se, como capa da formulada expulsão dos armenios e sua deportação para os centros do interior. A resistencia ou demora no obedecer [...], serviram de pretexto para justiçar o assassinato, o sequestro e outras selvagerias. 27

Segue ainda o jornal tratando das atrocidades:

As autoridades provinciaes, [...], desempenharam á risca a tarefa que lhes fóra confiada e as atrocidades de agora, ao contrario de outros massacres, não se restringiram a nenhuma área definida. De Samsun a Trebizonda, de Ordu a Aintab, de Marash a Erzoroum, chegam as mesma narrativas de atrocidades, de homens crucificados, fuzilados, mutilados a sangue frio,ou arrebatados para fazerem parte dos batalhões de trabalho, [...] mulheres violadas ou escravizadas no interior, fuziladas ou expulsas com seus filhos para o deserto a oeste de Mozul, onde não ha alimentação e tinham de morrer, portanto, á mingua. Muitos desses infelizes, não chegara ao seu destino porque [...] tombavam exhausto, e como nem a fustigação nem os espancamentos os faziam levantar, eram deixados á beira dos caminho para marcarem e assignalarem com seus cadaveres a jornada percorrida. 28

Na mesma matéria, o jornal relata a atitude de autoridades do plano internacional:

27 28

A REPÚBLICA, 1905, pg. 02. A REPÚBLICA, 1905, pg. 02. 15

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Em Zeitum os armenios foram misevelmente martyricados por Fakhy Pachá cujo nome ficou celebrisado pelo caso de Adana. [...] Assim, Rosseler, consul em Aleppo, digno emulo de seu collega de Haifa, foi a Aintab superintender em pessoa as atrocidades : e o conhecido barão Oppenheim foi quem suggeriu a remoção dos paizes alliados, que não podiam deixar de ser testemunhas das barbaridades [...] onde o sangue literalmente

corria.

Parece

incontestavelmente

provada

a

responsabilidade de Talaat Bey, que, ao ordenar as deportações, disse : “Depois disto, não voltará a haver nenhuma questão armenia, pelo prazo de cincoenta annos !”. 29

Como citado anteriormente, o apelo a termos de violência fica visível na matéria, mostrando o seu descontentamento e indignação aos massacres, e indicando o principal causador, Talaat Bey. Comentando sobre as atrocidades, relatam a crueldade tanto física quanto psicológica aplicadas as vítimas, pois, quando a mulher é violada, não afeta apenas seu corpo, mas sua mentalidade e honra. Além disso, o fato dos armênios serem crucificados conecta-se com o fato do profeta do cristianismo também ter sido morto da mesma forma. Ressalta também o envolvimento de cônsules de outros países, no caso Alemanha, para uma tentativa de ocultação dos massacres para os países aliados. O jornal mostra-se revoltado com frases do tipo “caracter mais cruel e indigno”, e demonstra já prever de onde partiria as ordens: Istambul. Nota-se também, que quando o jornal utiliza o termo “infelizes” ao se referir as vitimas, mostra de certa forma, simpatia e solidariedade com elas. No ano de 1917, em 26 de fevereiro, o jornal traz, Os Armenios Soffrem: LONDRES, 26 – O ministro dos Exteriores Arthur Balfour, escreveu aos membros da commissão norte americana de soccorros aos armenios, relatando os soffrimentos dos armenios residentes na Turquia e que sobem a ... 1.800.000. Foram

massacrados

ou

deportados

1.200.000

armenios.

Os

massacrados morreram sob horriveis torturas, mas escaparam de soffrer agonias terriveis, imposta a homens, mulheres e creanças que pereceram afogados ou morreram de fome ou sêde.

29

A REPÚBLICA, 1905, pg. 02. 16

ANAIS DO EVENTO

Os pouquissimos armenios que ficaram no Imperio Ottomano foram roubados e escravisados, e as mulheres e as creanças forçadas á conversão para a religião mahometana. 30

Em 1918, com a continuidade dos massacres, destaca-se no jornal, no dia 06 de março, Pobres Armenios!: PARIS, 6 – Os jornaes fazem resaltar o facto do tratado de Brest Litowsk restituindo á Turquia parte consideravel do Caucaso, terá como resultado entregar o totalidade dos armenios, dos quaes já foi massacrada sob as vistas e acquiescencia dos officiaes allemães. 31

Nessa matéria, o jornal faz menção a outros periódicos, que também se referem ao tratado de Brest Litowsk, reforçando que tal atitude será prejudicial aos armênios, que já vinham sendo massacrados e o seriam mais ainda com o tratado. Ao trazer a estimativa do número de vítimas em outra notícia, causa espanto pela quantidade ser tão alta (um milhão), sendo contado só o ano de 1915. E, novamente, dá destaque às vítimas femininas e infantis, sendo estas (assim como as idosas) mais difíceis de defende-se. Em 1919, no dia 14 de julho, sob o titulo de Condemnação dos responsaveis pelos massacres dos armenios, comenta: CONSTANTINOPLA, 14 – A corte marcial turca sentenciou Enver Pachá e Talaat Djemal á pena de morte. Spijullislam, Aku saskiasin e Ojavid-Bey foram condemnados são accusados de responsabilidade pelos massacres dos armenios. 32

Nesse ano (1919) o jornal demonstra claramente sua repugnância pelos oficiais que participaram dos massacres, com subtítulos como “Fez-se justiça” e “Um, enforcado”, ficando implícita certa vingança pelos crimes. Deste modo, mesmo o jornal buscando a imparcialidade, o enunciador é um sujeito histórico, carregado de emoções e sentimentos,

30

A REPÚBLICA, 1917, pg. 02. A REPÚBLICA, 1918, pg. 02. 32 A REPÚBLICA, 1919, pg. 02. 31

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ANAIS DO EVENTO

segundo Brandão33, o sujeito do discurso é um sujeito ideológico, isto é, sua fala reflete os valores, as crenças de um momento histórico e de um grupo social. Sendo os valores de uma sociedade principalmente cristã, num contexto histórico recém saído de uma guerra mundial e participando de um grupo social mais abastado, o enunciador influência os enunciatários que, com ressalvas, partilham de uma situação parecida com este, afinal, ser escolarizado e leitor de jornais na época trabalhada, era um privilégio. Posto isso, em 1920, destacamos duas notícias a respeito da situação do país. No dia 14 de outubro, destaca mais um ataque contra a Armênia, onde “os nacionalistas entao sendo ajudados pelos musulmanos e bolshovistas”. 34 Por fim, no dia 28 de dezembro de 1920, Etienne Brasil, comenta sobre A verdadeira situação da Armênia, alegando que o país estava isolado, desde outubro. Sendo as únicas comunicações verdadeiras foram através de radiogramas entre o país e a delegação Armênia de Paris, comenta tambem, as esperanças de libertar a Armênia, tanto das forças de Mustapha Kemal, quanto da pressão soviética. Posterior a este ano, a partir de 1921 as notícias sobre a Armênia caem consideravelmente, ficando restritas a alguns ataques ao país por parte dos bolcheviques, e algumas notícias sobre o governo Mehmed VI e de Mustapha Kemal. O recebimento das notícias devem ser encaradas com certo cuidado, uma vez que estas estavam sendo repassadas via indiretamente, tendo escala na Geórgia, como citado a cima, e em Paris, como visto em outras matérias, a manipulação dos fatos por estes órgãos poderia ocorrer, causando tanto a ocultação como a supervalorização. Dessa forma, através da análise do discurso, nota-se que as notícias a respeito dos massacres ocorridos são várias, podendo-se notar a insatisfação do periódico com a brutalidade do fato. A neutralidade, quase sempre fica á parte. Como forma de identificação e empatia, o periódico destaca veementemente o termo “cristão”, associado aos armênios, sendo estes uma nação cristã sendo massacrada, causaria comoção entre os cristãos brasileiros, sabendo que seus iguais estavam sofrendo. Ressalta também, o termo muçulmano, deixando implícita sua relação com os massacres. Não se pode negar o ressentimento dos armênios com o genocídio, que até atualmente não é reconhecido por inúmeros países, inclusive a Turquia, que não nega as mortes, mas questiona seu número e terminologia adquirida. No Brasil, o genocídio é reconhecido apenas por alguns estados (São Paulo, Paraná e 33 34

BRANDÃO, 2005, pg. 09. A REPÚBLICA, 1920, pg. 02. 18

ANAIS DO EVENTO

Ceará), o que não impede e nem desalenta as manifestações anuais que ocorrem, em prol do reconhecimento. Por fim, a utilização de jornais da época empregando a análise do discurso, se torna interessante para a abordagem de posicionamentos, tanto ideológicos quanto sociais e culturais. A análise ajuda a compreender a mentalidade do período frente as grandes matanças e deixa, para uma futura análise mais minuciosa, como poderia ser a recepção do público leitor, bem como quais eram os princípios da sociedade brasileira a respeito de conflitos externos.

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ANAIS DO EVENTO

CONCEITO DE LOUCURA E HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA NO BRASIL Álvaro F. Sotarelli.* RESUMO: O seguinte trabalho busca apresentar como os portadores de transtornos eram vistos pelo meio social em que viviam, segundo a visão de Michel Foucault e o emprego do conceito de loucura em seus diversos contextos. Posteriormente busco analisar a influência que o conceito de loucura exerce sob o tratamento psiquiátrico que os indivíduos terão dentro das instituições de cuidados que no surgiu como instituições religiosas na Idade Média, com o objetivo que abrigar moradores de rua e pessoas que não contribuição nenhuma para a sociedade, ou seja, os excluídos, e posteriormente estas instituições tornaram-se hospitais, tendo ainda os mesmos objetivos, abrigar os excluídos. E por fim, realizo um estudo de categoria histórico-social analisando os diversos discursos e atores sociais que envolvem e fomentam as reformas psiquiátricas no Brasil, analiso principalmente a influencia que o signo do conceito de loucura exercer sobre os discursos que favorecem a reforma psiquiatria, desde o surgimento de Phillipe Pinel e suas ideias humanistas, que podem ser caracterizada como a primeira reforma psiquiátrica.

Michel Foucault e o conceito de loucura

Michel Foucault vem de uma família tradicional de médicos cirurgiões, mas como criticava a psiquiatria e a psicanálise moderna, decidiu tomar outro rumo em sua vida, tornou-se filósofo pela Universidade de Sobornne e sua tese de doutorado foi a obra História da Loucura em 1961. Embora já tivesse publicado o livro Doença Mental e Psicologia, foi com sua tese que se tornou conhecido. Foucault era um jovem curioso e angustiado por sua existência, e isso fez com que tentasse suicídio por diversas vezes. Em 1951, quando assumiu aulas de psicologia na Escola Normal Superior na França, teve uma grande experiência no hospital psiquiátrico Saint-Anna, onde ficou internado por tentativa de suicídio. O autor escreve diversas obras em que julga as instituições como forma de dominação burguesa, pois elas estabelecem padrões para a dominação do comportamento humano. Ele morre vítima da AIDS em 1984, deixando inacabado o terceiro volume de sua obra História da Sexualidade, obra que o autor coloca o prazer sexual como forma de dominação. 22

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Segundo Michel Foucault, em sua obra História da Loucura1, o louco era qualquer indivíduo da sociedade, alguns com uma loucura em um grau a mais que o outro, alguns sendo nomeados loucos pelo meio social em que viviam. A loucura para Foucault se torna algo natural, algo que nasce com o ser humano, e as instituições (estado, igreja, família e escola) são quem nomeia um mais louco que o outro, ou até que ponto sua loucura é considera normal. Durante a Idade Média, Jesus era o único que poderia dar alegria aos indivíduos, poderia ser considerado louco aquele que sorri, aqueles que sorrissem fora da Igreja ou sem motivo católico, esse seria louco aos olhos da sociedade. Era louco aquele que dissesse a verdade, aquela mulher que por um deslize olhasse para outro homem que não fosse seu marido, era louco aquele que fugia de casa por não concordar com as regras impostas por sua família e quisesse ganhar a vida de outra maneira, era louco aquele que fugia dos padrões impostos pela instituição Estado e Igreja, que na Idade Média ainda eram uma só. Assim, ser louco está dentro de cada um, mas alguns com graus de normalidade e outros não. A seguir, mostro-lhes um trecho da obra, onde resumidamente Foucault nos mostra o que é ser louco: “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco significaria ser louco de um outro tipo de loucura.”2 Aqui podemos perceber o quão natural Foucault considera a loucura, pois considera a loucura um fenômeno existente em qualquer ser humano e a sociedade em geral é que irá nominar as representações de loucura. Podemos ainda, fazer uma análise história da representação da loucura em seus diferentes contextos, considerando o que é normal e anormal no decorrer da história. Era normal na Idade Antiga, por exemplo, ver a devoção dos indivíduos com seus supostos deuses, suas aparições ou a sua possível demonstração de que existe. Durante esse período, as pessoas consideravam fenômenos físicos e naturais como forma dos deuses provarem sua existência. Esse comportamento seria considerado nos dias de hoje, como um tipo de loucura. Mas, analisando o contexto histórico da época, não podemos julgar as pessoas loucas, pois ainda não tinham a concepção do que é normal ou anormal. Fazendo um paralelo com esse fato, vemos hoje em algumas sociedades africanas, que é considerado anormal aqueles que dizem nunca ter sido possuído por demônio, e normal aquele que acredita ter sido possuído por demônio pelo menos uma vez. Através desse fato, vemos que a concepção de normal ou anormal muda em cada sociedade, pois, se esse fato africano ocorresse no Brasil, as pessoas 1 2

(FOUCAULT 2006) (FOUCAULT; 2006, p. 36). 23

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logo considerariam loucos aqueles que acreditam ser possuídos por demônios, pois na sociedade brasileira, essas manifestações são consideradas anormais. Já na Idade Média podemos ver o pensamento social referente à representação da loucura mudar de rumo. Pessoas que dissessem que tinham visões ou que professassem algum tipo de acontecimento eram julgadas como loucas, pois o Papa era a figura maior e ninguém poderia saber mais que ele. Como foi o caso da Inquisição Católica, em que queimaram as mulheres consideradas bruxas por praticarem outro tipo de profecia a não ser a católica. Ou seja, podemos fazer a relação em que aqueles que não seguissem as profecias católicas e dissessem ter visões que não fossem relevantes para a Igreja Católica, seria considerado como louco ou como bruxa e, assim, consequentemente seriam desanexado do meio social em que viviam. Vemos ainda na obra de Michel Foucault, no período da Idade Média, a loucura como algo criminalizado, banalizado e vulgarizado. Os considerados “normais” temiam aos loucos, não sabiam cientificamente o que acontecia com eles, então davam explicações religiosas, colocando-os a margem da sociedade, ou até mesmo, como o autor cita no primeiro capítulo de seu livro, dizendo que os loucos, sem família, deixados a margem da sociedade, eram colocados em navios e jogados no meio do oceano, vistos que estes não teriam contribuição nenhuma para a sociedade a não ser a vergonha de encontrá-los nas ruas necessitando de ajuda e cuidados, um ato desumano para nossa época, mas que para eles, era o correto a fazer, já que a Igreja tinha o poder centralizado e era ela quem ditava as regras. Após esse fato, criam-se instituições de caridade com o mesmo objetivo, fazer uma higienização social, ou seja, pegar todas as pessoas em situação de rua e colocá-las nestes abrigos, estas sendo loucos ou não, criminosos, hereges ou não. Estes indivíduos eram colocados nesse abrigo e tratados da mesma maneira. Posteriormente, há uma divisão do doente e não doente, sendo classificados como loucos e como criminosos. O direito e a psiquiatria começam a trabalhar juntos, com o objetivo de caracterizá-los como tal e tentar tornar o sistema mais humanista, dividindo estes abrigos em alas de criminosos e insanos. Causou-se assim mais uma exclusão, tornando-os novamente alvo de discriminação social. No pensamento moderno, com o surgimento dos princípios capitalistas, industriais e modernos o conceito de loucura foi se cientificizando e começando a tornar-se uma patologia. Philippe Pinel que era médico atuante e apaixonado pela psiquiatria e ao ver a forma de tratamento das pessoas com transtornos mentais, um tratamento que era a base de discriminação e dor, ficou descontente com a situação e passou a considerar essas pessoas, 24

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como doentes e, assim, dizia que elas deveriam ser tratadas como doentes e não a base de violência como a Igreja católica previa. Ao analisar a história da loucura podemos perceber que o conceito de loucura se torna uma metamorfose, que se modifica dependendo do contexto social e histórico que está inserido. E esse conceito irá implicar nas formas de tratamento que as pessoas com transtorno mental teriam. Vemos na obra do Foucault, os loucos na Idade Clássica sendo tratados de forma degradante, sendo vítimas de torturas físicas e psicológicas. A Igreja católica previa que as pessoas com transtornos mentais eram também portadoras de grandes pecados e que quanto mais eles sofressem, mais fácil seria de alcançarem a salvação após a morte. Estes eram princípios católicos fortes na época e era o que a Igreja considerava certo pelo contexto histórico que estes fatos estavam inseridos, e seria um grave anacronismo julgar essa forma de tratamento como errado, pois os tratamentos dos dias atuais podem ser considerados incorretos futuramente, ainda não se sabe a etiologia dos transtornos mentais, logo também não saberemos a maneira correta de tratar essas pessoas. Durante da Idade Média, não havia divisão de Estado e Igreja, eram um só, sendo assim, a Igreja obtinha o poder centralizado, sendo capaz de controlar a forma de vida, comportamento e pensamento das pessoas. Portando, loucura também estava relacionada ao confronto das ideias impostas pelo poder religioso, ou seja, aqueles que não obedecessem a doutrina católica eram considerados loucos e consequentemente jogados a margem da sociedade. Essa ideia ocorre ainda hoje, mas com as instituições de poder (escola, Igreja, estado e família), que padronizam o comportamento humano, ou seja, aqueles que não forem a escola, não terem um trabalho, não terem uma religião ou não constituírem uma família, serão denominados loucos, por enfrentarem o padrão imposto e quererem viver como quiser.

O tratamento psiquiátrico

Através da leitura do livro História da Loucura de Michel Foucault3, busco analisar as condições sociais das pessoas com transtorno mental. Analisando a visão que a Igreja tinha sobre o tratamento das pessoas com transtornos mentais ou aqueles que Foucault denomina como portadores da razão, que eram pessoas que viviam em miséria intelectual, física ou de

3

(FOUCAULT 2006) 25

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sobrevivência, em uma sociedade cível, em que estava começando a surgir indícios de capitalismo. Segundo a Igreja católica da época, estas pessoas viriam ao mundo nestas condições por terem, em vidas anteriores, cometidos pecados, como a heresia, por exemplo, e que o sofrimento destes acarretaria na conquista da paz de espírito, sendo que os demais indivíduos deveriam contribuir para este sofrimento. Esta contribuição dos demais indivíduos é possível ser vista no decorrer do primeiro capítulo da obra estudada, em que é descrita a situação dos leprosos, uma doença que degenerava partes do seu corpo, causando medo, repulsa e discriminação, sendo que os demais indivíduos desconheciam o que estava acontecendo. Como não se sabia o que acontecia ou a causa, então consideravam uma manifestação demoníaca, pois nesta época não havia conhecimento científico e ao que os indivíduos desconheciam, davam explicações religiosas. A Igreja e o Estado durante este período eram apenas um. Existiam reis, senhores feudais, mas os membros da Igreja eram quem tinham maior voz para tomar decisões dentro do meio social. E por conta deste poder centralizado da Igreja católica e por conta do contexto histórico em que este poder estava inserido, um contexto em que não havia razão científica para as coisas, mas sim uma razão religiosa, a Igreja influenciava no tratamento social das pessoas com transtorno mental e até mesmo de doenças orgânicas, como vimos no caso da lepra. Como foi dito posteriormente, visavam um tratamento a base de dor e sofrimento, por considerarem manifestações demoníacas o desconhecido, acreditavam que esta forma de tratamento seria o ideal para salvar a alma das pessoas com a doença, que estes estavam pagando por pecados e então os demais indivíduos da sociedade deveriam discriminar e deixá-los sofrer para que assim, após a morte, conseguissem paz espiritual e salvação de sua alma. Pode se explicar a prática de internamento surgindo pós Revolução Industrial, surgindo a princípio como instituições de caridade criada pela Igreja Católica, com o objetivo de abrigar aqueles que ficassem em situação de rua devido ao grande crescimento populacional, que era consequência da Revolução Industrial. Nestes abrigos criados com a prática de higienização eram atendidas pessoas em situação de rua e moradores de rua, pobres, pessoas com doença orgânica ou física ou até mesmo quem violava leis. Enfim, qualquer indivíduo poderia ser internado em hospitais recebendo os mesmos tratamentos. Com a alta migração de indivíduos para os centros urbanos em que havia desenvolvimento de indústrias, houve uma superlotação nas ruas inglesas, surgindo assim a 26

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pobreza, e consequentemente a denominação de vários distúrbios psicológicos (que Philippe Pinel vem explicar posteriormente). Um dos fatores que contribuíram para que o crescimento populacional aumentasse ainda mais, é que neste período a família era vista como um corpo só, detentor do mesmo sangue e que quando algum indivíduo cometesse um ato considerado vergonhoso para sua família ou tivesse um comportamento impróprio para os padrões sociais da época, como por exemplo, cometer crimes, ou ter alguma perturbação mental, este estaria sujando o nome e o sangue de sua família, portanto era abandonado por seus membros, deixando-o a sobreviver nas ruas. Com a modernidade e o pensamento já secularizado e humanista, surge com as ideias de Pinel de que aqueles que possuíam perturbações mentais eram doentes, portanto deveriam ser tratados como doentes e não a base de violência como a Igreja católica previa. Houve então uma separação de instituição asilares, criando as prisões que atendiam aqueles que infringiam as leis. Houve uma aproximação do direito com a psicologia, sendo que a psicologia entraria com o objetivo de diagnosticar até que ponto a sanidade do réu o consideraria criminoso ou portador de algum transtorno mental, para que assim haja uma distinção de tratamento entre doente e o não doente.

Tratamento psiquiátrico no Brasil

Pode-se dizer que a psiquiatria no Brasil iniciou-se com a chegada da família real. A situação aqui, se repete da mesma maneira que havia sido na Europa. Criam-se instituições de caridade para abrigar pessoas em situação de rua, cenário que era bastante normal na sociedade brasileira após 1530, quando houve uma imigração em massa para as terras brasileiras, estrangeiros em busca de ascensão social e muitas vezes não conseguiam, então acabavam tendo que tornarem-se moradores de rua, mas esse não se torna o único motivo para o surgimento de moradores de rua. A Europa via a “terra nova”, como era chamado o Brasil, como um “depósito”, em

que o que era indesejável em terras europeias, eles mandavam para as

terras brasileiras, incluindo doentes, prostitutas, infratores de leis, etc. Posteriormente, com a lei do sexagenário, as cartas e alforrias, e até mesmo com a abolição da escravidão, o número de moradores de rua cresceu mais ainda. Escravos libertos que saíam das fazendas sem rumo, sem saber o que fazer, ficavam nas ruas mendigando. Então as instituições de caridade vêm 27

ANAIS DO EVENTO

para servir como abrigo para as pessoas, pois a família real e a classe burguesa que aqui já se concentravam não queriam ter a seus olhos mendigos pedindo esmolas pelos centros urbanos, e muito menos trombar com negros ex-escravos pelas ruas. Nestas instituições era abrigado qualquer tipo de pessoa, sendo portador de doenças ou não. Posteriormente estas instituições tornam-se hospitais gerais, e estas pessoas que já estavam abrigadas nelas continuaram internadas, tendo o mesmo tratamento, a base de dor e sofrimento como era no modelo europeu. Nestes hospitais psiquiátricos tantos os pacientes como os técnicos da área, viviam em condições degradantes. Os pacientes viviam em péssimas condições de higiene e alimentação, sua comida era jogada em colchetes, repetindo a forma como os porcos eram tratados em seus chiqueiros. Tinham poucas roupas, e muito dos pacientes ficavam nus, dormiam sob um fino pedaço de palha que era trocado raramente e que os pacientes defecavam e dormiam em cima de suas próprias fezes, passavam frio, passavam fome e até mesmo aqueles que estavam lá em ótimas condições mentais ou físicas, acabam por fim, desenvolvendo algum transtorno ou doença orgânica. Pelo contexto social da época, como já foi dito acima, a família era considerada apenas um corpo e quando um deles cometia algo vergonhoso para sua família, muitas vezes este membro era abandonado, isso era frequente nos hospitais psiquiátricos. Muitas famílias deixavam seus membros nestes hospitais, esqueciam-se deles, esta realidade era favorável para os hospitais que se tornavam mercado de cadáveres, pessoas eram esquecidas em hospitais, enquanto esse esquecimento, não se sabe se era intencional ou não. Pessoas eram esquecidas até chegarem a sua morte, e assim eram vendidas ou doadas para escolas de medicina, tendo seu corpo utilizado para estudos. A quantidade de cadáveres não identificados era tão grande, que muitas vezes iam vagões de trens buscarem para que fossem deportados para as instituições, servindo como material de estudo. Dentre os tratamentos psiquiátricos a base de medicamentos, havia as cirurgias psicológicas, como a sangria e a lobotomia. Na sangria acreditava-se que a doença estava no sangue, então fazendo a eliminação do sangue, o paciente estaria curado. No caso da lobotomia, era feita em pessoas agressivas, tirava-se parte do cérebro sendo que a pessoa acabava tornando-se dócil e assim facilmente tratado, por isso muitos das pessoas que entravam nos hospitais sem nenhum tipo de transtorno, acabavam saindo com um diagnóstico. Entre os hospitais que era um modelo manicomial, existiam os hospitais colônia, que a característica deles eram o trabalho como forma de terapia ocupacional para a recuperação das pessoas com transtorno mental, em que consideravam o trabalho como a 28

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melhor forma de tratamento da época para que pudessem ajudar seus pacientes a conseguirem sua recuperação. Os técnicos da área da saúde e os estudiosos da área incluindo Michel Foucault e Erving Goffman, começaram a fomentar uma reforma psiquiátrica em congressos e eventos referentes a saúde mental, com diversas pessoas interessadas pelo assunto e pelo grande descaso dos setores da saúde para as condições desumanas dentro dos hospitais psiquiátricos. Começaram nestas reuniões feitas pelos funcionários da área da saúde mental, a ideia de uma reforma psiquiátrica necessária, reivindicavam por mais atenção aos hospitais e aos pacientes, pediam por uma quantidade maior de verba, para contratar profissionais da área, que eram poucos, a maioria eram estagiários residentes de medicina, que recebiam pouco e trabalhavam muito, e essa situação colaborava para que os pacientes fossem destratados dentro dos hospitais. Pensava-se em uma forma mais humana de tratar os pacientes, queriam o fechamento dos manicômios, surgindo os movimentos anti-manicomiais, que prevê o fechamento dos manicômios e tornando-se extinta a internação compulsória, a não ser em caso de vida ou morte do paciente ou das pessoas que as rodeiam. Analisando os diferentes contextos e discursos históricos referentes a loucura e a psiquiatria, podemos perceber que o tratamento psiquiátrico é consequência do uso do conceito de loucura, e este conceito muda no decorrer dos tempos, modificando também as formas de tratamento. Antes o tratamento da pessoa com transtorno mental era a base de dor e de sofrimento, consideravam a melhor forma de tratar, desconheciam o que havia com estes indivíduos, consideravam manifestações demoníacas, e, portanto, mereciam sofrer para que pudessem alcançar a paz espiritual e seu lugar ao céu. Hoje com o pensamento secularizado e o avanço da ciência, da medicina, da psicologia, da psiquiatria e outras ciências, vemos o tratamento psiquiátrico a base de conversação e compaixão, ainda não sabemos o que se passa com a pessoa com transtorno mental, e possivelmente ele também não sabe. A discriminação e a desumanização destes indivíduos não é a melhor forma de tratá-los. Hoje temos o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) que se acredita que esta é a melhor forma de tratamento, com terapia ocupacional, em grupo ou não, para assim termos a melhoria do paciente. Acreditamos hoje, que a compaixão e o amor ao próximo se torna o melhor remédio para tratar estes indivíduos, mas mesmo assim isso não significa que daqui alguns séculos ou até mesmo anos, outra forma de tratamento seja descoberta e considerada como melhor, ou que daqui algum tempo o conceito de loucura se modifique, e 29

ANAIS DO EVENTO

estudiosos do futuro venham a criticar o que praticamos hoje.

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ANAIS DO EVENTO

MEDICALIZAÇÃO – UMA EXPRESSÃO DA “QUESTÃO SOCIAL” SILENCIADA E REDUZIDA À NORMAS, DISCIPLINA E CONTROLE Andreia Regina Lopes de Sousa1 Camila Fernanda Daniel Koeche2 RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a medicalização infantil como forma de camuflar uma das expressões da “questão social”, ou seja, a patologização como forma de contraposição ao que tem origem nas condições de (re)produção social ou numa sociedade que é regida por padrões de normalidade impostos de modo hegemônico. A construção do referencial teórico se dará a partir da pesquisa bibliográfica e documental, de modo a referenciar brevemente a construção histórica da Política de Educação, Saúde, Reforma Sanitária, que se compõem através de lutas que resultam em conquistas e garantia de seus direitos, primando a igualdade de classe.

PALAVRAS-CHAVE Medicalização; política social; questão social.

INTRODUÇÃO Há uma latente inquietação de pais, professores e educadores na busca por uma definição ou diagnóstico para crianças tidas com alguma espécie de “disfunção” ou “desencaixe”, no entanto, é notável nesta sociedade que há algumas condutas normativas que são preconizadas, e entre elas a procura pela sensação de estar encaixado no todo, respondendo as expectativas geradas, e o não pertencimento a esta gera preocupação e insatisfação. Então, se estabelece a procura por algum padrão no qual o sujeito se encaixe, justifique sua conduta a determinada patologia, sendo que esta desvia o olhar para o sistema e foca na condição do indivíduo. Vivemos em uma sociedade onde predomina a desigualdade, e onde esta predomina, entendese que quem detém a riqueza detém também o poder de julgar, classificar e sentenciar os demais. A manutenção de um sistema fundado em desigualdade é possível, entre outras coisas, graças a um discurso que tenta explicar as diferenças entre os indivíduos – e as próprias desigualdades, produzidas pelo sistema – a partir de um padrão rígido e único de normalidade. A essência deste discurso consiste em naturalizar as desigualdades socialmente 1

Acadêmica do 4º ano do curso de Serviço Social da Unioeste/campus Toledo/Pr, [email protected], (44) 9852-8255. 2 Acadêmica do 4º ano do curso de Serviço Social da Unioeste/campus Toledo/Pr, [email protected], (45) 99168087 31

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produzidas e considerar que sua origem está naquilo que é exclusivamente de cada indivíduo. Sem levar em conta o movimento histórico e as disputas sociais, assim sendo, esta retórica busca, na rotulagem, biologização, explicação para as desigualdades sociais, como se fossem causa e conseqüência, e não inerentes ao sistema capitalista. Quando esta percepção se aplica a escola percebe-se que as crianças que não tem um bom desempenho se encaixam em um padrão em que são responsabilizadas por tal situação, no entanto, é necessário se analisar o contexto social ao qual esta se insere para poder buscar por uma avaliação que possa determinar uma resultante que possibilite uma intervenção, que não esteja focado no fator isolado, mas que busque apreender a conjuntura com um todo.

1. EDUCAÇÃO, “QUESTÃO SOCIAL” E EXCLUSÃO A Educação é um dos pilares no qual se assenta uma sociedade, porém, no país esta sempre esteve ligada ao conceito de higiene3 e de boas maneiras, que primasse por atender ao padrão de moral e ordem burguês, e para que estes padrões se efetivassem havia a comunhão com a medicina, “nesse sentido, educação e saúde se uniram como elementos inseparáveis na implantação de um programa de normalização e moralização, que visava manter forte pilar social – a ordem – pelos bons hábitos.”4 Sendo assim, uma das condições necessárias para que se possa compreender a dimensão educativa é a análise da realidade educacional brasileira, o modo como a escola cumpre ou deixa de cumprir sua função social, produz reflexos na sociedade que emergem através de demandas para o Serviço Social. Estas refrações, advindas da “questão social” 5 se tornam perceptíveis nas mais diversas áreas que abrangem o campo de atuação profissional, sejam nas próprias escolas, em instituições de contra turno social ou escolar, nos serviços públicos, na saúde ou na assistência social. 3

A medicina social, através de sua política higiênica, reduziu a família a este estado dependência [...] pretextando salvar os indivíduos do caos em que se encontravam que a higiene insinuou-se na intimidade de suas vidas. Valendo-se dos altos índices de mortalidade infantil e das precárias condições de saúde dos adultos, a higiene conseguiu impor a família uma educação física, moral, intelectual e sexual, inspirada nos preceitos sanitários da época. Esta educação, dirigida sobretudo as crianças, deveria revolucionar os costumes familiares. A higiene, enquanto alterava o perfil sanitário da família, modificou também sua feição social. (COSTA, 2004, p.12) 4

(LUENGO, 2010, p. 45)

A expressão “questão social” permanece entre aspas devido: “[...] uma das resultantes de 1948 foi a passagem, em nível histórico-universal, do proletariado da condição de classe em si a classe para si. As vanguardas trabalhadoras acenderam, no seu processo de luta, a consciência política de que a “questão social” está necessariamente colada à sociedade burguesa: somente supressão deste conduz à supressão daquela. A partir daí, o pensamento revolucionário passou a identificar, na própria expressão “questão social”, uma tergiversação conservadora, e a só empregá-la indicando este traço mistificador” (NETTO, 2001, p. 44-45). 5

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De acordo com Iamamotto6 e Netto7, a “questão social” é o resultado do antagonismo de classe, da contradição entre capital e trabalho, onde o processo de acumulação do capital rebate diretamente na configuração social e expressões da desigualdade vivenciadas pelo conjunto da classe trabalhadora, oprimidas pela disputa de interesses, gerando impactos na conjuntura, isto é, na realidade histórica. A “questão social”, que tem sua gênese no capitalismo, tem como característica explicativa, na perspectiva do modo de produção capitalista e Estado neoliberal, a naturalização das suas expressões, sendo vinculadas tão somente ao indivíduo, dissociando-o do contexto histórico. Para se entender a “questão social” e suas expressões, é necessário uma contextualização histórica no país, considerando que esta não é linear, a-temporal, sem movimento e abstrata. A história assim como a “questão social” se dá sob perspectiva dialética, na realidade concreta, onde a interação entre os indivíduos sociais e o movimento histórico, bem como, a relação sujeito e objeto não são naturais, mas construídas8. Sendo assim, a partir da década de 1930, no Brasil, se intensifica a industrialização, a imigração europeia e a saída do homem do campo para as cidades, a “questão social” torna-se mais evidente, bem como suas expressões: a urbanização desenfreada, a miséria, o desemprego, a violência, a desigualdade social dentre outras, ficando clara um progressiva elevação da miséria relativa à acumulação do capital. A exclusão no sistema educacional brasileiro tem uma longa história, que tem seu auge entre o final do século XIX e início do século XX, na criação das escolas como instrumento regulador para os pobres, que tinham como intuito o recolhimento de crianças abandonadas e combater em consequência disto, a mortalidade infantil. Deste modo, conforme Costa9, a escola nasce destinada a receber o povo abandonado, ou seja, os mestiços advindos de relações extraconjugais e afins, e os que fossem tidos como “degenerados” sociais, aqueles que não tinham a convicção da importância da manutenção da saúde, do bem-estar e do progresso da população, fazendo assim necessário a estatização dos mesmos para que absorvessem através do processo educacional tal concepção. Deste modo, as técnicas disciplinares saem do ostracismo colonial e se destacam como primeiro plano da cena política urbana no país. 6

IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 33. ed. São Paulo: Cortez, 2011. 7 NETTO, J. P.; BRAZ. M. Economia política: uma introdução crítica. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2010. 8 BULLA, L. C. Relações sociais e questão social na trajetória histórica do serviço social brasileiro. Revista virtual Textos & Contextos, nº 2, ano II, dez. 2003. Disponível em: . Acesso em: 18 de abril 2012. 9 COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.

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Assim, as crianças pertencentes às classes que detinham maiores condições econômicas eram mantidas em seus lares, onde recebiam o conhecimento de modo mais abrangente, gerando uma classe intelectual, que devia perpetuar a ordem social, e para, além disto, a distinção entre classes, ou seja, “superiores” e “inferiores”. Esta mesma divisão se perpetua aos dias atuais, de modo mais sutil, e que se expressa na falta de oportunidades de acesso à escola pública e de qualidade, nos elevados níveis de evasão escolar e na permanência das crianças e adolescentes por toda esta fase de suas vidas nas escolas, e, no entanto, sem se apropriarem de fato dos conteúdos escolares. O ambiente escolar, conforme Luengo10 tem como intuito garantir a apropriação do saber, e deveria possibilitar também o desenvolvimento de formas mais elaboradas de compreender o meio social. Para tanto, esse processo não deve ocorrer de forma passiva e mecânica, este se constrói nas relações do homem com o contexto social e, ao mesmo tempo, é determinado pela singularidade de cada indivíduo e do respeito a esta singularidade. Assim, segundo Constantino11, é impossível compreender o sentido subjetivo e pessoal do ser, sem situá-lo na trama complexa das relações sociais. Isso significa que embora cada sujeito possa atribuir significados à sua vida e ao mundo, a individualidade e a subjetividade continuam ligadas à objetividade, ou seja, ao contexto sócio histórico. Observa-se, que a própria origem da palavra sujeito nos leva a questionar sua intenção, ou seja, sua raiz que está na sujeição, domesticação, subordinação, obediência, seja da mente ou do corpo no seu modo físico ou espiritual. Para que o atual sistema se perpetue há a necessidade de que as relações se constituam através de valores morais apreendidos como verdade, que não permite o seu questionamento e que derivam da incorporação de um conformismo que impede os indivíduos de exercerem sua capacidade crítica e de escolha. Estes conceitos, adquiridos através da valoração moral e que são sintetizados como naturais à sociedade, vão sendo absorvidos, de forma que o ser os adota como caráter integrador, de forma subjetiva, que se concretiza a partir dos vínculos sociais que se estabelecem nos meio de (re)produção da vida social12. Assim, partindo de um modelo ideal de comportamento, discorre Luengo, os indivíduos que não seguem o caráter normatizante, são considerados como não pertencentes ao padrão tido como ideal, sendo que a ânsia pela produtividade desenfreada, própria da sociedade capitalista 10

(LUENGO 2010) CONSTANTINO, E. P. Meninos institucionalizados: a construção de um caminho. São Paulo: Arte e Ciência, 2000. 11

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MÉSZAROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005. 34

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advinda de uma cultura globalizada, a liquidez das relações, somada a conquistas científicas e tecnológicas, fez por conceber o homem como um ser que necessita estar apto, a adequar-se a um mundo nas diversas situações que passa a enfrentar, e aquele que por algum motivo não acompanha o todo é visto como o diferente, o incompleto, o desajustado, o imperfeito que necessita de ajuda para justapor-se aos anseios sociais.

2. MEDICALIZAÇÃO E CONTROLE

Para Foulcault (1987)13, o que determina a sujeição humana é o medo, a coação, a vergonha pelo “não pertencimento”, e estes são administrados através da ordem, a qual o indivíduo é submetido, e da naturalização desta através das normas, valores e significados produzidos e reproduzidos na esfera social e que é progressivamente materializada no campo real,

[...] significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade, atividade, gestos aparentemente sem importância; significa uma outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa.14

esta influência surge a partir da época clássica (meados do século XVI até finais do século XVIII), onde o corpo é descoberto como objeto e alvo de poder. Deste modo, o indivíduo capaz torna-se o indivíduo sadio, que detinha controle tanto de sua saúde física quanto de uma boa conduta moral. Assim, o ser considerado leproso, louco, bêbado, gera a estigmatização e rotulagem de um estado de anormalidade, de degeneração, que reforça os padrões ideais que a classe tida como “normal” deve seguir para não se tornar alvo de segregação, daí, o sentido de pertencimento a determinada classe que vai se dividindo entre os aptos e inaptos, ou seja, os que trabalham e os que por algum motivo não tem condições para exercê-lo. Neste sentido, a sociedade ao moldar, controlar e punir, priva o ser de sua essência, a 13

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

14

(FOULCAULT, 1987, p. 72-73) 35

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liberdade. Liberdade de expressão, liberdade de pensar, de procurar seus próprios interesses, de socializar, de reivindicar, de errar, enfim, de ser ele mesmo, pois ao expressar esta essência o ser humano retorna ao seu estado original.15 Ao ser tolhido o exercício desta capacidade, o ser social vai perdendo seus sentidos originais. Deste modo, até mesmo a linguagem corporal lhe é cerceada, ou seja, se o indivíduo não pode mais manifestar as dores e os sabores por meio do corpo ou da fala enquadra-se ao sistema que a rejeita, ele passa a internalizar a disciplina e aceitar o que lhe é imposto16. Para tanto, compreender as tramas sociais que corrompem e desumanizam o ser desde a infância, através do processo educacional, revela o mundo como um sistema fechado de conceitos e que reduz o outro a um molde dentro do qual se pretende enquadrar, que destrói o aspecto crítico e questionador inerente ao ser, ou seja,

A análise do fracasso escolar tem como um de seus principais argumentos, o fato de que os problemas de aprendizagem incidem maciçamente sobre as crianças das classes populares e é sobre elas que durante décadas recaem as explicações a respeito dos chamados problemas de aprendizagem: ou porque apresentam problemas psicológicos, ou biológicos, ou orgânicos ou mais recentemente, sócios culturais; bem como analisando o caráter ideológico e repleto de equívocos presentes nessas explicações, resultado de concepções preconceituosas a respeito do pobre e da pobreza no Brasil17.

No panorama atual, nota-se que cotidianamente muitos alunos são rotulados como difíceis, desequilibrados, depressivos, maníacos, bipolares, agressivos, introvertidos, e muitos passam a engrossar a fila de espera para atendimento em serviços públicos de saúde em todo o país. Deste modo, para Luengo, essas práticas que pretensamente visam identificar e tratar alunos com problemas emocionais na verdade fazem parte de um processo de enquadramento dos desviantes do tipo psicológico ordinário, alimentado por valores excludentes e

15 16

(FOULCAULT, 1987) (LUENGO, 2010)

17

SOUZA, M. P. R. Retornando a patologia para justificar a não aprendizagem escolar: a medicalização e o diagnóstico de transtornos de aprendizagem em tempos de neoliberalismo. In:Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. Orgs. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Grupo Interinstitucional Queixa Escolar. São Paulo. Casa do Psicólogo, 2010.

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preconceituosos. Assim é notável que os primeiros “diagnósticos” em relação a alguma dificuldade social da criança parte da escola, que identifica e analisa o ser a partir de manifestações comportamentais e não sob o viés da realidade concreta na qual este ser se encontra, pois, como já visto, há uma estrita ligação histórica entre a educação e a medicina. Conforme Luengo (2010), a escola foi concebida como local pertinente para a continuidade da ordem social, ou seja, onde a ética e os valores burgueses regem as condutas do convívio social que modelam o indivíduo para que tanto sua vida privada quanto social ou familiar sigam atreladas aos anseios políticos desta classe, e não sob a perspectiva de valorização do ser e de suas singularidades que compõem o todo numa interação contínua. Deste modo, a educação passa a ser atribuída a um ambiente controlador e disciplinador, que não corresponde ao caráter livre, criativo e comunicativo, característicos da infância. A patologização escolar conforme Collares e Moysés 18 “consiste na busca de causas e soluções médicas, a nível organicista e individual, para problemas de origem eminentemente social”. É evidente que não se pode realizar qualquer trabalho pedagógico sem uma rotina escolar, entretanto, esta deve ser construída cotidianamente com a finalidade de se colocar a serviço da função social da escola, ou seja, socializar conhecimentos e desenvolver o potencial crítico e questionador inerente ao ser. No entanto, nos ambientes escolares está sempre em cheque normas e critérios adotados de modo genérico, que não levam em consideração o aspecto singular do ser, e, por outro, a atitude passiva dos professores que esperam que, ao entrar na escola, os alunos rompam de maneira imediata com as formas de comportamento cotidianas, e que venham a se adaptar instantaneamente a estas, e os que têm alguma dificuldade nesta adaptação tem de ser normatizados ou silenciados. Assim, conforme Foucault, “O emprego da psicofarmacologia e de diversos fisiológicos, ainda que provisório, corresponde perfeitamente ao sentido dessa penalidade .”19 Deste modo, na sociedade ocidental vem crescendo a transferência de expressões resultantes das relações de (re)produção social para a área médica, ou seja, a transformação de questões de origem coletiva, de ordem social, econômica e política serem reduzidas a questões individuais e biológicas, ou seja, conforme Collares e Moysés20, este modo de definição “[...] 18

COLLARES, C. L.; MOYSÉS, M. A. A. Fracasso escolar uma questão médica? Caderno Cedes, n.15. São Paulo: Cortez, 1985.

19

(FOUCAULT, 1987, p. 17, grifo do autor)

20

COLLARES, C. L.; MOYSÉS, M. A. A Dislexia e TDAH: uma análise a partir da Ciência Médica. In:Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças 37

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iguala o mundo da vida ao mundo da natureza. Isentam-se de responsabilidade todas as instâncias de poder, em cujas entranhas são gerados e perpetuados tais problemas.”21 Ou seja, as expressões da questão social, são transformadas por meio de operações discursivas, em algo com origem e solução no campo médico, sendo que este processo se mantém inalterado em todos os campos científicos dela derivados, não podendo se deixar de lado que “a medicalização naturaliza a vida, todos os processos e relações socialmente constituídos e, em decorrência, desconstrói direitos humanos, uma construção histórica do mundo da vida.”22 Segundo Collares e Moysé23, o TDAH24 (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), concomitante ao uso do metilfenidato25, no âmbito escolar surge como justificativa para a repetência e o atraso, ou seja, crianças que apresentam comportamentos que não correspondem ao esperado ou desejado, são tidos como portadores do transtorno, e os pais, influenciados pelas queixas dos educadores, passam a procurar ajuda médica e psicológica no intuito de apaziguar tais comportamentos tidos como desviantes. Deste modo, a medicalização26 na infância vem como consequência da junção entre saúde e educação, como elementos interligados na implantação de um programa de normalização e moralização, visando a geração e manutenção de um forte pilar social, ou seja, a ordem advinda dos bons hábitos, que faz com que a educação se torne alvo do poder médico. Para Collares e Moysés, o conceito de medicalização é similar ao de patologização, ou seja, se refere ao processo de conferir uma aparência de problema de saúde ao que tange outras

de indivíduos. Orgs. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Grupo Interinstitucional Queixa Escolar. São Paulo. Casa do Psicólogo, 2010. 21 22

(COLLARES E MOYSÉS, 2010, p. 72). (COLLARES E MOYSÉS, 2010, p. 72)

23

COLLARES, C. L.; MOYSÉS, M. A. A. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (A Patologização da Educação). RevistaSérie Idéias. n. 23. São Paulo. FDE. p. 25-31, 1994. 24 TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade - pelo DSM-IV (Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, American Psychiatric Association) ou Transtornos Hipercibernéticos é segundo a CID -10 (Classificação Internacional de Doenças, Organização Mundial de Saúde – 1993), na atualidade, o transtorno com maior frequência de encaminhamentos de crianças a centros especializados de neurologia pediátrica. Também é considerado pelos especialistas como um transtorno mental crônico, o qual evolui ao longo da vida e que, segundo eles, a criança manifesta logo na educação infantil. (LUENGO, 2010, p. 19) 25 Metilfenidato – medicação utilizada para tratar “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”, segundo classificação do CID 10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados a Saúde – 10ª Revisão. Organização Mundial da Saúde) 26 Termo criado por Ivan IIlich (1996-2002), empregado e utilizado por Michel Foulcault (1926-1984) difundido no Brasil pelo movimento coletivo de psicólogos membros do Grupo Interestadual Queixa Esolar (GIQE), o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP SP) e o Sindicato dos Psicólogos de São Paulo (SinPsi), que se explicita num manifesto de repúdio ao Projeto de Lei 0086/2006, de autoria do vereador Juscelino Gadelha, que dispõe sobre um Programa de apoio ao aluno portador de distúrbios de aprendizagem diagnosticado como dislexia. 38

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questões, que geralmente estão ligadas à natureza social. Assim, Angelucci e Souza27, reforçam que este termo está fortemente presente na tendência a fazer com que a produção social e institucional das dificuldades de escolarização seja artificialmente transformada (e ocultada) por meio da atribuição destas a um suposto distúrbio orgânico dos alunos. A exclusão através da patologização dos indivíduos é parte da legitimação sutil do processo de produção e reprodução inerente ao sistema capitalista, e por isto, exige profissionais que possam fazer uso de um trabalho intelectual crítico, que propicie rupturas epistemológicas e que prime por desenvolver novos posicionamentos em relação a sociedade e a educação, sendo esta um dos pilares, senão o mais importante, e que pode viabilizar, partindo deste pressuposto, o despertar de uma nova consciência política, social e econômica.

3. REFORMA SANITÁRIA E A POLÍTICA SOCIAL

Segundo Robaina28, a psiquiatria surge na França com Pinel entre o século XVIII e XIX, porém, durante a Revolução Francesa que constitui uma nova ordem social, que se centra no homem, que passa a ser regida pelos preceitos de liberdade, igualdade e fraternidade, emerge uma inquietude sobre as condições hospitalares e asilares nas quais loucos e desviantes sociais eram submetidos. Contudo, a autora ressalta que as correntes organicistas da medicina vêm imprimir esforços para contrapor as teorias de Pinel (de isolamento do sujeito), buscando encontrar causas anatomopatológicas para a doença mental, dando início ao Movimento Higienista na Psiquiatria. Com base na doutrina das degenerações, que consistia em identificar em determinadas raças a degenerescência hereditária, sustentava com força de ciência a supremacia de uma raça sobre as outras, não aleatoriamente dos europeus sobre os colonizados, surge então a eugenia na psiquiatria. 29 A partir dos anos de 1920, inicia-se a expansão das instituições psiquiátricas nos principais centros urbanos brasileiros. A instituição psiquiátrica busca legitimar-se como uma das instancias reguladoras do espaço social, extrapolando os limites do asilo clássico, construindo um espaço que se vincula ao surgimento da psiquiatria infantil. Deste modo, a psiquiatria vem disfarçada de higiene mental, que objetiva por ser considerada 27

ANGELUCCI, C. B.; SOUZA, B. P. Apresentação. In: Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. Orgs. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Grupo Interinstitucional Queixa Escolar. São Paulo. Casa do Psicólogo, 2010. 28 ROBAINA, C. M. V. O trabalho do Serviço Social nos serviços substitutivos de saúde mental. Serviço Social e Sociedade. n.102. São Paulo: Cortez, 2010. 29

(ROBAINA, 2010) 39

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como fundamental, moldar o sujeito do amanhã, ou seja, as crianças, fazendo com esta intervenção o surgimento de uma geração higienizada. Sendo que o olhar sobre a criança justifica e sanciona a intervenção e controle sobre os pais, cabendo assim a higiene mental o papel de orientação científica das famílias. Segundo Schechtman30, este período é de forte presença da questão educacional no cenário brasileiro, assim um dos mecanismos estratégicos para a intervenção psiquiátrica sobre a criança era a que ocorria devido a atuação dos médicos na assistência escolar, pelos serviços de higiene e saúde escolar. Deste modo, a atividade desenvolvida pela medicina desempenhava caráter duplo, pois, além de detectar possíveis distúrbios degenerativos, serviria também para classificar e separar as crianças conforme sua evolução psicológica individual. Em 1961, Franco Basaglia, nomeado diretor do Hospital Psiquiátrico de Goriza, trouxe diversas transformações nas condições do cuidado com o paciente psiquiátrico, e afirmava a necessidade de transformações no modelo de assistência e na representação social da loucura, mudanças estas que escapam ao alcance da Psiquiatria. Como explicita Robaina para Basaglia, a reforma psiquiátrica preconizava o louco como um ser de direitos, um cidadão que não poderia estar à mercê de um sistema de tratamento excludente - mesmo que não desprezasse a necessidade do tratamento clínico - movimentou-se para o rompimento como o modelo hospitalocêntrico. Algumas visitas de Franco Basaglia ao país possibilitaram que se viabilizasse a Reforma Sanitária, estas discussões se iniciam na década de 1970. Este movimento se dá devido a questionamentos sobre o modelo de assistência psiquiátrica que se centra nos hospitais e os movimentos sociais em prol da efetivação dos direitos humanos. A Reforma Sanitária no país pode ser compreendida como um complexo processo político e social disseminado nas várias esferas governamentais com o apoio de diversos agentes31. Estes movimentos divulgavam, através de denúncia, como se dava o atendimento psiquiátrico, a violência nos manicômios, a supremacia psiquiátrica no atendimento, os fins de consumo presentes nos atendimentos e a concentração do atendimento em redes privadas. Assim, em 1987, ocorre o II Congresso do MTSM (Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental) e a I Conferência Nacional de Saúde Mental, no Rio de Janeiro, que foi realizada no contexto da VIII Conferência Nacional de Saúde sendo que esta, configurou-se num marco no 30

SCHECHTMAN, A. Consideração Histórica sobre Saúde Mental infantil no Brasil. In: Caminhos para uma política de Saúde Mental Infanto-Juvenil. Brasília: Ministério da Saúde, 2005, p. 25-29. 31

AMARANTE, P. Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. 40

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Sistema Único de Saúde (SUS). Este evento direciona para a necessidade de mudança no modelo de assistência oferecida nos manicômios com base na supremacia do saber psiquiátrico32. Portanto, com a aprovação da criação do SUS em 1988, ocorre no ano seguinte o Projeto de Lei nº 3657, proposto pelo deputado petista Paulo Delgado de Minas Gerais, que tem como princípio a regulamentação dos direitos dos pacientes com transtorno mental e a extinção dos manicômios. Deste modo, com a assinatura da Declaração de Caracas, em 1990 e com a realização, em 1992, da II Conferência Nacional de Saúde Mental, o Projeto de Lei 3657/89, vai sendo implementado, através da reinvindicação dos movimentos sociais, que geram a subsequente aprovação das legislações no que tange a viabilização de uma rede de atendimento de atenção à saúde mental por diversos estados da Federação. Porém, somente em 2001 é que o Projeto de Lei de Paulo Delgado é sancionado – com alterações ao que se refere ao texto original – resultando na lei 10.216, que afirma o atendimento preferencialmente em base comunitária e pela rede de atenção, da proteção dos direitos dos sujeitos com transtorno mental e a progressiva extinção dos manicômios33. É importante ressaltar que a política social - em qualquer área que se vincule, seja saúde, educação, habitação, entre outras - é fruto de uma conquista advinda de um processo histórico contraditório, da luta de classes e embates políticos. Conforme Behring e Boschetti34, a evolução das políticas sociais, é num primeiro momento, considerada como caráter punitivo e repressivo, pontual e fragmentada, tendo como primeiras legislações as leis inglesas, desenvolvidas no período que antecede a Revolução Industrial, “[...] tinham alguns fundamentos comuns: estabelecer o imperativo do trabalho a todos que dependiam de sua força de trabalho para sobreviver, obrigar o pobre a aceitar qualquer trabalho que lhe fosse oferecido; regular a remuneração do trabalho[...]”35 Com este aspecto repressivo e intuito de induzir os indivíduos ao trabalho, as políticas sociais são um produto do desenvolvimento capitalista, onde o maior interesse desse modelo de sistema é a exploração através do trabalho para gerar a acumulação. Essas políticas atendem parte das necessidades da classe dos trabalhadores, pois são fragmentadas sendo somente o mínimo possível para manter uma ordem, pois tem como maior função a de regulação do 32

BRASIL. Ministério da Educação. Documentos Subsidiários a Política de Inclusão. Secretaria de Educação Especial. 2005. Disponível em : http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/docsubsidiariopoliticadeinclusão.pdf. Acesso em: 20 mar. 2013. 33

(BRASIL, 2005)

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BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2008.

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(BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p.48) 41

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mercado, atuando na reprodução social onde o objetivo é manter a lógica do capital – produção e reprodução, exploração, acumulação, centralização e contradição.36 Enquanto política social, a Educação vem assumindo novas formas principalmente a partir dos anos 1990 com a alavancada das políticas neoliberais e a ocorrência de mudanças no que tange o campo cultural, social, político e econômico. As políticas sociais em sua totalidade sofrem com reduções, os recursos destinados a elas são limitados, privatizados, e em consequência deste quadro, as responsabilidades do Estado são minimizadas, resultando no aumento da exclusão e do agravamento das expressões da “questão social”, que se refletem na Educação e nas demais políticas sociais, porém, este é um momento em que o país vive a abertura para a democracia37. A Educação é um processo de constituição da vida social, é um alicerce para o desenvolvimento social e deve ser um instrumento de concretização para cidadania, contribuindo com o processo de luta pela democracia, pois um indivíduo apropriado de conhecimento e de capacidade crítica tem possibilidades de provocar transformações, ou seja, a Educação “deve ser compreendida como um processo político, exatamente por traduzirem objetivos e interesses de grupo social economicamente diferente.”38 Portanto, com a modificação das relações sociais, mudanças no panorama econômico e a necessidade por profissionais qualificados, a Educação trava lutas no intuito de se colocar frente à sociedade como direito e para que seja estendido e garantido a todos. No entanto, somente a partir Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, da Declaração de Salamanca, em 1994, e efetivação com a Constituição Federal de 1988, é que a Educação adquire novos contornos, passando a ser um direito, embasado em leis, devendo ser garantida pelo Estado, por meio de diferentes políticas. Assim, a Educação no Brasil se orienta pela Constituição da República Federativa de 1988, que do Artigo 205 ao 214, estabelece os direitos sociais dos quais a educação passa a ser incluída, sendo direito de todos e responsabilidade do Estado e da família promovê-la e incentivá-la, com a colaboração da sociedade visando o pleno desenvolvimento do sujeito, o preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Deste modo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (1996) abrange a 36

IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital feitiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2010. 37 SILVA, M. M. J. O lugar do Serviço Social na Educação. In: Serviço Social na Educação: Teoria e Prática. 1. ed. Campinas, SP. ed. Papel Social, 2012. 38 GADOTTI, M. Concepção Dialética da Educação: um estudo introdutório. 2. ed. Cortez: Autores Associados. São Paulo, 1983.

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Educação aos processos formativos no que tange a vida familiar, a convivência humana, o trabalho, as instituições de ensino, e pesquisa se estendendo aos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e manifestações culturais. Do mesmo modo que a Política de Educação foi construída historicamente, a Política da Saúde também tem como base para sua implementação a Constituição Federal de 1988, no artigo 196 do direito à Saúde. Este artigo é complementado pela LOS – Lei Orgânica da Saúde n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Inclusive dispõe sobre o SUS – Sistema Único de Saúde, tais como atribuições, objetivos, princípios, diretrizes, gestão e outros. Assim, o processo de redemocratização do Brasil estabeleceu novos rumos às políticas e fez surgir novos atores sociais que propunham um novo modelo de atenção à saúde. Sobre este momento, destaca Bravo, a “Saúde deixa de ser interesse apenas dos técnicos para assumir uma dimensão política, estando estreitamente vinculada à democracia.”39 A implantação do SUS, advém de uma manifestação nacional e anti-manicomial conhecida como Reforma Sanitária, que teve seu início nos anos 1970, e levantava questionamentos em relação ao modelo de assistência psiquiátrica.

CONCLUSÕES

Com a implementação da Política de Educação e Saúde o país rompe com uma longa tradição de exclusão educacional, que passa de algo com caráter assistencialista e de controle social para algo que engloba a todos, sem distinção de classe, cor, raça e etnia. No entanto há desafios a serem superados para que a educação possa promover a liberdade como veículo na direção da cidadania plena, e da liberdade que é inerente ao ser e a própria sociedade, uma delas é a medicalização, que vem imputar ao indivíduo algo que tem raiz na lógica excludente do sistema capitalista, que descola o sujeito da realidade social na qual se encontra inserido e lhe atribui características de um ser a-histórico, não levando em conta a singularidade e a subjetividade peculiares de cada ser. É importante analisar que para construção de uma nova ordem societária, democracia, cidadania, direitos sociais, políticos e humanos não devem se dissociar, pois são elementos interligados, dependendo um do outro para que mudanças concretas ocorram, sendo assim, a

39

(BRAVO, 2006, p. 95) 43

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realidade na qual nos encontramos a deriva é construída dentro de um processo de transformações históricas, de mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas. Consequentemente, tendo em vista este contexto, é importante buscar por alternativas que busquem romper com a lógica excludente do capital.

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A MORTE NA TRAGÉDIA EURIPIDIANA E A “PAIDEIA” HELÊNICA Caio Cesar Machado Gomes1 Resumo: Dentre as manifestações artísticas mais notáveis da pólis de Atenas no século V a.C., a composição e encenação de tragédias ocupava lugar de destaque. Isto se devia à inserção da dramaturgia no cenário religioso que, na Hélade, se encontrava profundamente associado à esfera política. Basta recordar que a organização e o funcionamento dos concursos de tragédia faziam parte do calendário cívico-religioso ateniense: tanto os textos trágicos quanto os cômicos eram encenados durante festivais como as Grandes Dionísias, comemorações rituais dedicadas a Dioniso (divindade ligada, entre outros, ao vinho, à insânia e à manutenção dos ciclos da vida). Sendo assim, competia a um dos magistrados anualmente eleitos em Atenas – o arconte epônimo – a seleção dos tragediógrafos autorizados a disputar os concursos. Em suma, cabia à cidade assegurar as condições necessárias para a encenação das obras teatrais2. No âmago da paideia em Atenas, ou seja, dos ideais e práticas sobre as quais se assentavam a formação do indivíduo na sociedade democrática (uma noção ampliada de educação), a produção teatral se opunha, em certa medida, à filosofia. O conhecimento filosófico se mostrava mais restrito à aristocracia, visto que a construção de reflexões filosóficas demandava skholé (o ócio), o qual escapava de uma grande parcela da população ateniense que haveria de dedicar o seu tempo para a execução de atividades laborais. Em contrapartida, os concursos de tragédia abrangiam um público muito maior e mais heterogêneo

(composto,

inclusive,

pelos

segmentos

sociais

excluídos

da

esfera

políticoinstitucional: mulheres, metecos3 e escravos). Nesse sentido, os discursos dos poetas trágicos, neste caso os de Eurípides, se mostram enquanto instrumentos de poder, evidenciando-se o papel social da tragédia: os modos como a morte é apresentada na dramaturgia euripidiana apontam e propõem condutas, logo, afirmam lugares-sociais.

Palavras-chave: paideia, tragédia grega, morte

1Acadêmico do curso de Licenciatura em História da UNIOESTE - Campus Marechal Cândido Rondon. 2(PIQUÉ 1998, p. 211) 3Grupo legal daqueles helenos não autóctones que residiam em Atenas. 45

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Introdução

Para o presente trabalho, utilizamos as seguintes obras de Eurípides: Alceste, Os Heráclidas e Hécuba (uma tragicomédia e duas tragédias). A seleção das três obras se deu devido ao tema da morte ser central no decorrer da trama4. Levando-se em conta a natureza das fontes, julgamos que a literatura configura uma chave privilegiada de acesso ao imaginário de uma sociedade circunscrita no tempo e no espaço na medida em que, conforme Pesavento5, a narrativa literária “é expressão ou sintoma de formas de pensar e agir”. Desta forma, enquanto testemunho de seu tempo, julgamos que os textos de Eurípides apresentam não um dado acontecimento, mas antes possibilidades de conduta e de ações as quais, todavia, partiam da realidade concreta. Ademais, a concepção formulada por Jean-Pierre Vernant6 a respeito da “bela morte”, da ideologia de morte gloriosa entre os antigos helenos, serve de norte para analisarmos as considerações acerca do fenômeno da morte na narrativa poética de Eurípides. A partir da leitura da épica homérica, Vernant constrói a noção da “bela morte”: cientes do fato de que a finitude correspondia a algo inerente à vida, os heróis narrados por Homero lançavam-se aos perigos de maneira intrépida, na medida em que uma morte honrosa, no campo de batalha, faria com que os seus feitos jamais fossem esquecidos. Em outras palavras, a posterior rememoração da figura do falecido redundava na preservação da individualidade do sujeito. Logo, a morte deixava de equivaler à “ausência”, pois enquanto o indivíduo fosse relembrado, de certa forma ele se faria “presente” no seio da comunidade dos vivos – e não se converteria em uma parte disforme do cosmos7. Neste caso, a velhice implicava um obstáculo para que se alcançasse a “bela morte”: a passagem do tempo maculava a beleza e a jovialidade do corpo do herói homérico. Morrer de velhice equivalia a uma ação desprovida de toda glória, e que não mereceria ser cantada pelas gerações vindouras. Embora a proposta de Vernant se volte, sobremaneira, para a poesia de Homero, ajuizamos que a mesma possa ser aplicada ao estudo dos textos de Eurípides, uma vez que o tragediógrafo ambientou suas obras em um universo mítico comum à narrativa 4(SANTA BÁRBARA 2006) 5(PESAVENTO 2006) 6(VERNANT 1978; 2005) 7(VERNANT 2005, p. 82-83) 46

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homérica, em que pese o distanciamento cronológico existente entre ambos os autores e as especificidades de cada um deles. Do que resulta, sendo assim, que a concepção da “bela morte” possa ser alargada para outras esferas que não a bélica, de modo que a ideia dependa justamente do contexto para se materializar8. O que foi paideia? Para os atenienses, de modo muito distinto das ideologias dominantes da “sociedade moderna”, o mundo era um todo complexo e seus elementos não eram individualmente distintos, mas considerados partes ativas deste todo - de forma que poderíamos denominar esse olhar sobre o mundo como uma “concepção orgânica”: “...consideravam as coisas do mundo numa perspectiva tal que nenhuma delas lhe aparecia como parte isolada do resto, mas sempre como um todo ordenado em conexão viva, na e pela qual tudo ganhava posição e sentido.”9 Por conseguinte, é possível compreender por que na Hélade do séc. V a.C. não se separava, por exemplo, política de religião (a própria Justiça era Diké, uma divindade) - logo, os concursos de tragédia sofriam todos os tipos de influência das mais variadas esferas sociais. Por paideia devemos entender um fenômeno especificamente helênico. Alguns pensadores modernos tentam traduzí-lo por “civilização”, “cultura”, “educação”, “literatura” ou mesmo “tradição”. Poder-se-ia pensar que tal fenômeno fosse a soma de todas estas expressões distintas, entretanto, o que referencia a noção helênica são os pontos comuns e não as distinções entre todas as noções citadas10. Nesse sentido, é possível que tenham sido os sofistas os primeiros a se debruçar sobre a noção de paideia, tendo-a enquanto um caminho, um conjunto de atividades, que objetiva a construção de um cidadão com aretè, honra e coragem, com harmonia entre corpo e mente, ou seja, o meio pelo qual o homem (o sexo masculino, de fato) alcançaria a “excelência moral” que, em termos do contexto democrático, seria o ápice de suas potencialidades individuais desenvolvidas em prol da pólis (da comunidade políade)11.

8(VERNANT 2005, p. 73; 78) 9(JAEGER 1994, p. 11) 10(JAEGER 1994, p. 10) 11(MORRIS 1989, p. 309; JAEGER 1994, p. 336) 47

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Assim, é possível estabelecer uma tradução mais aproximada do que é paideia pensando em uma noção de “educação ampliada”, não a educação da esfera formal, mas o processo de ensino-aprendizagem que ocorre nas mais diversas áreas da vida social - porém, nem mesmo assim, seríamos capazes de exprimir a totalidade significativa da expressão naquele contexto.

Assembleia, teatro, Sofística e Filosofia: funcionalidades práticas do ideal de isonomia

Para compreendermos o estreito vínculo entre a paideia e a areté, temos de entender antes o que era para os atenienses do séc. V a.C. a pólis, pois é nesta que a construção da “excelência moral” se referencia. Sendo o mais objetivo possível, a pólis não era apenas aquilo que propunham alguns maus tradutores, ou seja, cidade-Estado. A pólis era, para além do território e da instituição política, uma “instituição viva”, era também a comunidade políticoinstitucional, ou seja, a totalidade dos cidadãos. Funcionava o acesso aos direitos políticos, nesse sentido, como funcionaram em períodos anteriores o poder estabelecido pelas oligarquias: no lugar dos laços de sangue, a “família ática” abarcava todos aqueles autóctones do sexo masculino12. Porém, cabe ressaltar que, apesar de excluídos da “cidadania política”, ou seja, do acesso direto ao voto nas Assembleias, da participação no campo militar e do exercício de magistraturas, tanto mulheres quanto metecos tinham influência visível e relevante na vida políade,pois mostravam-se ativos fora da esfera institucional13. Sem contar que, mesmo fazendo parte do corpo de cidadãos, nem todo homem ateniense tinha a possibilidade de sustentar constantemente o exercício de sua “cidadania política” - o modo de produção escravista, de fato, limitava os economicamente subalternos, limitava a “participação popular”. Entrementes, se o sistema democrático não era tão efetivo nas Assembleias, era nas apresentações teatrais. Ocorrendo durante as Grandes Dionísias, os concursos dramáticos recebiam sujeitos de todas as esferas sociais de Atenas: os cidadãos, as mulheres, os escravos, os metecos e até mesmo as crianças14 (com grande probabilidade de ter recebido até mesmo os ditos “bárbaros”). De modo muito distinto funcionava o acesso às discussões filosóficas e à 12(JAEGER 1994, p. 336) 13(ANDRADE 2000, p. 30) 14

(CASTIAJO 2012, p. 130) 48

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arte da retórica. Em primeiro lugar, o exercício da reflexão filosófica demandava skholé (o ócio), o tempo adequado para se devotar à atividade intelectual, o que implicava, pois, a suspensão do trabalho braçal - exigido à grande maioria da população (desde os cidadãos pequenos camponeses até os escravos). No mesmo sentido, é muito provável que os sofistas fossem espécie de “andarilhos”, sem residência fixa, que se hospedavam na casa dos oligarcas, cobrando pelo ensino da retórica - é claro, poucos tinham condições para pagálos15.

A morte em Eurípides: instrumento de poder?

Antes de tudo, destaquemos o fenômeno da morte. Esta implica sempre uma perda: o falecido deixa de ocupar as funções que, quando vivo, exercia no grupo familiar e social. Trata-se de um momento, todavia, em que o significado da vida podia ser repensado. No que diz respeito à Antiguidade helênica, o desenvolvimento dos rituais e dos cultos funerários revelava a preocupação da comunidade no sentido de guiar a passagem do morto para o “outro” mundo e, ao mesmo tempo, facilitar tal passagem aos olhos dos vivos, tornando mais aceitável a “ausência” do falecido. Em última instância, pois, é perante a morte que os antigos gregos expressavam suas atitudes diante da vida16. O tragediógrafo Eurípides viveu no século V a.C. e, ao lado de Ésquilo e Sófocles, situa-se como um dos três expoentes da tragédia helênica clássica, sendo o mais jovem dentre eles. Nasceu em Atenas entre os anos de 487 e 484 a.C., provavelmente no seio de uma família abastada, dotada de importância social, como apontam algumas evidências: segundo consta, ele havia sido "portador da tocha" durante a realização de um dos rituais consagrados ao deus Apolo, honraria restrita a poucos. Mais importante ainda, à maneira da produção filosófica, a arte poética demandava o ócio (skholé), o tempo adequado para se devotar à atividade intelectual, o que implicava, pois, a suspensão do trabalho (manual). Sem contar que, embora concedessem premiações, os concursos de tragédias não permitiam que os tragediógrafos adquirissem os meios necessários para o seu sustento material: a apresentação dos textos se dava de forma intermitente e nem sempre os autores eram agraciados com os

15(JAEGER 1974, p. 371) 16(FLORENZANO 1996, p. 63-64) 49

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prêmios em disputa nos concursos17. Estima-se que Eurípides tenha falecido em 407 ou 406 a.C., mas não há consenso sobre o local: talvez na própria Atenas ou na Macedônia, junto à corte do rei Arquelau I (413-399 a.C.). Acordam vários estudiosos que Eurípides, dentre os três tragediógrafos citados, foi o mais influenciado pelo pensamento humanista e racionalista que floresceu na época Clássica. Ora, a valorização dessa ótica antropocêntrica estava relacionada, por sua vez, ao vigor da noção de isonomia (igualdade) que, em uma pólis como Atenas, se fazia presente desde o campo de batalha até as discussões na Assembleia que reunia os cidadãos (a ekklésia)18. Quer dizer, essa maneira antropocêntrica de se conceber o mundo acabava por se materializar nas instituições políticas e sociais e, ao mesmo tempo, estimulava reflexões que questionavam e impunham limites ao pensamento mitológico – ainda que, ressalve-se, os intelectuais atenienses dos séculos V e IV a.C. jamais abrissem mão de dialogar com os mais diversos mitos (mesmo porque as narrativas das tragédias se voltavam necessariamente ao passado mítico)19. Assim sendo, a relevância dos preceitos antropocêntricos no âmago da produção de Eurípides direcionou nossa atenção rumo a uma questão presente no interior do corpus documental euripidiano, qual seja, o fenômeno da morte20. Em Alceste, a temática da morte ocupa, de fato, o primeiro plano na narrativa. Alceste é esposa de Admeto, rei de Feres, a quem Apolo viu-se obrigado a prestar serviços em função de um castigo imposto por Zeus. Enquanto Tânatos (a personificação da morte) se aproxima de Admeto, Apolo intervém na trama dos acontecimentos, propondo que Alceste morresse no lugar do rei, ao passo que as Parcas (divindades que tecem os fios do Destino dos homens e dos deuses) consentem com a proposta. N’Os heráclidas, a problemática central gira em torno da perseguição lançada pelo rei Euristeu contra os filhos de Héracles. O herói havia executado 17Eurípides, por exemplo, obteve o primeiro prêmio dos concursos trágicos em apenas cinco oportunidades, sendo que a última das premiações lhe foi concedida postumamente.(RIBEIRO JÚNIOR 2007, p. 129) 18(VERNANT 2002, p. 141) 19(MEDINA GONZÁLEZ; LÓPEZ FÉREZ 1991, p. 12) 20

Salientemos, aliás, que a morte correspondia a um tema central em meio à

tragediografia. Como afirma Nicole Loraux, no teatro ateniense a morte realmente era exposta à visão do expectador (LORAUX 1988, p. 7). 50

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os memoráveis "Doze Trabalhos" em favor do monarca, e este, temendo vingança, deseja a morte dos heráclidas, os quais, tendo Iolau como tutor, se refugiam nos domínios do rei Demofonte. Por fim, a obra Hécuba trata dos infortúnios que acometem a vida da personagem-título, mãe de Polidoro e Polixena e esposa do falecido Príamo, rei de Tróia. De rainha troiana, Hécuba tornar-se-ia escrava entre os trácios, ao passo que seu filho viria a ser assassinado e sua filha seria entregue em sacrifício para que honrasse a morte do herói grego Aquiles. Feito isto, sublinhemos como Eurípides apresentou a morte sob diferentes vieses nessas obras. Na Alceste, o sacrifício da protagonista possibilita que Admeto escapasse da morte, que correspondia, pois, a uma ação diante da qual todo indivíduo deveria se resignar. Quer dizer, Alceste aceita a inevitabilidade do fim da vida, ao contrário de Admeto.21 Já n’Os heráclidas, a perseguição promovida pelo rei Euristeu insere a morte no plano da vingança: os descendentes de Héracles honrariam a memória de seu antecessor somente se liquidassem com a vida do monarca. Nestes termos, a vingança é uma obrigação moral que recai sobre os entes mais próximos do herói, cuja morte é justamente o fator que a desencadeia. Por sua vez, o alvo da vingança, Euristeu, procura livrar-se dos heráclidas para evitar que a consecução do ato vingativo resultasse em uma morte que implicaria o ultraje de sua memória. Por fim, em Hécuba a morte se associa diretamente à desonra do rei Polimestor (que havia acolhido Polidoro e em seguida o assassinaria, por almejar as riquezas que pertenciam ao príncipe troiano), enquanto que as ações vingativas levadas a cabo por Hécuba também resultam em morte; ademais, embora permanecesse viva, as desgraças que se abatem sobre a personagem-título sinalizam, diríamos, a ocorrência de uma “morte em vida”: desonrada, mas ainda viva, a existência de Hécuba estaria desprovida de sentido. Portanto, a morte em si não representa uma mazela.22

21

Ian Morris enfatiza o fato de que, na narrativa da Alceste, a conduta da personagem-título

se encaixa à perspectiva da “morte domada”, como delineada por Phillipe Ariès: quer dizer, a ideia de que a finitude da vida é algo inescapável e, assim sendo, familiar e aceitável ao indivíduo (MORRIS 1989, p. 309). 22

Vale sublinhar, contudo, que a heterogeneidade das maneiras e das concepções que cercam

a morte nos textos vincula-se a uma constante: a morte figura como resultado da ação humana, para além da esfera divina (ainda que esta não seja negligenciada). 51

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Diante do exposto, cabe questionar de que forma as concepções sobre o fenômeno da morte, como notadas na narrativa euripidiana, manteriam uma relação dialética com as práticas cultuais e as transformações sociais que se desenvolvem ao tempo do autor. A resposta para tanto deve ser buscada no "mundo do vivos": os ritos funerários levados a cabo em honra dos falecidos – isto é, dos “ausentes”, daqueles que não mais integram a comunidade políade – têm por objetivo a preservação da memória desses que já se foram. Por seu turno, a manutenção dos rituais envolve a perspectiva de que os “vivos” no presente equivalham, no futuro, aos “ausentes” que serão rememorados. Neste caso, as práticas e representações sobre a morte se orientavam pelo sentido de comunidade que unia os atenienses23. Em outras palavras, as ideias formuladas acerca da morte prescrevem modos de conduta aos diferentes atores (cidadãos, mulheres, metecos, escravos) que se inseriam na pólis de Atenas, apontando, pois, lugares-sociais. A “autoridade” do discurso dramático era baseada nas próprias crenças atenienses. O dramaturgo, ao exercer sua arte poética é porta-voz do divino, pois a poesia vem das Musas, logo Eurípides era visto como um descendente destas. Além disso, devemos ressaltar a grande importância dos festivais dionisíacos: o grande número de pessoas demonstrava quão popular era o evento24. Contraditoriamente, a dramaturgia permitia, à medida em que didatizava, visualizar o processo de transição do pensamento mítico ao racional (sem uma negação completa do primeiro, claro), abarcando, no caso de Eurípides, ferrenhas críticas ao sistema democrático vigente25. Exemplo disto é o protagonismo feminino (visto em Alceste e Hécuba, por exemplo) e as alusões à desigualdade material dos cidadãos ampliadas com a ânsia imperialista de Atenas durante a Guerra do Peloponeso, além da exclusão dos metecos e escravos26. Neste ensejo, as tragédias de Eurípides apontam modelos de conduta, “ensinam” através do exemplo e, por consequência, apontam também modelos de morrer, que, no contexto estudado, são modelos que sempre se referenciam à comunidade27. Nesse sentido, percebe-se que o foco da obra euripidiana não é a morte em si, mas as ações humanas que 23(JONES 1997, p. 199) 24(NAGEL 2006, p. 80) 25(NAGEL 2006, p. 79) 26(MEDINA GONZÁLEZ; LÓPEZ FÉREZ 1991, p. 11; ANDRADE 2001, p. 125) 27(SILVA 2014, p. 54) 52

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causam o óbito e as reações que este causa, com destaque para os ritos funerários e a rememoração social28.

Considerações finais

Por fim, creio que se possa levantar questões sobre a dinâmica da organização social ateniense (com cautela, para que não se cometam anacronismos) fazendo uma comparação entre “ontem e hoje” - é interessante que o passado sirva para pensar o presente, e que o presente, dialeticamente, sirva de hipótese para analisar o passado. Dada a organização sociopolítica de forma que, em contraste com a “sociedade moderna”, o conjunto dos cidadãos não eram apenas “sociedade civil”, mas eram por excelência “sociedade política” (em termos de Gramsci29), ou seja, o conjunto dos cidadãos era o grupo que tinha acesso direto ao poder institucional, seria, digamos, inviável outro modo de sistema democrático com a ausência das modernas teorias liberais - que vão em sentido claramente oposto à “concepção orgânica” de mundo dos atenienses: seria impossível, na Atenas do séc. V a.C., separar as atividades políticas das econômicas, religiosas, etc. Nesse sentido, podemos sugerir pensar o teatro antigo, assim como as Assembleias, devido ao seu caráter “agonístico", enquanto um “campo de disputa”. Além do que, de modo mais amplo, os discursos dramáticos transportavam discussões que, de fato, refletiam (de maneira não-mecânica) as tensões políticas e as aretès da pólis30. Para materializar a noção de “campo de disputa”, é possível estabelecer uma relação conflituosa entre a produção de Eurípides e a do comediógrafo Aristófanes (c. 447-385). Em obras como Lisístrata, Assembleia das mulheres ou n’As Tesmofórias, Aristófanes reiterava as desigualdades de gênero que caracterizavam a Antiguidade grega; para tanto, na trama narrativa, o autor inseria as mulheres nos espaços políades explícita e exclusivamente destinados aos cidadãos de Atenas, isto é, nos cenários políticoinstitucionais31. Assim, a inversão dos papeis sociais, isto é, o “travestimento” das mulheres em homens, é que provocaria a comicidade (dadas as situações hilárias consequentes da inversão 28(SILVA 2014, p. 60) 29(GRAMSCI 1999, p. 435-437) 30Conforme Jacqueline de Romilly, na introdução de sua conferência à Universidad Internacional Menéndez Pelayo em 1978. 31(MEDINA GONZÁLEZ; LÓPEZ FÉREZ 1991, p. 11; ANDRADE 2001, p. 125) 53

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dos sujeitos), reafirmando, ao mesmo tempo, o status quo. Em contrapartida, na produção euripidiana, as personagens femininas – como se vê em obras como Alceste ou Hécuba – por vezes assumiam o posto de protagonistas das ações, mesmo na esfera pública, indo além dos limites impostos pela “passividade”32 que marcava a relação entre as mulheres livres nascidas em Atenas e a prática político-institucional. Enfim, a única coisa que podemos de fato concluir, é que o universo da dramaturgia ateniense antiga é heterogêneo, assim como as próprias obras de Eurípides: a morte tem várias facetas. E, nesse sentido, deve-se tomar cuidado no processo de construção da narração explicativa para que nossos rótulos não homogeneízem uma realidade conflituosa, dialética.

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Bibliografia eletrônica

http://www.historia.uff.br/estadoepoder/7snep/docs/049.pdf

32

Lembremos que, a partir de 451 a.C., os direitos de cidadania em Atenas restringiam-se aos

homens livres adultos, nascidos de pai e mãe ateniense. O reforço ao princípio de autoctonia como base para a participação nos assuntos públicos se fundamentava, porém, em uma dimensão que escapava por completo aos homens: a reprodução biológica do corpo cívico dependia, pois, do sexo feminino. 54

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ANAIS DO EVENTO

CAPTAIN AMERICA AND BUCK: SOCANDO NAZISTAS, ESMAGANDO COMUNISTAS. UMA BREVE ANALISE DOS COMICS BOOKS DO CAPTAIN AMERICA (1941-1954) Carlos Eduardo Boaretto Pereira 1. Introdução

Este artigo tem como intensão analisar e discutir a representação dos inimigos nazistas e comunistas nas revistas em quadrinhos do CaptainAmerica, lançadas pela TimelyComics e Atlas Comics, durante a década de 1940 e 1950. Parto da hipótese de que essas representações são causadas justamente pelas modificações das relações econômicas, sociais e culturais dos EUA durante e pós-Segunda Guerra. A primeira revista do CaptainAmerica foi lançada em março de 1941, nove meses antes da entrada oficial dos EUA na Segunda Grande Guerra Mundial. A capa da primeira história desse personagem mostrava como seu principal inimigo, o líder da Alemanha nazista, Adolf Hitler. Essa representação é bastante significativa, porque mostra que, mesmo que o principal motivo para a entrada dos EUA na Segunda Guerra, ter sido o ataque dos japoneses a Pearl Harbor, o governo dos Estados Unidos e suas indústrias entendiam que a Alemanha seria um inimigo mais perigo. Podemos observar pelas analises que a indústria cultura, investiu muito, antes e durante a guerra, para mostrar o quanto os nazistas eram perigosos. Do mesmo modo, ao final da Segunda Grande, com o fim do perigo nazista,outro inimigo surgiria.

2. Os Estados Unidos e as duas grandes guerras mundiais

Se Lenin já anunciava que a Primeira Grande Guerra foi causada pelas potências Imperialistas, a segunda, sendo um desdobramento da primeira, não seria diferente. As interferências do governo estadunidense na América Latina e no Oriente, articulado com suas empresas nacionais, foram consequências da transformação econômica que ocorreu nos Estados Unidos logo após a Guerra de Secessão e a marcha para o Oeste. Assim como nos Estados Unidos, a Alemanha e outros países também tiveram uma transformação em suas indústrias nesse período e necessitavam de novos mercados para consumir suas mercadorias. Como a maioria dos mercados estavam sob o controle das potências França e Inglaterra, houve um crescente embate entre potências imperialistas na

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Europa, o que contribuiu para o início da Primeira Guerra Mundial em 1914. Até 1917 o governo dos EUA manteve-se isolado e permaneceu fora dos conflitos na Europa, deste modo cultivando relações econômicas com as duas frentes. Essa relação, porém, não se deu sem diversos conflitos de interesses econômicos. “Em 20 de agosto de 1914, o gabinete inglês britânico decidiu que não respeitaria a declaração de Londres de 1909, que formulava regras para o comércio neutro com nações beligerantes nos períodos de guerra”. Assim os Estados Unidos tiveram que enfrentar um bloqueio comercial. O governo inglês, contudo, manteve comércio com os Estados Unidos, mesmo os estadunidenses não entrando no conflito. Para os Estados Unidos esse comércio gerou um aumento na lucratividade de suas empresas. “De 1914 até 1917, o produto das exportações de aço quadruplicou, passando de 250 milhões de dólares para 1,1bilhão; os compostos químicos, corantes e drogas subiram de 22 milhões para 181 milhões de dólares”1. A exportação de munição cresceu de “meros 6 milhões de dólares por ano, em 1914, para 1,7 bilhão entre janeiro de 1916 e março de 1917.”2 Os interesses da entrada dos Estados Unidos na guerra foram comerciais. Nos meses de janeiro e fevereiro a Marinha alemã “afundou 600 mil toneladas por mês de produtos americanos e Aliados”3. No dia 2 de abril de 1917 o presidente Wilson declara guerra aos países Centrais.

Ao final do conflito, embora vitoriosas, Inglaterra e França encontravam-se econômica e socialmente combalidas. Além disso, elas haviam se tornado devedoras dos Estados Unidos, que já eram a maior economia do planeta. A Alemanha derrotada e submetida às clausuras ditadas no Tratado de Versalhes, estava arruinada, embora possuísse um vultuoso parque industrial. Assim, os Estados Unidos emergiam como a maior potência industrial e como maior credor internacional. Os Estados Unidos apresentaram os 14 pontos do presidente Wilson e indicaram ao mundo as balizas para uma nova arquitetura de poder mundial. Contudo, resistência de parte da Inglaterra e da França levaram os Estados Unidos a um novo período

1

LENS, Sidney. Da revolução ao Vietnã: Uma história do imperialismo dos Estados Unidos. Civilização Brasileira. RJ, 2006.p. 362. 2 Idem. 3 Ibidem, p. 385. 58

ANAIS DO EVENTO

de isolamento.4

Apesar do crescimento econômico que os Estados Unidos tiveram durante a década de 1920, a crise de 1929 foi consequência da saturação de um sistema frágil e criou um efeito cascata que atingiu todo o mundo.

Os investidores puseram-se a vender as ações para resgatar rapidamente os capitais investidos. A excessiva oferta de ações fez com que os preços desabassem o que levou mais e mais capitalista a se desfazerem dos seus investimentos acionários e a efetuarem demissões. Sem salários, sem poupança, e muitas vezes endividados, os trabalhadores deixaram de consumir. A redução drástica do consumo provocava o acumulo dos estoques em níveis inaceitáveis, Essa situação levava as empresas afetadas a demitirem em massa.5

Uma das consequências da crise foi o aumento do protecionismo das nações. Outra consequência foi a retomada da expansão territorial dos países que não estavam satisfeitos com a distribuição colonial no pós-Primeira Guerra. Com o agravamento da crise e a ascensão de governos autoritários na Itália, Alemanha e Japão, esses países iniciaram sucessivas ações para expandir seus territórios. As indústrias japonesas, apesar de não terem se desenvolvido no mesmo período em que se desenvolveram as outras grandes potências, viam que para assegurar seu espaço em uma nova configuração geopolítica internacional, deveriam conquistar áreas de influência para garantir matéria-prima e comércio. As indústrias japonesas, aliadas ao governo do Japão, ao tentarem expandir sua área de influência pela Ásia encontraram pelo caminho as empresas dos EUA que agiam nessa região desde o final do século XIX. Essas mantinham ali uma das principais fontes de matériaprima, além de um comércio bastante lucrativo cuja concentração se dava nessa região. Assim, só restava ao governo do Japão enfrentar os estadunidenses:

Seu primeiro passo para a expansão colonial foi a conversão da 4

MUNHOZ, Sidnei J. A construção do império estadunidense. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da Silva; CABRAL, Ricardo Pereira; MUNHOZ, Sidnei J (orgs.). Impérios na história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.p. 253. 5 Ibidem, p. 254. 59

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província chinesa da Manchúria (800 mil quilômetros quadrados, um sexto do tamanho da América do Norte Continental) num Estado títere. Em 18 de Setembro de 1931, usando um pretexto de que alguns atos de vandalismo haviam danificado ligeiramente sua linha ferroviária perto de Mukden, os japoneses invadiram toda a província. Alguns meses depois, um regime vassalo declarou sua independência da China e Pu Yi, último descendente de uma antiga linhagem de imperadores manchus, foi instalado como líder nominal de um novo “país”, Manchukuo, totalmente sob o controle nipônico.6

É evidente que com essa configuração as exportações do Japão para essa região aumentaram, enquanto as dos EUA diminuíram. O governo do Japão continuou sua expansão territorial pela Ásia, eles “[...] atacaram Xangai em janeiro de 1932; tomou o Jehol, região montanhosa situada nos confins ocidentais da Manchúria, em 1933; apossaram-se da Mongólia interior da China do Norte em 1935-6”7. Com o desenvolvimento do impasse diplomático e dos confrontos na Europa, encaminhando-se para uma guerra, os japoneses apostaram num ataque aos estadunidenses: “Pearl Harbor foi bombardeada por uma força tarefa nipônica em 7 de dezembro de 1941”8. Apesar de combatendo em dois frontes, os EUA concentrava suas forças ideológicas na figura de Hitler, assim nascia o Sentinela da Liberdade, CaptainAmerica.

3. CaptainAmericae seus amigos versus Hitler

A escolha em analisar os comics do CaptainAmerica não é por acaso e tem como intenção mostrar que esse personagem se diferencia de outros personagens das históricas em quadrinhos pela sua constituição, ele foi criado para lutar na SegundaGuerra. A editora TimelyComics, antecessora da Atlas Comics (década de 1950) e da Marvel Comics (de 1960 até a atualidade), foi responsável por produzir as histórias em quadrinhos do Captain América, tendo como roteirista Joe Simon e como desenhista Jack Kirby. Posteriormente, ainda durante a guerra,Stann Lee assumiria os roteiros desse personagem. 6

LENS, Sidney. Da revolução ao Vietnã: uma história do imperialismo dos Estados Unidos.op. cit.p. 428. Ibidem, p. 429. 8 RODRIGUES, Gabriela. O Conflito na Ásia.In: PADRÓS, Henrique Sierra; RIBEIRO Luis Dário T.; GERTZ, René(orgs.). In_: Segunda Guerra Mundial. Da Crise dos anos 30 ao Armagedón. Org. Enrique Serra Padrós, Luiz Dario Teixeira Ribeiro, René E. Gertz. Porto Alegre: Folha da História/CD-AIB/PRP/Livraria Palmarinca Editora. 2000.p.182. 7

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No editorial da revista Capitão América: “As primeiras histórias”, lançada no Brasil pela Editora Abril no ano de 1992,há a seguinte informação: o editor Martin Goodman deixa claro aos roteiristas dessa revista (Jack Kirby e Joe Simon) que precisavam de um personagem“de um tipo não muito agressivo, que usasse a violência como último recurso, mas que fosse capaz de abrir caminho até o líder nazista com os próprios punhos”9.

O que faz o Capitão América diferente é que ele não é um alienígena com superpoderes (Super-Homem), nem um ser mitológico (Diana princesa amazona, Mulher Maravilha), um deus marinho (Narmor, que é o senhor de Atlântida) ou um animal (Pato Donald), e apesar de Bruce Wayne (Batman) ser um humano sem poderes sobrenaturais, ele é um “playboy” de Gotham Cityque após o assassinato de seus pais, herda uma imensa fortuna, com esse dinheiro ele constrói seus equipamentos. Portanto esses outros personagens possuem pouca identificação com a maioria da população estadunidense da época e muito menos com os soldados que lutavam durante a guerra, ou seja, ao contrário dessas outros personagens Steve Rogers é um cidadão comum.10 Nesse sentido, “A diferençade Steve Rogers, o alterego do Capitão América, das outras personagens é, portanto sua história antes de ser tornar um super-herói”11. “Hoje, esse rapaz alistou-se no exército e foi recusado por suas condições físicas sua oportunidade de servir ao país parecia perdida”12. O que parecia perfeito para um panfleto de alistamento no exército, pois de fato o governo dos EUA comprou essas revistas e enviou para os soldados.

[...] o Capitão América era um panfleto e havia público para ele. Um público que foi com o Capitão América para as trincheiras, quando sua tiragem foi toda comprada pelo governo estadunidense e distribuída entre seus “soldados franzinos”. Jovens que se alistaram no exército estadunidense e que viam na personagem, a inspiração para 9

Revista Capitão América: As primeiras histórias. São Paulo: Abril, 1992. p. 5 PEREIRA, Carlos Eduardo B. O nascimento do Sentinela da Liberdade: As histórias em quadrinhos do Capitão América como propaganda estadunidense na Segunda Guerra Mundial. Unioeste, Marechal Cândido Rondon, 2010. p. 3 11 Ibidem p. 33. 12 Revista Capitão América: As primeiras histórias. São Paulo: Abril, 1992. p. 12. 10

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que pudessem manter o seu ideal enquanto combatentes da guerra13.

A estratégiautilizada pelos autores dessas revistas, para convencer os leitores, de que o governo dos EUA deveria entrar na guerra ecombater o nazismo foi o maniqueísmo. Os autores mostram os EUA e seu governo como uma nação livre e democrática, seus lideres, nesse período, nunca atacavam os inimigos, eram bons e procuravam sempre fazer o que era certo. Já os inimigos do CaptainAmerica eram retratados como malvados e sem escrúpulos, covardes e sempre dispostos a fazer qualquer coisa para atingirem seus objetivos. Em sua maioria, esses inimigos eram espiões alemães em território estadunidense, mas havia também italianos e japoneses. Com essa representação, os editores das revistas não acentuavam as contradições históricas que aconteceram para a chegada de Hitler no poder e nem o sistema político e econômico da Alemanha. Suas contradições sociais, o trabalho, o extermínio de judeus, ciganos, comunistas e homossexuais etc., nada disso foi tratado nas histórias, apenas houve a ênfase de um discurso ideológico sobre liberdade e democracia voltada à defesa dos EUA contra a invasão nazista. Como podemos observar na capa há várias chamadas que constroem a ideia de que a Alemanha estava planejando um ataque aos EUA: “45 páginas do disposto Capitão América, sentinela de nossa costa. Além de outros grandes atributos.” ou “O formidável Capitão América frente a frente com Hitler” e também "Capitão América e seu jovem aliado Bucky.” Ao mesmo tempo, podemos observar uma televisão com a imagem de uma fábrica de munições estadunidenses, um mapa dos EUA e um pequeno livro com os dizeres “Planos de sabotagem para os EUA”.

13

CHAGAS, Luciana Z. Capitão América: interpretações sócio-antropológicas de um super-herói de histórias em quadrinhos. In:SINAIS - Revista Eletrônica. Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, v.1, n3.p.140. 62

ANAIS DO EVENTO

Figura 1

Na capa da segunda revista, de abril de 1941, podemos observar que a linha editorial segue a mesma. Logo na capa é anunciado que a partir da página 17 da revista, o Capitão América estará preso em uma fortaleza nazista. O cenário é apresentado como se o CaptainAmerica estivesse invadindo o esconderijo de Hitler para salvar Bucky. Mais uma vez há referênciasà invasão nazista aos EUA. Há um globo em cima da mesa com uma bandeira com a suástica fincada no mapa dos EUA.

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Figura 2

As duas revistas trazem em seu conteúdo quatro historias que imaginam uma invasão nazista aos EUA. Três dessas quatro histórias se passam em cidades dos EUA, com personagens fictícios e suas missões, que é a de sabotar espaços vitais para o funcionamento dos EUA, como fábricas de munição, pontes, estradas etc., ou matar determinadas figuras políticas. O personagem CaptainAmerica não ficou restrito a sua própria revista, a TimelyComics lançou outras revista tendo ele e outros super-heróis lutando em conjunto contra os países do Eixo. A primeira revista lançada é aAllWinnersComics. Sua primeira ediçãofou publicada em 1º de junho de 1941, e seu elenco de personagens foi formado por:Angel, Bucky Barnes, Namor, Black Marvel, CaptainAmerica, HumanTorch e Toro.

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Figura 3

Em Agosto de 1941 a TimelyComicslançou a revistaUSA Comics. A partir de dezembro de 1942 foram incluídas nessa publicação histórias com o CaptainAmerica.

Figura 4

Ainda em 1941, a editora lançou outra revista, aYoung Allies estrelado por Bucky, parceiro adolescente do CaptainAmerica, e por Toro, parceiro adolescente do HumanTorch. A primeira edição dessa revista saiu em julho.

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Figura 5 No alto da capa, o título anuncia: “Bucky e Toro em Jovens Aliados. 64 páginas completas de história em quadrinhos, aventura e suspense”. Bucky aparece dando um soco no Caveira Vermelha e por consequência derrubando Hitler. Ainda com os dizeres “Seus jovens heróis favoritos, Bucky do Capitão América e Toro do HumanTorch” e abaixo de Bucky: “Os meninos americanos que lutam pela democracia conduzem sua gangue sem medo em aventuras emocionantes” Os comics estadunidense, principalmente durante as décadas de 1930/1940, eram produtos que englobavam diversos segmentos e não tinham, como público alvo, apenas as crianças. Esse gênero da indústria culturalpossuía publicações direcionadas para toda a sociedade, desde os comics adultos, como os de romances policiais e eróticos, até comics direcionado aos estabelecimentos escolares. A confecção de duas revistas direcionada especificamente para o público infantil,Young Allies e Kid Komics,mostra como essa editora dedicou tempo em suas publicações para diferentes públicos, contendo o mesmo enredo, atacando os mesmos inimigos. Em setembro de 1943 é lançada a revistaAllSelect, com o CaptainAmerica, HumanTorche Namor.

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Figura 6 Na capa aparecem os três personagens “HumanTorch, CaptainAmericaeSub-Mariner: apresentado AllSelect”. Essa imagem traz os três super-heróis atacando o castelo de Hitler em Berchtesgade. No canto da capa “Tudo novo diferente e excitante”. De março de 1941 até Dezembro de 1945, a TimbelyComics lançou 110 revistas relacionadas ao CaptainAmerica, cada publicação apresentada aqui tinha, como indicado em suas capas, 64 páginas de histórias. Devemos levar em conta, que essa editora ainda possuía outros personagens com publicações mensais próprias. Isso quer dizer, que a TimelyComics mobilizou um aparato significativo de tempo, roteiristas, desenhistas, editorial para suas publicações nos tempos de guerra. Ademais, essas produções culturais não atacam o sistema capitalista desenvolvido nesses países, mas sim determinados políticos e suasexpansões territoriais. Isso confirma nossa hipótese de que os políticos estadunidenses entraram na guerra por interesses comerciais, pois o modelo de democracia que os EUA pregam em suas produções não era seguido por eles em “casa”. Um exemplo dessa falta de democracia dentro dos EUA no mesmo período é o modo que os imigrantes japoneses e seus descendentes, que residiam nos Estados Unidos, foram tratados. Eles foram enviados para prisões por representarem uma ameaça para a segurança nacional. “Na primavera de 1942, o governo arrebanhou os 110.000 japoneses norteamericanos que viviam na costa do Oeste (70.000 deles eram cidadãos dos Estados Unidos) e

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internou-os em “campos de concentração”14. A autora Josephine Pacheco salienta que o uso do termo “campo de concentração” é problemático, e que ela só o utiliza por não haver um termo mais apropriado. Todavia é preciso levar em consideração esse tratamento dado aos cidadãos japoneses nos EUA, ao mesmo tempo que os cidadãos de descendência italiana e alemã, não tiveram o mesmo tratamento. Para nós, o fato das críticas das histórias em quadrinhos da TimelyComics terem como objetivo central tecer suas críticas nas figuras centrais de Adolf Hitler, Mussolini e Hiroshi e não no sistema econômico-social dos seus respectivos países, é o fato de que, grosso modo, o esforço de guerra dos dois lados, levou ao aumento das jornadas de trabalho e a utilização de mulheres e crianças nas fabricas para substituir os homens que haviam ido ao fronte. Além disso, o Fascismo e o Nazismo foram uma saída a direita para a revolução socialista eminente na Alemanha e na Itália durante a depressão. Logo, esses dois sistemas, grosso modo, não deixavam de ser capitalistas. Dessa forma os cidadãos estadunidenses não podiam se reconhecer enquanto trabalhadores iguais aos trabalhadores das fabricas dos nazistas. Essa classe trabalhadora não pode ser reconhecida e, portanto, o modelo de produção nazista não pode ser mencionado. Todavia essas revistas faziam sentido durante a guerra, pois o CaptainAmeirca nascerá para combater nela.Em um mundo onde não existia mais a ameaça de um confronto eminente com os nazistas, essa figura perde o sentido e, portanto, as revistas que contam suas histórias deixaram de ser publicadas. No ano de 1954, porém, uma nova ameaça fez com que o CaptainAmericadeixasse a reserva e voltasse à ativa.

4. Capitão América e Bucky esmagadores de comunistas

Em 1954 a Editora Atlas iniciou um processo de relançamento das revistas de histórias em quadrinhos do CaptainAmerica. A editora manteve a sequência de numeração da última revista lançada ainda em 1950. Cada revista contém quatro histórias, três do Capitão América e uma do HumanTorch, todas elas nos mesmos modelos das revistas publicadas nos anos de guerra, contendo histórias rápidas com oito páginas cada uma. Apesar da retomada dessa retomada das histórias da TemileyComics, o único nome de produção que aparece na capa é do desenhista John Romita. A queda nas vendas das revistas 14

PACHECO, Josephine F. O Problema do racismo nos estados unidos. Universidade feral do Paraná. Curitiba, 1983.. p. 97. 68

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durante os anos de 1940 reduziu o número de pessoas que trabalhavam na TimelyComics e posteriormente na Atlas Comics. Apesar de não possuir o nome de Stan Lee nos créditos das revistas doCaptainAmerica e de muitos historiadores desvincularem o nome de Stan Lee dessas produções dos anos de 1954, ele continuou trabalhando na editora depois que a TimelyComics se tornou a Atlas Comics, no final dos anos 1940, sendo um dos únicos empregados da Timely a continuar trabalhando com Martin Goodman. Logo no título das revista, os editores indicam qual seria a linha editorial dessas novas produções, CaptainAmerica... CommieSmasher, em tradução literal, Capitão América, esmagador de comuna.

Figura 7

A primeira revista é de maio de 1954. A lógica de retratar os inimigos do CaptainAmerica, logo, os inimigos da “America”, como espiões que formulam planos mirabolantes para conquistar o território estadunidense,continua.

Sim o grande defensor da democracia está de volta com seu parceiro, Bucky... De volta para combater a pior ameaça à liberdade de amar dos povos que o mundo já enfrentou. Juntos eles lutaram contra fascistas e nazistas, mas agora eles são necessários novamente para lutar... “OS TRAIDORES” [título da história].15

15

CaptainAmericaComics número76 de Março de 1954.pág. 1. 69

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Após o fim da Segunda – Guerra mundial, o democrata Harry S. Truman, auxiliado pelo seu Secretário de Estado,George Marshall, organizou um fundo de ajuda aos países europeus, que ficou conhecido por Plano Marshall. A iniciativa desse plano era emprestar dinheiro para os países afetados pela guerra para que a sua população não sofresse sequelas e assim, afastar o fantasma da URSS e da revolução socialista. Ademais, esses países deveriam cortar relações econômicas com a URSS e comprar os meios de consumo necessários das empresas estadunidenses. Dessa maneira, evitando também assim, uma crise interna de superprodução como as dos anos 1920. Ao mesmo tempo, a situação interna do governo Truman, sofria vários golpes da oposição mais conservadora, sendo acusado de “deixar os comunistas avançarem”. Acusavam-no de “perder a China”. Além de toda a campanha do presidenciável republicano, Dwight Eisenhower,eleito nas eleições de 1952, serem pautadas nas ações do Comitê de Atividades Antiamericanas e, por sua vez, nas atividades do Senador McCarthy. A primeira história da nova fase da revista se inicia na Indochina. Um personagem que aparenta ser um soldado, por causa das suas vestimentas, obriga um prisioneiro estadunidense a ler um texto: “Americanos, parem de lutar contra os comunistas... Eles são nossos amigos... Nós estamos muito bem e felizes aqui... Então... Desistam de lutar.”16 Na mesma página uma conversa entre Bucky e Capitão América: Bucky: Cap. Você ouviu isso?” Capitão América: Certamente, Bucky! Americanos dizendo-nos para parar de lutar contra os vermelhos! Algo não está me cheirando bem aqui. E nós vamos descobrir o que é!17

A história se desenvolve com o recrutaSteve Rogers ouvindo uma conversa entre dois militares estadunidense de alta patente, nessa conversa o Coronel diz para o outro militar que eles precisam entrar em contato com o CaptainAmerica. Ao ouvir essa a conversa Steve Rogers e Bucky vestem seus uniformes e vão ao encontro dos dois militares. O Comandante explica para o CaptainAmericaque turistas e diplomatas desapareceram atrás da cortina de 16

CaptainAmericaComicsnúmero 76. Maio de 1954. página 1. CaptainAmericaComics número76. Maio de 1954. página 1.

17

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ferro. CaptainAmericadiz ao Comandante que tem um plano. Na sequência da história, CaptainAmericae Bucky pulam de paraquedas na Indochina e entram nas instalações do governo. Ao serem vistos, CaptainAmericadiz que está do lado dos comunistas. Durante a noite organiza uma fuga com os prisioneiros. No final, a mensagem “Precaver-se comunistas, espiões, traidores e agentes estrangeiros! O CaptainAmerica, com todos os homens livres e leais atrás de si, está vos procurando, pronto para lutar até que o último de vocês seja exposto como a ralé amarela que vocês são!”18, reforça o anticomunismo das revistas. A segunda revista dessa série é publicada em julho do mesmo ano. A capa, mais uma vez, reforçar o caráter maniqueísta das revistas do CaptainAmerica.

Figura 8

Assim como nas revistas da época da Segunda Grande Guerra, há sempre vários inimigos que aparecem na capa das revistas, isso nos mostra a ideia de que o CaptainAmerica e Bucky lutam sozinhos contra vários inimigos de uma vez só. Desta forma,qualificam seus inimigos como covardes, reforçando a imagem de um inimigo nefasto. Em setembro de 1954 a editora Atlas Comics lançou a última revista dessa sérieCaptainAmerica... CommieSmasher, número 78. Os inimigos mostrados nessa revista seguem na mesma linha, caracterizados como bandidos traiçoeiros, os personagens são 18

CaptainAmericaComics número 76. Maio de 1954.página 6. 71

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desenhados com a fisionomia de criaturas horripilantes e monstruosas.

Figura 17

A história se inicia com a apresentação de um novo inimigo do CaptainAmerica, Electro. Electro é um mostro verde e peludo. Fica clara nessa história, a semelhança das representações dos monstros de filmes de ficção científica dessa época.

Narrador: Aqui está ele. O mais temido e horrível mercador da morte que os inimigos vermelhos da liberdade já conceberam para destruir o CaptainAmerica! É Electro. Carregado com eletricidade e poder para destruir qualquer um que quiser. Seu propósito é matar o CaptainAmerica... E... Seu toque é mortal.19

Na cena seguinte à apresentação de Electro, dois militares comunistas conversam. Não é possível identificar sua nacionalidade ou as suas patentes. Na história Eletro é uma criatura concebida por cientistas comunistas, não identificam o seu país de origem, entretanto o país a

19

CaptainAmericaComics número 78 de Setembro de 1954. Pág. 1. 72

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ser atacado é os EUA:

Militar 1: O CaptainAmerica foi criado por um cientista americano durante a Segunda Guerra. Um fraco, insignificante, 4-F [sigla que significa que o aspirante não foi apto para o serviço militar], o professor injetou um soro secreto e poderes dinâmicos para torná-lo mais forte do que qualquer outro ser humano. Desde então, ele tem sido o inimigo mais forte das democracias contra o Fascismo... E agora, para nossa causa... Comunista internacional.20

Como havíamos mencionado, há várias passagens nessa história que os editores da revista utilizam para reforçar a ideia de que os comunistas são desleais e traiçoeiros, uma delas é o modo em que o narrador descreve a entrada de Electro nos EUA:

Narrador: Com seu corpo coberto de amianto para escondê-lo, Electro é contrabandeado para dentro dos EUA. Na calada da noite desembarca na remota praia de LongIsland, enquanto a pacífica América dorme inconsciente do perigo.21

Como em todas as outras revistas, o CaptainAmerica vence no final. Na nota de rodapé da última página da última história dessa revista, contém a frase: “para mais emoções não percam as aventuras do Capitão América e de seu grande aliado, HumanTorch... Em sua própria revista já à venda”22. Provavelmente referenciando ao lançamento de uma nova revista do HumanTorch ou do CaptainAmerica, que nunca chegaram a ser publicadas, pois esse projeto foi cancelado pela segunda vez. 5. Conclusão Podemos

concluir

que,as

revistas

de

história

em

quadrinhos

do

CaptainAmericaauxiliáreis no projeto imperialista das empresas dos EUA. Em primeiro lugar, a TimelyComics e a Altas Comics, foram empresas privadas que, mais do que visar lucro, seus donos fazem parte da parcela dominante da sociedade estadunidense, uma vez que essa fração está no poder político, econômico e cultural, qualquer ameaça que houver, deveria ser

20

CaptainAmericaComics número 78 de Setembro de 1954. Pág. 1. CaptainAmericaComics número 78 de Setembro de 1954. Pág. 2. 22 CaptainAmericaComics número 78 de Setembro de 1954.Pág. 6. 21

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combatida.

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideia (ideológica) das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apresentadas como ideias, portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compões a classe dominante possuem, entre outras coisas, também a consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua expansão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam que suas ideias são as ideias dominantes da época23.

Afirmamos que apesar de parecer um sistema diferente, o Nazi-fascismo, é originalmente capitalista. O avanço territorial e por sua vez, econômico dos países do Eixo, mesmo alongo prazo, afetaria significantemente a relação econômica e política dos EUA. No pós Segunda Guerra, esse inimigo passa a ser a URSS. Apesar de contestar o projeto socialista da União Soviética, na década de 1950, havia uma grande efervescência dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda, pipocando revoluções contra o capitalismo. Nesse sentido, o medo da revolução socialista e demonização de seus representantes eram para evitar qualquer fagulha possível de uma possível contestação do American Way of Life, mesmo que em sua maioria, os trabalhadores estadunidenses, sofressem com as contradições sociais e a falta de liberdade.

23

MARX, Karl, ENGELS Friedrich. A Ideologia Alemã. Trad. Rubens Enderle; Nélio Schneider; Luciano CaviniMartorano. São Paulo. Boitempo, 2007. p.47 74

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MEMÓRIAS SOBRE A AÇÃO DE MADEIREIRAS NO MUNÍCIPIO DE CASCAVEL /PR (1950-1970) Daniele Brocardo1

Resumo: Nesta comunicação pretendo discutir as memórias sobre a atuação das madeireiras, contidas nas narrativas orais, de alguns sujeitos que atuaram no setor madeireiro no período de 1950 a 1970, no município de Cascavel, localizado no Oeste do estado do Paraná. A pesquisa se realiza a partir da fonte oral, de seis entrevistas produzidas no período de 2011 a 2013, com ex-proprietários e empregados do setor madeireiro no referido município. Busco a partir das entrevistas problematizar as diferentes relações travadas pelas madeireiras, seja, com seus empregados, seja na extração das árvores. Procuro investigar ainda as distintas percepções deste processo, pois, por mais que todos os entrevistados tenham trabalhado em um mesmo processo, junto à ação das madeireiras, a percepção sobre este tende a ter variações conforme suas ocupações, se desempenhavam a atividade de gerente, serrador, contador, entre outras. Neste sentido, as entrevistas foram realizadas com diferentes sujeitos, escolhidos em função das diversas ocupações no trabalho de exploração da madeira. Palavras-chave: Madeireiras; História Oral; Cascavel/PR.

Neste texto busco investigar as diversas relações travadas na atuação das madeireiras no município de Cascavel/PR no período de 1950 a 1970. A partir da narrativa de um dos entrevistados para minha pesquisa no mestrado2. Assim, procuro problematizar as diferentes relações das madeireiras, seja com seus empregados, seja com os proprietários da terra de onde eram retiradas as árvores ou com seu modo de produção, a partir da fala do entrevistado. Para problematizar estas questões é necessário entender como se organizavam as empresas madeireiras no município de Cascavel. Maicon Mariano no artigo Sociedade e Meio Ambiente: discursos sobre a “Era da madeira”, no qual aborda de forma sucinta como este processo de ação das madeireiras se integra aos discursos que compõem a história local do referido município como: “Era da madeira”, escreve sobre a organização destas empresas:

1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Linha de pesquisa Práticas Culturais e Identidades, bolsista CAPES. Orientador Prof. Dr. Marcos Nestor Stein. 2 Para a dissertação foram realizadas seis entrevistas produzidas no período de 2011 a 2013, com ex-proprietários e empregados do setor madeireiro no referido município. 76

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Desta forma em Cascavel, e também em outras cidades da região, a economia girava em torno das serrarias. Conforme as licenças eram concedidas novas serrarias passaram a se instalar, a industrialização tomou impulso contribuindo para modificações no perfil dos assentamentos citadinos. Uma vez que a produção madeireira organizou-se em torno das grandes serrarias, reunia seus trabalhadores, procedendo à formação de pequenas vilas, e algumas dessas vilas alcançaram, mais tarde, características de bairros. A produção industrial dinamizou o movimento de trânsito de pessoas e mercadorias que era feito, sobretudo, pelo transporte automotivo. Dentre as madeireiras e serrarias que se destacaram estão: Ouro e Prata; Salvati, Galaffassi; Santa Fé, Salvadori; Maschi; Sarolli, entre outras3. Para Maicon Mariano, estas empresas influenciaram a formação urbana do município, na criação de bairros4 a partir das antigas vilas residenciais e a circulação de pessoas. Além disto, o autor cita nomes de empresas que se destacaram neste ramo, algumas existentes até os dias de hoje, como a Sarolli Madeiras. Irene Spies Adamy, em sua pesquisa sobre “a formação e organização política de uma fração agrária de classe dominante no município de Cascavel”, a partir de uma das suas entidades, a Sociedade Rural do Oeste do Paraná, escreve que5:

A formação de grandes propriedades rurais em Cascavel teve início com o processo de colonização e com a instalação de empresas de exploração de madeira a partir de 1940, atraídas pela abundância de araucárias. Seus proprietários vinham para o Oeste a fim de expandir os negócios que as famílias desenvolviam em Santa Catarina ou no Rio Grande do Sul ou mesmo em Curitiba. Na década de 1950 foram colocadas em atividade diversas serrarias. Estas extraíam a madeira de propriedades adquiridas pelas colonizadoras, do Governo do Estado, e também de terras ocupadas por particulares que desejavam vê-las “limpas” a fim de poder cultivá-las com a produção agrícola6. A partir do texto de Adamy pode-se concluir que ação das empresas madeireiras não influenciou exclusivamente na formação urbana do município, mas, também na formação e organização do meio rural, composto por um grande número de grandes propriedades. A MARIANO, Maicon. Sociedade e Meio Ambiente: discursos sobre a “Era da madeira” In: Simpósio internacional de história ambiental e migrações, 2º, 2012, Florianópolis. Anais: Florianópolis, 2012, p. 165. 4 Um exemplo de um bairro do município de Cascavel que teria sua origem a partir das madeireiras é o Brasmadeira, que segundo consta recebeu este nome devido a quantidade de madeireiras que existia na região, onde hoje se localiza o bairro. Fonte http://www.psinacio.com.br/paroquia/comunidades/brasmadeira/, acesso 09/09/2014. 5 ADAMY, Irene S. A formação e organização política de uma fração agrária de classe dominante na região Oeste. Espaço Plural. Ano XII, nº 25 2º semestre 2011, p. 119. 6 Id. Ibid., p. 122. 3

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autora argumenta ainda que:

As empresas madeireiras, na sua grande maioria, eram também colonizadoras, ou seja, as terras eram adquiridas, a madeira era extraída e depois as glebas ou colônias eram loteadas e vendidas aos interessados. Por vezes, os proprietários das colonizadoras mantinham a propriedade de grandes áreas nas quais passaram a desenvolver a agricultura e a pecuária7. Os dados trazidos por Adamy sobre o relatório do INCRA do ano 1982 podem ser pensados como reflexo desta ação. Conforme o relatório, Cascavel era o “município com a maior concentração fundiária da região Oeste do Paraná” e “das 184 propriedades com área entre 500 e 1mil hectares, 36 estavam ali localizados. Da mesma forma, das 162 propriedades da região com mais de 1.000 hectares também 36 se localizavam em Cascavel” 8. A entrevista aqui analisada foi realizada com Amador Franceis e sua esposa Oneide Frizzo Franceis no dia 07 de junho de 2013. O senhor Amador Franceis nasceu no dia 18 de março de 1937 no município de Veranópolis, Estado do Rio Grande do Sul, e antes de se deslocar para a região da pesquisa já trabalhava como funcionário de uma beneficiadora de madeira. Sua esposa Oneide Frizzo Franceis nasceu em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, se deslocou para Cascavel em 1957. Seu envolvimento com o setor madeireiro ocorreu por conta de seus pais, pois o pai era construtor de serraria e também trabalhara dentro das serrarias como empregado, na função de laminador, já sua mãe possuía uma pensão dentro da madeireira, onde alugava quartos para os empregados, e foi nesta pensão que seu Amador e Oneide se conheceram, efetivando seu casamento em 1962. O senhor Amador Franceis e Oneide F. Franceis iniciam o relato contando sua trajetória de vida ligada ao setor madeireiro, descrevem os diversos caminhos de seu envolvimento com este setor. Amador Franceis relatou as suas distintas funções no primeiro emprego em Cascavel, na madeireira Exportadora Carimã, como guarda livro (contador) cuidando do setor de recursos humanos (RH) e da emissão de notas fiscais. Também trabalhou como atendente no armazém da madeireira, fornecendo os alimentos aos outros funcionários. Amador Franceis justificou a existência de um armazém na madeireira pela dificuldade que existia de acesso ao centro urbano9.

7

Id. Ibid., p. 124. Id. Ibid., p. 126. 9 Entrevista concedida por Amador Franceis e Oneide Frizzo Franceis a Daniele Brocardo. Cascavel/PR, 8

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Em seguida, Amador Franceis descreveu o seu segundo emprego no município Cascavel, mais próximo à cidade, comprando madeira e revendendo para o mercado interno. Segundo ele a madeira que era destinada a este mercado era de qualidade inferior à madeira que era destinada à exportação, esta considerada de primeira, segunda e de terceira qualidade, que saía só para o porto de Foz do Iguaçu com destino a Argentina, já a madeira considerada de quarta e quinta qualidade tinha como destino os Estados nacionais como São Paulo e Rio Janeiro ou a construção da cidade de Brasília10. Amador Franceis argumenta ainda que iniciou seu próprio negócio por volta do ano 1969 comprando madeira, pois já havia adquirido experiência no seu antigo trabalho e existia um mercado grande que possibilitava sua entrada neste comércio. Assim, Amador comprava madeira por conta própria e vendia para caminhoneiros que vinham de outras regiões como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte para Cascavel, deste modo, intermediava a venda da madeira11. Oneide Franceis interage no relato contando a trajetória de seu pai que trabalhava como construtor de serraria e que se deslocara para o município de Cascavel para construir a serraria pertencente à Busquirolli, empresa que provavelmente se deslocou junto com seu pai do município de Passo Fundo/RS. Oneide relata que seu pai após morar um ano em Cascavel volta para buscar sua família no Estado do Rio Grande do Sul trazendo eles para construir outra serraria, “a gente continuou morando em serrarias”, assim possivelmente a família de Oneide já morava em uma serraria no Rio Grande do Sul12. Perguntei a Oneide Franceis se havia trabalhado dentro da serraria, obtendo a seguinte resposta:

Oneide Franceis: Não, minha mãe fazia o, era dona da pensão, tinha a pensão nós tinha 25, 30 pensionista que eram os que trabalhavam na serraria, que as famílias não moravam mais aí, moravam fora, ou eram do Rio Grande do Sul, ou eram de Cascavel, ou eram de Foz do Iguaçu. Aí como eles não tinham onde parar, tinham que ter uma pensão pra eles, então a minha mãe tocava a pensão, o meu pai trabalhava na função de laminador e a minha mãe fazia. [inaudível]. Amador Franceis: Isso no início, mais tarde já alguns casavam nós fazia casa, outros vinham de fora, mas daí nós ia construindo a casa em etapas conforme a madeira ia sendo serrada. Mas enquanto, nós

residência dos entrevistados 07 de junho de 2013. 10 Id. Ibid., s/p. 11 Id. Ibid., s/p. 12

Id. Ibid., s/p. 79

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não construíamos as casas pra eles, a mãe dela dava pensão pra nós13. Oneide responde que não trabalhava dentro da serraria, mas sim com sua mãe que possuía uma pensão dentro da madeireira para os funcionários, que os familiares moravam em outras localidades. Amador Franceis complementa a fala de sua esposa dizendo que esta pensão só funcionara no início, pois posteriormente eram construídas as casas para os funcionários da madeireira, conforme as árvores eram derrubadas para o comércio, também serviam para abrigar os funcionários deste processo. Motivada pela fala de Oneide Franceis, que argumenta que não trabalhava dentro da serraria, questiono sobre a existência de outras mulheres no trabalho junto às madeireiras, o que Amador e Oneide Franceis respondem de forma negativa:

Amador Franceis: Mulher? Não mulher não trabalhava em serraria. Oneide: Naquela época não existia muito trabalho pras mulheres. Amador Franceis: Não, não, mulher não trabalhava em serraria. Entrevistadora: Em nenhuma função? Oneide: Não. E daí tinha, os carregador de madeira, os batedor de madeira, o serrador, o circuleiro14. Amador e Oneide Franceis respondem que não existiam mulheres que exerciam trabalho na serraria. Oneide complementa dizendo que era difícil existir serviço para as mulheres naquele período, em seguida fala sobre outras funções que existiam nas madeireiras. Entretanto, é difícil saber por que Oneide e Amador Franceis não discorrem sobre o trabalho de mulheres nas madeireiras, talvez por esquecimento ou desconhecimento. Contudo, Maicon Mariano em seu artigo, entrevistou outro casal, que também se conhecera no trabalho nas madeireiras, Alcindo Carneiro de 62 anos e sua esposa Irene Rossi Carneiro de 61 anos. O autor apresenta um trecho da narrativa do casal, no qual descrevem como se conheceram, bem como sobre o trabalho exercido por mulheres:

Alcindo: Na mesma laminadora, atrás do Hospital Regional [atual hospital universitário], eu era torneiro e ela trabalhava estendendo a lamina. Não que a gente se olhasse, assim, para o outro. Eu era um cara muito tímido eu não sabia falar. Nós tínhamos um monte de meninada, trabalhavam umas quatorze meninas na laminadora. E de repente começaram umas amigas que, eu tinha até estudado com elas, diziam: Ó Alcindo, a nega quer namorar com você, e levavam lá, e eu não falava nada. E levavam para ela: Ó nega, o Alcindo quer namorar 13 14

Id. Ibid., s/p. Id. Ibid., s/p. 80

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com você, e assim ficavam. Até que um dia em um tal casamento...De um colega de trabalho com uma colega também. Era aonde, vou te contar certinho a casa que era, onde está aquele motel, descendo a Br... ali morava seu Felipe Gralesk, a filha dele casou com o Nelson Hebert. E eu fui só no baile à noite, porque eu trabalhei até às quatro e quinze da tarde, e fui só à noite no baile. Chegando lá, tinha o Nelson cantando e tinha o falecido Sebastião Penteado que era gaiteiro, eles mesmo tocavam, nós mesmo fazíamos nossos bailes. Eu lembro que cheguei assim, aquele jeitão de jacu sem rabo, elas estavam lá sentadas, daí umas polacas vieram e falaram: vai lá e senta perto lá... Irene: Você quer bem a verdade? A Edne, a Matilde, a Saloméia e Laíde que fizeram fogo para sentar perto. Alcindo: Aí sentados não sabíamos nem o que falar. Irene: Nem um, nem o outro. Alcindo: E ficamos a noite, e começamos a namorar, namoramos três anos, não dois anos de namoro e um ano de noivado... Aí nós casamos em 197115. Maicon Mariano não analisa este trecho da entrevista detalhadamente, talvez pelo objetivo de sua pesquisa, se limitando em dizer que o trabalho no setor madeireiro era um espaço social onde as pessoas interagiam e “por vezes, se casavam 16”. Este trecho da entrevista possibilita o entendimento de alguns detalhes da ação e relações travadas no setor madeireiro que não são relevados na entrevista aqui realizada, como o emprego de mão de obra feminina. Assim, na entrevista de Alcindo e Irene, é possível perceber que não só era comum o casamento de pessoas que se conheciam no trabalho no setor madeireiro, como existia um número significativo de mulheres que trabalhavam neste espaço, Alcindo fala de 14 mulheres que trabalhavam na laminadora, ou seja, na produção de laminas de madeira. Questionei Amador e Oneide Franceis sobre as terras em que eram retiradas as árvores, a quem pertenciam se eram da própria indústria ou de outros proprietários:

Oneide: A maioria era do dono dos pinheiros né? Amador Franceis: A era parceria, a maioria, por exemplo, você, o teu pai tinha aqui 100 alqueires de pinheiro, nós serrava de parceria, quase todos. O pinheiro era de Pedro ou era de Paulo, a serraria era de Bastião e José, serrava em parceria, muitos compravam. Nós passamos a comprar da madeireira, que era dona de todos os pinheiros na região quase, Industrial Madeireira do Paraná S/A, então, o 15

Entrevista com Alcindo, 62 anos, e Irene, 61 anos, concedidas em 7 de abril de 2011.Apud: MARIANO, Maicon. Sociedade e Meio Ambiente: discursos sobre a “Era da madeira” In: Simpósio internacional de história ambiental e migrações, 2º, 2012, Florianópolis. Anais: Florianópolis, 2012, p. 173-174. 16 MARIANO, Maicon. Sociedade e Meio Ambiente: discursos sobre a “Era da madeira” In: Simpósio internacional de história ambiental e migrações, 2º, 2012, Florianópolis. Anais: Florianópolis, 2012, p. 173. 81

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Bresolin esse você ouviu falar. Os Bresolin, os Bresolin serraram, serraram madeira em parceria com a Industrial Madeireira. Bom, você coloca uma fita, uma serraria e eu te dou 10 mil pinheiros pra você serrar, por enquanto, serrava aquilo depois dava mais outros, lá em Guaraniaçu mesma coisa. Eu na firma que eu comecei e fui registrado aqui em Cascavel era do Rio Grande do Sul, essa firma, veio como exportadora, Carimã exportadora. Montou serraria e nós serrava pinheiro, dos Gomes, de muita gente, tudo em parceria. Nós serrava, por exemplo, pagava pra eles 20% da madeira, pra outro 30%, dessa madeira serrada e eu que fazia as contagens, a divisão da qualidade, do comprimento, do tipo, tudo, fazia a divisão e daí a empresa comprava ou aquela que era dona do pinheiro vendia pra outro. Eu quantas vezes quando ainda, nos anos de 80, 70 que eu era comprador de madeira, 70 e pouco, eu comprava a madeira de uma serraria, que nem essa da Cachoeira, dos Grape, dos Casagrande aqui de Cascavel, existe ainda. Eu comprava a madeira de vários donos daquela madeira, porque um mês ele serrava de um proprietário de pinhal e daqui a pouco, mais dois, três meses de outro proprietário, então eu ia lá olhava a madeira na serraria e acertava com o verdadeiro dono da madeira. Mas sempre procurando a madeira de quarta, quinta [qualidade], madeira de primeira, de segunda e de terceira, nunca esqueça! Sempre exportação, o Brasil consumia muito pouquinho, muito pouco, fazia móvel e tal, mas a cabeça a ideia, o bom do negócio interessante era a exportação. Que nem a soja de hoje, 70% é tudo exportado, então, de repente havia umas quedas, que nem o soja, por exemplo, quando da à safra fechada nos EUA boa, boa, boa, interfere na nossa aqui, por que eles tem qualidade boa e tem segurança, por que planta 20 anos antes do que nós e eles tem vivem em [inaudível] mais segura, então eles sempre compram em primeiro lugar dos EUA, o maior consumidor que é a China o Canadá, o México, esses lugar assim então. Nós também as vezes sofria na exportação17. Amador complementa a fala de sua esposa dizendo que os pinheiros eram serrados em um sistema de parceria entre os proprietários dos pinheiros e os das serrarias, assim, explica com detalhes como funcionava o processo. Afirma que a maioria dos pinheiros da região pertencia à Industrial Madeireira do Paraná (Imapar), então uma serraria como a Bresolin 18, por exemplo, estabelecia um contrato com a Imapar e serrava uma quantia pré-determinada de pinheiros, inicialmente dez mil, o que garantia um lucro para os donos do pinheiro de 20% a 30%. Miguel de Carvalho ao escreve sobre Lumber madeireira e colonizadora, a partir de

17

Entrevista concedida por Amador Franceis e Oneide Frizzo Franceis a Daniele Brocardo. Cascavel/PR, residência dos entrevistados 07 de junho de 2013. 18 Segundo site da própria empresa “desde 1960, a Bresolin trabalha com madeiras”. informação: http://alysson7.wix.com/bresolin#!quem-somos/c8ui, acesso 18/07/2014. 82

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sua a atuação na “área contestada entre os Estados do Paraná e Santa Catarina”, representada principalmente pela ação da serraria de Três Barras, relata um processo semelhante a este executado pela Imapar, o qual era chamado de “sistema de empreitada”, as pequenas serrarias vendiam a “madeira beneficiada para a companhia a partir da madeira retirada de suas propriedades”. Um motivo segundo o autor, apresentado pelos funcionários da empresa, é que o uso de serrarias menores acarretava em “custo de produção muito menor” para empresa madeireira em questão19. Amador também relata sua experiência como comprador de madeira. Afirma que se dirigia até as serrarias, escolhia a madeira e depois pagava para o dono da madeira. Segundo ele, a madeira que comprava era considerada de quarta e quinta qualidade, pois as de primeira, segunda e terceira só eram vendidas para exportação, de tal modo, Amador relata novamente o processo de exportação da madeira, mas desta vez compara esse processo à exportação da soja. Na continuidade da entrevista interroguei o senhor Amador Franceis e sua esposa Oneide sobre as relações de trabalho nas madeireiras, se ocorriam acidentes de trabalho, o que eles me responderam da seguinte forma:

Amador Franceis: A sim! Tinha muito acidente, Deus o livre! Eu tenho dois acidentes nas mãos, também de metido. [risos]. Oneide: O meu irmão também tem, falta um dedo, que ele começou trabalhar com 14 anos, o Romildo, mas quando ele perdeu o dedo não tinha nem 16 anos ainda. Nas serras, eram muito perigosas aquelas serras circular [...] Amador Franceis: Ele não tinha 14 anos, ele fez “chuchu”[esquema], ia fazer 14 anos, ele tinha uma mão assim o Romildo [demonstra com gestos], o irmão dela. O pai dela pior ainda [...] [risos]. Então a serra fica exposta. Oneide: Muito perigosa, acontecia muitos acidentes, caia da pilha de madeira machucava, quebrava a coluna, a perna, era muito. Negócio de corta era quase toda semana, todo mês tinha um que se cortava. Amador Franceis: Se fosse serrar só madeira comprida, longa como se diz, larga e longa não tinha problema porque tu mantinha uma distância da serra. Mas e o resto? Tinha que aproveitar também, pra fazer móveis, então se aproveitava madeira até esse comprimento [demonstra com gestos] e ali onde facilitava corta as mãos, que perdia a mão, seguidamente, todos dois três meses perdia dois dedo, um dedo. Oneide: Dava muito acidente, muito perigoso. 19

CARVALHO, M. M. X de; NODARI, E.S. A Lumber, o Contestado e a história do desmatamento da floresta de araucária (1911-1950). Disponível site: Rede Brasileira de História Ambiental http://www.historiaambiental.org/?p=443. Acesso 15/09/2014. p.10-12. 83

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Amador Franceis: Tora também, facilitava, fazia aqueles monte grande, 200 metros de tora com 20 de altura, as vezes o cara ia tirando assim e desmoronava, pegava as vezes a pessoa por baixo, dentro. Entrevistadora: Chegou a morrer alguma pessoa? Nesse caso? Amador Franceis: Já! Morreu muito assim. Morria e ficava por isso mesmo, não é quinem hoje não. Oneide: [inaudível] No mato também às vezes no derrubar a árvore, caia em cima de outra árvore e a árvore caia em cima da pessoa, matava. Amador Franceis: É, na maior madeireira do Paraná a mulher dele morreu com um galho na cabeça, dos Festugatto. Aí, ela foi junto com ele: “a eu quero ir ver como é que derruba [...]” Oneide: Ela foi ver os corte no mato, e tavam derrubando, foram derrubar o pinheiro e caiu em cima de uma árvore, caiu o galho longe de onde ela tava, o galho de outra árvore caiu nela, morreu ali mesmo. Amador Franceis: Acidente violento tinha, mas, as pessoas, não tem esse negócio de hoje de ficar aposentado por invalidez, e naquele tempo não tinha não. O cara sem a mãozinha ia trabalhar lá com nós, com os toquinhos [das mãos], não ficava não, ganhava, ganhava os primeiros 1 mês, 2, 3, 4 conforme, depois tinha que voltar trabalhar, não tem esse negócio20. Oneide e Amador Franceis constroem um relato longo e detalhado dos diversos acidentes de trabalho que ocorriam nas madeireiras, como o caso do acidente que causou a morte da esposa do empresário Festugatto, dono da Imapar (Industrial Madeireira do Paraná), até acidentes dentro do trabalho na serraria, como foi o caso do irmão de Oneide, que começou a trabalhar ainda na adolescência, e sofrera vários acidentes nas mãos. Mesmo no caso do senhor Amador Franceis, que não trabalhava diretamente com a madeira, só cuidando dos assuntos administrativos, relatou sobre dois acidentes em suas mãos. A fala de Oneide e de Amador Franceis apresenta outros aspectos das relações de trabalho no setor madeireiro para além dos acidentes frequentes e de grave consequência, como a presença de trabalho infantil em tarefas de risco e falta de auxílio aos acidentados. Estes elementos apontados por Oneide e Amador Franceis sobre os acidentes de trabalho na indústria madeireira, quando comparados aos estudos recentes, parecem se repetir, pois segundo o artigo Acidentes de trabalho na indústria madeireira de uma cidade do Paraná, a maioria dos sujeitos que sofrem os acidentes são homens jovens, sendo que “a parte do corpo mais atingida por acidentes foram os dedos da mão” 21. 20

Entrevista concedida por Amador Franceis e Oneide Frizzo Franceis a Daniele Brocardo. Cascavel/PR, residência dos entrevistados 07 de junho de 2013 21 RIBEIRO, S; AUGUSTO, F. J; KLUTHCOVSKY, A. C. G. C. Acidentes de trabalho na indústria madeireira de uma cidade do Paraná: análise das comunicações de acidentes de trabalho. Revista Salus, Guarapuava(PR), 3,2009, p. 55. 84

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Na sequência questiono Amador Franceis sobre como era realizado o pagamento dos funcionários:

Amador Franceis: Eu que pagava todos, pegava um recibinho, a maioria sem ficha tudo meio [...], fichava muito pouco, algum que vinha do Rio Grande que já era fichado naquela empresa, então eram transferidos para a Madeireira Cascavel em Cascavel no Paraná, com alguma anotação na carteira profissional, mas tudo relaxado que não recolhiam nada. Eu fazer o que, eu sabia o que tinha que fazer, mas então. Não tinha, é que não existia, sabe o que é, como é que é o nome? Entrevistadora: Daniele. Amador Franceis: Daniela!? Daniele. Não existia fiscalização, faze o que, tinha aqui um escritório do INSS, do IN como é que chamava? Instituto. Oneide: Acho que é IFE mesmo, o primeiro é IFI né? Amador Franceis: Não, não. INPS, tinha um escritórinho, para banco comercial, fazia as guias ia no banco, pagava no banco, mas não existia uma fiscalização, então você. Quinem a vergonheira que tem hoje, mas já tão dando um jeito, se trabalha sete meses numa empresa, sai, depois já pede o seguro desemprego, isso é a maior sacanagem a maior vergonha do Brasil! E vai numa outra, eu construí tudo esse mundo de coisa aqui fichando dois, três empregados só. Porque os caras diziam: “não, mas, eu to no seguro desemprego, eu quero trabalhar, eu não quero fichar.” Pronto é bom, assim criou um ciclo vicioso ai, que Deus o livre agora! Naquele tempo não, não tinha fiscalização nenhuma, pra que registra, não registravam quase, muito pouco22. Amador desenvolve seu relato para demonstrar que aquele era um período diferente do atual. Segundo ele não havia fiscalização de nenhuma parte, nem do governo e nem dos órgãos responsáveis, por isso a maioria dos trabalhadores trabalhavam sem carteira assinada, também por isso as pessoas não recebiam seguro desemprego e não poderiam se valer deste benefício. Pergunto ao senhor Amador Franceis e à sua esposa se existiam atividades de lazer para os funcionários:

Oneide: Eram os jogos, acho que era a única atividade que os funcionários tinham era jogar bola nos fins de semana. Amador Franceis: Só aos domingos, sábado trabalhava só até às quatro horas:- “O amanha é sábado, amanha é dia de tomar banho e trabalhar só até às quatro horas!” E depois no domingo se era domingo 22

Entrevista concedida por Amador Franceis e Oneide Frizzo Franceis a Daniele Brocardo. Cascavel/PR, residência dos entrevistados 07 de junho de 2013. 85

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bom sim, se, não, tinha alguns que o patrão permitia de nós pegar um caminhão e junta tudo em cima, caminhão de reboque é um outro tipo de eixo que vai em cima pra, nós ia jogar em outro serraria, passear na outra serraria. Oneide: Faziam os times, cada serraria tinha o seu time, iam uma serraria na outra pra disputar os jogos. Amador Franceis: Faziam torneio de futebol, já existia naquele tempo, lá juntava sete, oito serrarias, morreu um, dois, três só, se matavam, algum tiroteio [rindo]. Algum baile, agora o baile sim, se fazia baile ai não tinha jeito! Entrevistadora: Vocês se conheceram num baile desses de serraria? Amador Franceis: Não, não. Oneide: Nós se conhecemos, porque ele era nosso pensionista. [risos de todos]. Amador Franceis: Nós tinha muito, existia baile, mas era muito perigoso, eu as vezes, eu ia, eles me respeitavam: “olha o guarda livro tá ali”, eu era o guarda livro! Oneide: Mas, naquela época as coisas mais que davam assim era, falavam “surpresa”, iam se reuniam na casa de uma família, de outra, de noite lá, matavam um frango, sete oito galinhas faziam o brodo e daí dançavam, sempre tinha um gaiteiro, um violeiro, era assim que eram as nossas diversão. Amador Franceis: Faziam as domingueiras nos domingos. Oneide: É, domingo a tarde a matinê, era isso. Amador Franceis: Nós saia de lá da nossa até ali tinha oito, dez quilômetros cada serraria, não era [inaudível], era uma atrás da outra. Então, a gente ia numa serraria. Oneide: [inaudível] tinha as festas, não tinha estrada tinha que ir de caminhão, quando o patrão dava o caminhão pra ir, [senão] não era a pé, era longe. Amador Franceis: O patrão ia de Jipe, aqueles Jipão, nós ia em cima, na carroceria do caminhão, na plataforma do caminhão. Não existia nem trator, hoje é tudo estaleirado, com trator de esteira, fazer estrada, não existia nada naquele tempo, só a madeira, madeira boa, madeira bonita23! Oneide e Amador Franceis relatam algumas atividades de lazer dos funcionários do setor madeireiro, jogo de futebol, bailes e a chamada “surpresa”, (festa na casa de alguém) todas estas atividades eram realizadas no domingo, pois com exceção deste dia da semana todos os outros eram dedicados ao trabalho, até mesmo o sábado quando se trabalhava até às 4 horas da tarde. Amador Franceis expõe que os jogos de futebol eram realizados no esquema de uma empresa de serraria contra a outra. Para os funcionários chegarem até a outra empresa eram transportados em cima dos caminhões que puxavam as madeiras, só o dono da empresa 23

Id. Ibid., s/p. 86

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possuía carro (o jipe). Amador lembra que não existia nem trator de esteira naquele período que pudesse transportar os funcionários, e complementa com pesar que só existia “madeira boa” naquele tempo. Outro aspecto destacado por Amador Franceis que caracteriza o período é a violência, elemento este que estava presente nos jogos de futebol e nos bailes, segundo ele só era seguro ir aos bailes por causa de sua autoridade na função que exercia na madeireira. A partir do relato de Amador e Oneide Franceis se torna possível saber alguns dos diversos processos de atuação e organização das empresas madeireiras no município de Cascavel. Em seu relato são apresentados elementos que dizem respeito a exportação da madeira, as relações de trabalho, as condições de vida dos funcionários deste setor em tal período, entre outras questões. É possível perceber ainda as diversas relações socioculturais estabelecidas entre os sujeitos deste processo, em que prevalecem, para além dos vínculos empregatícios, os valores de amizade e parentesco, seja, nas vivências cotidianas em comunidade, seja nas relações de trabalho. Entretanto, também podemos compreender este processo como sendo marcado por relações

complexas,

no

diz

respeito

as

87

condição

de

vida

e

de

trabalho.

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88

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O MUSEU DO HOLOCAUSTO EM CURITIBA: GLOBALIZAÇÃO DA MEMÓRIA E TRANSLOCALIDADE Danielle Beiersdorf155

RESUMO: A presente comunicação baseia se na pesquisa que esta sendo desenvolvida no mestrado em História, Poder e Práticas Sociais, desenvolvido na UNIOESTE de Marechal Candido Rondon, PR.O objeto do presente estudo é o museu do Holocausto em Curitiba inaugurado em 20 de novembro de 2011, que é o primeiro museu brasileiro voltado exclusivamente a Shoa (Holocausto judaico). O museu é um empreendimento da Associação Casa de Cultura Beit Yacoov, e esta, situado junto à área do Centro Israelita Paranaense. Buscamos compreender como se deu a concepção do museu, envolvido em uma perspectiva de globalização do Holocausto. Esta globalização é visível através dos múltiplos lugares de memória que começaram a se proliferar a partir do julgamento de Adolf Eichmann em 1961. Através das análises, pretendemos compreender como o Holocausto é trabalhado pela instituição com o objetivo em difundir uma determinada memória da história judaica. Para tanto analisaremos a exposição museografica, refletindo a cerca das metodologias que o museu utiliza para esta representação da história, destacando, sobretudo a utilização de elementos de sensibilização como a visualidade, a estética e o apelo emocional por meio das obras de arte e dos semióforos. Palavras-chave: Memória, Museu, Globalização. O

museu

do

Holocausto

de

Curitiba

é

o

primeiro

museu

a

representar/rememorar o Holocausto no Brasil. Voltado à representação histórica dos acontecimentos da segunda guerra mundial, o museu através de sua exposição rememora o Holocausto judaico, a Shoah. O museu do Holocausto de Curitiba, através de sua exposição, traz à cena cultural e patrimonial uma representação do Holocausto. O museu em questão constrói uma representação do Holocausto através de mecanismos audiovisuais, espaciais, musicais, textuais. A análise da narrativa museográfica aqui realizada levará também em conta o papel político e estético das imagens e das palavras (discurso expográfico).No museu, as imagens serviram como um aporte para a memória, tanto individual quanto coletiva. Andreas Huyssen156 pontua que as imagens são uma forma de representação importante do passado, principalmente quando se trata de momentos traumáticos como o Holocausto. 155

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História, área de concentração: História, Poder e Práticas Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon /PR. Vinculada a linha de pesquisa Práticas Culturais e Identidades. Orientada pela profª Dr. Méri Frotscher, bolsista Capes/Araucária. 156

Huyssen, Andreas. In: El passado que miramos. Memória e imagen ante la historia reciente/ Claudia Feld y Jessica Stites Mor; compilado por Claudi Feld y Jessica Stites Mor – la Ed. – Buenos Aires : Paidós, 2009. p.1516

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O objetivo do museu do Holocausto de Curitiba é uma representação dos fatos que ocorreram durante o período em que o nazismo esteve no poder na Alemanha e, sem duvida, não possui o objetivo de banalizar os fatos. Isto pode ser claramente observado através de sua postura de responsabilidade cultural, social, histórica e pedagógica. O que se nota a partir da exposição é a representação de um trauma histórico, que é apresentado para as futuras gerações, judaicas e não judaicas, com fins pedagógicos. Para a comunidade judaica de Curitiba, o museu é também um meio de atualização da identidade judaica e um mecanismo de afirmação da Associação Casa de Cultura Beit Yaacov. A exposição é o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, do passado no presente, produzida por grupos, segundo seus valores culturais e políticos. O museu guarda uma serie de documentos/monumentos, objetos, fotografias, testemunhos, e os expõe através de uma seleção e organização. A utilização de tais objetos, fotografias, testemunhos e narrações em seu ambiente denota uma intencionalidade. A exposição também é um mecanismo de reafirmar os fatos ocorridos durante a guerra e que dizem respeito ao Holocausto. Os museus têm uma carga muito grande de signos, sentidos e significados. Como o museólogo Camilo de Mello Vasconcelos ressalta, “(...) o museu é um produtor de sentidos para a sociedade”(Vasconcelos, 2007). Os museus do Holocasto, principalmente os voltados à tematica da Shoah157, são voltados para uma representação historica, mas também são formas de trabalhar os traumas dos sobreviventes e descendentes. Na análise de exposições museográficas, nos baseamos em Ulpiano Bezerra de Meneses(1994), que acentua a articulação existente entre os objetos e o espaço, por meio da qual ocorre a rememoração. No caso do museu em questão, já o espaço construído especificamente para abrigar o museu do Holocausto tem em si imbricado o objetivo da rememoração, já nasceu como um lugar para a rememoração criado especificamente para esse fim. O objetivo do museu foi criar um espaço que, através de inúmeras formas, se facilitasse a rememoração do Holocausto. Segundo ainda o mesmo autor, o museu é um meio de linguagem muito eficiente, pois através de seus vários mecanismos de sensibilização, a rememoração é facilitada: “A partir da seleção mental, ordenamento, registro, interpretação e síntese

cognitiva

na

apresentação

visual,

ganha-se

notável

impacto

pedagógico”(Meneses,1994,P.10) A partir desta citação é possível compreender como o museu do Holocausto de Curitiba explora em sua exposição todos estes artifícios, com o 157

Shoah é a definição hebraica para o Holocausto judaico.

ANAIS DO EVENTO

intuito de levar o visitante a “viver”/rememorar a história. A partir da exposição o museu organiza o seu quadro de tempo e espaço, e isto ocorre por meio de práticas discursivas. A partir deste ponto podemos pontuar algumas questões que levaram o museu a pensar a sua linha expográfica. Como representar o horror do Holocausto em um museu? Como, a partir da história/memória dos sobreviventes judeus que migraram para o Brasil, mais especificamente para o Paraná, contaríamos às novas gerações a história do Holocausto? Como, a partir da história da Associação Casa de Cultura Beit Yaacov, trabalhar de forma ativa, as questões de discriminação, racismo, intolerância na sociedade brasileira? Estas são algumas das possibilidades de análise para a criação do “problema” expográfico, que poderiam nortear a narrativa da exposição do museu de Curitiba. Ainda sobre esta perspectiva nada impede que várias problemáticas estejam relacionadas a mesma exposição, e que vários objetivos sejam alcançados com o discurso expográfico. A exposição, assim como todo processo de produção de sentido na historia, não é neutra. A linguagem/discurso do museu é uma construção de sentido que tem objetivos. No caso do museu de Curitiba, o objetivo declarado pelo museu é a educação contra todos os tipos de discriminação e intolerância. E isto é feito através da representação histórica de fatos e acontecimentos da segunda guerra mundial, que culminaram com a morte de 6 milhões de judeus. Sensibilização e construção de sentidos

através da exposição

museografica A coleção de objetos, fotografias e documentos do Museu do Holocausto de Curitiba são o resultado da cooperação/comodato entre a Associação Casa de Cultura Beit Yaacov, de Curitiba e alguns museus internacionais que apoiaram a criação do museu em Curitiba. Entre os institutos internacionais mais citados durante a exposição está o museu Yad Vashem,158 fundado em 1953, em Jerusalém, logo após a fundação do Estado de Israel. Este é o principal colaborador do museu e utilizado como referência tanto em relação à exposição, quanto às obras expostas. Boa parte das fotografias e objetos foi obtida por meio de empréstimo ou de doação daquele museu. Outra instituição colaboradora é a Fundação Shoah159, fundada em 158

http://www.yadvashem.org/ que foi fundado em 1953 pelo parlamento de Israel, com o objetivo de preservar a memória dos seis milhões de judeus mortos pelo regime nazista 159 Fundação da História Visual dos Sobreviventes da Shoah. Home Page: http://hsw.com.br/framed.htm?parent=shoah.htm&url=http://www.vhf.org/ que tem objetivo principal, gravar e conservar depoimentos de sobreviventes e outras testemunhas do Holocausto, através do recolhimento de depoimentos, foi fundado por Steven Spielberg (1994).

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1994, em New York, da qual o museu recebeu doações de diversos documentos e testemunhos, alguns utilizados na exposição. Outra instituição ainda é o United States Holocaust Memorial Museum,160 fundado em 1989, em Washington, referência mundial para o ensino do Holocausto e com o qual a proposta pedagógica do museu de Curitiba mais se assemelha. O museu do Holocausto de Curitiba também possui um acervo próprio, constituído por fotografias, objetos, documentos diversos (cartas, passaportes, vistos), objetos pessoais de sobreviventes que migraram para o Brasil, principalmente de membros da Associação Casa de Cultura Beit Yacoov e da comunidade Israelita do Paraná. O museu explora os sentidos cognitivos dos visitantes, visando a sua sensibilização, sobretudo por meio dos recursos visuais e sensoriais utilizados na representação dos eventos. O termo “exponer” vem do latim e significa expor, apresentar algo. Na museologia, expor significa apresentar “algo” através de uma metodologia própria. Além de expor, os museus tem uma outra função: a de atribuir sentidos aos documentos. Os museus contemporâneos tendem a levar os visitantes à interpretação de símbolos e signos. Assim os museus através dos semióforos, são objetos que a partir de sua entrada/inserção no museu, adquirem significados e simbologias diferentes da quais possuíam. A partir de então passam a estabelecer uma ligação entre o visível e o invisível, bem como uma interligação entre espaço e tempo. Como apontam André Desvallées e François Mairesse; Os

objetos

no

museu

são

desfuncionalizados

e

“descontextualizados”, o que significa que eles não servem mais ao que eram destinados antes, mas que entraram na ordem do simbólico que lhes confere uma nova significação (o que conduziu Krzystof Pomian a chamar esses “portadores de significado” de semióforos) e a lhes atribuir um novo valor – que é, primeiramente, puramente museal, mas que pode vir a possuir valor econômico. Tornam-se, assim, testemunhos (com) sagrados da cultura. (Desvallées 2013. P. 70)

Os objetos (semióforos), ao entrarem no o universo dos museográfico, tem o seu valor 160

http://www.ushmm.org/ um dos maiores museus do mundo em memória a todas as vitimas do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, fundado em 1989

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de uso, substituído/ressignificado, tornam-se portadores de significados. Passam a ser documentos/fonte, possibilitando a representação de eventos ou fatos. A expectativa dos museus contemporâneos é despertar a interpretação através da experiência. O museu em questão utiliza-se de diversas formas de sensibilização. As primeiras sensibilizações são despertadas por um conjunto de obras de arte expostas no pátio/ espaço externo de entrada, feita pelos artistas plásticos Guita Soifer e Andrew Rogers. As mesmas desempenham uma sensibilização inicial dos visitantes. Antes de adentrarem o espaço interno da exposição do museu propriamente dita, os visitantes se deparam com uma série de obras de arte e esculturas muito expressivas. As obras causam um impacto imediato nos visitantes durante a sua visualização. Por meio da exposição interna , o museu do Holocausto de Curitiba trabalha muito a relação entre os objetos e alguns dos seus doadores, e suas histórias individuais, que são apresentados pela monitora/guia no decorrer da visitação. Uma das formas mais eficientes de sensibilização do museu se da através das sensações térmicas (já que a temperatura do ambiente vai diminuindo conforme o núcleo em que se encontra), da iluminação (que destaca, revela algo ou cria um ambiente de penumbra), do som (o áudio de todas as salas foi construído a partir de uma seleção pelo artista Hélio Zinskind). Todos estes recursos são utilizados como estratégias que visam orientar a interpretação do visitante. O objetivo assim, não é somente expor, mas por meio da exposição dar uma interpretação com base em princípios que possuem significados funcionais, significados simbólicos e conceituais(Meneses, 1994). Estes três elementos respondem através da exposição algumas questões importantes. A exposição museográfica é voltada à rememoração de acontecimentos ocorridos na Europa entre 1918 a 1953 e explora a fundo as tres funcionalidade citadas anteriormente. Outra metodologia de sensibilização cognitiva e educacional, é desempenhada pela música presente nos núcleos da exposição. A criação do museu visa, por meio da visualidade, da oralidade, da textualidade e das percepções daí advindas a rememoração de fatos históricos. O museu é um meio de suporte de linguagens muito eficiente, pois através de seus vários mecanismos de sensibilização, a rememoração é facilitada. Segundo Ulpiano Bezerra de Menezes: “A partir da seleção mental, ordenamento, registro, interpretação e síntese cognitiva na apresentação visual, ganha-se notável impacto pedagógico”(Meneses,1994,p.10). A partir desta citação é possível compreender como o museu do Holocausto de Curitiba explora em sua exposição todos estes artifícios, para levar o visitante a “viver”/rememorar

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aspectos da história. A partir do desenvolvimento tecnológico, as fontes audiovisuais passaram a ganhar cada vez mais espaço em espaços de rememoração. Isso não é diferente no museu do Holocausto de Curitiba. Este dispõe de vários recursos tecnológicos, dos quais se utiliza, um destes recursos é o áudio. É por meio de trilhas sonoras que o museu também compõe sua exposição. As músicas, como ressalta Marcos Napolitano, são fontes “como qualquer outro tipo de documento histórico, portadoras de uma tensão entre evidencia e representação”( Napolitano, 2005. P.240). As músicas do museu são ainda mais significativas, pois todas elas são composições feitas no período histórico que é apresentado pela exposição. A trilha sonora do museu é uma das estratégias de sensibilização cognitiva que os organizadores do museu, ao ser projetado, se ativeram. A parte audiovisual recebeu atenção especial e ficou a cargo de Hélio Zinskind, músico renomado no cenário brasileiro, formado em composição erudita pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Durante sua carreira conquistou visibilidade através de trilhas sonoras produzidas para programas de televisão, propagandas, rádio, cinema e trilhas sonoras (áudio guias) para museus. Entre os trabalhos que obtiveram maior visibilidade estão:

“Vistas do Brasil”

exposição sobre os artistas do século XIX, o áudio da exposição “Brasil + 500 anos” no ano 2000, exposição comemorativa ao Quincentenário de “descoberta do Brasil. Helio Zinskind contou com o apoio de sua equipe composta pelos seguintes músicos: Vicente Falek - piano e sanfona, Alexandre Travassos - clarinete e Luiz Amato - violino. A produção da trilha sonora (áudio-guia) foi feita a pedido de Miguel Krigsner. Alem de sua equipe de músicos, Zinskind contou ainda com apoio teórico de Silvia Rosa Nossek Lerner, historiadora, advogada, especialista em música judaica161. Silvia Lerner, de descendência judaica, desenvolveu uma pesquisa sobre a arte/música nos campos de concentração. A partir desta pesquisa, Zinskind e Lerner selecionaram 13 músicas que foram gravadas/remixadas para compor a exposição do museu. Aliada aos objetos, à sensação térmica e à iluminação, a trilha sonora causa uma sensação diferente em cada ambiente. Todas as 13 músicas selecionadas possuem uma história. Seja pelo momento de sua criação (guetos, campos de concentração) seja pela história de vida de seus compositores (judeus, sobreviventes) No livro “Judaísmo e Modernidade suas múltiplas inter-relações” no 3º capitulo, 161

Todas as informações acima colocadas podem ser http://www.helioziskind.com.br/index.php?apg=pasta_det&ndi=50&ver=por

encontradas

no

site

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intitulado “As Várias Linguagens da Música Judaica”(Lerner, 2009) Silvia Lerner discorre sobre a produção musical durante o Holocausto e pontua que a música, nesse momento, foi um meio importante de expressão das angústias e medos dos judeus confinados nos guetos e campos de concentração. Segundo ela:

Durante o domínio nazista, um pequeno mundo de pessoas conseguiu produzir canções, a grande maioria em iídiche, através das quais tem-se uma idéia do que era aquele mundo lacrado por fora, enquanto por dentro era culturalmente fermentado e fisicamente deteriorado.(Lerner, 2009, P. 415)

A autora informa que as canções produzidas naquele período foram reunidas após o fim da segunda guerra mundial, Lerner destaca assim o quão forte foi à capacidade cultural dos judeus durante o período em que ocorreu o Holocausto, mesmo em tempos adversos, como os enfrentados no período. Depois da guerra, foram catalogadas mais de 300 músicas, descobertas nos guetos, nos campos de concentração ou em posse de sobreviventes. Segundo ainda a autora:

Essas peças foram agrupadas em: canções de ninar, canções de trabalhadores, sátiras e baladas, canções de oração, canções de dor e angústia, vergonha e humilhação; canções sobre a vida no gueto, a preocupação dos pais em relação ao futuro de seus filhos, sobre atos heróicos, sobre o ódio ao inimigo, sobre o contra-ataque/a chamada para a luta, sobre fé e esperança de dias melhores. Não há músicas que evoquem tempos de normalidade, temas como amor e casamento, crianças brincando, alegria no trabalho e no estudo, humor ou felicidade. (Lerner, 2009, P. 415)

Alguma das canções que foram selecionadas para fazer parte do áudio guia do museu fazem parte deste conjunto de canções produzidas durante o período em que o social nacionalismo esteve no poder. As músicas escolhidas por Hélio Zinskind, com o auxílio de Silvia Lerner, foram regravadas sem os respectivos textos, priorizando apenas a melodia. Assim, as músicas apresentadas no museu não possuem letra, apenas acordes e arranjos, gravados em estúdio. No site162 de Zinskind é possível ouvir as músicas regravadas e as 162

http://www.helioziskind.com.br/index.php?apg=pasta_det&ndi=50&ver=por

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originais, o que torna possível uma análise mais detalhada das adaptações feitas pelo artista e sua equipe, bem como é possível visualizar o nome dos compositores originais. Sobre o papel da trilha sonora no museu do Holocausto, revela Hélio Zinskind: “No Museu, a trilha desempenhou o mesmo papel que a as canções desempenharam na vida daquelas pessoas: uma ferramenta para suportar a dor, enfrentar o que não se podia entender.”163 A última canção apresentada pelo museu, a meu ver, é a mais significativa, e, portanto será apresentada para o presente artigo com detalhes do núcleo e da música. O ultimo núcleo da exposição subdivide-se em 2 períodos distintos. O primeiro refere-se ao período posterior ao fim da guerra, libertação dos prisioneiros e a busca por um local seguro para retomar a vida, preferencialmente Israel. “Retorno a Vida, She’erit Hapleitá” é uma expressão utilizada somente na cultura judaica, e significa “O renascer da comunidade”. Assim esta parte inicial da sala tem como objetivo representar a reorganização judaica.

Figura 1 – Reorganização da vida.164

Os elementos de exposição deste espaço resumem se a fotografias, vídeos e totens. As fotografias representam os sobreviventes, e sua organização, podemos observar (da esquerda para a direita) que na primeira imagem ha um grupo grande de indivíduos em caminhões. A fotografia não possui uma descrição, portanto uma análise precisa em relação ao destino das mesmas é impossível. Na segunda imagem podem ser observadas 11 crianças, a fotografia traz como elemento uma descrição. Retratando as mesmas como órfãs, que ficaram afastadas de seus familiares devido à proteção dos pais que as mandaram para orfanatos, igrejas, ou até as entregaram para que fossem criadas e adotadas por alemães com o intuito de salvar suas vidas. As três imagens seguintes são de sobreviventes de campos de concentração e ou de guetos, acolhidos, em transito e com seus familiares. 163 164

http://www.helioziskind.com.br/index.php?mpg=16.50.00&nfo=551&ndi=50&tipo=audioguia As legendas foram adicionadas por mim para facilitar a análise.

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Os recursos tecnológicos utilizados nesta sala são projeções de filmes e depoimentos através de dois televisores e um totem, projeção de imagens através de um totem interativo, onde é possível acessar informações. Neste é possível acessar as

rotas de

imigração, ( America do Norte, America do Sul, continente Africano, China, Israel) e dados quantitativos, como numero de mulheres homens, crianças, idades de imigrantes entre outros. Entre a primeira e a segunda divisão da sala temos duas imagens de lados opostos. A primeira é a fotografia do navio “Hagna” que foi capturado quando tentava “entrar” em Israel.

Figura 2 – Navio de imigrantes.

Esta imagem faz parte do arquivo fotográfico do museu Yad Vashem, retrata uma das inúmeras tentativas de entrada de judeus no ano de 1947, que foi interceptada e capturada por soldados britânicos. A imagem que esta no museu não possui descrição, o que ao meu ver pode ser considerado uma falha didática, já que durante a visita guiada, acompanhada não houve menção ao episodio.

Figura 3 – Formação da comunidade judaica do Paraná.

Do lado contrario da sala, esta exposto um painel que descreve a formação da comunidade judaica no Paraná. O painel destaca que o Paraná teve três grande ondas de migração judaica. A primeira entre os anos de 1889-1929, bem anterior a segunda guerra mundial, mas já impulsionados pela perseguições que sofriam na Europa. A segunda entre 1930 – 1945 durante a era Vargas e a terceira entre 1945 -1955 logo após o fim da guerra,

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impulsionados intensivamente pelos grupos de jovens sionistas que já existiam no Brasil. O painel é complementado por imagens de judeus que estabeleceram sua residência na cidade de Curitiba, as imagens são seguidas pelos nomes e sobrenomes. A partir deste painel podemos observar que o museu conecta uma história maior (Europa) ao local ( Brasil, Curitiba), buscando construir um elo de ligação e reforçar a ligação entre comunidade judaica de Curitiba e Holocausto, também colocando o holocausto como elemento reforçador de uma identidade judaica no Paraná.

Figura 6 – Monumento as vitimas.

No centro da sala há um monumento feito em ferro para todas as vitimas do holocausto, onde se lê “Permita que suas almas estejam em paz; e que elas possam estar unidas à corrente da vida eterna. Amém.”165 Na parte superior do monumento há uma estrela de Davi, símbolo do judaísmo, e logo abaixo da inscrição uma espécie de depositório para pedras. Segundo a tradição judaica as pedras representam a “saudade” que se sente, pois a pedra não murcha nem desaparece. Este monumento ao fim da exposição é recorrente em todos os museus do Holocausto. Nos cemitérios judaicos também é comum encontrar pedras em cima dos túmulos, esta representação tende a reforçar ainda mais a identidade judaica e a manutenção

165

Inscrição do monumento.

das

tradições.

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Assim a música em destaque na sala/núcleo é a mais significativa pois é que finaliza a exposição e também é a canção

com maior conjunto de símbolos e

significados. O espaço final da exposição intitulado “She’erit Hapleitá”, ou seja, o renascer da comunidade judaica é o espaço destinado a exposição das imigrações, a volta das tradições judaicas e o recomeço da vida para os judeus perseguidos durante o período representado por toda a exposição museográfica. Também é neste espaço que o estado de Israel tem o maior destaque. Através da exposição de sua bandeira e da música em questão. Todas as canções anteriores apresentadas são constituídas de histórias de vida de judeus que vivenciaram o Holocausto. Alguns sucumbiram ao regime nazista, já outros sobreviveram. Porem a ultima canção é a representação do Estado de Israel através do Hino de Israel. A música apresentada neste espaço é a materialização, (por meio da música) do vínculo existente entre a congregação de Curitiba e do museu com o Estado de Israel. Através do hino de Israel “Hatikva” ou “Esperança” foi composto a partir de um poema de Naftali Herz Imber, poeta polonês. A canção passou a ser oficialmente o hino de Israel em 1948, na cerimônia de declaração de independência do Estado.

Hino de Israel

Esperança

Kol od balevav penima

Enquanto no profundo do coração

Nefesh Yehoudi homia

A alma de um judeu arder

Oulefatei mizrach kadima

E na direção do Leste

Ayin le Tsion tsofia

Para Sião os olhos se voltarem

Od lo avdah tikvateinou

Nossa esperança não estará perdida

Hatikva bat schnot alpaïm

A esperança de dois mil anos

Lhiot am chofshi be artseinou

De ser uma nação livre em nossa

Erets Tsion ve'Yeroushalaïm

terra

Od lo avdah tikvateinou

A terra de Sião e Jerusalém

Hatikva bat schnot alpaïm

Nossa esperança não estará perdida

Lhiot am choshi be artseinou

A esperança de dois mil anos

Erets Tsion ve'Yeroushalaïm

De ser uma nação livre em nossa terra A terra de Sião e Jerusalém

ANAIS DO EVENTO

A exposição assim como todo o processo produção de sentido na historia, não é neutra, a exposição museográfica é uma construção de sentido que tem objetivos determinados. Também é o caso das músicas apresentadas na exposição. A exposição do museu é encerrada com o hino de Israel. Por meio da música, então, se reforça o que já se pôde apreender em alguns momentos da exposição. Este é mais um elemento que revela como, por meio da criação do museu no Brasil, há uma tentativa por parte da Associação Casa de Cultura Beit Yaacov em reafirmar sua identidade judaica e seu vínculo com Israel.

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Guilherme João de Freitas. – Belo Horizonte: Autentica Editora, 2003. ___________________ Cultura, História, valores patrimoniais e museus. VARIA HISTÓRIA Belo Horizonte, vol. 27, nº 46: p.471-480, jul/dez 2011 Sarlo, Beatriz.Tempo passado : cultura da memória e guinada subjetiva / Beatriz Sarlo ; tradução Rosa Freire d'Aguiar - São Paulo : Companhia das Letras. Belo Horizonte, : UFMG, 2007. SCHUCMAN, Lia Vaimer. Produção de sentidos e a construção da identidade judaica em Florianópolis. 2006. 109 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Santa Catarina. Silva, Tomaz Tadeu Da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais/ Tomaz Tadeu da Silva. (org.) Stuart Hall, Kathryn Woodward. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. SOUZA, Marcelo de Sá de. Sobre os museus pela paz/ Marcelo Sá de Souza, 2012, Universidade Federal do estado do Rio de Janeiro; MAST, Rio de Janeiro, 2012. TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem / tradução de Joana Angélica D’Avila Melo – São Paulo: Arx, 2002. Vasconcellos, Camilo de Mello. Imagem da Revolução Mexicana. O Museu Nacional da História do México (1940-1982) – São Paulo: Alameda, 2007 . VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo. Tradução de Marina Appenzller, Campinas, SP: Papirus, 1998. Von Plato, Alexander. Traumas da Alemanha. In: FERREIRA, Marieta de Moraes, FERNANDES, Tania M.; ALBERTI, Verena (Org.) História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz/CPDOC - Fundação Getulio Vargas, 2000

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A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE HISTÓRIA NA CONSTRUÇÃO DO CIDADÃO CRÍTICO DESDE O INICIO DA TRAJETÓRIA ESCOLAR Danielli Maria Neves da Silveira1 Resumo: O ensino de história desde seu surgimento no Brasil vem acompanhando interesses políticos, e a partir de estudos e debates hoje vemos que vem sendo renovado e vem incorporando novos objetivos, vendo a História enquanto formadora do cidadão, despertando a consciência do aluno através do estudo do homem e da sociedade em diferentes tempos, e se pensarmos no mundo atual, qual a função do ensino de História hoje? O que pode ser feito para que os alunos compreendam o que pode ser feito em relação à política conturbada atual? O descontentamento das pessoas com a corrupção e com políticas públicas? Quando falamos em iniciar o trabalho da História de maneira contextualizada desde a Educação Infantil, pensa-se em uma preparação deles de maneira que se efetive uma população mais ativa, mais participante, consciente em caráter de urgência, a taxa de analfabetismo no Brasil vem caindo, porém ainda temos uma população que não se lembra do candidato em que votou nas ultimas eleições. Muitas imagens e conceitos que memorizamos na infância permanecem na memória, nos marcando para o resto da vida, por isso é importante a preocupação com a disciplina desde a educação infantil. Atualmente com a inserção do aluno mais cedo na vida escolar, é importante que se reflita que através da conscientização dos professores e um trabalho intencionado pode-se contribuir para a formação do cidadão crítico, que compreenda as desigualdades sociais, a luta de classes e o ensino de História possibilita isso, bem como uma prática direcionada para estes objetivos. Em uma sociedade marcada pela exploração o aluno deve ser o protagonista, deve se sentir parte da história. Palavras chave: Ensino de História. Cidadão critico. Participação política. Devemos admitir que atualmente existe uma carência no ensino de História, a sociedade vem mudando muito e o ensino da disciplina continua erigido da mesma maneira em muitos aspectos. Podemos ressaltar que o ensino de História não é algo imutável, mas sim em constante dinamismo: “Novos interesses podem superar as funções vigentes, de forma que o pensamento histórico, sob pena de se tornar anacrônico, tem de modificar suas perspectivas orientadoras com relação ao passado. Ele tem de ajustar-se a critérios de sentidos novos, que levam a novas representações do que há de especificamente histórico na experiência do passado. Essas novas representações ensejam novas técnicas de pesquisa, de que resultam por sua vez, novas formas de apresentação, que estariam, assim, em condição de exercer as funções requeridas pelos novos interesses.” (RUSEN, 2001, p. 37) 2

O papel da escola não se fundamenta só enquanto mediador do conhecimento cientifico, mas busca-se uma formação social e no que tange no ensino de História existe um resultado especifico quanto a formação do cidadão, e quando pensamos na formação do cidadão crítico vinculamos o papel da História enquanto transformador e de caráter político e social. Se analisarmos a história do Brasil em especifico percebemos como a disciplina de História sempre esteve relacionada com o modelo de sociedade e de cidadão que se pretendia ter. Conforme (RANZI E MORENO, 2005, p. 4): 1

-Acadêmica do curso de História na UNIPAR- Universidade Paranaense.

2

-RUSSEN, Jorn. Razão Histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

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“[...] O ensino de História no Brasil privilegiou durante muito tempo uma história factual, personalística, com o estabelecimento da “verdade de fatos”, dentro de um projeto político maior que visava construir um modelo de nação e cidadão por meio da difusão de determinados valores e imagens.” 3

Perpassando pela história do ensino de História no Brasil percebemos que o ensino conseguiu adquirir uma perspectiva mais autônoma a partir de 1980 com a redemocratização no Brasil, depois de passar pelo regime militar os profissionais da área voltaram a pensar no ensino da disciplina e o que poderia ser melhorado. Hoje percebemos um caráter mais crítico no ensino de História e currículos vem mostrando uma nova visão do ensino, buscando a formação de um cidadão mais crítico e ativo. Hoje já vemos que os PCN’S4 (Parâmetros Curriculares Nacionais) oferecem um suporte para que os professores atuem de forma mais autônoma, e a favor da democratização da educação e ao acesso ao conhecimento, de maneira que as classes populares tem um ensino voltado para sua emancipação. Bem como a história mostrou seu caráter político na disciplina de História a cidadania teve seus aspectos alterados historicamente no Brasil. O conceito clássico de cidadania nos remete a Grécia Antiga e a conceituação moderna nos remete a Revolução Francesa, com seus ideais de liberdade e igualdade e Karl Marx5 considera que a forma como se organiza a produção das riquezas sociais que pode vir a assegurar a igualdade entre os indivíduos, sendo assim dentro do sistema capitalista a igualdade e a liberdade a serem asseguradas pelo respeito aos direitos da cidadania não seriam realmente alcançados. Na história brasileira em específico pensar na cidadania nos remete a pensar no legado do período colonial que nos levam a refletir na escravidão e no latifúndio, e embora a escravidão sendo abolida depois os direitos civis e de liberdade continuavam não sendo efetivos no processo histórico brasileiro, que durante muito tempo a população analfabeta não tinha direito ao voto mesmo após o fim do período colonial. Também devemos considerar o coronelismo quer permaneceu durante anos no Brasil que fortificava o poder local em detrimento do poder publico. Nos anos de 1930 e 1960 há uma maior participação política da sociedade em geral, porem as demandas democráticas culminaram em um período de ditadura, o Regime Militar que resultou em um retrocesso no processo de ampliação da cidadania no Brasil. Um movimento de grande repercussão mais tarde mostrou uma amplitude da mobilização popular foi o “Diretas já” em 1980 e 4 anos mais tarde a Constituição de 1988 teve forte caráter democrático universalizando o voto dos maiores de 18 anos e tornando facultativo aos jovens entre 16 e 18 anos e aos analfabetos. A redemocratização trouxe direitos políticos e sociais, mas ainda permanecem desigualdades na sociedade enquanto um grave problema e no Brasil os direitos sociais foram tomados como base para a cidadania, em um caminho de restrições e ampliações de direitos básicos houve sempre envolvido com a formulação estatal ao invés das proposições populares, e ainda dentro dessa realidade brasileira há agentes comprometidos com a homogeneização da sociedade através da expansão de uma visão de cidadania que atende a determinados valores que beneficiam determinados agentes sociais e/ou seus interesses. Há um projeto do estado em formar a cidadania articulado aos meios de comunicação de massa, mas esse modelo não é homogêneo, há um poder de reinterpretação que apropria 3 RANZI, Serlei Maria Fischer e MORENO, Jean Carlos. A avaliação em história nas séries iniciais. UFPR, Pró- Reitoria de Graduação e

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Ensino Profissionalizante, Centro Interdisciplinar de Formação Continuada de Professores; Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica- Curitiba: Ed. Da UFPR, 2005. 4 PARÂMETROS curriculares nacionais: história/Secretária de Educação Fundamental. - Brasília: MEC/SEF, 1998.

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MARX, Karl. A questão Judaíca. In. O que é cidadania. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Edições 70, 1975, p. 35-63.

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discursos oficiais a adequação da realidade popular e nesse aspecto o ensino de História mostra seu papel social, através de um ensino com intencionalidades claras e voltados a essa formação de cidadão, o agente social (aluno) passa a reinterpretar as informações que chegam até ele de forma a transformar sua realidade buscando através de diálogos entre vários âmbitos da sociedade uma solução para os problemas que estão postos. O autor canadence Christian Laville6, reflete sobre a educação histórica como uma “[...] pedagogia no serviço da democracia, cujo objetivo é a formação de cidadãos racionais e de mentes independentes, capazes de pensamento critico”. Quando pensamos que tipo de cidadão queremos formar em sala de aula não podemos desconsiderar debates que renovaram o ensino de História, estando a escola em luta em prol da classe trabalhadora e portanto com a finalidade de buscar sua emancipação, a partir disso devemos ir alem do conceito de cidadania que é divulgado para a massa atentando o aluno também aos direitos políticos e sociais e não somente os direitos civis. Cidadão constitui no entendimento de Pinsky7 (2003): “Aquele que é possuidor do direito á vida, a liberdade, á propriedade, á igualdade perante a lei, enfim dos direitos civis. Da mesma forma, quem participar dos destinos da sociedade, votando e sendo votado, traduz os direitos políticos. Sendo que os direitos civis e políticos não garantem a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do individuo na riqueza coletiva.”

Na realidade brasileira atual, grande parte das crianças é inserida no espaço escolar já na educação infantil, atendendo os anseios de uma classe trabalhadora composta por muitas mães e uma realidade em que são refletidas políticas de inserção mais cedo no âmbito escolar e educacional. Sobre isso GEWERC8 fala: “A lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei n° 9. 394, de 1996, afirma que a criança é cidadão agora, e não no futuro, e deve ser atendida em suas especificidades. A educação infantil passou a fazer parte do sistema regular de ensino como a primeira etapa da educação básica, dividida em creche ( 0 a 3 anos) e pré-escola ( 4 a 5 anos)”

Em contrapartida muito do que se produz em pesquisas em universidades e discussões acerca dos objetivos da educação demoram chegar nesses ambientes ou muitas vezes não chegam a eles, como o caso do ensino de História em especifico que geralmente tem uma abordagem critica nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Então a classe trabalhadora está inserida no contexto da realidade escolar e a partir desse contexto o ensino de História tem uma possibilidade de uma abrangência maior de seus objetivos, para que a formação do aluno enquanto protagonista de sua história não fique presente apenas nos currículos mais para que aconteça de forma intencional desde o inicio do período escolar. Hobsbawm9 afirma em relação a criança que pertence a classe trabalhadora: “toda a sociedade na qual valha pena viver é uma sociedade que se destila a elas” Assim como a disciplina de História a história da infância atravessa por questões políticas e estruturais, e isso é refletida na maneira como acontece o atendimento as mesmas. MARINHO10 aborda sobre “A construção de uma visão de criança objeto e não sujeito de 6

LAVILLE, Christian. Além do conhecimento produzido e disseminado- Consciência Histórica e Educação Histórica. Trabalho apresentado no IX Encontro Regional da ANPUH-MG, Belo Horizonte, Julho de 2002, p. 14. In. www.fae.ufmg.br/ANPUH. 7

PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla B. (Orgs.) História da Cidadania. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, 591 p. 8 GERWERC, Monique. Atendimento á criança: uma perspectiva histórica. PRESENÇA PEDAGÓGICA, v. 20, n. 118, jul/ago. 2014. 9 HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MARINHO, H. “ Os paradoxos da infância” In: LEITE FILHO, A; GARCIA, R. (orgs.). Em defesa da Educação Infantil. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 10

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direitos- cidadã- foi sendo tecida ao longo da história da sociedade brasileira”. Quando falamos em uma construção do cidadão critico desde a infância nos leva a refletir no coletivo e repensar toda a prática escolar, considerando que no cotidiano escolar desde a infância se constrói a moral e ética além de conceitos acerca do mundo que os cerca. Conforme FERRO11: “A imagem que fazemos de outros povos, e de nós mesmos, está associada á História que nos ensinaram quando éramos crianças. Ela nos marca para o resto da vida. Sobre essa representação, que é, para cada um de nós, uma descoberta do mundo e do passado das sociedades, enxertam-se depois opiniões, idéias fugazes ou duradouras como um amor (...), mas permanecem indeléveis as marcas das nossas primeiras curiosidades, nossas primeiras emoções.”

A criança desde quando começa a compreender as pessoas a sua volta começa a estabelecer conexões com o mundo, ou seja, desde cedo ela apropria a cultura que a cerca, hábitos, costumes, etc. As pessoas a sua volta estão carregadas de valores, conceitos, e com posturas que influenciam na vida dessa criança, tudo se torna aprendizado e por isso é importante refletirmos sobre os professores que estão nessa etapa da educação infantil, é interessante que a discussão sobre a cidadania chegue até essa etapa para que se tenha uma intencionalidade do corpo docente como um todo, para que a escola não seja isolada por ser de educação infantil, mais haja uma discussão geral e que os conhecimentos do historiador sejam perpassados nesse ambiente, para que possa pensar a cidadania desde os primeiros anos de vida, através da valorização de determinadas culturas, conceitos enfim mostrar uma postura política que o cidadão pode ter. FARIA12 afirma: “Nas relações que estabelecem com os outros, alem de ampliar os laços afetivos e sociais, as crianças vão se apropriando de valores e formas éticas de se relacionar, desenvolvendo possibilidades de reflexão e agir. Constroem, assim, progressivamente, sua autonomia moral, na perspectiva de conquista gradativa da capacidade de mobilizar saberes e conhecimentos de forma crítica, ativa, questionadora e reflexiva. Esse conjunto de posturas é norteado pela consciência ao agir”

Seja através da mídia, da família ou da convivência com demais elementos da cultura, o capitalismo se apresenta para a criança desde os primeiros anos de vida, e chegam a ela valores diversos, então a escola entra enquanto um elemento que tem caráter transformador, o ensino de História possibilita ampliar a visão de mundo da criança, valorizando as culturas diversas, e mostrando a perspectiva política, civil e social do aluno. É uma preocupação que deve chegar também a educação infantil, percebe-se na realidade atual que as pessoas não possuem participação política efetiva, e o cidadão mesmo vendo que seus interesses não são atendidos muitas vezes não demonstra uma reação, justamente por não compreender as relações políticas no passado e saber agir no presente. ALVES13 analisa: “[...] a competência de orientação possibilita ás pessoas e seus grupos sociais, interpretarem o passado relacionando-o diretamente (e criticamente) com a situação presente, de maneira que seja construída, a partir dessa análise, uma estratégia de ação para a resolução do problema apresentado.” Pensar o ensino de História enquanto instrumento de conscientização do aluno do quanto é importante sua participação na política se configura na prática enquanto um elemento que deve ser construído desde o inicio da trajetória escolar. Esse trabalho intencionado de forma crítica geralmente ocorre através do professor de História e se 11

FERRO, M. A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: IBRASA, p. 11, 1983. 12

FARIA, Vitória. SALLES, Fátima. Currículo na educação infantil: diálogo com os demais elementos da proposta pedagógica. 2. Ed.; [ver. E ampl.] – São Paulo: Ática, 2012. 13 ALVES, Ronaldo Cardoso. Representações Sociais e a construção da consciência histórica. Revista da FolhaJornal Folha de São Paulo, São Paulo, ano 12, n° 584, 24 de agosto de 2003, PP. 6-34.

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configura nos anos finais do ensino fundamental e médio, o artigo objetiva refletir sobre como é importante que esse trabalho se inicie na educação infantil para estar mais próximo de alcançar uma amplitude de formação de cidadão crítico. Uma sociedade com melhor conscientização política permite que todas as pessoas busquem o melhor, pois renovar a política com a participação do cidadão não se trata de impor determinado pensamento e vontade a todos, más, sim permitir que todos pensem o que é melhor. O ensino de História voltado para a construção da cidadania democrática não pode se orientar pelos valores de cidadão que estão postos pelo capitalismo, más, sim refletir sobre o conceito de cidadania dentro da realidade vivida pelo aluno e levá-lo a pensar sobre essa cidadania, instigando o aluno a buscar seus direitos civis, sua participação política e social enquanto uma maneira de buscar uma melhora e eliminar desigualdades existentes no sistema capitalista.

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A FRONTEIRA BRASIL E ARGENTINA: ASPECTOS HISTÓRICOS E SÓCIOCULTURAIS NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NO CONTEXTO IGUAÇUENSE PÓS-ERVATEIRO Edson Matias Militelli1 Resumo: O presente texto tem como objetivo manter um diálogo com o conceito de Fronteira e identidade entre iguaçuenses e argentinos no contexto pós-ervateiro. Num primeiro momento, será observado o argentino e sua relação econômica com a fronteira (atual região de Foz do Iguaçu) no recorte entre 1888 e 1907, período áureo da exploração da erva-mate e da madeira. Em segunda análise, compreender a construção de identidades entre “brasileiros” e “argentinos” no período de quarenta anos que se seguiram com a instalação da Colônia Militar. Desde o fim do século XIX, os argentinos sempre estiveram no imaginário e no cotidiano da fronteira, nas cercanias de Foz do Iguaçu e da região do Oeste paranaense por meio de contato econômico. Por muito tempo a exploração dos recursos naturais foi a única atividade econômica desta localidade. À medida que foram se vinculando a esta atividade, acredita-se que estes sujeitos foram intensificando raízes culturais interessantes, criando vínculos sociais que foram além das questões mercantilistas. Desta maneira, esta pesquisa tenta reconstruir como tal ligação se consolidou, de modo a perceber esta receptividade na construção do que podem ter sido os “valores” sócio-culturais na região iguaçuense, importantes para impregnar a ideia de identidade. Sua personificação não se dá apenas pelo fato do que se construiu em torno dele, mas das relações que se estabelecem numa região de fronteira como a que a localidade de Foz do Iguaçu está inserida no contexto de tensões e de aproximações, de conflitos, entre outros e que de algum modo, serviram para forjar sua característica. Esta relação que a primeira vista (era econômica e em certa medida de exploração) ao passo que pode também ter estabelecido sentimentos dúbios, numa espécie de gratidão e cordialidade e de aversão entre iguaçuenses do Oeste paranaense e argentinos nos primórdios do turismo da região da tríplice fronteira e estendendo-se algumas décadas para além da instauração da Colônia Militar. Palavras-chave: História; Fronteira; Identidade. 1. Introdução Discutir o problema de identidade não é uma tarefa fácil para o pesquisador, ainda quando a temática envolve sujeitos antagônicos que em alguma parte representam interesses opostos. Neste recorte, destaca-se a presença de distintas nacionalidades que se confluíram e se forjaram por meio de atividades econômicas (neste caso a exploração da madeira e da ervamate) impregnando a partir de tal ato, importantes características, tais como a linguagem e os 1

Graduado em História pela Faculdade União das Américas (Uniamérica) e aluno do curso de mestrado em Sociedade, Cultura e Fronteiras (Unioeste). Ambas em Foz do Iguaçu-PR.

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costumes. “As tentativas de se estabelecerem critérios objetivos sobre a existência de nacionalidade, ou de explicar por que certos grupos se tornaram “nações” e outros não, frequentemente foram feitas com base em critérios simples como a língua ou a etnia ou em uma combinação de critérios como a língua, o território comum, a história comum, os traços culturais comuns e outros mais.” (HOBSBAWN, 1990: 15). Chamamos a atenção para demonstrar que estes sujeitos (denominados argentinos e brasileiros) circulavam pelos territórios da fronteira assim descritos neste texto, desprendidos da noção de nacionalidade. Contudo, esta fora uma das justificativas para se legitimar a necessidade de uma construção nacional por parte das autoridades brasileiras, nesta, os militares. Todavia, cabe ressaltar que determinados oficiais não criaram de maneira mais ostensiva, algo que podemos chamar de identidade nacional, já que os membros da Colônia militar em questão, não conseguiram cumprir efetivamente o papel de sentinela, devido às precariedades enfrentadas pela região inóspita. Pelo contrário, o papel desempenhado pelos mesmos estava mais ligado em defender seus interesses (facilitando a exploração da erva-mate e da madeira caracterizada pelo comércio argentino) e explorando ou expulsando os colonos da região dentro e fora da colônia, como por exemplo, “a não demarcação das terras dos colonos; a não expedição da titulação dos mesmos terrenos; a invasão e extração de madeira, erva-mate e da produção agrícola pertencente aos colonos; a expulsão de colonos como estratégia para obter acesso a terra por militares ou a redistribuição a outras pessoas, não necessariamente a colonos; e a prática do clientelismo e do coronelismo dentro e fora dos limites do território da Colônia Militar” (MYSKIW, 2011:27). Um dos fatores que teria delimitado tais diferenciações remetia ao fato do estrangeiro se utilizar da linguagem hispana e indígena (destaco o guarani) inserindo até mesmo o paraguaio nesta localização. De acordo com Wachowicz (WACHOWICZ, apud GREGORY, 2012: 46) “em duas décadas, a costa paranaense viu-se ocupada por duas dezenas dessas obrages, e povoada por milhares de trabalhadores”, justificando a força produtiva do paraguaio nativo, ou seja, o guarani. Os argentinos que ora destacamos no texto, são empreendedores e capatazes de empresas exploradoras de erva-mate (Obrages) que de acordo com discursos de moradores e viajantes, são tidos como algozes e exploradores, por conta de que era melhor identificá-lo como tal, pelo fato dos conflitos diplomáticos que ora ocorreram com a anexação de Misiones e a Questão de Palmas2, não bem resolvidas em detrimento de culpabilizar o paraguaio, pelo

2

A questão de Palmas foi um litígio territorial entre Brasil e Argentina ocorrida por volta de 1890 e 1895. A

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fato da Guerra da Tríplice Aliança, muito mais resolvida e findada. De acordo com Valdir Gregory (GREGORY, 2012: 54) “Os escravos seriam sempre brasileiros ou paraguaios, mas os capatazes, na sua quase totalidade, seriam argentinos que nutriam contra os mesmos uma manifesta antipatia”. Denuncia, ainda, a prática de abusos contra a honra e a intimidade de mulheres e filhas dos trabalhadores. Desta maneira, por meio destes discursos e pelas narrativas aqui elencadas neste texto, reforço a ideia de que sentimentos ambivalentes tenham se destacado entre brasileiros e argentinos nestes espaços, e que são, ao mesmo tempo, importantes para a construção e consolidação da personificação dos sujeitos (brasileiros moradores de Foz do Iguaçu) e que de alguma maneira forjaram a relação entre estas nacionalidades, destacando-se, por exemplo, a constituição do turismo nascente, algumas décadas adiante do período ervateiro e madeireiro. Os conflitos agrários que ora ocorreram pela posse e apoderamento da terra, resultaram numa confluência de idiomas e costumes, conceitos e pré-conceitos entre duas identidades (ou mais) postos numa região de fronteira. “Estes (sujeitos) se condensaram na teia de relações que foi a fronteira ora pronunciada, demonstrando e criando, em certo modo, várias características mescladas e sentimentos diversos, sejam eles de amizade ou inimizade, felicidade ou tristeza, gratidão ou indignação.” (MARTINS, 2009: 134) de maneira que tais conflitos, encadearam uma construção de personalidades, que se fizeram numa região de fronteira caracterizada por tais conflitos. 2. A região de Foz do Iguaçu no final do século XIX e início do século XX – Alguns pressupostos históricos

A formação do município esteve ligada diretamente à implantação do estabelecimento de uma Colônia Militar3. O que se sabe é que por volta dos anos de 1888 e 1889 o recém-

Argentina reivindicava parte do território das atuais regiões do oeste do Paraná e de Santa Catarina. O conflito diplomático foi resolvido sob o arbítrio de Grover Cleveland, presidente norte-americano que concedeu a região disputada ao Brasil, reivindicada pelo Barão de Rio Branco, então advogado e diplomata do Brasil a partir de 1893. Rio Branco apresentou ao presidente uma documentação composta por seis volumes: A questão de limites do Brasil e da República Argentina (1894). In: ARAÚJO FILHO, José Tadeu Campos. Uma análise Geopolítica da Questão de Palmas. Palmas: Kayngangue, 2009. 3 A Colônia militar se estabeleceu no ano de 1888 na tentativa de demarcar territórios. É importante ressaltar que a mesma tentou cumprir o papel de “nacionalizar” fronteiras, o que com a região Oeste não foi diferente, principalmente no que diz respeito aos conflitos vivenciados junto ao Paraguai na guerra da Tríplice Aliança e, ademais, juntamente à Argentina, pelo fato da mesma dominar economicamente a bacia fluvial do Paraná, através da exploração madeireira e ervateira. (Grifo meu).

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criado governo republicano tinha um projeto de demarcação e controle das fronteiras e por isso enviou uma comissão para que um destacamento militar fosse incorporado à região, localizado no oeste paranaense. De acordo com Gregory (GREGORY, 2012: 50) “As narrativas têm como pano de fundo a necessidade da construção da nacionalidade brasileira. Iniciativas neste sentido e a concretização de um posto militar avançado eram justificativas pelo ambiente gerado após os conflitos da Tríplice Aliança contra o Paraguai na segunda metade do século XIX. Os sucessos na guerra motivaram a presença física e ideológica na tríplice fronteira”. Porém, muitas foram as privações enfrentadas pelos militares. A falta de estrutura, comunicação e acessibilidade, obrigaram os mesmos a criarem novas condições de sobrevivência, entre elas, trocas comerciais e negociações com colonos que viviam na região, criando uma oportunidade de comercialização de erva-mate e madeira com o mercado argentino, desviando-se aos poucos da proposta inicial de salvaguardar as fronteiras, e explorando estes colonos através da documentação e demarcação de territórios, conforme assinala Myskiw (2011) “os diretores da Colônia militar contribuíram ainda mais para o acirramento dos conflitos agrários na medida em que deixaram de realizar a demarcação dos terrenos concedidos aos colonos e de não expedir os documentos provisórios e definitivos das terras aos colonos” 4. Desta maneira, com os conflitos e os problemas agravados com a documentação e legalização de terras, sustentado pela Lei de Terras de 18505, configurou-se o que seria o início da povoação do que mais tarde seria a localidade de Foz do Iguaçu, atrelada à exploração dos recursos naturais incipientes. De acordo com José de Souza Martins (2009) “a figura central e sociologicamente reveladora da realidade social da fronteira e de sua importância histórica não é o pioneiro. A figura central e metodologicamente explicativa é a vítima” 6 posto que os colonos, nesta questão, fazem o papel de expropriados da terra, pois é este o sujeito que se destaca diante da situação de opressão enfrentada pelos então comandantes da Colônia. Ainda referenciando Martins (2009) “o aparentemente novo da fronteira é, na verdade, expressão de uma complicada combinação de tempos históricos em processos sociais que recriam formas arcaicas de dominação e formas arcaicas de reprodução

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In: MYSKIW, Antonio M. A fronteira como destino de viagem: A colônias militar de Foz do Iguaçu (1888-1907). Guarapuava: Unicentro, 2011. 5 Regime fundiário que substituiu a divisão territorial por sesmarias no Brasil. O que se percebe é que mesmo durante o período republicano (no período da erva-mate e da madeira) os conflitos de terra ainda possuem reminiscências arcaicas e monárquicas que retomam através das práticas e dos discursos, a divisão sesmarial. (Grifo meu). 6 In: MARTINS, José de Souza. Fronteira. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2009. p.10.

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ampliada do capital, como escravidão, bases da violência que a caracteriza” 7, em outras palavras, como já fora acrescentado na Lei de Terras, as relações de trabalho (poder e força diria) estavam ligadas a uma política de exploração e sujeição. Além disso, pode-se dizer que o contato com comerciantes vindos da Argentina (das cidades de Posadas e Corrientes) alteraram, também, as relações entre os colonos e sua relação com o trabalho na terra, pois os “negociantes de Posadas e Corrientes passaram a interferir direta e indiretamente no projeto colonial, a ponto dos colonos enxergarem no mercado ervateiro e madeireiro uma oportunidade maior de renda, culminando no abandono do trabalho agrícola e pastoril para sobreviver da extração de erva-mate e madeira” (MYSKIW, 2011) o que caracterizou um novo cenário na região e que foi balizado pela nova atividade econômica. De certo modo “essa expansão territorial traz para a própria fronteira a infraestrutura da reprodução capitalista do capital: o mercado de produtos e de força de trabalho e com ele as instituições que regulam o princípio da contratualidade das relações sociais, que é o que caracteriza a sociedade moderna. O mercado que constitui na mediação essencial que dá sentido ao processo de ocupação do território” 8. O que iremos observar a partir disso será uma região com extrema conexão com o mercado platino ao ponto da mesma desenvolver uma cultura e característica próprias, marcadamente nas relações cotidianas, propiciadas pelo mercado ervateiro e madeireiro. As relações com este mercado acabam por impregnar nestes habitantes uma ligação com os costumes dos comerciantes argentinos que hora estavam se configurando.

3. Situando o argentino na região de fronteira

Como já vimos, desde o fim do século XIX, os argentinos sempre estiveram no imaginário e no cotidiano da fronteira nas cercanias de Foz do Iguaçu e da região do Oeste paranaense. Neste recorte, como também vimos que os mesmos iniciaram este contato econômico ligado à extração da erva-mate e da madeira. Foi talvez, por muito tempo, a única atividade econômica desta localidade. Na medida em que foram se vinculando a esta exploração, acreditamos que estes platinos foram intensificando raízes culturais interessantes, criando vínculos sociais que foram além das questões mercantilistas. Assim, tento imaginar

7 8

Ibidem, p. 12 e 13. Ibidem p. 157.

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como esta ligação se consolidou, de modo a perceber esta receptividade na construção do que podem ter sido os “valores” sócio-culturais na região de Foz do Iguaçu, importantes para impregnar a ideia de identidade.

Sua personificação não se dá apenas pelo fato

da ideia que se construiu em torno dele, mas das relações que se estabelecem numa região de fronteira como a que a cidade de Foz do Iguaçu está inserida no contexto de tensões e de aproximações, de conflitos, entre outros e que de algum modo, isto serviu para forjar sua característica. Esta relação que a primeira vista (era econômica e em certa medida de exploração) ao passo que pode também ter estabelecido sentimentos dúbios, uma espécie de gratidão e cordialidade e sentimentos de aversão entre iguaçuenses e argentinos nos primórdios do turismo da região da tríplice fronteira, e que se estendeu algumas décadas após a instalação da Colônia Militar. Para fundamentar esta hipótese continuaremos a utilizar as pesquisas de Antônio Marcos Myskiw já mencionado anteriormente e acrescentaremos as memórias de Otília Schimmelpfeng9, pioneira de Foz do Iguaçu.

4. A Fronteira humana: Argentinos x iguaçuenses no contexto Pós-Colônia Militar

Como já foi descrito, a relação entre brasileiros e argentinos (economicamente) tornase legitimada através da instalação da Colônia Militar em fins de 1889 que estava localizada próxima à foz do rio Iguaçu. O distanciamento da região, a falta de comunicação com o então governo central (A República recém-concebida) fizera com que estes militares se voltassem para os mercados argentinos, uma forma de escapar da fome e ver uma proposta de negócio, desarticulando o próprio ofício (o de sentinelas da fronteira) como assinala Myskiw (2011) “o isolamento e a distância do núcleo urbano brasileiro mais próximo (Guarapuava) levaram militares e colonos a se aproximar e a depender dos negociantes argentinos para sobreviver [...] para comerciantes e negociantes argentinos, a instalação de uma Colônia Militar junto ao rio Paraná era sinônimo de lucros, de oportunidades diversas de comércio e contrabando”. Tal relação pode ter criado uma homogeneização no mercado local, pois a soberania nacional 9

SCHIMMELPFENG, Otília. Retrospectos iguaçuenses: Narrativas históricas de Foz do Iguaçu. Foz do

Iguaçu: Tezza, 1991.

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esboçada pelos militares estava restrita ao destacamento, ou seja, não se traduzia aos demais sujeitos (colonos e estrangeiros) que se inter-relacionavam. Em outras palavras, o sentimento de estado-nação não se desenvolveu num primeiro momento pelas quais, julgo as seguintes justificativas: Primeira: A distância do governo central com a região pode não ter desenvolvido este desejo de unidade e também pela precariedade de informações. Segunda: O governo central presidido pelos militares estava mais preocupado com a demarcação e definição de fronteiras, não com uma identificação nacionalista, pois tal sentimento circundava apenas entre a ala militar daquele período cuja participação popular era nula. Terceira: O relacionamento comercial entre os militares com os estrangeiros (inclusive os argentinos) pode ter desenvolvido uma identidade única na região, pautada no comércio da erva-mate e na extração da madeira por meio da exploração dos colonos da região, segundo Myskiw (2011) “centenas de pessoas de diferentes nacionalidades habitavam e exploravam as matas e rios. Na tentativa de limitar e controlar a ação exploratória naquela porção do território brasileiro, os militares resolveram matricular como colonos muitos dos antigos habitantes brasileiros e estrangeiros”. As relações conflituosas com os argentinos na fronteira, antes descrita, também podem ser traduzidas nas memórias dos pioneiros, como foi o caso de Otília Schimmelpfeng que retrata em suas “lembranças”, cenas do período que procede à Colônia Militar onde se desenvolveu as primeiras embarcações de pessoas via fluvial (passagem de pessoas pelo rio Iguaçu) demonstrando sentimentos contraditórios, ora de críticas em relação ao “imperialismo” madeireiro e ervateiro (se podemos conceituá-lo desta maneira), ora de admiração pelo fato dos mesmos terem trazido desenvolvimento à região. Segundo estudos de Colodel (1988) “a Colônia militar de Foz do Iguaçu passou por muitas dificuldades em épocas distintas, que culminaram num lento crescimento urbano e rural” 10, ou seja, não houve o que podemos chamar de “franco desenvolvimento”, mas que o comércio da madeira e da erva-mate resumia-se propriamente às trocas comerciais e que foram importantes para o desenvolvimento do turismo incipiente. Encontramos uma citação da própria Otília (1991) duas passagens em que a mesma tece em seu imaginário, duas situações muito interessantes: A primeira, demonstrando um sentimento de submissão e encarceramento por depender do mercado estrangeiro, evidenciando descontentamento, pois a fonte (Schimmelpfeng, 1991) não quer perder sua 10

In: COLODEL, José A. Obrages e Companhias colonizadoras: Santa Helena na história do Oeste paranaense até 1960. Santa Helena: Prefeitura municipal, 1988.

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identidade enquanto brasileira. E a segunda referência, mesmo que a autora tenha colocado a imposição do comércio platino, concorda que a navegação do país vizinho foi importante para que houvesse desenvolvimento para aqueles que habitavam a região da então Foz do Iguaçu: [...] Conservando sua dignidade nacional, Foz do Iguaçu viveu sob a dependência do mercado argentino [...] apagaram-se as raias da fronteira numa mistura de língua, usos e costumes, criando um ambiente tão diverso de nação brasileira que até o “mil réis” se converteu em “peso”, nas operações comerciais [...] (SCHIMMELPFENG, 1991, p. 60.) [...] Assim veio a Argentina assenhorear-se da navegação do trecho Posadas-Pôrto Mendes trazendo, sem dúvida, benefícios à região, pois oferecia o meio de acesso às povoações que se iam formando [...] (SCHIMMELPFENG,1991, p. 60.)

Otília Schimmelpfeng não deixa claro em sua obra o período em questão, todavia, ao mencionar as moedas em circulação da época, acredito que pode ter sido entre as décadas de 1910 e o final de 1930 já que o cruzeiro foi implantado pelo governo Vargas em 1942 11. Também percebi nas palavras de Otília, certa gratidão “dependente” e, quiçá, sua manifestação pode dar uma ideia de como foi decisiva para a construção do mito do argentino na fronteira e que, pode ter servido de base, para entender o conceito do próprio “argentino” que possuímos (nós enquanto iguaçuenses) e que construímos hoje no presente. De acordo com Pollak12 (1989) “uma memória também ao definir o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforçam os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais”, em outras palavras, as experiências vivenciadas e recordadas por pioneiros como Otília Schimmelpfeng, por exemplo, mostra o que de fato foram os sentimentos de pertencimento dado às suas recordações, quando posicionadas em relação aos comentários direcionados aos argentinos e os momentos em que se fazem comentários em relação ao comércio e sua identidade por exemplo.

As afirmações de Otília também demonstram

resistência. Atualmente, a relação com que o iguaçuense possui com o argentino (de Puerto Iguazú) na fronteira baseia-se no turismo de lazer e no circuito gastronômico. Porém, em minhas pesquisas, o vínculo antecede um período anterior. Sustentando esta ideia, no texto de Otília também, encontram-se referências em suas memórias de passeios a bordo dos vapores que entre cruzavam os rios Paraná e Iguaçu e de como era bom passar o dia em tais embarcações e como os moradores de Foz do Iguaçu daquele contexto, buscavam encontrar um padrão social-cultural. Nas palavras de Otília, 11

FABER, Marcos. História do dinheiro no Brasil. In: www.historialivre.com Acesso: 01 de junho de 2014 às 10h30min. 12 POLLAK, M. Memória, Esquecimento e Silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, vol.02. N. 03. p. 3-15.

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[...] As senhoras e senhoritas gostavam de comprar revistas argentinas de farta matéria! [...] pela manhã era apreciado o “desayuno” servido a bordo; um bife à cavalo acompanhado de batatinha frita e aquele copo de vinho[...] (SCHIMMELPFENG, 1991, p. 62). [...] Na capital argentina a estada se prolongava, com feição turísticas... A brasileira, que sabia ser “raffinée” tinha de fazer as compras da temporada, para uma apresentação condigna no meio social de sua terra [...] (SCHIMMELPFENG, 1991, p. 65).

Em tese, reafirmo a ideia da tentativa de se forjar padrões sociais, uma vez que a cidade de Foz do Iguaçu estendia seu olhar para a foz de seus rios e não para o Estado, dada às precariedades enfrentadas no período já mencionadas (a falta de estradas que ligavam a região oeste com as demais localidades, gerando a incomunicabilidade) o que fez com que os moradores se moverem para o mercado platino, fixando e criando tais padrões. Além do mais, também não descarto, todavia, a ideia do descontentamento em relação a esta dependência ao mercado estrangeiro, motivado por um sentimento dúbio (também de aversão) o qual havíamos mencionado anteriormente. E é neste cenário que podemos tentar responder a pergunta: Quem é este argentino? De modo que os resultados podem ser os seguintes: Um sujeito que se inseriu na região, primeiramente pelo viés da exploração econômica mantendo contatos com os militares da Colônia Militar e que mais tarde iriam criar padrões comportamentais (a exemplo da língua, dos costumes, da culinária e da moeda) em períodos em que poucas eram as referências e que, em certo modo, isto também foi decisivo para a criação do que mais tarde viria a ser o início do turismo na região da tríplice fronteira (já elencado) aliando-se aos recursos naturais existentes na região, como o caso das Cataratas do Iguaçu. 5. O conceito de Fronteira forjado na realidade da fronteira Brasil-Argentina no contexto pós-ervateiro/madeireiro

Mediante os estudos realizados, vimos que a relação entre os comerciantes argentinos e os moradores de Foz do Iguaçu (colonos em sua maioria) daquele contexto, foi de certa maneira, uma relação mercantilista, já que num primeiro momento, houve a necessidade por parte da Colônia Militar, outrora mencionada, de realizar tramites comerciais pela inexistência de uma política de apoio por parte do governo central daquele período e que se perpetuou nos anos que se seguiram. Além disso, forjou-se a ideia de dubiedade em relação a este mercado, como já fora colocado, no conflito de sentimentos ora de agradecimento, ora de

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frustração pela dependência demarcada, já que os habitantes tinham pouca ligação com o Estado de modo geral, devida a precariedade das estradas que se comunicavam a outras regiões, como por exemplo, a cidade de Guarapuava13, núcleo urbano mais próximo do extremo Oeste Paranaense. Em certo modo, não se pode esquecer que tais características, devidamente marcadas, são caracterizadas por fronteiras, pois que “é na fronteira que se pode observar melhor como as sociedades se formam se desorganizam e se reproduzem” 14 que vão além propriamente do conceito geográfico baseado no limite e que foi separada pelo Rio Iguaçu15. Mas o que ocorreu pontualmente é que os ajustes e desajustes entre brasileiros e argentinos das primeiras décadas do século XX, foi que as fronteiras também foram ideológicas e conflituosas. De acordo com os estudos de José de Souza Martins (2009) “a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade” 16, pois que neste espaço se estabelece uma correlação de forças, onde cada sujeito forja-se a partir do outro, partir da ligação que os mesmos estabelecem com o mercado ervateiro e madeireiro. Talvez esta concepção nos ajude a compreender o lamento de Otília ao se referir às embarcações argentinas como “assenhorear-se da navegação”. Martins (2009) ainda afirma que “a fronteira é, na verdade, ponto limite de territórios que se redefinem continuamente, disputados de diferentes grupos humanos” 17, em outras palavras, posto que a fronteira seja humana, “a fronteira aparece frequentemente como o limite do humano. A fronteira é a fronteira da humanidade”

18

entrelaçada e travada entre os sujeitos que a disputam que vão além das raias físicas, demarcando também, uma fronteira de valores morais e culturais, ou seja, “a fronteira é, no fundo, exatamente o contrário do que proclama o seu imaginário e o imaginário do poder que muito frequentemente se infiltra o pensamento acadêmico”

, o que também pode ser

19

evidenciado quando Otília, novamente, pode ter experimentado quando relembra a embarcação e imagina a cena do desayuno (café da manhã) servido a bordo e os determinados

13

Como já colocado no texto, apoiados inclusive por Myskiw (2011), havia primeiramente picadas que interligavam a região de Foz do Iguaçu até a cidade de Guarapuava. Somente em março de 1969 a rodovia BR277 seria inaugurada. In: HABITZHEUER, Rubens Roberto. A Conquista Da Serra Do Mar. Curitiba: Biblioteca Pública Do Paraná, 2000.

14

In: MARTINS, José de Souza. Fronteira. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2009. P.10. O rio Iguaçu divide a fronteira física entre Brasil e Argentina. 16 Ibidem, p. 133. 17 Ibidem p. 10. 18 Ibidem p. 141. 19 Ibidem p. 14. 15

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valores que representam tanto na “brasilidade” que a mesma também coloca, como a gastronomia “argentina” singularmente descrita.

6. Considerações finais

Para finalizar, percebemos que as inter-relações em que a fronteira Brasil e Argentina (Atualmente Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú juridicamente), ou melhor, fronteiras de identidades e nacionalidades, ocorreram através do comércio ervateiro e madeireiro no contexto do final do século XIX e início do século XX, por meio de relações de conflito e submissão. A opressão pode ser considerada a partir do momento em que houve a existência de trabalhadores, por meio de contratos irregulares e condições insalubres de trabalho (destacamos os mensus e o trabalho nas empresas obrageras nesta localização) dando origem a uma série de relações das mais diversas, que consequentemente, favoreceu o fortalecimento do que hoje podemos chamar de identidades na fronteira no extremo oeste do Paraná. Através das mesmas, cria-se um cenário único, fomentando mais tarde em relações comerciais, onde se desenhou uma série de diálogos na fronteira, onde iguaçuenses, por falta de comunicação com o governo central, dada as precariedades diversas qual destacadas neste texto, mantiveram um maior contato com o mercado argentino, de modo a manter sua permanência e sobrevivência. Esta dependência pôde criar elementos singulares no cotidiano social destes iguaçuenses, onde de acordo com as narrativas de alguns dos pioneiros (a exemplo de dona Otília Schimmelpfeng) o mercado local se converte em moeda única, neste caso o peso, que dominou os tramites comerciais por algum tempo, dando uma noção de homogeneidade, criando uma ideia de uma só identidade. O que percebemos com estas memórias são formas de negociações dentro de espaços na fronteira, e neste caso, as fronteiras se deram através dos sujeitos em determinadas correlações, indo além dos limites propriamente materiais. Tais fatores criaram o que hoje entendemos como turismo na tríplice fronteira, no qual, juntamente com os recursos naturais existentes na região (Cataratas, por exemplo) conjecturaram-se numa busca de referenciais, seja nas vestimentas, nos passeios ou na gastronomia (também recordada por Otília) e que tinha as regiões fluviais como corredores destes valores culturais, tecendo as identidades entre os referidos sujeitos. E mesmo que através de experiências dolorosas outrora mencionadas, em que se ocasionaram a exploração do trabalho, como as violências cometidas, podemos afirmar que as

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mesmas foram decisivas para a construção de elementos fundamentais das formas em que se encadearam e estabeleceram e que de algum modo analisadas a partir das relações entre sujeitos, marcado tanto por aproximações como conflitos, pois que, onde estes se condensaram na teia de relações que foi a fronteira ora pronunciada, demonstrando e criando, em certo modo, várias características mescladas e sentimentos diversos, sejam eles de amizade ou inimizade, felicidade ou tristeza, gratidão ou indignação. Esperamos que o simples texto aqui apresentado possa de alguma maneira contribuir para que o estudo da fronteira Brasil e Argentina, no sentido de ajudar a compreender de uma maneira mais humana, as relações entre estas duas identidades.

Referências bibliográficas

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MARTINS, José de Souza. Fronteira. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2009.

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POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, vol.02. N. 03. P. 3-15. SCHIMMELPFENG, Otília. Retrospectos iguaçuenses: Narrativas históricas de Foz do Iguaçu. Foz do Iguaçu: Tezza, 1991.

WACHOWICZ, Ruy Christovam. Obrageros, mensus e colonos: História do Oeste paranaense. Curitiba: Vicentina, 1987.

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EDUCAÇÃO PARA REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES: 21 ANOS DE PRÉVESTIBULAR PARA NEGROS E CARENTES (PVNC) Diogo da Silva Nascimento1 Vanessa Silveira de Brito2

Resumo: O presente artigo trata-se de pesquisa de mestrado em andamento sob orientação da Profª. Drª. Maria Alice Resende Gonçalves, que tem como objetivo investigar se houve mobilidade social dos egressos do Pré-Vestibular para Negros e Carentes.O Pré Vestibular para Negros e Carentes se apresenta como um movimento que surge na baixada fluminense, em 1993, em função do descontentamento dos educadores com as dificuldades de acesso dos estudantes de grupos populares e excluídos ao ensino superior. O foco do referido projeto é o direito à educação, mais especificamente, o acesso ao ensino superior. É nesta perspectiva que o PVNC desenvolve suas ações buscando a diminuição das desigualdades sociais e raciais, considerando que seu público-alvo (negros e/ou pobres), historicamente, teriam mais dificuldades de acesso ao ensino superior. Os sujeitos entrevistados afirmaram a importância do PVNC em sua trajetória, apontando a participação no projeto como um “divisor de águas”: uma vivência que possibilitou não apenas mobilidade social e cultural, mas uma nova visão de mundo.A partir disso, podemos concluir que iniciativas como a do PVNC são fundamentais, pois contribuem, de fato, para a redução das desigualdades e para a construção de um mundo mais justo para negros e brancos. 1. O Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) O PVNC se apresenta como um movimento que teve por influências mais diretas as experiências que surgiram no Rio de Janeiro e na Bahia. No Rio de Janeiro, em 1986, foi criado o curso Pré-Vestibular da Associação dos Funcionários da UFRJ (ASSURFRJ, atual SINTUFRJ), importante experiência destinada a preparar trabalhadores para o vestibular. Em 1992, surgiu o curso Mangueira Vestibulares, um curso comunitário, destinado aos estudantes da comunidade do morro da Mangueira. Na capital da Bahia, em 1992, foi organizado um curso pré-vestibular através da cooperativa Stive Biko, com objetivo de apoiar e articular a juventude negra da periferia de Salvador, colaborando para a entrada de jovens na universidade. Esta, de certa forma, foi a experiência mais estimulante para a organização do Pré-Vestibular para Negros e Carentes, em 1993. 1

Formado em Educação Física. Atuou como Professor de Educação Física na Vila Olímpica da Maré. Atualmente, é pós-graduando no curso de mestrado em Educação, Cultura e Comunicação na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 2 Formada em Psicologia. Atuou como coordenadora de um dos núcleos do Pré-Vestibular para Negros e Carentes. Atualmente, é pós-graduanda no curso de mestrado em Educação, Cultura e Comunicação na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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Estas experiências incentivaram discussões e articulações para a organização do primeiro pré-vestibular para negros na baixada fluminense, tendo como objetivo a capacitação de estudantes para o exame vestibular nas universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A proposta inicial na baixada fluminense baseou-se em duas constatações: a péssima qualidade do ensino médio nas escolas públicas e privadas da baixada fluminense, o que reduz drasticamente as possibilidades de acesso do estudante ao ensino superior; a verificação do baixo percentual de estudantes negros nas universidades (Candau, 2002). Neste contexto, o PVNC surge na baixada fluminense, em 1993, em função do descontentamento dos educadores com as dificuldades de acesso dos estudantes de grupos populares e excluídos ao ensino superior. E visando a articulação de setores discriminados da sociedade para uma luta mais ampla pela democratização da educação e contra a discriminação racial. A ideia da organização de um curso pré-vestibular para estudantes negros nasceu a partir de debates entre pessoas ligadas ao movimento negro, principalmente de pastorais negras. No entanto, através de um gradativo aumento do número de núcleos, podemos dizer que, atualmente, ele se constitui por uma grande quantidade de pessoas vinculadas a outras organizações sociais: sindicatos, movimentos estudantis, igrejas, partidos políticos, dentre outros. Contudo, apesar desta diversidade, nenhum destes grupos é a mola de sustentação do PVNC, considerando que este possui uma dinâmica de organização própria e uma carta de princípios. As aspirações de se construir um movimento por parte das pessoas envolvidas, nesses dois anos iniciais, fizeram a diferença em comparação a outras experiências de prévestibulares comunitários que existiam até aquele momento. Havia uma preocupação, que ainda persiste, do movimento ter uma identidade própria e ser independente em suas ações. Tendo isso em vista, iniciaram a elaboração de uma carta de princípios. Os princípios que norteiam o movimento constituem a Carta de Princípios (1999), documento que se constituiu numa espécie de diretriz sobre as questões pedagógicas, políticas e de organização interna do PVNC. Para melhor compreensão deste projeto, destacamos três características: 1) a proposta de transformação social, referente à desigualdade, através de participação e integração no coletivo, objetivando a mudança da lógica imposta pelo capitalismo; 2) ênfase na questão racial como elemento da desigualdade; 3) estrutura baseada 123

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no trabalho voluntário, ideológico, não assistencialista. Uma característica que nos chama a atenção na prática pedagógica do PVNC é a introdução da disciplina Cultura e Cidadania, que tem como objetivo promover o debate acerca das diferenças culturais e das desigualdades sociais e raciais, a fim de despertar a consciência do aluno para a problemática social. Vale ressaltar que as aulas de Cultura e Cidadania são complementares e obrigatórias, já que na compreensão do Pré Vestibular para Negros e Carentes, tais aulas se constituem a aplicação prática dos princípios do movimento. O PVNC pode ser considerado uma ação afirmativa, à medida que se trata de um projeto que visa à redução da desigualdade de grupos socialmente discriminados em função de pertencimento sociocultural, racial/étnico e que, em decorrência disso, vivenciem situação desfavorável em relação a outros segmentos. O foco deste projeto é o direito à educação, mais especificamente, o acesso ao ensino superior. É nesta perspectiva que o PVNC desenvolve suas ações buscando a diminuição das desigualdades sociais e raciais. Considerando que seu público-alvo (negros e/ou pobres), historicamente, teriam mais dificuldades de acesso ao ensino superior, outro ponto que merece atenção se refere à reivindicação de direitos relacionados às políticas voltadas para o ensino superior. Vale ressaltar que a opção do PVNC de se autodenominar como “negro e carente” tem como finalidade dar visibilidade a uma minoria excluída não apenas pela classe social, mas principalmente pela raça, organizando uma ação relacionada ao movimento negro, uma vez que compreende o racismo também como fator de exclusão.

2. Educação e Mobilidade Social Para Ricardo Henriques (2002), as oportunidades educacionais contribuem de maneira decisiva, para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Assim, avançar no sistema educacional interfere diretamente nas possibilidades de integração do indivíduo na sociedade e na sua capacidade de mobilidade ou ascensão social. Nesta perspectiva, a educação é considerada um elemento fundamental, tendo em vista que pode transformar, de forma significativa, a situação desigual na qual se encontram os

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indivíduos de diferentes raças. No entanto, falar sobre a educação significa falar também sobre política educacional. E, como sabemos, a política educacional está extremamente vinculada às necessidades políticas e econômicas. Considerando essa relação, faremos um breve histórico para uma melhor compreensão da política educacional e suas consequências para a redução (ou não) das desigualdades. A partir de 1964, foi instaurado o modelo concentrador de renda que beneficiava apenas a classe dominante, tendo em vista que apenas as classes mais favorecidas teriam condições de ajudar a manter o processo de modernização, devido as suas possibilidades de consumo. De acordo com Romanelli (1984), a educação ainda não era considerada um fator para o desenvolvimento. No entanto, o governo constatou que seria necessário adequar o sistema educacional ao desenvolvimento econômico. Na primeira fase deste processo de mudanças houve um aumento da demanda para a educação e, concomitantemente, uma expansão do ensino. Este último não deu conta da crescente oferta, gerando os chamados “excedentes” da educação. Podemos pensar que, mais tarde, esses excedentes seriam os excluídos não apenas do sistema educacional, mas da nova ordem econômica capitalista. A segunda fase ficou marcada pela ênfase na educação como área prioritária do Plano Nacional de Desenvolvimento, destacando a ajuda internacional para a realização das reformas educacionais. É importante ressaltar que tal ajuda privilegia as classes dominantes. Isto porque prioriza o ensino superior, tornando o acesso ao referido ensino cada vez mais restrito e, desta forma, redefinindo a estrutura social. Neste sentido, pode-se afirmar que a ajuda internacional veio apenas promover mudanças quantitativas no sistema educacional, tendo a função de consolidar a ordem existente: “favorecendo a expansão da oferta do ensino sem, contudo, favorecer a real mobilidade social que seria de se esperar” (Romanelli, 1984: 204). O processo econômico de concentração de capital, com a inviabilização dos pequenos negócios ao alcance da classe média resultou numa demanda para o ensino superior visto, então, como instrumento de ascensão social. O numero de excedentes do ensino superior continuava aumentando, gerando grande insatisfação, principalmente do movimento estudantil.

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Vale ressaltar que a política contra o avanço da esquerda e organização dos trabalhadores teve como objetivo conter a demanda para o ensino superior, pois, se houvesse mais formandos, o mercado de trabalho não teria condições de absorver esta mão de obra qualificada. Segundo Luiz Antônio Cunha (1989), a política educacional dos anos 70, com a reforma universitária e a reforma do ensino médio, gerou uma elevação dos requisitos educacionais para o preenchimento dos cargos e diminuição dos salários, além de viabilizar uma maior intervenção do Estado no mercado de trabalho. Assim, a educação serve de instrumento para a ascensão social, porém, como está inserida no sistema capitalista, o seu modelo vai atender as demandas da política neoliberal. A lógica que rege a educação é a mesma que rege o mercado. A partir dos anos 80, a educação passou a receber assistência técnica e financeira do Banco Mundial (que influencia as políticas educacionais a serem adotadas nos países em desenvolvimento financiados por ele). Tais políticas visam atingir a redução da pobreza a partir do investimento em educação. Em relação a isso, Gaudêncio Frigotto (1998) afirma que a integração dos países em desenvolvimento ao processo de globalização e reestruturação produtiva depende da educação básica, de formação profissional: “Trata-se de uma educação e formação que desenvolvem habilidades básicas no plano do conhecimento, das atitudes e dos valores, produzindo competências para a gestão da qualidade, para a produtividade e competitividade e, consequentemente, para a “empregabilidade” (p. 45). Assim, a política educacional vigente apresenta como característica a formação de trabalhadores flexíveis, capazes de absorver conhecimentos de acordo com o surgimento de novas tecnologias. Tais medidas políticas teriam a promessa do pleno emprego. No entanto, o atual mercado de trabalho é mais exigente em mão de obra qualificada, apostando na racionalização da atividade produtiva e na automatização que, segundo Frigotto (1998), transforma os atuais trabalhadores em colaboradores passivos. Determinadas categorias profissionais correm risco imediato de se tornarem obsoletas, enquanto outras, que anteriormente estavam adequadas ao perfil socioeconômico e cultural, tendem a tornar-se cada vez mais vulneráveis. Então, qual o sentido da ideia de educação e formação para a empregabilidade num contexto de crescimento econômico sem aumento do nível de emprego? Com o advento das novas tecnologias e das novas formas de organização do trabalho, 126

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tem-se obtido alta produtividade sem que haja equivalência de empregabilidade – capacidade de obter lugar permanente no mercado de trabalho. O trabalho denota uma capacidade produtiva no homem e opera uma transformação imediata da realidade do próprio homem e da história possibilitando, assim, o pertencimento e a organização social. Quanto mais o sujeito se relaciona com o processo produtivo, mais se reconhece na condição de sujeito social. A questão que se coloca então é como o sujeito se situa no social, tendo em vista o conceito de empregabilidade e suas consequências para a vida do trabalhador, como a demanda de flexibilidade e, principalmente, o desafio da convivência permanente com a imprevisibilidade. Para Luiz Antônio Cunha (1989) as características do sistema de ensino aliadas as novas complexidades do mercado de trabalho representam fatores determinantes na reprodução do ciclo vicioso da pobreza e da exclusão social. O autor considera que o nível de instrução é uma variável cada vez mais influente na situação de pobreza dos indivíduos e, em decorrência disso, interfere diretamente na possibilidade de mobilidade social. A falta de condições mínimas para o exercício do direito a educação tem implicações ao nível da exclusão social, uma vez que vai repercutir em múltiplos aspectos das condições de vida dos indivíduos e das famílias, nomeadamente, na estabilidade do trabalho, no sucesso escolar, na participação e inserção social. Assim, a perspectiva seria priorizar o exercício da cidadania como incorporação dos excluídos ao patamar de direitos já conquistados como possibilidade de redefinição do sentido de ser cidadão. O resgate da cidadania torna-se mais difícil quando se trata de população de jovens, por constituírem o principal alvo dos apelos da sociedade de consumo, caindo facilmente em comportamentos marginais quando não conseguem encontrar um trabalho estável e bem remunerado. Tais comportamentos são, simultaneamente, a consequência e o efeito perverso de um processo de marginalização que se inicia bem cedo com o abandono precoce do sistema educativo e que, mais tarde, continua a produzir os seus efeitos com a exclusão do mercado de trabalho formal. Infelizmente, o sistema de ensino tem-se revelado pouco eficaz na tarefa de interessar as crianças e aos jovens oriundos dos meios mais desfavorecidos economicamente. Podemos pensar na dificuldade da escola em promover uma educação multicultural, capaz de acolher a

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diversidade cultural existente na nossa sociedade. Além disso, segundo Ricardo Henriques (2002), o estudo das condições de acesso e permanência na escola pode nos fornecer elementos importantes para a análise da magnitude da desigualdade educacional entre as raças. Em nosso estudo, no que diz respeito aos obstáculos percebidos para a permanência no ensino superior, os entrevistados relatam como principais dificuldades a distância (o deslocamento de sua residência até a universidade) e as dificuldades financeiras: A distância é um dificultador. A falta de dinheiro... o horário que a gente estudava era muito louco, não era um horário adequado pra alguém que queira arrumar um trabalho ou alguma ocupação que renda alguma coisa. Então, a distância, o horário das aulas e a falta de grana também, porque você tem que comprar, você tem que comer, você tem que comprar livro, tem que tirar xerox ou fazer qualquer outra coisa. Eu mais tirava xerox do que comprava os livros exigidos. Eu acho que esses eram os dificultadores nessa época. (F., 34 anos). Tinha dificuldades financeiras, é aquilo...comer pão com ovo, tirar xerox depois de um mês, pegar xerox das meninas que fizeram psicologia na frente...(risos) era dureza, mas acabou que deu certo. Eu poderia também ter desistido dali, ter ficado me lamentando. Eu não comprava nada...livro, nada! Eu mal tirava cópia, mal comia...(risos)...mas eu acho que isso daí é a vida de todo mundo. (D., 40 anos).

A percepção das dificuldades financeiras, por exemplo, é percebida quase como algo natural, devido à própria situação econômica das famílias. Aliado a isso, aparece a dificuldade de acompanhar o ritmo de estudos no ambiente universitário. Mais uma vez, uma dificuldade que, bem sabemos, é reflexo de uma educação básica deficitária. Vale ressaltar que todos os entrevistados, ao ingressarem no ensino superior, residiam em municípios da baixada fluminense, região conhecida pela concentração da pobreza e pela dificuldade de transporte, entre outras coisas. Todos os entrevistados, em função do gasto com deslocamento e do próprio desgaste físico, no decorrer da graduação, optaram por residir próximo à universidade, nas chamadas repúblicas.

2.3. O PVNC e a perspectiva de Mobilidade Social Um dos objetivos do presente estudo se refere à investigação acerca da mobilidade social através da educação, em especial, do ingresso dos sujeitos no ensino superior. Sabe-se que existe a desigualdade racial e que esta se faz presente em todas as esferas da vida dos sujeitos, inclusive, no aspecto educacional. Acreditamos também que a educação, apesar de não garantir, pode facilitar a mobilidade social. O Pré-Vestibular para Negros e Carentes trabalha nessa perspectiva de promover o

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acesso da juventude negra das periferias ao ensino superior, apostando na educação como um elemento importante para possibilitar mobilidade e redução das desigualdades. Mas será que o PVNC tem conseguido atingir esse objetivo? O discurso dos entrevistados aponta para as seguintes questões: Acredito que eu fiz coisas que, sem dúvida, eu não teria feito sem o pré-vestibular e consequentemente, sem a graduação. Seguramente, me possibilitou que eu tivesse acesso a coisas que eu não imaginava. Tanto no aspecto financeiro quanto no cultural. (C., 35 anos). Mobilidade cultural com certeza. Não só pelo conhecimento que adquiri na universidade, mas o fato de ter saído da baixada, de circular por outras zonas da cidade que, antes, pra mim, eram desconhecidas totalmente. E ter acesso ou ser estimulada a fazer outras coisas em termos de lazer, de cultura, ir a biblioteca. Então, mobilidade cultural, sim. Mobilidade social, não diria tanto porque, apesar de ter trabalhado na área por um tempo, de ter trabalhado em projetos que não necessariamente o cargo tinha a ver com a minha função, existem outras barreiras sociais que cerceam a mobilidade de pessoas que vem da baixada, de quem é negro. Que não tem muito a ver com o fato de você ser formado ou não. (F., 34 anos).

A entrada na universidade, como já dito anteriormente, remete os indivíduos a uma nova realidade, a novas visões e possibilidades, inclusive, de consumo. Os entrevistados, de maneira geral, apontam para a mudança no consumo, não apenas na quantidade, mas, principalmente, na qualidade do consumo. E esta qualidade está relacionada à capacidade de reflexão sobre o que se está consumindo. O ingresso na universidade deu aos sujeitos a possibilidade de adquirir e/ou desenvolver um senso crítico que permite uma maior reflexão sobre vários aspectos, inclusive sobre a questão do consumo. Para os entrevistados, o conhecimento adquirido e acumulado no pré-vestibular e no ensino superior possibilitou que, atualmente, tenham um consumo mais consciente. Eu consumo mais do que naquela época. Mas também não é nada absurdo ou exagerado, ou algo que eu faça irresponsabilidades com o dinheiro em razão dessa mudança, digamos assim. Como eu não tinha muito dinheiro naquela época, então, naturalmente, que hoje tá um pouco diferente. Mas eu não me considero um consumista. (C., 35 anos). O meu momento agora, a gente tá indo na contramão do consumismo, eu estou um pouco preocupada com essa questão desses valores (...). Eu quero uma educação de qualidade que não significa quantidade. Eu não quero a melhor escola pra minha filha, eu quero uma escola que possa se adaptar a maneira dela de aprender as coisas, é diferente. Eu quero assim, o conhecimento de mundo em termos de cultura. (D., 40 anos).

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Considerações Finais A educação é um viés importante para a redução das desigualdades sociais e raciais. Assim, podemos afirmar que o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), como dito anteriormente, trata-se de uma ação afirmativa que tem como finalidade não apenas facilitar o acesso da população negra e economicamente desfavorecida ao ensino superior, como também empoderar tais minorias para a promoção de uma cidadania plena. Em relação à perspectiva de inclusão, torna-se necessário lembrar que somos confrontados com o aparecimento de novos mecanismos de exclusão e de novas vulnerabilidades sociais, gerando excedentes de mão de obra que se tornam economicamente desnecessários. Assim, vale refletir sobre o que é exigido dos atuais trabalhadores (em termos de flexibilidade) e ter em mente que não podemos atribuir exclusivamente à educação a solução de um problema que, como vimos, é histórico. Ainda assim, iniciativas como a do PVNC são fundamentais, considerando que o projeto surge como oposição à educação tradicional e conservadora, apresentando a proposta de uma educação libertadora, destinada a formação de cidadãos críticos. Em síntese, percebemos a ação pedagógica do referido projeto como ação política, sendo a educação considerada não apenas como um instrumento de ascensão social, mas também, como uma oportunidade do indivíduo tomar consciência da sua posição no mundo e das possibilidades de transformação da sociedade. Seguindo este pensamento, podemos pensar que iniciativas como a do PVNC são fundamentais, pois contribuem, de fato, para a redução das desigualdades e para a construção de um mundo mais justo para negros e brancos.

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RESISTÊNCIA E REPRESSÃO EM SANTA HELENA NO PERÍODO DITATORIAL (1964-1985) Fabiana StahlChaparini1

Resumo: Este trabalho tem por intenção problematizar a resistência e repressão no período da ditadura civil-militar brasileira em Santa Helena no período de 1964-1985. O processo ditatorial é recente (1964-1985), e implica muitas questões sobre memória. Desenvolver uma pesquisa acadêmica sobre ditadura é de extrema importância. Neste ano de 2014 comemoramos os 50 anos do golpe militar, resultando na ditadura civil militar, causando um terrorismo de Estado. A ditadura civil militar se expressou de vários modos na vida dos sujeitos, não apenas dos brasileiros, devido á sua tamanha repressão, na qual tornava os sujeitos agentes do próprio Estado. Muitas vozes têm sido permanentemente silenciadas, muitas delas nunca puderam falar sobre a repressão sofrida durante este processo conflituoso. Para tal pesquisa é importante levar em consideração que grande parte dos moradores relata não ter vivido ou não se lembrarem desse período, poucos são os casos que dizem ter presenciado a ditadura civil militar em Santa Helena.Diante disso, por vezes a memória possui certos significados que são entendidos como coletivos sentidos que são construídos historicamente, no entanto isso não quer dizer que todos os sujeitos que possuem determinada memória diante a um processo histórico o interprete da mesma forma, pelo contrário podem atribuir sentidos diferenciados a esse fato.

Palavras chaves: Resistência, Repressão, Ditadura. Este trabalho traz como proposta discutir a resistência e repressão na cidade de Santa Helena durante o período da ditadura civil-militar que ocorreu entre os anos de 1964 a 1985. Para tal, é importante levar em consideração que grande parte dos moradores relata não ter vivido ou não se lembrarem desse período, poucos são os casos que dizem ter presenciado a ditadura militar em Santa Helena. Desta maneira me propus a pesquisar a repressão e resistência em Santa Helena, pouco mencionada na cidade. Para a realização deste trabalho foi realizada uma pesquisa em alguns documentos, jornais, entrevistas, trabalhos acadêmicos. Desse modo visualizei que se existe repressão é porque existe uma resistência dos sujeitos perante a situação vivida, ou seja, não há como separarmos a resistência da repressão. É importante destacar que o Brasil, atualmente, vive um momento fundamental de recuperação da memória histórica através da criação da 1

Fabiana StahlChaparini, acadêmica do 4° ano em História pela UNIOESTE orientada pela professora Doutora em História Carla Luciana Souza da Silva.

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Comissão Nacional da Verdade2. O Paraná também faz sua parte dessa dinâmica através da constituição da Comissão da Verdade Estadual. Esse trabalho se justifica como uma forma de contribuir para esse movimento histórico. Portanto, este trabalho aborda questões pertinentes á resistência e repressão em Santa Helena, considerando que a memória dos sujeitos, que vivem na cidade, podendo assim problematizar o ocultamento de interpretações/memórias sobre esse período. Esse silêncio/ocultamento ligado a uma história tradicional, que tende a ocultar falas, pois a memória está diretamente em contato com a história. Sendo assim, a partir do esclarecimento e interpretação crítica do historiador perante a memória na qual desempenha um papel de questionamentos e um olhar externo sobre os ocorridos do passado é que se pode analisar criticamente um período da história e observar as suas influências no presente. Para não cair em esquecimento Este trabalho é resultado de uma pesquisa de iniciação cientifica financiada pela CNPQ. Neste sentido, será abordada a experiência da bolsista durante um ano de pesquisa. A ditadura foi um acontecimento recente (1964-1985), e implica muitas questões sobre memória, naturalizando o esquecimento, não dando voz àqueles que lutaram para que o regime mudasse. Muitas vozes têm sido permanentemente silenciadas, muitas delas nunca puderam falar sobre a repressão sofrida durante aqueles difíceis anos. Esta pesquisa foi realizada em três etapas. A primeira etapa consistia em fazer leituras indicadas pela orientadora sobre o período que antecedeu o golpe e o próprio período da ditadura. Encerradas as leituras, fichadas e discutidas, a pesquisa partiu para a segunda etapa que foi a análise dos documentos do DOPS3, na qual foram apenas encontradas duas pastas sobre Santa Helena em torno de 71 documentos relacionados à cidade. Também foi feito uma breve pesquisa nos documentos que estão no site Documentos Revelados de Aluizio Palmar4,muitos destes documentos encontrados nos arquivos do DOPS, além de serem fichadas noticias relacionadas a cidade de Santa Helena e da região das edições da primeira fase do Jornal Nosso Tempo5 editado em Foz do Iguaçu de Juvêncio Mazzarollo. Tal jornal 2

A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. 3Departamento de Ordem Política e Social. Tais pastas do DOPS foram conseguidas pela pesquisadora professora Dra Carla Luciana Souza da Silva e encaminhadas para o Projeto “História e Memória: ditadura e relações sociais”. 4 Espaço de referência histórica com disponibilidade de acervos documentais. http://www.documentosrevelados.com.br/ 5 www.nossotempodigital.com.br

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divulgava noticia sobre o que estava ocorrendo principalmente no oeste paranaense durante a década de 1980 até 1989. Uma edição que merece destaque é a de número 369 de agosto de 1989, na qual o tema do jornal 6era “Itaipu paga dívida social com a região” relatando o problema que Santa Helena havia sofrido em relação à formação do Lago de Itaipu, e que apenas nesse momento Itaipu iria pagar sua dívida social com a população santa-helenense, distribuindo areia para a praia artificial, além da construção de uma ponte, mas o posicionamento do jornal perante esse assunto era que Itaipu havia causado muitos transtornos a população de Santa Helena. O objetivo em relação à análise deste jornal era de encontrar alguma notícia relacionada à Santa Helena, desde conflitos até noticias enaltecendo a cidade, porém encontrar estas notícias não foi fácil, muito pelo contrário, eram poucas edições que mencionavam sobre Santa Helena. Na segunda etapa, foi transcrito um trecho de uma entrevista cedida por Aluizio Palmar realizada pelo Projeto “História e Memória: ditadura e relações sociais’, na qual em determinado momento Aluizio menciona sobre Santa Helena “Nós então, nós então (inaudível) de Niterói fomos ao extremo como que vai enfrentar se nós tivéssemos feito a primeira ação em Santa Helena em dois tempos saberiam que a região seria ocupada militariarmente e nós seriamos localizados não tenho dúvida ou por cima ou por baixo e nossas bases morreriam sei lá, preso, torturado, não sei o que , seria um desastre, (inaudível) estaríamos preparados para o confronto, há mais a gente prepara durante o confronto, pagar pra ver, a guerra é longa e prolongada(inaudível).”7 A partir desse relato percebe-se que Santa Helena, era uma área considerada perigosa aos militantes por ser fortemente militarizada por ser uma área de fronteira e isso acabaria em um resultado negativo para os militantes, caso fossem fazer suas ações em Santa Helena. Na terceira etapa foi realizada a coleta de relatos de sujeitos que vivenciaram de diferentes maneiras o período ditatorial no município. A partir da análise de documentos do DOPS e da AESI8, que tinham como 6

Jornal Nosso Tempo. Número 369,p;10-11 ;agosto, 1989. Entrevista cedida por Aluizio Palmar, ao grupo de pesquisa História e Memória: ditadura e relações sociais’. Nasceu em 1943, em São Fidélis, Estado do Rio de Janeiro. Em sua juventude estudou Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense e, devido à sua militância revolucionária, foi preso e banido do país. 8 AESI- Assessoria Especial de Informação da Usina de Itaipu foi constituída desde a assinatura do Tratado de 7

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objetivo controlar a entrada e saída dos estrangeiros, além de trabalhadores e contratados da Itaipu, percebe-se que Santa Helena era avaliada como um campo que precisava ser fortemente militarizado, pois foi uma área considerada pelo conselho nacional de segurança propícia a conflitos e á movimentos que perturbariam a Ordem do Estado e do País. Compreendemos desta forma que a população de Santa Helena não viveu o período da ditadura civil-militar tranquilamente, muito pelo contrário, houve resistência por parte das pessoas que realmente não entendiam que o momento em que viviam era de uma ditadura, mas sabia que aquela forma de governo instalada era altamente repressiva, tendo como justificativa a almejada sociedade ordeira e progressista. O discurso da não violência do período está arraigado na cidade, implicando em uma memória de esquecimento, pois muitos sujeitos preferem esquecer esse momento ou enterrar, e para tanto é importante questionar o porquê de tal atitude. A memória remete à experiência do sujeito e quando narrada atribui um valor, a subjetividade aparece em sua fala, gestos, além de que, esta experiência vivida faz uma ligação entre o presente e passado, permitindo novos entendimentos sobre o momento. A memória enquanto estudo teve uma entrada tardia nas ciências sociais. Desta maneira utilizamos Enzo Traverso, que trabalha com a questão da memória na qual ele indica. “A história, da mesma forma que a memória, não tem apenas as suas falhas; pode também desenvolver-se e encontrar a sua razão de ser no desaparecimento de outras histórias e na negação de outras memórias.”9(TRAVERSO,36)

Enzo Traverso nos mostra que a memória não está ligada apenas ao esquecimento, mas sim contra um regime político que nega e encobre crimes do passado no presente. Desta forma, abordamos a memória presente em um processo, na qual ela foi transformada em uma utilização para atender determinados interesses. Sabemos que o período da ditadura foi marcado pela violência, esta que muitos sujeitos sofrerem fisicamente, mas que resultou em danos psicológicos, motivos que por vezes fazem com que diversos os sujeitos preferiam negar, ‘’esquecer’’ o que viveram. Mas é importante considerar que a memória é mutável, ela está em constante movimento, pois ela Itaipu, em 1973. N° 005/85. 9 TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. História, memória e politica. La fabrique, 2005. Unipop. P, 36

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está inserida em um espaço de conflito desempenhando desta maneira um papel que possui representações a cada indivíduo e que se modifica muitas vezes com o passar do tempo. Quando trabalhamos ditadura civil militar, é importante compreender que os sujeitos estão inseridos em uma sociedade desigual e que a sua maneira de compreender tal processo ocorre de formas diferentes, devido à posição social que os indivíduos se encontram, pois o Estado tem como finalidade atender os interesses de classe que se universalizam, a partir da vontade particular, sendo que a burguesia governa em nome de interesses do conjunto da sociedade, legalizando assim que o Estado é o precursor da vontade geral, porém é necessário indagar que vontade geral é essa e a quem atende. Neste sentido, percebe-se que a memória remete à experiência do sujeito e quando narrada atribui um valor, a subjetividade aparece em sua fala, gestos, além de que esta experiência vivida faz uma ligação entre o presente e passado, permitindo novos entendimentos sobre o momento. Diante disso, por vezes a memória possui certos significados que são entendidos como coletivos sentidos que são construídos historicamente, no entanto isso não quer dizer que todos os sujeitos que possuem determinada memória diante de um processo histórico o interprete da mesma forma, pelo contrário podem atribuir sentidos diferenciados a esse fato. Desenvolver uma pesquisa acadêmica sobre ditadura é de extrema importância. Neste ano rememoramos os 50 anos do golpe militar, resultando na ditadura civil militar, causando um terrorismo de Estado. A ditadura civil militar se expressou de vários modos na vida dos sujeitos, não apenas dos brasileiros, devido à sua tamanha repressão, na qual tornava os sujeitos agentes do próprio Estado. Para finalizar, chego à conclusão de que trabalhar com o período ditatorial não nos traz sempre o resultado esperado, pois encontrar pessoas que falassem sobre esse assunto não foi fácil, além das análises feitas em documentos que exigem tempo, pois a situação em que esses documentos se encontram nem sempre são as mais favoráveis devido ao tempo destes mesmos. Como já mencionado devido a elementos que estão articulados a vida desses sujeitos, sendo assim, toda fonte ( documentos, relatos entre outros) foram de grande importância para a realização dessa pesquisa, porém este período é recente e ainda envolve questões de silêncio, resultantes de práticas cometidas e que ficaram ocultadas é necessário punir os agentes que causaram tamanho sofrimento a nossa sociedade, isso só se consolidara a partir da união e força dos sujeitos, vale a pena lutar “ PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA E NUNCA MAIS ACONTEÇA”.

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FOMOS OS VILÕES: O JAGUNÇO COMO SUJEITO TRANSFORMADOR NA CIDADE DE CASCAVEL (1940-1979) Fabio Lino de Freitas1

Resumo: Notado que não podemos construir a historia regional e social com pequenos fragmentos ou com um arranjo de discursos oficiais construídos nos últimos 50 anos por seus gestores, que buscavam fixar o discurso memorial daqueles que saíram vencedores desse processo chamado progresso. O Jagunço ou pistoleiro é um desses sujeitos pertinentes na construção do Oeste paranaense, sua presença é notada ao longo da história de grandes e pequenos municípios da região. Sua participação se faz de presente no papel de causar uma dissonância no que se refere ao seu espaço dentro da sociedade que ele compõe. Os sujeitos que fomentam a construção do município acabam tomando uma forma bem definida nessa região, caracterizada por três grupos sendo eles, os Posseiros, Colonos e Grileiros, algo que se faz notar a exclusão das relações de identidade do sujeito denominado jagunço nesse processo de coletividade. Palavras-chave: Jagunço, História regional, Oeste Paranaense Na construção do documento histórico da região Oeste (Registro oficiais, Jornais, gravações de rádio e TV, processos crimes) e notado que existem grandes lacunas sobre a formação social do município oestinos causando uma forte curiosidade cientifica em descobrir onde estão estes fragmentos, que compõe as relações sujeito, ação, efeito, que se refere aos personagens que de alguma forma se postaram impunes e intocáveis em alguns momentos dentro de Cascavel e região. Faz-se necessário a presença de novas fontes e novas perspectivas sobre o que realmente ocorreu ao longo do processo de formação do oeste. Artigo:O Jagunço ou pistoleiroe um desses sujeitos pertinentes na construção do Oeste paranaense, sua presença e notada ao longo da história de grandes e pequenos municípios da região. Suaparticipação se faz de presente no papel de causar uma dissonância no que se refere ao seu espaço dentro da sociedade que ele compõe.

Osjagunços e pistoleiros tinham seus nomes conhecidos, assim como sua vitimas. Faziamparte do negocio ter seu nome divulgado, mesmo que fosse pelo apelido: quanto maior o temor deste ou daquele sujeito, mais facilmente ele conseguia seu intentos criminosos. 2

Na construção do documento histórico (Registro oficiais, Jornais, gravações de rádio e TV) e

1

ALUNO Especial do Programa de Pós-graduação stricto sensu em HISTÓRIA, na linha de pesquisa Práticas Culturais e Identidades, Formado em História pela Universidade Paranaense. 2

PIAIA,Vander. AOcupação do Oeste Paranaense e a formação de Cascavel: as singularidades de uma cidade comum. Niterói:UFF/Programa de Pós-Graduação em História - UNIOESTE, 2004. p.326

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notado que existem grandes lacunas sobre a formação social do município, causando uma forte curiosidade cientifica em descobrir onde estão estes fragmentos, que compõe as relações sujeito, ação, efeito, que se refere aos personagens que de alguma forma se postaram impunes e intocáveis em alguns momentos dentro de Cascavel. Faz-senecessário a presença de novas fontes e novas perspectivas sobre o que realmente ocorreu ao longo do processo de formação do município.No estudo de gênero proposto pelo Historiador Vladimir José Medeiros, ele consegue identificar que os documentos oficias, em certo ponto alteravam os eventos que apontavam algum laço de violência na formação da cidade, caracterizando um claro caminho

adotado para a construção de sua história, velando alguns eventos e fatos.a

prefeitura investiu na propaganda, com intuito aumentar o contingente populacional.

Este relato de Sperança aponta o caminho para a compreensão da razão pela quais os jornais da cidade, data dos do período dos crimes analisados, não relatam tais acontecimentos em suas páginas policiais .(...) observa-se que a imagem de cidade pacata e ordeira, pautada no trabalho e nas virtudes de seu povo, era mantida através da propaganda vinculada pela prefeitura. O lado obscuro da cidade, onde assassinatos, grilagens, violência, e todo e qualquer tipo de ilícito era utilizado para a obtenção de vantagem econômica ficavarecluso apenas aos moradores da cidade e seus “causos”. A imprensa, responsável porexpor os fatos a sociedade, os omitia, e o poder judiciário, responsável por coibir e punir tais abusos, acabava ficando travada (ou por problemas internos, ou por conivência), impossibilitada de fazer justiça.3

Notado que não podemos construir a historiaregional e social com pequenos fragmentos ou com um arranjo de discursos oficias construídos nos últimos 50 anos por seus gestores, com o objetivo de fixar o discurso memorial daqueles que saíram vencedores desse processo chamado progresso.A cidade de Cascavel cresce nos meados da década de 1940 resultantes do grande fluxo migratório vindo do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Minas Gerais, sendo eles migrantes ou imigrantes, assim agrupando em vários e distintos grupos sociais em sem âmago urbano. Oscontrastes da ocupação oestina logo se fizeram perceptíveis; imigração com destino a região se tornaram um fato consumado, o Oeste do Paraná representava a válvula de escape diante das pressões fundiárias que se estabeleceram ao longo do tempo nas antigas regiões coloniais. (...)Cabe lembrar que o novo destino dos imigrantes não era um local totalmente desconhecido dos colonizadores; uma leva de poloneses havia se estabelecido nas imediações de Cascavel. 4 MEDEIROS,Vladimir J -- 2007. Dissertação(Mestrado em História) – Universidade de Passo, Nas malhas da lei : mulheres rés em Cascavel na década de 1970. p.73. 3

4

PIAIA,Vander. AOcupação do Oeste Paranaense e a formação de Cascavel: as singularidades de uma

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Ossujeitos que fomentam a construção do município acabam tomando uma forma bem definida nessa região, caracterizada por três grupos sendo eles, os Posseiros, Colonos e Grileiros,

algo

que

se faz notar a exclusão das relações de identidade do sujeito

denominado jagunço nesse processo de coletividade.

Nosentido de uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades construindo-se nessas lutas. Trata-sesim de pluralidades de sujeitos, cujas identidades são resultados de suas interações em. Processo de reconhecimento recíproco, ecujas posições são mutáveis e, intercambiáveis. Asposições dos diferentes sujeitos são desiguais e hierarquizáveis, mas essa ordenação não é anterior aos acontecimentos, mas. Resultados deles. E,sobretudo, a racionalidade da situação não se encontra na. Consciênciade um ator privilegiado, mas é, também, resultado do encontro das várias estratégias. 5

Algo que esta, bem exposto na obra do professor, VanderPiaia, e a preocupação dos gestores em deixar uma lembrança positiva de seus atos, e como manipulavam as fontes ou as produções acerca da historia do município. Mais relevante ainda é que,na medida em que o império da violência declinava, o assunto se tornava um tabu. Tocarnas feridas significava reviver um passado que a cidade buscava esquecer, seus estigmas eram por demais visíveis, era preciso caminhar adiante, encobrir um passado nada honroso com a poeira do futuro. Ademias,beneficiados e prejudicados, vencedores e vencidos não eram entidades etéreas, mas sujeitos de carne e osso que usufruíam suas vitórias ou amargavam suas derrotas, continuando presentes e buscando se preservar.6

O individuoque acaba desbravando muito das terras que posteriormente se tornaram vilarejos e cidades na figura do posseiro, acabado sendo um membro importante nas relações de progresso, pois trás consigo seus núcleos familiares além de estimular o avanço de outros personagens em espaços futuros.

cidade comum. Niterói:UFF/Programa de Pós-Graduação em História - UNIOESTE, 2004. .p.326. 5

SADER,Eder. 1988Quando novos personagens entraram em cena - experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra..p. 55. 6 PIAIA,Vander. AOcupação do Oeste Paranaense e a formação de Cascavel: as singularidades de uma cidade comum. Niterói:UFF/Programa de Pós-Graduação em História - UNIOESTE, 2004. p. 311-312.

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Mesmo este estando sempre a frenteele não tem os meios necessários para que possa se estabelecer, e assim o lucro obtido pela terra através de sua venda sempre será algo lucrativo, ele acaba não se preocupando em estabelecer um desenvolvimento capital sobre a área que ele se aloja.

O que vende não e tanto o produto de seu trabalho,sem embargos da limpeza da terra pode entrar em seus cálculos, mas seu ‘’direito de posse’ ’Posseiros que vivem de se aventurar na terra desse modo são os primeiros a chegar e os primeiros a dela sair. 7.(Foweraker,1981,p.156)

Dentroda visão econômica o posseiro não traz nada que possa ser utilizado por um sistema que busca um desenvolvimento cravado no discurso do progresso, que logo estará a mercê dos eventos que serão efetuados pelos jagunços e pistoleiros a mando de colonos ou de grileiros.

Outro agente importante no processo de ocupação de terras era o pistoleiro. Tais elementos costumavam estarem presentes, atraídos para as zonas de atritos, onde havia espaço para que desempenhassem seus papeis, ou seja, pelo uso da força intimavam e mesmo executavam vidas humanas. Assim como as armaseram os instrumentos do pistoleiro o próprio pistoleiro era instrumento nas mãos dos grileiros, pois via de regre, esses matadores agiam não para obter para si as terras, mas para outrem8 (PIAIA, 2004, p. 329-330).

Ocolono neste âmbito do processo de formação tem uma característica que aos olhos dosórgãos governamentais, trás consigo o objetivo de fixar residência e possivelmente desenvolver o progresso dentro de seu espaço, lembrando que em muitos casos esse desenvolvimento esta vinculado aos trabalhos de pistoleiros e jagunços. Com a intensificação da imigração sulista,João percebeu que ‘’depois começaram a vir gaúchos que bagunçavam, tocavam fogo (...) não pagavam nada, expulsavam as pessoas das casas e fixavam residência’’. Depois algumas destas pessoas tornavam ricas e respeitáveis na sociedade local.9

Ecomo todo núcleo recém-criado nos meados da década de 1940, o oeste estava 7

FOWERAKER,JOE, luta pela terra: A economia Política da Pioneer Frontier no Brasil 1930ate os nossos dias.1981.p.156. 8 PIAIA,Vander. AOcupação do Oeste Paranaense e a formação de Cascavel: as singularidades de uma cidade comum. Niterói:UFF/Programa de Pós-Graduação em História - UNIOESTE, 2004. p. 329-330. 9

PIAIA,Vander. AOcupação do Oeste Paranaense e a formação de Cascavel: as singularidades de uma cidade comum. Niterói:UFF/Programa de Pós-Graduação em História - UNIOESTE, 2004. p.318.

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destinado a criar uma forma clara de coronelismo característico aos moldes existentes naquele momento. Aregião ainda estava em sua gênese se tratando de uma estruturação política, econômica e social, uma das formas de se estabelecer era através da força (muitos Coronéis, Colonos, Grileiros possuíam suas milícias particulares).

o coronelismo, visto como fenômeno político e social foi expressão de uma sociedade. predominantemente rural e que abrangia a maioria dos municípios brasileiros. O poder. privado fortalecia‐ se

em

conseqüência

do

isolamento,

do

atraso

econômico

e

da

falta

decomunicaçãodessaslocalidades com os centros mais desenvolvidos. O único contato das populações com o aparelho de Estado dava‐ se em períodos de eleições, quando o voto significava a possibilidade de obtenção de favores ou de alguma melhoria material.10

Surgindoneste processo histórico o mais enigmático personagem e de fato aquele que tem os meios de transforma toda a trajetória no que se relaciona a formação da cidade de Cascavel e algumas outras que fazem parte da região oeste paranaense.

Comoainda é inteiramente outro o tempo histórico do pistoleiro que mata índios e camponeses a mandado do patrão e grande proprietários da terra: seu tempo é o do poder pessoal da ordem política patrimonial e não o de uma sociedade moderna, igualitária e democrática que atribui á instituição neutra da justiça a decisão sobre os litígios entre seus membros A bala de seu tiro não só atravessa o espaço entre eles e a vitima. Atravessaa distancia histórica entre seus mundos, que é o que os separa. Estão juntos na complexidade de um tempo histórico composto pela meditaçãodo capital, diversidade de situação.

que junta sem destruir inteiramente essa

11

Dentro do processo que se segue na formação do meio urbano e rural da cidade, a imagem e identidadedos jagunços ou pistoleiros tomam formas amorfas através de alguns discursos dos pioneiros, como o do senhor Alfredo Guido Lorenzatto, gravado em 25 de outubro de 2001,disponível no Museu da Imagem e do Som (MIS). Euadmirava eles, pois eram pessoas firmes, honestas. Apesardos ‘’ganhos por fora’’, no comercio eles além de honestos eram muito sinceros. Nãoconfundiam a ‘’cidade’’ com o trabalho deles. (...)[No bar] eles até ajudavam a cuidar. 10

COLUSSI, Eliane L.Estado Novo e municipalismo gaúcho. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 1996. p. 16 11 MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo, SP: HUCITEC, 1997. p.159.

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Porexemplo,

quando

chegava

um bêbado querendo

perturbar eles mesmos

resolviam. Sugeriam que fosse dar uma volta e em determinado ponto da estrada ou rua eliminavam com o cara, ou combinavam de tomar uma dose outro dia; não sei bem o que acontecia, mas pelo menos naquele dia ele não voltava mais.

Mesmo este personagem estando inserido no que faz oposição aos padrões de civilidade como diz Martins “seu tempo é o do poder pessoal da ordem política e democrática e patrimonial e não de uma sociedade moderna, igualitária e democrática. ’’(Martins 1997, p.159) seu espaço acaba sendo relacionado à suas ações desde que se ‘’comporte no espaço urbano’’ ele não será repudiado como um criminoso. Ocriminoso (...) produz uma impressão, ora moral ora trágica, e “presta” um serviço, desenvolvendo os sentimentos morais e estéticos do público, (...) interrompe a monotonia e a segurança da vida burguesa, (...). Ocriminoso aparece, assim, como uma daquelas “forças equilibradoras naturais” que estabelece um justo equilíbrio. 12

Quando pensado nos dias atuais a identidade deste personagem se perde em um misto de fora da lei, mercenário, ou de uma figuraintragável, a imagem do jagunço ou do pistoleiro acaba se fundindo ao conjunto de eventos que marcam o município. Frequentemente, colono e posseiros eram expulsos da terra de forma violenta por capangas que incendiavam galpões e casas ameaçavam de morte e praticavam arbitrariedades. O poder do Estado não se fazia presente, e quando o fazia, arbitrava em favo de grupos poderosos, raramente em favor dos trabalhadores rurais.13

Isso que por sua vez, vem dos atos desses personagens que estão atrelados ao núcleo de pessoas que construíram suas fortunas através da mão de obra oferecida por estes sujeitos como visto em alguns eventos do cotidiano cascavelense.

Partindo deste pressuposto podemosressaltar que grande parte de fortunas existentes no município cascavelense, e grande parte das construções, políticas e econômicas, devem estar ligadas diretamente através da participação direta desses sujeitos que permeavam a ordem 12

ANDRADE,Manuel da Costa. Criminologia:O homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra editora, 1997.p.260. 13

EMER,Ivo Oss. DesenvolvimentoHistórico do Oeste do Paraná e a construção da Escola. Rio de Janeiro: FGV/Instituto de Estudos Avançados em Educação/ Departamento de Administração de Sistemas Educacionais, 1991. p.146.

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ANAIS DO EVENTO

democrática e social. A precariedade da lei e da ordem, a ausência deinstrumentos de combate ao banditismo, e mesmo o embaralhamento das questões jurídicas, que relativizavam a garantia da propriedade, avivavam o palco no qual se defrontavam colonos, posseiros, grileiros e jagunços. 14

Dentro xdacomposição das fontes históricas do município que venham a confirmar a presença destes Jagunços e pistoleiros estão os periódicos, distribuídos em vários jornais, registros radiofônicos, e relatos dos pioneiros, registrados em entrevistas orais do Projeto desenvolvido pela Assoeste/AMOP, em 1982. Trata-se de entrevista realizadas compessoas consideradas “pioneiras”, disponível, hoje, no Museu da Imagem e do Som (MIS) que estão devidamente registrados e documentados, além do livro folclórico como Ninho de Cobras do jornalista Anselmo Cordeiro, que vale ressaltar que esta obra por apresentar, alguns eventos ou fatos que não se provaram confiáveis, à obra em si não e encontra nas instituições ou bibliotecas da cidade, outras obras que fortalecem a presença desses personagens estão nos livros da família Sperança, que apresentam uma a singularidade memorialista da cidade.

As fontes orais revelam melhor do que as fontes escritas a complexidade dos mecanismos da tomada de decisão. [...] As fontes escritas não bastam para reconstituir a rede de pressões, a meada de influências e a cadeia de decisões.15

Quandoanalisado de forma mais especifica, as fontes citadas apresentam diversidade da atuação e da presença do sujeito, criando assim várias imagens, e versões sobre a identidade destes personagens.

Aidentidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Aoinvés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.16

A história do municípioé relatada de forma linear, apesar de que seu discurso oral aponta para outro rumo. Os pioneiros, sendoeles membros que relatam observam ao longo do tempo 14

PIAIA,Vander. AOcupação do Oeste Paranaense e a formação de Cascavel: as singularidades de uma cidade comum. Niterói:UFF/Programa de Pós-Graduação em História - UNIOESTE, 2004. p.334. 15 FRANK, Robert. Questões para as fontes do presente. In: CHAUVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (Org.). Questões para a história do presente. Bauru: Edusc, 1999. p.110-111. 16 HALL, Stuart,A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro: Dp&a Editora, 2001,p.13

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ANAIS DO EVENTO

o desenvolvimento, carregam com si uma versão própria do progresso da cidade e uma visão pluralista sobre a formação das relações sociais, quando comparadas aos dos meios oficiais.Entre o que é escrito e entre o que e dito dentro da oralidade se cria um grande ponto de interrogação.

Buscamosde

certo

ponto

um

termo

que

una

esses

diversos

apontamentos históricos acerca da figura do jagunço.

(...) a historiografia regional é também a única capaz de testar a validade de teorias elaboradas a partir de parâmetros outros, via de regra, o país como um todo, ou uma outra região, em geral, a hegemônica. Estas teorias, quando confrontadas com realidades particulares concretas, muitas vezes se mostram inadequadas ou incompletas. 17

Existe muito mais informação escondidas ou veladas nos discursos ou nas historias do que sãorelatados nos órgão oficiais ou em livros folclóricos ou memorialistas. Apesquisa esta voltada diretamente a um estudo sobre a construção da imagem e da identidade do jagunço e do pistoleiro no meio Oeste Paranaense com o recorte da cidade de Cascavel, caracterizado um ineditismo acerca deste tema. Logoo objeto pesquisado se trata de um personagem que constrói e destrói historias ao mesmo tempo, sendo o jagunço um sujeito intrínseco em seus conceitos.

Pormais rica que seja a construção da memória de uma cidade, região, ou nação ela necessita ser exercitada ao senso critico, ou ao exercício da pesquisa etnográfica, muito de sua história ou muito de suas informações devem ser exploradas em outros âmbitos possibilitando uma maior gama de fontes. A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato da História Oral dizer respeito a versões do passado, ou seja, à memória. Ainda que esta seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. Amemória pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. 18

Ouso da oralidade como instrumento de analise se torna mais presente, pois consegue 17

SILVA, M. A. Da. República em migalhas: história regional e local. [S. I.]: [s. n.], 1990. ,p.13. PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na história oral: a pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História, PUC-SP, São Paulo, n. 14, fev. 1997.p. 16. 18

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ANAIS DO EVENTO

possibilitar a ponte entre a pesquisa e as fontes, como nos afirma o experiente pesquisador Alessandro Portelli “as fontes orais dão-nos informações sobre o povo iletrado ou grupos sociais cuja história escrita é ou falha ou distorcida.” (Portelli 1997a, p. 27).

Para separamos ou darmos legitimidade aos discursos criados a partir de uma construção memorial, necessitamos o uso da oralidade como método analítico, podemos usar a afirmativa quesegundo FRANK’’ As fontes orais revelam melhor do que as fontes escritas a complexidade dos mecanismos da tomada de decisão. [...] As fontes escritas não bastam para reconstituira rede de pressões, a meada de influências e a cadeia de decisões’’ 19

Mesmo a legitimação de eventos e discurso tendo que passar pelo reconhecimentoescrito dos órgãos oficiais ou de meios midiáticos, ainda não é de total confiança, assim é possível buscar e revirar os meios de informações a fim de esclarecer as lacunas que estão presentes do discurso oficial. Ométodo indiciário proposto por Ginzburg utilizado nas obras “O queijo e os vermes e Mitos, emblemas e sinais” tenta construir por meio de fragmentos e sinais criando uma relação ou uma aproximação do real que neste caso e o ato de analisar os indícios históricos para que consiga se aproximar dos fatos com o uso do estudo de documentos e suas possíveis lacunas não observadas em primeiro momento, relacionando a cultura e as particularidades nos grupos sociais estudados, posto desta forma o método ajudara na composição de novas fontes dentro do âmbito deste projeto.

Ainda no percurso do uso do método indiciário podemos postular as técnicas adotadas por Foucault,que parte do ponto de entender o individuo como faz em sua obra “Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão” a necessidade de se estudar o individuo mais profundamente entender sua personalidade, para que possamos ligar o porquê de seus atos perante a sociedade. Este método possibilitara na construção das peculiaridades e conjecturas do sujeito assim interligando a formação de uma identidade.

Com um conjunto de informações coletadas o uso da oralidade do método indiciário, buscar obter informações de grupos ou eventos que a longo ou curto prazo não foram analisados ou 19

FRANK, Robert. Questões para as fontes do presente. In: CHAUVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (Org.). Questões para a história do presente. Bauru: Edusc, 1999. p.110-111

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ANAIS DO EVENTO

foram construídos de forma singular ou mecânicos, vinculados á algum dogma social ou a um paradigma mais especifico em sua construção discursiva.

A história vivida não tem mais a exigência de ser pensada em termos detotalidade

única. As

fontesdocumentais escritas, orais, iconográficas, arqueológicas, não são mais consideradas como reflexos verdadeiros ou falsos do grupos,segmentos,

classes

se

passado. Antes, representam formas de como certos

permitiram

pensar,

sentir,

sonhar,

desejar

determinados

acontecimentos, algumas experiências, certos períodos. Dessa forma, todo documento em face dassuas múltiplas especificidades, como registro, também é e foi uma forma de produção daquele presente que será passado. Nele há marcas individuais esociais, num imbrica mento impossível de se desfazer, mesmo se tivermos a quimera de saber onde inicia um e termina o outro.20

Quando analisados os documentos escritos,notamos uma clara diferença naquilo que e dito por alguns grupos, e aquilo que e posto nos documentos oficias, desta forma possibilita apontar as dicotomias possíveis.

Aobjetividade científica não consiste em nos ausentarmos da cena do discurso e em simularmos uma neutralidade que é tanto impossível quanto indesejável. Essaobjetividade consiste, antes, em assumir a tarefa de interpretação, que cabe aos intelectuais. (...)A responsabilidade pela interpretação, é óbvio, não chega a reivindicar, para nossas interpretações, acesso completo e exclusivo à verdade. (PORTELLI, 1997, p. 26-27)

A metodologia oral e o uso do método indiciário assim apresentados aponta paraum grande avanço no campo da historia regional e social, pois consegue transitar de forma mais livre possibilitando grandes recortes temporais ou recortes temáticos. “a análise histórica tem como foco primordial as relações, os percursos, as práticas, porque através do seu estudo é que se poderão construir outras formas de compreensão, que desnaturalizem a relação ou a representação que procurava associar de forma unívoca o objeto ou a coisa à palavra.” (Montenegro, 2010, p. 31)

Ainda assimse fazem necessários o apontamento e estudo voltado às áreas criminais e MONTENEGRO,Antonio Torres, Encuentro Internacional de Historia Oral “Oralidad y Archivos de la Memoria” Mayo 5, 6 y 7 de 2005 . p 20. 20

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ANAIS DO EVENTO

jurídicas para entender os campos de atuação que possivelmente estarão presentes quando coletado informações e eventos que envolveram os sujeitos que se fixaram a margem das leis de seu tempo.

a criminologia moderna voltou-se para os processos de criminalização, através do estudo das relações de desigualdade típicas de uma sociedade baseada em um sistema econômico capitalista, procurando formular, pela primeira vez dentro da criminologia, uma crítica às desigualdades de direito decorrentes das desigualdades sociais. Apluralidade de grupos e subgrupos sociais e a inexistência de acesso de um grupo a outro, gerou uma tendência a uma criação de novos valores, ou seja, a mudança de uma classe social desfavorecida para a classe social dominante tornou-se praticamente impossível, o que fez com que os desfavorecidos deixassem de almejar ascensão social e passassem a criar um código moral novo que desse a sua classe uma forma de identificação. (FERREIRA p.10,2011).

O jagunço se estabelece aos grupos que se estalam a merca das leis que regema sociedade em um todo, em grande maioria esse personagem estão voltados apenas à face criminal, sendo apontados de forma mais quantitativa do que histórica, mas isso muda nas primeiras décadas de XX, quando a criminologia busca entende o porquê dentro das ponderações, morais ou de aspectos físicos e psicológicos que levam aos indivíduos se tornarem um criminoso.

Ofenômeno criminal varia de indivíduo para indivíduo como as moléstias. Oorganismo humano, em seus traços gerais (...) é variado. Alémdisso o homem sofre a influência de elementos heterogêneos que o tornam diferente de outro, como raça, o clima, a idade, o estado civil, etc.21

Dentro deste campo de pesquisa este trabalho contribuirá para estimular novas e possíveis pesquisas acerca da construção dos indivíduos que foram responsáveis pela historia do oeste paranaense.

21

SILVA, José Pereira da. Novos rumos da criminologia. Rio de Janeiro:Cia. Brasil editora, 1939, p. 50 -52.

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MÚSICAS POPULARES NO OESTE DO PARANÁ: ESTUDOS SOBRE IDENTIDADES E MEMÓRIAS DO GRUPO SERESTA. Franciele Turatto1 Resumo:Este é uma pesquisa sobre identidades e memórias no Oeste do Paraná. O estudo foi feito a partir de letras de canções selecionadas e cantadas pelo Grupo Seresta. Objetiva-se tratar de alguns aspectos da construção/manutenção de memórias e identidades no contexto do cultivo da arte de cantar. Pode-se entender a representação sobre as vivências como a vontade de tornar presente momentos vividos que, uma vez realizado, é passado. O imaginário está ligado com a memória, pois ele pode ditar o que lembrar, como lembrar e quando lembrar, e é neste sentido que as músicas servem para revigorar as lembranças e o imaginário das pessoas que revivem estas manifestações de sentimentos através das músicas.

Palavras-chave: Identidade, Memória, Músicas. A pesquisa constituiu em estudar a identidade e a memória dos integrantes do Grupo Seresta através de canções selecionadas pelos próprios através de um formulário de depoimento e outras fontes sobre música, identidade e memória. No que diz respeito às músicas foram analisadas as letras como textos poéticos caracterizando assim temas recorrentes nestas músicas selecionada. Dentre estes temas estão o saudosismo, origem ou tratam do campo, da saudade da terra e dos costumes. Essas músicas nos mostram a afinidade e a identidade comas pessoas que a cantam e a ouvem. As músicas foram estudadas enquanto uma prática social de produção de sentidos. O trabalho teve por objetivo analisar a partir de letras de músicas e das memórias e identidades do grupo Seresta. Para isso, será feita uma análise de letras de músicas que previamente serão selecionadas pelos integrantes do grupo em um questionário. Assim, se realizará um estudo a partir das memórias e identidades dos integrantes do grupo, fazendo-se assim um estudo dos textos musicais cantados por eles. O trabalho é inspirado em Ciro Damke e Mônica Maria Guimarães Savedra. Para eles, o pesquisador precisa perceber que a música, canto não tem fronteira e deve ser considerado dentro do amplo plano da cultura. É um dos direitos de cada pessoa e de um grupo. Além 1

Acadêmica do curso de História da Universidade do Oeste do Paraná – Unioeste.

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ANAIS DO EVENTO

disso, músicas só podem ser analisadas no contexto histórico, geográfico e cultural, em que estas surgiram e de como ainda são cantadas pelos integrantes do grupo no oeste do Paraná. Artigo:O artigo trata da identidade e a memória dos integrantes do Grupo Seresta através de canções selecionadas pelos próprios a partir de um formulário de depoimentos e outras fontes sobre música, identidade e memória. No que diz respeito às músicas foram analisadas as letras como textos poéticos caracterizando assim temas recorrentes nestas músicas selecionadas. Assim, entender a representação sobre vivências como a vontade de tornar presentes momentos vividos que, uma vez realizado, é passado. O imaginário está ligado com a memória, pois ele pode ditar o que lembrar, como lembrar e quando lembrar, e é neste sentido que as músicas servem para revigorar lembranças e imaginários das pessoas que revivem estas manifestações de sentimentos através das músicas. Portanto as identidades e memórias dos integrantes do Grupo Seresta foram estudadas através de canções selecionadas pelos próprios a partir de um formulário de depoimentos e outras fontes sobre música, identidade e memória Dentre estes temas estão o saudosismo, origem ou tratam do campo, da saudade da terra e dos costumes. Essas músicas nos mostram a afinidade e a identidade com as pessoas que as cantam e a ouvem. As músicas selecionadas pelos integrantes do Grupo Seresta juntamente com discussões e leituras de textos, fazem parte da constituição de memórias e identidades do grupo Seresta no Oeste do Paraná. Música é definida nos dicionários como a arte de combinar harmoniosamente os sons; Ação de se expressar através de sons, pautando-se em normas que variam de acordo com a cultura, sociedade etc. Com essa definição começamos a enfocar a importância da música e do ato de cantar, a música tem uma grande importância na sociedade, aparecendo em todas as culturas. O ato de cantá-las faz com que os grupos se identifiquem com algo. Um bem que se divulga facilmente e com fácil aceitação no imaginário das pessoas, aparecendo na sociedade, nos meios de comunicação e nas manifestações culturais. A música é muito mais que uma simples letra e melodia. Ela pode trazer a memória e identidades de grupos de pessoas. Busca-se com as músicas expressar sentimentos e vontades, as músicas também têm sua constituição moral, buscando salientar a comunicação com as massas consideradas populares. As representações do mundo social são determinadas por interesses de grupos que as forjam, não sendo assim discursos neutros, tendo tanta importância como as lutas econômicas para 151

ANAIS DO EVENTO

compreender os mecanismos em que os grupo se inserem, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, seus valores e seus domínios. Assim ao estudar essas memórias e identidades analisamos os sujeitos e como se dá a construção dessas memórias, e a importância que os textos musicais têm para quem as canta, pois revelam uma busca pela identidade cultural destas pessoas. A música gaúcha tem especificidades na sua linguagem. Assim como em outras regiões do país, essas particularidades regionais fazem com que as letras das canções sejam repletas de símbolos e absorvendo vários aspectos históricos, culturais e identitários. Para Dürkheim no que se refere à cultura compreendemos que são “representações coletivas que exprimem realidades coletivas, os ritos são maneiras de agir que nascem no seio dos grupos reunidos e que são determinados a suscitar, a manter ou refazer certos estados mentais destes grupos.” 2 O mundo das representações e imaginários auxiliado ou não pela lembrança é importante na nossa sociedade, pois são elas que guiam o mundo material, produzindo as imagens e símbolos que transcendem o tempo. Assim o imaginário se organiza em torno de determinados significados contidos nos símbolos fazendo uso da memória, cativando a lembrança, selecionando fatos e situações em que o pertencimento e as crenças a ele integradas possuam eficácia cultural e social. O imaginário está ligado com a memória, pois ele pode ditar o que lembrar, como lembrar e quando lembrar, e é neste sentido que as músicas servem para revigorar as lembranças e o imaginário das pessoas que revivem estas manifestações de sentimentos através das músicas. Mas para Hall a cultura não é feita somente de imagens e lembranças do passado, mas que é uma construção, e que sua matéria- prima e seus recursos são esforços do seu trabalho produtivo. Com isso podemos perceber que a cultura esta para além do imaginário e da memória, que é uma construção que pode ser moldada conforme suas necessidades, assim como a construção das identidades, sendo formada inconscientemente ao longo do tempo, estando sempre em processo, sempre sendo formada. Para Hobsbawm existe uma definição para cultura versus tradição que é entendida como tradições inventadas “Etende-se um conjunto de praticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abruptamente aceitas; tais praticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar 2

DÜRKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Nacional, 1974.

152

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certos valores e normas de comportamentos através da repetição, o que implica automaticamente, uma continuação do passado”.3

O que não queremos aqui neste trabalho é apenas fazer uma mera repetição dessas pratica, não apenas fazendo a repetição do passado, mas fazendo-se com que essas lembranças que se vigora com as músicas tenham um sentindo para alem apenas da tradição, mas as tornando parte de uma cultura que é revivida por quem as ouve e as canta. As músicas mais tradicionais são utilizadas em festivais e em atividades de Centros de Tradição Gaúcha, CTG, que são locais onde as tradições gauchescas são disseminadas. Em grande maioria da região sul do Brasil são encontrados estes centros. É através desses centros que se recria uma tradição sulista, com identidade regional, sendo um espaço de reconstrução da memória coletiva. Esses espaços de confraternização de (re) construção de memórias evidenciam o que queremos discutir neste trabalho, a constituição e identidades passa por vários âmbitos culturais. E os CTGs são exatamente a disseminação desta cultura gaúcha. Esses espaços servem para difundir e manter a memória coletiva de grupos, para Tedesco o imaginário se organiza em torno de determinados significados contidos nos símbolos fazendo uso da memória, cativando a lembrança, selecionando fatos e situações em que o pertencimento e as crenças a ele integradas possuam eficácia cultural e social. O termo gaúcho também é utilizado por estas pessoas, que nem sempre são imigrantes de regiões sul, mas ou que em seu histórico familiar apresentam ligações com a região sul do país. E nesse contexto é possível perceber como as pessoas se relacionam com suas memórias, as canções para além da letra e da melodia revelam muito mais para quem as canta e quem as ouve. A questão sulista está presente nas formas de expressão, seja ela piadas, poemas paródias e nas próprias músicas. Uma dessas músicas é Eu sou do sul, composta por Elton Saldanha, ele é apresentado como artista, cantor, compositor. É formado em jornalismo. Tem 18 discos gravados e 1 DVD e recebeu mais de 200 troféus em festivais, tem mais de 800 canções gravadas enaltecem a cultura e a tradição das pessoas que são do sul do Brasil . “Nascido entre a poesia e o arado A gente lida com o gado e cuida da plantação 3

HOBSBAWM, E. A invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric; RANGER,T. (Orgs). A invenção das tradições. 3ed Rio de Janeiro: paz e Terra, 1997.

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A minha gente que veio da guerra Cuida dessa terra Como quem cuida do coração”4

Neste trecho da música o sentimento de amor de quem cuida da terra é comparado a quem cuida do coração. Isso é um traço bem marcante nas composições de autores do sul do Brasil. Esta música também ganhou o prêmio de música mais emblemática do regionalismo gaúcho. A questão poética também está ligada a estes compositores. As trovas (poesias gauchescas) são outro exemplo de como compositores e poetas enaltecem o Sul do país e a figura do gaúcho. Um exemplo é a trova de Ruben Sofildo da Silva que se intitula Gaúcho. Ele mostra essa bravura e a vontade de lutar destes homens. No trecho abaixo relata o que é ser um gaúcho, o que defender, pelo que luta. “Gaúcho é ser idealista, Peleiar só por conquista Em defesa da terra amada. Gaúcho é nome e herança, Que os bravos heróis nos legaram, Que muito mal empregaram Não compreendendo por certo Gaúcho é altivo, esperto, Espontƒneo, inteligente, Respeitador bom amigo, Mas quando encontra o perigo, Costuma chegar de frente.”5

Portanto, em músicas e das trovas serão encontradas questões recorrentes a essa já citada, fazendo uma ligação de saudosismo, sentimentalismo, amor com a terra. Outra

questão

presente nas canções é a religiosidade. Mais adiante retomarei este assunto quando explanarei sobre as músicas selecionadas pelos membros do Grupo Seresta. Foi aplicado um questionário que nos ajudou a identificar quais eram as músicas de

4

SALDANHA,Elton. Eu sou do Sul.

5

Ruben Sofildo da SilvaGauchohttps://sites.google.com/site/orgulhodesergaucho2009/poesias

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preferência dos integrantes do grupo dentre elas as mais citadas foram: Canto Alegretense, Querência Amanda, O vento, Nossa senhora do Brasil, Chalana, entre outras. As letras das músicas são o objeto de análise fundamental para se conceber este projeto. Nelas encontraremos várias características da tradição oral, e de que a prática do canto serve para a manutenção de uma cultura que foi trazida por estes imigrantes. Canto alegretense é uma composição do início dos anos 1980 de Nico Fagundes. Nico, em uma entrevista sobre os trinta anos da música, afirma que ela teve maior destaque quando os Fagundes se apresentaram no programa Galpão Criolo de 1983. A partir daí essa canção foi por inúmeras vezes regravada e hoje é um símbolo gauchesco e da própria cidade de Alegrete que adotou a música como hino. A música também virou uma paródia do Guri de Uruguaiana, Jair Kobe. Nesta mesma entrevista, Nico conta como nasceu a poesia. Quando ainda atuava como advogado na capital um amigo de trabalho perguntou-lhe onde fica o Alegrete, então Nico respondeu: “Não me perguntes onde fica o Alegrete. Segue o rumo do teu próprio coração”. Ali mesmo começou a escrever a poesia em pouco mais de quatro minutos. Essa canção teve grande repercussão na voz do cantor Gaucho da Fronteira. Mas também já foi tocada pela orquestra sinfônica da PUC-RS, e também tocada por mais variados “estilos” musicais. A música já tem 34 anos de composição e diferentes intérpretes, mas ainda é atemporal com muitos significados para o povo gaucho e especialmente para quem é de Alegrete. Para mim que ainda não conheço a cidade também era difícil o entendimento de algumas palavras e de algumas expressões que são usadas no Rio Grande do Sul. Para isso estarei utilizando de alguns dicionários sobre o a linguagem própria do gaucho encontrados na internet. Canto Alegretense Composição: Euclides Fagundes Filho “Não me perguntes onde fica o Alegrete Segue o rumo do teu próprio coração Cruzarás pela estrada algum ginete E ouvirás toque de gaita e violão Prá quem chega de Rosário ao fim da tarde Ou quem vem de Uruguaiana de manhã 155

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Tem o sol como uma brasa que ainda arde Mergulhado no Rio Ibirapuitã Ouve o canto gauchesco e brasileiro Desta terra que eu amei desde guri Flor de tuna, camoatim de mel campeiro Pedra moura das quebradas do Inhanduy E na hora derradeira que eu mereça Ver o sol alegretense entardecer Como os potros vou virar minha cabeça Para os pagos no momento de morrer E nos olhos vou levar o encantamento Desta terra que eu amei com devoção Cada verso que eu componho é um pagamento De uma dívida de amor e gratidão”6

Para a análise desta música optou-e buscar o significado de algumas palavras como: Ginete, flor de tuna, camoatim. Também situar-se nas localidades que a música apresenta. Esta música foi uma das mais selecionadas entre os integrantes do Grupo Seresta. Ela merece uma atenção especial. Farei uma descrição de alguns trechos e algumas palavras, começando pelo primeiro verso que traz o Alegrete que é um município localizado no oeste do Rio Grande do Sul, às margens do rio Ibirapuitã. Foi também entre os anos de 1842 a 1845 a terceira capital da república Riograndense. Já no segundo verso aparece a palavra Ginete. Na linguagem do gaucho significa quem é bom cavaleiro, que sabe andar bem a cavalo, um domador de cavalo. Rosário do Sul está localizado ao leste de Alegrete. Por isso quem chega desta cidade vê o sol se pondo sobre o rio. Já quem vem de Uruguaiana localizado a oeste de Alegrete, vê o sol nascendo sobre o rio Ibirapuitã. Ibuirapuitã é o rio que banha estes municípios. Flor de tuna é uma flor de cáctus. Camoatim é uma vespa produtora de mel. E por último pedra moura é um tipo de pedra que existe nas margens dos rios. É assim chamada devido a sua cor escura. Visto isso, percebe-se que esta canção tem grande apelo afetivo para quem a canta e

6

Canto Alegretense, Euclides Fagundes Filho.

156

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também para quem a ouve. Para Tedesco as representações e imaginários são importantes em nossa sociedade, fazendo-se guiar por imagens e símbolos que perpassam ao tempo. O uso da memória faz com que esses significados cheios de símbolos tenham um sentido de pertencimento a fatos, situações e crenças tenham uma eficácia cultural e social. Os textos musicais que foram analisados nos auxiliaram para entendermos como esta cultura está presente na identidade e memória destas pessoas, a saudade da terra natal é um dos temas que possivelmente e com freqüência encontraremos nas canções selecionadas pelos integrantes do grupo Seresta. Uma destas músicas é Querência Amada composta por Teixeirinha no ano de 1947: “Ó meu Rio Grande, De encantos mil, Disposto a tudo pelo Brasil. Querência amada, dos parreirais. Da uva vem o vinho, do povo vem o carinho, bondade nunca é demais [...]” Essa música se tornou um hino ao Rio Grande Sul, também é perceptível notar no trecho destacado aqui que além do saudosismo da terra natal, há a questão do gauchismo é muito presente fazendo assim a base para o tradicionalismo. De modo geral percebem-se na música tradicionalista gauchesca os seguintes aspectos da identidade: amor à liberdade, o apego à cultura tradicional, a defesa do território e vários outros temas. Assim como para Chartier “o desafio de hoje lançado aos historiadores é ligar a construção discursiva do social à construção do discurso”7, assim buscar as diferenças entre formas e práticas sociais. A construção de memórias está relacionada ao cotidiano em que vivemos e as representações por elas transmitidas. Assim como para Chartier, pensamos que o objeto da história cultural é identificar o modo como em diferentes tempos e espaços uma determinada realidade social é construída, pensada. Busca-se com as músicas expressar sentimentos, vontades, atribuídos a isso à música também tem sua parte moral, buscando salientar a comunicação com as massas consideradas populares. A construção de memórias está relacionada ao cotidiano em que vivemos e as representações por elas transmitidas. Assim como para Chartier pensamos que o objeto da história cultural é identificar o modo como em diferentes tempos e espaços uma determinada realidade social é construída, pensada.

7

CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.

157

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Assim as representações do mundo social são constituídas pelos interesses dos grupos que as forjam, não sendo assim discursos neutros, tendo tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos em que o grupo se insere, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, seus valores, seus domínios. Partilhando da idéia do autor Valverde, pois para ele o ato de cantar aproxima as pessoas não só pelo simples ato de cantar melodiosamente, mas também porque a música tem uma linguagem universal, a música não só comunica, mas ela estabelece uma empatia e envolve os seus ouvintes afetivamente. Assim como Damke e Savedra entendemos que essas músicas nos “auxiliam a entendermos melhor a própria identidade nacional brasileira”.

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O DESAFIO TEÓRICO METODOLÓGICO DO USO DO CONCEITO DE FASCISMO E DE EXTREMA DIREITA Guilherme Ignácio Franco de Andrade Resumo: O presente artigo se propõe a discutir os conceitos de fascismo e extrema direita, como eles são apresentados por diversos autores para tentar explicar o fenômeno da extrema direita. Problematizar os partidos de extrema direita hoje, faz-se necessário levantar questões teóricas e conceituais de extrema relevância, como entender o projeto partidário com que estamos lidando, compreender sua origem e formação, suas raízes históricas e suas influências ideológicas. É necessário escolher caminhos teóricos e métodos de análise que nos permite obter resultados concretos, não caindo no erro de fazer uma crítica superficial, rasteira, ou que não seja suficiente em dar conta de explicar historicamente. Em primeiro lugar é necessário conceituar o fascismo, trazendo sua discussão para tratar nosso objeto, uma vez que o uso inadequado do conceito em diversas pesquisas não faz jus a historiografia do tema, trazendo interpretações equivocadas do que seria o fascismo, muitas vezes generalizante e equivocadamente o relacionando com o conceito de totalitarismo. Então é necessário entender as consequências históricas que formaram o fascismo e sua estreita relação com capitalismo. Artigo: Problematizar os partidos de extrema direita hoje, faz-se necessário levantar questões teóricas e conceituais de extrema relevância, como entender o projeto partidário com que estamos lidando, compreender sua origem e formação, suas raízes históricas e suas influências ideológicas. É necessário escolher caminhos teóricos e métodos de análise que nos permita obter resultados concretos, não caindo no erro de fazer uma crítica superficial, rasteira, ou que não seja suficiente em dar conta de explicar historicamente. Para tanto temos que inserir a FN dentro de uma categoria de analise, para termos uma aproximação mais real do objeto e assim pensar o melhor método investigativo que nos ajude a chegar a um resultado próximo da realidade. Em primeiro lugar é necessário conceituar o fascismo, trazendo sua discussão para tratar nosso objeto, uma vez que o uso inadequado do conceito em diversas pesquisas não faz jus a historiografia do tema, trazendo interpretações equivocadas do que seria o fascismo, muitas vezes generalizante e equivocadamente o relacionando com o conceito de totalitarismo. Então é necessário entender as consequências históricas que formaram o fascismo e sua estreita relação com capitalismo. Em segundo lugar devemos trazer o conceito de fascismo para entender o partido FN e sua emergência no século XXI, quais as formas de atuação hoje, quais as rupturas com o

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passado, com o fascismo clássico. Tentar entender dentro da conjuntura atual, quais adaptações foram necessárias para a sobrevivência do projeto fascista na atualidade, especificamente em nosso caso na França no século XX e XXI. Para compreender o partido FN, pretendo trabalhar com o conceito de fascismo, desenvolvido pela historiografia marxista ao longo do século. O fascismo enquanto conceito para os intelectuais marxistas é compreendido como consequência das primeiras crises do capital e do liberalismo no início do século XX. E como resultado disso, as primeiras demonstrações das deficiências do capitalismo (excedente da acumulação resultando na crise de 29) enquanto modelo econômico, as contradições da tradição liberal democrática e as ameaças do comunismo. O fascismo enquanto projeto foi constituído por segmentos da pequena burguesia, que buscavam novas propostas políticas que estivessem comprometidas com o desenvolvimento do capitalismo e guarnecidas por um projeto de Estado intervencionista e mobilizador. O fascismo enquanto projeto hegemônico - ainda que em conceito geral, pois pode apresentar diferenças de acordo com a conjuntura política local e das condições materiais existentes – apresenta as seguintes características; Em primeiro lugar o fascismo é baseado na defesa da nação, ultranacionalista, na centralidade do poder, controlado apenas por um único partido apoiado pelo militarismo, colocando o desenvolvimento do país e a soberania nacional como objetivos principais, podemos ver essa característica latente nos discursos do nacionalsocialismo e do fascismo italiano. Outra característica marcante do fascismo é a oposição ao liberalismo econômico, por acreditar que o Estado deve controlar a economia, proteger as indústrias nacionais e controlar as questões tributárias. E por fim outra característica geral do fascismo é a oposição as doutrinas socialistas e marxistas, mesmo que em seu programa se faz algumas críticas ao capitalismo, ele renega a luta de classes. O fascismo para Leandro Konder seria um estágio necessário do imperialismo capitalista, onde o Estado fascista tem como objetivo principal garantir as condições materiais para acumulação de capital dos setores dominantes, O fascismo é uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo, que procura se fortalecer nas condições de implantação do capitalismo monopolista de Estado, exprimindo-se através de uma política favorável à crescente concentração do capital; é um movimento político de conteúdo social conservador, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”, guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e 160

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conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de tipo manipulatório. O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, anti-socialista, antioperário. Seu crescimento num país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); e pressupõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a existência nele de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro.1 O Estado fascista enquanto governo, impôs um governo central, sem oposição política, caracterizada pelo culto ao grande líder, que seria o único e legitimo representante das massas. O fascismo apresenta uma estrutura hierarquizada, tipicamente militar, a exaltação do nacionalismo e do desenvolvimento da pátria acima de qualquer beneficiamento individualista, claramente sufocando a luta de classes. O Estado fascista se apropria de todo aparelho estatal e o utiliza para garantir as suas condições de domínio, seja ela através da formação do consenso – pela enorme máquina de propaganda e por seus aparelhos privados de hegemonia- ou a coerção, utilizando todo aparato repressivo que lhe esteja disponível. Dentro das características elencadas por Konder, podemos fazer uma aproximação com nosso objeto a FN2, que apresentam em seu projeto hegemônico semelhanças profundas com essa definição de fascismo, sendo chauvinista, antisocialismo, antiliberal, apresentando várias críticas ao capitalismo, porém não com a intenção de colocar fim a luta de classes, mas para supostamente recuperar as condições matérias de parte da pequena burguesia e da classe média que acredita estar em declínio e desamparada pelo Estado. A participação da pequena burguesia e parte da classe média, deve-se ao fato desses mesmos setores não possuírem um projeto hegemônico consistente para garantir seu desenvolvimento econômico junto ao Estado, por isso esses grupos são os primeiros a se associar com o fascismo. Devemos pontuar aqui que assim como o fascismo em seu estágio inicial – enquanto partido fora do poder - o programa da FN não é unanimidade entre os grandes capitalistas. Historicamente a burguesia somente se associou ao projeto fascista diante de situações em que poderia perder o controle do Estado e ter interrompido seu projeto hegemônico, sob 1

KONDER, L. Introdução ao fascismo. 3ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 1991, pg.21 Para se aprofundar na discussão sobre o caráter fascista ou populista sobre a FN ver discussão presente em DECLAIR, E. PoliticsontheFringe: The People, PoliciesandOrganizationoftheFrenchNational Front.Durham, Duke University Press.1999; e MILZA, P. Fascismefrançais: passé etprésent.Paris, Flammarion, 1987; e SIMMONS, H. G.The French National Front: The Extremist Challenge to Democracy.Oxford, Westview, 1996; e porfim HARRIS, G.The Dark Side of Europe.Endinburgh: EdingburghUniversity Press, 1994. 2

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pressão das massas e para conter processos revolucionários. O fascismo é em primeiro momento formado por parcelas descontentes da pequena burguesia, apenas em casos onde a luta de classe esteja mais presente e adiantada que a burguesia dominante se associa ao fascismo. Podemos então supor que até o presente momento o projeto da FN não atraiu interesse suficiente da burguesia francesa. No processo de amadurecimento do fascismo, a pequena burguesia segundo Poulantzas “a pequena burguesia constitui-se, desta vez no seu conjunto, em força social por intermédio dos partidos fascistas”3. Para Poulantzas é através do fascismo que a pequena burguesia consegue ter autonomia política, “Por intermédio dos partidos fascistas, a pequena burguesia intervém na cena política como força social: se bem que oscilando nitidamente para o lado da burguesia, ela desempenha, nesta aliança, um papel relativamente autônomo em relação ao grande capital. Agora, a pequena burguesia já não está pura e simplesmente ‘a reboque’ da burguesia, como quando era representada pelos partidos burgueses tradicionais”.4 Nesse mesmo sentido Poulantzas acredita ser necessário aprofundar mais a relação entre os partidos fascistas e sua estreita relação com parte da pequena burguesia, Poulantzas afirma que, É necessário que nos detenhamos aqui, a fim de responder à questão do laço de representação entre os partidos fascistas e a pequena burguesia, distinguindo entre os dois sentidos do termo representação. No primeiro sentido, este termo indica o laço de um partido político com os interesses reais de classe. No segundo sentido, este termo indica principalmente os laços ideológicos e organizacionais de um partido com uma classe, cujos interesses reais ele pode muito bem não representar. Em primeiro lugar, e no segundo sentido, os partidos fascistas são efetivamente os representantes da pequena burguesia. São partidos de massa, fortemente estruturados, cuja base de massa – aderentes, militantes e eleitores – reside essencialmente na pequena burguesia. A origem de classe das suas camadas intermediárias e superiores é pequeno-burguesa. O que os distingue assim dos partidos “burgueses” que representavam tradicionalmente a pequena burguesia são os laços organizacionais efetivos com esta. Paralelamente, os partidos fascistas são, sob o ponto de vista ideológico, partidos tipicamente “pequeno-burgueses”: isto distingue-os igualmente dos outros partidos burgueses que representavam tradicionalmente a pequena burguesia. Que se passa, agora, com os interesses reais 3

POULANTZAS, N. Fascismo e Ditadura: a III internacional face ao fascismo. Volume I. Porto, Portucalense Editora, 1972, pg. 263 4 Idem, pg.264

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representados por estes partidos, no primeiro sentido do termo representação? Na medida em que se possa falar em interesses políticos a curto prazo próprios da pequena burguesia, o partido fascista é o seu representante efetivo durante a primeira etapa do processo de fascização. (...) Mas, com o ponto de irreversibilidade, a viragem já está feita: o partido fascista representa, doravante, e de forma maciça, os interesses reais da burguesia. Se continua ainda, numa certa medida, a ter em conta os interesses da pequena burguesia, com o fascismo no poder, e, de modo definitivo, com a etapa da sua estabilização, estes interesses serão completamente abandonados. Temos que pontuar também que o fascismo, não foi majoritariamente um partido da pequena burguesia, embora seu projeto partidário e os anseios sejam pertencentes a essa classe, temos aqui também que ressaltar a participação e apoio das massas aos partidos fascistas. Para Wilhelm Reich o massivo apoio das massas aos regimes fascistas parte de uma irracionalidade que procura justificar o apoio aos regimes autoritários5. Para Reich a responsabilidade da ascensão do fascismo é em grande medida responsabilidade da classe média,

A própria existência de um movimento fascista constitui uma expressão social indubitável do imperialismo nacionalista. Mas é o movimento de massas da classe média que possibilita a transformação desse movimento fascista num movimento de massas e a sua subida ao poder que vem cumprir a sua função imperialista. Somente levando em consideração estas oposições e contradições, cada uma de per si, é que se pode compreender o fenômeno do fascismo. A posição social da classe média é determinada: a) pela sua posição no processo de produção capitalista; b) pela sua posição no aparelho de Estado autoritário, e c) pela sua situação familiar especial, que é consequência direta da sua posição no processo de produção, constituindo a chave para a compreensão da sua ideologia. A situação econômica dos pequenos agricultores, dos burocratas e dos empresários de classe média não é exatamente a mesma, do ponto de vista econômico, mas caracteriza-se por uma situação familiar idêntica, nos seus aspectos essenciais.6 Nesse mesmo sentido, Reich acredita que o apoio incondicional ao fascismo parte de uma irracionalidade das massas, que não compreendem o projeto que é proposto, acreditam que fazem parte de algo,

5 6

REICH, W. Psicologia de massas do fascismo. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pg.167 Idem, pg.54

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O problema de saber "como" se estabelecerá uma nova ordem social é, no fundo, a questão da estrutura de caráter das grandes massas, da população trabalhadora apolítica e sujeita a influências de ordem irracional. O fracasso de uma revolução social autêntica é, pois, um sinal de fracasso das massas humanas: elas reproduzem estruturalmente a ideologia e as formas de vida da reação política, em si próprias e em cada nova geração, por mais que as tenham abalado socialmente. Para Manuel Loff, Em sociedades relativamente atrasadas no processo de construção da sociedade de massas, esta linguagem revolucionária, cujo projeto social se pretende distinto, do liberalismo e do socialismo, descreve-se como terceira via fascista, corporativista ou nacional-sindicalista, pretendendo oferecer às massas operárias e camponesas uma verdadeira integração no sistema de exercício da soberania nacional, recuperando, de passagem, aqueles elementos· enganados pelas miragens marxistas ou anarquistas. Estamos, como bem sabemos a propósito do fascismo como fenômeno político global, num terreno em que se entrecruzam o processo de massificação social e política das sociedades contemporâneas com a necessidade de aggiornamento7das correntes conservadoras e reacionárias dessas mesmas sociedades às novas condições de participação política e de gestão da soberania.8 Segundo Gramsci o partido em caso de grupo fascista ou regime totalitário apresenta aspectos únicos, pois tal partido ou organização política não tem mais funções puramente política e administrativa, mas apenas técnicas de propaganda e de sua hegemonia, de policiamento da população, de controle e continua criação do consenso, pois, sem ele dificulta sua capacidade de governabilidade, influência moral e cultural.9Isto, por um lado, ao apontar, que o fascismo não é apenas “imposição de coerção”, mas também “obtenção de consenso”, e, por outro lado, ao preocupar-se com a relação estabelecida entre o Estado fascista e as organizações de massa (da sociedade civil) criadas e/ou aparelhadas por este.10 Para Gramsci, em certo ponto de conflito entre as classes, no período de crise de hegemonia, a situação se torna delicada, pois ela abre precedentes para atuação das forças 7

Atualização. LOFF, M. O Nosso Século É Fascista! O Mundo Visto por Salazar e Franco (1936-1945). Porto, Campo das Letras, 2008, pg.120 9 GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pg. 60 10 Idem, pg.60L 8

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autoritárias, como o fascismo e o nazismo. Essas tensões abrem espaço para que a extrema direita consiga atuar. Segundo Gramsci, Em um certo ponto de sua vida histórica, os grupos sociais se separam de seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais naquela dada forma organizativa, com aqueles determinados homens que os constituem, representam e dirigem, não são mais reconhecidos como sua expressão por sua classe ou fração de classe. Quando se verificam estas crises, a situação imediata torna se delicada e perigosa, pois abre-se o campo as soluções de força, a atividade de potencias ocultas representadas pelos homens providenciais ou carismáticos.11 Para melhor definição conceitual no desenrolar da dissertação, iremos utilizar o conceito de extrema direita para tratar o partido FN e os outros partidos que utilizarmos o termo extrema direita, que serão utilizados como exemplo ou que serão citados durante a dissertação. Consideramos partido de extrema direita, como partidos que apresentam em seu projeto hegemônico características do fascismo, ainda que diante das suas particularidades, das suas modificações, e em caso do abandono de alguns elementos do mesmo, por questões históricas, sociais, culturas e políticas. Portanto acreditamos que os partidos de extrema direita – por mais polêmico que seja seu uso e ainda sem uma definição concreta do conceito são em sua grande essência, partidos fascistas. A extrema direita na Europa tem duas fases para os pesquisadores. A primeira fase, que vai de 1945 ao ano 1980 e a segunda que corresponde da década de 80 até os dias de hoje. Na primeira fase a ideologia da extrema direita europeia, embora na academia aja um debate contínuo sobre o que significa exatamente ser um partido de extrema direita, existe um consenso sobre alguns aspectos que compõem a sua base ideológica: o ultranacionalismo, a xenofobia, antiliberal, homofóbico e seu posicionamento contrário a imigração. A segunda fase da extrema direita tem início na década de 80. O islamismo se tornou o principal alvo dos partidos radicais, sendo “o novo inimigo” no imaginário da extrema direita, particularmente o FN. Em 1990 a revista do partido FN chamada Identité, dedicou um dos seus números para tratar da emergência do combate ao islamismo na França, denunciando a sua pretensa incompatibilidade com a cultura europeia.12 No mundo acadêmico, durante algum tempo, a islamofobia não era tratada como uma nova característica da ideologia da extrema direita, mas a tendência acadêmica era a de considerar a rejeição do Islã, apenas

11

Idem, pg.60 ZUQUETE, J.P. Novos tempos, novos ventos? A extrema-direita europeia e o Islão.Análise Social, vol. XLVI (201), 2011, pg.654 12

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como uma dimensão de “xenofobia” e de ver as narrativas “antimuçulmanas” simplesmente como um componente do discurso contra a imigração13. A recessão econômica de 2008 na Europa deixou transparecer a fragilidade dos partidos tradicionais e a decepção da população com o projeto hegemônico das classes dirigentes, pois fracassaram em suas políticas econômicas, sociais, abalando a confiança de parte importante da população. Como resultado vemos um enorme número de abstenções nas últimas eleições e podemos encarar isso como fruto da falta de credibilidade que o atual método político dos governos não têm a simpatia da população. Para Gramsci o surgimento de grupos ou personagens carismáticos é resultado do fracasso do projeto político das burguesias dominantes14. Além da FN existem outros partidos na Europa com alinhamento partidário fundamentado no projeto fascista, no meio acadêmico europeu, esses partidos são classificados enquanto partidos de extrema direita. Temos como principais partidos de relevância hoje em atuação; na Alemanha o NationaldemokratischePartei15 (NPD); na Áustria temos o BündnisZukunftÖsterreich16 (BZÖ) e o FreiheitlicheParteiÖsterreichs17(FPÖ); na Bélgica o VlaamsBelang18 (VB); na Finlândia oPerussuomalaiset19(PERUS); na Grécia o Aurora Dourada da Grécia (AD); na Holanda o Partijvoor de Vrijheid20 (PVV); na Hungria o MagyarországértMozgalom21(JOBBIK); na Itália temos o ForzaItalia22 (FI) e o Lega Nord23 (LN);

na

Suécia

o

Sverigedemokraterna24

(SD);

na

Suíça

o

SchweizerischeVolkspartei25(UDC); e na Ucrânia temos o Svoboda26 (SVO). O rótulo extrema direita é utilizado pelos pesquisadores europeus para identificar esses partidos citados acima. No meio acadêmico o termo não é unanimidade, é frequentemente alvo de debate. A terminologia surgiu em meio a imprensa para classificar grupos 13

DAVIES, P.; LYNCH, D.The Routledge Companion to Fascism and the Far Right.Londres, Routledge. 2002, pg.162 14 GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pg. 60 15 Partido Nacional Democrático 16 Aliança pelo Futuro da Áustria 17 Partido Liberal da Áustria 18 Interesses dos Flandres 19 Partido dos Finlandeses Autênticos 20 O Partido pela Liberdade 21 Movimento por uma Hungria Melhor 22 Força Itália 23 Liga Norte 24 Partido Democratas da Suécia 25 União Democrática de Centro 26 União de todos os Ucranianos

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neonazistas, neofascistas, que surgiram após a II Guerra Mundial, para determinar uma separação da direita clássica para com os grupos mais reacionários 27. Mesmo o termo sendo polêmico, ainda é utilizado no meio acadêmico Estadunidense e Europeu, e permanece o uso pelos pesquisadores. O termo apresenta algumas variações, sendo essa as cinco formas mais empregadas: Right-wing, FarRight, Extreme Right, Radical Right e Populist28. Essas variações do termo estão sempre associadas a partidos que tenham uma tendência política mais reacionária, em uma classificação mais simplória do termo extrema direita poderíamos há descrever como: A extrema direita em primeiro lugar não seria uma extensão da direita clássica, muito menos seria uma direita reformada, atualizada as condições concretas da sociedade atual, reivindicado o papel de liderança do projeto liberal 29. A extrema direita em primeiro lugar se coloca enquanto diferente a direita, em primeiro lugar porque faz sua crítica a essa forma de governo, pelo seu tom democrático-liberal30. O projeto hegemônico da extrema direita buscar romper com a política dos partidos tradicionais, rejeitando os valores democráticos das sociedades ocidentais europeias, por considera-la

decadente,

responsável

pelo

desmantelamento

do

Estado

Nacional,

enfraquecimento da soberania nacional, por corromper a instituição família, os valores morais e religiosos31. A extrema direita tem como aspiração destruir a atual ordem social, política e econômica, e implantar um novo regime, baseado em seus princípios: Um Estado Autoritário, apoiado no patriotismo, aliado as forças militares e policiais, em uma sociedade hierárquica e meritocrática32. Os partidos de extrema direita também apresentam características reguladoras da sociedade, eles negam os direitos de existir uma proposta diferente, da oposição tanto a esquerda quanto direita, principalmente as ideias oriundas dos marxistas e dos partidos ditos socialistas (hoje em sua maioria sociais democratas, centro-esquerda). O projeto hegemônico da extrema direita visa um governo controlado por poucas pessoas, que nega os direitos das massas e do bem estar coletivo33. Outra característica fundamental da extrema direita é a criação de padrões sociais, 27

EATWELL, R; MUDDLE, C. Western Democracies and the New Extreme Right Challenge.New York and London, Routledge. 2004, pg.8 28 Ala-direita, extrema direita, extrema direita, direita radical e populista, respectivamente. 29 CAMUS, J-Y.L'extremeDroiteAujourd'Hui.Paris, Editions Milan, 2003, pg. 4 30 Idem, pg.4 31 WINOCK, M. Histoire de l’extrême-droiteen France. Paris: ÉditionsduSeuil, 1994, pg 16 32 MAYER, N; PERRINEAU, P. Le Front National à découvert. Paris, Presses de la FNSP, 1989, pg.176 33 JAMIN, J. L'imaginaire du Complot: Discoursd'extrêmedroiteen France et aux Etats-Unis. Amsterdam, Amsterdam University Press, 2009, pg.117

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étnicos, de orientação sexual e religioso que devem ser seguidos. Assim como o fascismo, a extrema direita cria inimigos internos e externos que seriam responsáveis pela decadência da sociedade, da fragilidade da economia do país, classificam grupos que em seu entendimento seriam responsáveis pela violência e desemprego34. Entre os inimigos da extrema direita podemos citar: em primeiro lugar a continuidade do ódio aos judeus, o sionismo, a especulação - assim como o nacional-socialismo – ela se baseia nos livros negacionistas para atacar os judeus e Israel. Em seguida temos a preocupação com os imigrantes, que segundo os partidos de extrema direita o aumento do ciclo de imigrantes para a Europa, teria sido responsável por sobrecarregar o Estado com encargos sociais (habitação, saúde e educação), o número excedente de imigrantes criaria um enorme mercado de reserva de mão de obra, assim desvalorizando os salários e ocupando empregos que no discurso da extrema direita seria de direito da população natural do país. Os imigrantes condenados pela extrema direita são geralmente os imigrantes oriundos de países africanos e países de religião mulçumana35. Na França os mulçumanos são os principais inimigos da extrema direita, em particular a FN. A atual líder do partido Marine Le Pen em sua campanha propôs a expulsão de 200 mil imigrantes ilegais por ano36. Em sua campanha ela discursava sobre os problemas do multiculturalismo, do uso de burca nos espaços públicos, das mudanças na rotina dos franceses para satisfazer a comunidade islã, como respeitar feriados religiosos, cortes de carne especiais, mudança de cardápios nas escolas e empresas, para ela isso fere diretamente o laicidade do Estado Francês37. Para Jean-Yves Camus, o FN na década de 80 e 90, começou a demonstrar suas preocupações com a questão da imigração mulçumana, e que o partido começou a trabalha com a emergência do Islão como “o novo inimigo” no imaginário da extrema-direita38. Outro problema evidenciado é sobre a não integração dos imigrantes a língua e cultura francesa, sendo isso considerado um descaso com a pátria que acolheu os imigrantes. Como parte do reformismo da extrema direita, o discurso racial supostamente é abandonado, pois ele ganha outro nome no discurso da extrema direita, ele é substituído pela defesa da “cultura”, 34

Idem, pg.117 JAMIN, J. L'imaginaire du Complot: Discoursd'extrêmedroiteen France et aux Etats-Unis. Amsterdam, Amsterdam University Press, 2009, pg.118 36 LE PEN, Marine, disponível em http://www.nytimes.com/2014/04/02/world/europe/moderation-pays-off-fora-far-right-party-in-france.html?_r=0 acesso 10 de maio de 2014. 37 CAMUS, J-Y Le nouvelennemi: le monde arabo-musulman ou l’Islam. Le Monde, 23 de Janeiro. 2005 38 CAMUS, J-Y Le nouvelennemi: le monde arabo-musulman ou l’Islam. Le Monde, 23 de Janeiro. 2005 35

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“patrimônio nacional”, da defesa das sociedades europeias, que supostamente estariam sendo destruídas pela invasão dos imigrantes e pelo multiculturalismo. O discurso da FN é mostrar que a imigração é nociva a cultura e identidade francesa, pois ela destrói os valores culturais da população nativa. Em discurso após a eleição para o parlamento europeu Marine Le Pen colocou que a FN é o partido que defende o povo e a França "para defender, em todas as circunstâncias, os nossos valores, a nossa identidade, nossas tradições e nosso modo de vida""39. O radicalismo da extrema direita tem em seu projeto hegemônico raízes permanentes do fascismo, pois busca uma sociedade harmoniosa, homogênea (étnica e cultural), sem conflitos de classe – mesmo inserido no sistema capitalista, assim como o fascismo, mantém a exploração do capitalismo – com o objetivo de resgatar a sociedade tradicional (que acredita ser verdadeira), baseado nos princípios de família, da religião, do desenvolvimento da nação acima dos objetivos individuais.40 Nesse ponto em que esclarecemos as características principais, demonstra a ligação intrínseca entre a extrema direita e o projeto fascista. A partir da década de 90 na segunda fase da extrema direita europeia, temos a modificação de algumas características citadas, ainda que essas estejam sendo investigadas pelos pesquisadores na atualidade. Em primeiro lugar podemos ver alguns partidos, que hoje tecem críticas ao neoliberalismo como a FN – embora historicamente a FN, até os anos 90 foi defensora do que Jean-Marie Le Pen chamava de ultraliberalismo41 - e a forma do sistema capitalista. Hoje vemos uma mudança no comportamento de alguns partidos de extrema direita, por exemplo o apoio do FN à Israel e a comunidade judaica, por acreditar que o principal inimigo hoje são os mulçumanos e o islã, portanto ter o estado de Israel em constante guerra com os mulçumanos, combatendo o “terrorismo”, a extrema direita acredita que o apoio a Israel é benéfico. Essa característica não é aceita pela maioria dos partidos de extrema direita, porque muitos deles mantêm fortes laços com o antissemitismo e com as teorias negacionistas. O FN enquanto partido apresenta características das duas fases dos movimentos de extrema direita que acima mencionamos. Entre 1972 até o fim dos anos 80, ele apresentava características da primeira fase, ou seja, se comportava como um partido de extrema direita 39

LE PEN, Marine, disponível em http://www.theguardian.com/world/2014/may/25/marine-le-pen-confidenceproves-vindicated-front-national acesso 10 de maio de 2014 40 MILZA, P. Le Front national: droiteextrême...ou national-populisme? In: SIRINELLI, J-F. Histoires des droitesenfrance, v. 1. Paris, Gallimard, 1992, pg. 691-729 41 BASTOW, S. Front National economic policy: from neo-liberalism to protectionism?ModernandContemporary France, Vol. 5, No.1, Feb 1997, pg.63.

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clássico. Depois dos anos 80 o partido buscou se distanciar no campo discursivo das alas radicais, embora continuasse debatendo e tendo em suas fileiras membros de grupos neonazistas e neofascistas, e Jean Marie Le Pen manteve seu discurso antissemita. Mas o partido começou a questionar a entrada dos imigrantes mulçumanos, começou a tecer críticas ao neoliberalismo e questionar a União Europeia. Embora no meio acadêmico seja utilizado o termo extrema direita para classificar partidos como o FN, a grande maioria deles rejeitam tal definição. A rejeição ao rótulo e a resistência das suas lideranças políticas, em incorporar tal nomenclatura, deve-se ao fato dos mesmos não concordarem com tal definição por acreditar que ele é estigmatizado, discriminatório, não condizendo com suas propostas políticas. Segundo Brandalise“As dificuldades quanto à determinação de um conjunto de características consensuais na construção do conceito de extrema direita se manifestam já no conteúdo emocional negativo que envolve o fenômeno42” e que os partidos de extrema direita recusam esse rótulo, inclusive o FN por“ recusando a definição de extrema direita, pois esse termo a associaria abusivamente ao nazismo e ao colaboracionismo43”. Outra característica atual da extrema direita é o rompimento com a União Europeia, por acreditar que após a criação da comunidade europeia e o uso do euro enquanto principal moeda, os Estados perderam sua autonomia e controle da sua economia. Para a extrema direita o euro é um dos principais responsáveis pela atual recessão econômica. Segundo Hans-George Betz a extrema direita seria uma organização reacionária, com um programa radical, que rejeita a atual sociedade multicultural e neoliberal44. Para Betz os grupos de extrema direita na década de 90 apresentavam as seguintes características,

Os partidos radicais, populistas e de extrema direita, rejeitam o atual sistema sócio cultural e político social que foi estabelecido pela sociedade individual, de livre mercado, onde o papel do Estado sofreu uma drástica redução. Eles são radicais e tem como rejeição a igualdade individual e social, e se opõem à integração social de grupos por eles considerados marginais, por isso o apelo para a xenofobia, não transparecendo o racismo. Eles são populistas em sua instrumentalização dos sentimentos de ansiedade e decepção com a sociedade e seu apelo ao retorno do homem comum. Eles combinam 42

BRANDALISE, C. Europesdespatries: histórico da extrema direita europeia. Revista Cena Internacional, ano 7, n. 1. Brasília: UNB, 2005, pg.53 43 Idem, pg.53 44 BETZ, H.The New Politics of Resentment: Radical Right-Wing Populist Parties in Western Europe. New York, Comparative Politics, Vol.25 No. 4, 2011, pg.413

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tendências do liberalismo clássico com o programa partidário da nova ideologia da extrema direita e culpam a falta de perspectiva na vida ao atual sistema político.45 Para Roger Eatwell46 recentemente dois termos se tornaram mais utilizados no seio do meio acadêmico, mas que ambos devem ser desconstruídos e que devemos utilizar o conceito de fascismo para lidar com esses partidos,

Nos últimos anos, dois termos tornaram-se preeminente na discussão acadêmica sobre estes fenômenos contemporâneos - a "extrema direita" e 'Populismo'. Buscando desconstruir ambos os termos nos ajuda a entender o risco que representam. No entanto, antes de analisar estes termos centrais, eu vou considerar brevemente 'fascismo' e 'direita radical', que também muitas vezes apresentam em discussões sobre os desenvolvimentos atuais.47 No Brasil alguns pesquisadores rejeitam o rótulo de extrema direita para classificar esses partidos, em primeiro lugar pelo conceito extrema direita ser muito amplo e generalizante. Talvez um dos problemas do uso dessa terminologia e por homogeneizar os partidos que sãobastante diferentes e têm diversas particularidades. Nesse mesmo sentido Jefferson Barbosa acredita que,

No mesmo sentido abstrato e generalizante do conceito de totalitarismo a expressão extrema direita não possibilita a compreensão sobre as particularidades dos objetos investigativos em análise, pois, o caráter gnosiológico e generalizador da expressão extrema direita também obstrui a compreensão das manifestações políticas em seus aspectos de historicidade e particularidade.48 Para Jefferson Barbosa, o ressurgimento de movimentos genericamente denominados de extremistas de direita, e de vitórias eleitorais ou votos representativos em proporção numérica de políticos ligados a plataformas políticas chauvinistas e xenófobas no final do século XX e início do século 45

BETZ, H.The New Politics of Resentment: Radical Right-Wing Populist Parties in Western Europe. New York, Comparative Politics, Vol.25 No. 4, 2011, pg.414 46 BETZ, H.The New Politics of Resentment: Radical Right-Wing Populist Parties in Western Europe. New York, Comparative Politics, Vol.25 No. 4, 2011, pg. 413 47 EATWELL, R; MUDDLE, C. Western Democracies and the New Extreme Right Challenge.New York and London, Routledge. 2004, pg. 5 48 BARBOSA, J.R.Integralismo e ideologia autocrática chauvinista regressiva: crítica aos herdeiros do sigma. Marília, 2012, pg.199. Tese (Doutoramento em Ciências Políticas) – Universidade Estadual Paulista

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XXI, geraram grande repercussão nos meios midiáticos e levaram pesquisadores a reverem as análises do conceito Fascismo, que eram relacionadas diretamente ao contexto do pós Primeira Guerra Mundial. Para a historiadora Carla Brandalise o conceito de extrema direita tem diversas representações e conceituações, sendo ele construído historicamente, apresentando particularidades ao longo das décadas, sendo o conceito próprio de cada conjuntura49. Para Brandalise na política a extrema direita apresenta diferentes formatos, Na evolução do cenário político, além do mais, existe não uma, mas várias extremas direitas na medida em que o termo engloba formações que respondem a exigências contextuais, com inspirações e objetivos diversos, senão contraditórios. Cada expressão extrema direita contém novidades, mas também um fundo histórico cumulativo.50 Para Michelle Hale Willians, até o final do século XX, parte dos pesquisadores sobre o tema na década de 90, estudavam os grupos de extrema direita como mera anomalia política em meio ao cenário democrático, sem se aprofundar nas transformações do neoliberalismo e nas mudanças na sociedade pós moderna51. Dessa forma esses pesquisadores não conseguiam explicar o porquê do crescimento desses partidos, porque o enxergavam enquanto grupos saudosistas fora da conjuntura social. Nesse mesmo sentido Willians coloca,

No fim do século XX se tornou difícil se livrar da direita radical, os estudiosos sobre o tema ainda não tinham ideia de avaliar o quanto essa direita radical representa enquanto ameaça, se ela realmente existe, e qual a natureza da sua existência. Claramente a direita radical demonstra uma presença consistente e crescente nos últimos 13 anos ou mais. Contudo, no que diz respeito a direita radical, ainda continua obscura a sua importância ou seu verdadeiro impacto sobre o governo e a sociedade.52 Então faz-se necessário explorar o debate acadêmico existente sobre a temática, principalmente nos termos utilizados para rotulação dos movimentos de extrema direita, e saber definir conceitualmente a forma mais adequada para analisar o processo histórico escolhido. Dentre as definições conceituais, acreditamos que o conceito de fascismo 49

BRANDALISE, C. Europesdespatries: histórico da extrema direita europeia. Revista Cena Internacional, ano 7, n. 1. Brasília: UNB, 2005, pg.55 50 Idem, pg.53 51 WILLIAMS, M. The Impact of Radical Right-Wing Parties in West European Democracies.New York: Palgrave, 2006, pg.3 52 Idem, pg.1

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desenvolvidos pelos intelectuais marxistas, é o melhor caminho para conseguir investigar os atuais partidos de extrema direita, por conseguir ultrapassar conceituações mais simplistas, que não conseguem analisar o processo em sua totalidade.

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IGUALDADE, LIBERDADE E PARTICIPAÇÃO DAS MINORIAS: VISÕES CONTRATUALISTAS Mateus Henrique Carvalho Garcia de Souza1 Gustavo Biasoli Alves2 Resumo:A democracia está em crise, por não conseguir satisfatoriamente incluir as minorias no debate político, respeitando as liberdades do cidadão sem perder de vista a igualdade. Tendo em vista esse pressuposto, vê-se a importância de ações por parte do Estado para estabelecer direitos as minorias, a fim de atenuar as desigualdades sociais e também possibilitando ao indivíduo o aumento de suas capacidades. Tendo esse panorama em vista, foi analisadas as obras dos clássicos do pensamento político liberal, enfocando questões como liberdade, democracia e igualdade visualizando como cada um dos autores (Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau) analisaram questões como participação das minorias frente ao poder Soberano. Palavras-Chaves: Igualdade; Liberdade; Democracia. INTRODUÇÃO O fator determinante desse artigo é encarar a crise de representatividade da democracia, que tem dois motivos principais: o primeiro deles é a presença maior de pessoas exercendo o direito de voto, segundo Pinto (2003) 3até o ano de 1930 no Brasil era somente cinco por cento da população que votava, desse fato se deriva a como a dificuldade de se formar interesses coletivos, pois a nossa democracia não fomenta meios de representação direta, excluindo as minorias, que são as mais fracas politicamente, desse processo. O segundo motivo de acordo com Pinto (2003) é falta de inimigos da democracia, em outras palavras, hoje parece que essa forma de governo no Brasil se tornou um valor universal, seja no pensamento de direita seja no pensamento de esquerda ninguém tem coragem de criticar a democracia. Esse problema é extremamente sério, pois ela tira a preocupação de se melhorar a democracia e também a democracia perde o seu caráter político e sua historicidade para se tornar um valor moral, ou seja, ela está perdendo a sua capacidade de garantir direitos universais, principalmente as minorias, por não estar mais tão preocupada com problemas sociais que os cerca. Para ajudar na busca de soluções desse panorama se releu a obra de alguns dos autores liberais (Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau) enfocando questões como liberdade, igualdade e participação popular. Consideramos importante esse estudo pois as premissas aqui analisadas para compreender a forma e praticamente todas as ações da política. Por exemplo, ao criar uma lei são levadas em conta a liberdade e a igualdade. Ao avaliar se uma ação afirmativa é justa também. Ao se pensar os direitos controversos as mesmas questões são levantadas. Mas essas 1

Graduando do curso de Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Campus Toledo. Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação Araucária. E-mail: [email protected] 2 Doutor em Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(2004). Professor Doutor do Curso de Ciências Sociaispela Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Campus Toledo (Graduação e Mestrado). Email: [email protected] 3 PINTO, C. R. J. Teoria da democracia: diferenças e identidades na contemporaneidade. Porto Alegre: Edipurcs, 2004

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discussões serão feitas mais para frente quando discutirmos os autores contemporâneos Esse trabalho científico a contar dessa introdução será organizado da seguinte maneira: Primeiro desenvolveremos melhor o problema visualizado na democracia contemporânea. Em seguida apresentaremos a metodologia desse artigo. Depois enfocaremos as principais questões presentes nas obras dos autores contratualistas e por fim apresentaremos a conclusão desse artigo. Lembrando que por mais que o intuito principal desse trabalho seja problematizar a liberdade e igualdade e participação popular; não se resume só isso. Pois precisaremos trazer questões adicionais de extrema importância que estão presente em toda a obra contratualistas. A DEMOCRACIA QUE NÃO MAIS REPRESENTA Segundo Pinto (2003) a democracia contemporânea sofre de uma crise de representatividade, ocasionada em grande medida pela falta de inimigos, seja no pensamento de esquerda seja no pensamento de direita, ninguém tem a coragem de ir a televisão e falar que é contra essa forma de governo. Porém antes de aprofundar no problema dessa crise, Pinto (2003) faz uma discussão sobre os conceitos de igualdade e liberdade e sua importância para qualquer forma de governo. Para ela igualdade e liberdade são conceitos que se tencionam, não da para você garantir a liberdade sem restringir a igualdade e vice-versa, esse fato é importante porque segundo a autora na falta de algum desses princípios se torna impossível ter uma democracia. Segundo a cientista política na contemporaneidade se está muito preocupado com a liberdade e pouco com a igualdade. Baseado no que nos mostra Pinto (2003) essa problema de falta de inimigos da democracia é extremamente sério, pois ela tira a preocupação de se melhorar a democracia e também a democracia perde o seu caráter político e sua historicidade para se tornarum valor moral, ou seja, ela está perdendo a sua capacidade de garantir direitos universais, por não estar mais tão preocupada com problemas sociais que os cerca. Mas segundo Celi Pinto há mais ou menos quarenta anos atrás a democracia não era defendida nem pela direita e nem pela esquerda, pois a primeira defendia a democracia em tese, mas precisa-se construir um estado autoritário faria sem nenhum problema. A extrema esquerda, por sua vez, via a democracia como um regime burguês, ela não era tão defendida por essa classe, que estavam mais preocupados com a equalização social. Conforme o que foi exposto a cima, analisa-se esse cenário como extremamente benéfico para democracia, pois esta tinha que estar a todo momento sendo defendida e melhorada. Para exemplificar esse panorama Pinto (2003) cita dois momentos: o primeiro é o estado de bem estar social fruto das tensões entre a democracia burguesa e o socialismo. O segundo momento é por volta dos anos 1960 e 1970 na América Latina, período de ditadura, onde a esquerda começa a defender a democracia. Ainda outro exemplo que a autora cita é que aqueles direitos trabalhistas conquistados nos anos de 1970 e 1980 estão sendo ameaçados, justamente pela falta de inimigos da democracia. Esse panorama exposto nesse artigo é agravado se analisarmos a crise de representatividade que sofre a democracia hoje, estão entre os principais motivos a presença maior de pessoas exercendo o direito de voto, segundo Pinto (2003) até o ano de 1930 no Brasil era somente cinco por cento da população que votava, e assim como a dificuldade de se formar interesses coletivos. Lembrando que para a autora interesses coletivos são diferentes de opinião da maioria, pois o primeiro é o interesse da maioria refletido e o segundo é só a vontade da maioria, sem haja entre as partes reflexão. A autora nos apresenta os perigos de se substituir os as funções do Estado e colocá-la na mão da sociedade civil, porque corre um risco muito sério de haver uma privatização dos interesses do Estado, aumentando as desigualdades. 175

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Ainda é de extrema importância exaltar o argumento do texto que nos ajudará a construir importante argumento do motivo que se propôs se retomar a analise da democracia nesse artigo. Esse argumento é que segundo Pinto (2003) mundo ocidental assistiu uma incorporação de grupos sociais e não é mais legítimo ter uma noção de cidadania universal, ou seja, é preciso se incluir as diferenças dentro do processo democrático, pois a autora acredita que quanto mais se incluir as diferenças, mais igualitária a sociedade será, pois mais pessoas podem intervir no processo político. Segundo Pinto (2003) quando se busca a igualdade sem levar em conta as diferenças, os mais iguais vão decidir pelos diferentes. METODOLOGIA Propõe-se como metodologia para esse resumo expandido e fichamento dos clássicos do pensamento liberal (obras bibliográficas) a fim de entender e problematizar a questão da participação. Segundo Gil (2010) a pesquisa bibliográfica passa por diversas etapas: primeiro tem que se realizar um plano provisório de pesquisa, nessa fase é importante se ter um problema de pesquisa mais ou menos delimitado que se quer responder. Depois vem a etapa de identificação das obras capazes de responder o problema de pesquisa. LEVIATÃ (1651) - THOMAS HOBBES Para Hobbes (2008)4 os homens (e as mulheres) são todos iguais no estado de natureza5 e por causa dessa igualdade não é admirável que eles queiram a mesmas coisas. No Estado de Natureza ninguém tem posse daquilo que lhe pertence e todos se defendem através da força e da violência. Como no estado de guerra6, o homem tinha que estar o tempo todo na vigilância, em conseqüência disso a sociedade não se desenvolvia economicamente. Por causa dos infortúnios do Estado de natureza é que os homens (com exceção das mulheres) fazem o pacto, visando garantir a paz, abdicando do direito a todas as coisas. Por isso é preciso que todos concordem com o que está sendo contratado; pois agora a vontade do soberano e do povo deve ser as mesmas. Só há justiça e propriedade depois da implantação do pacto. No Estado Civil7 não há espaço para interesses individuais. Todos os homens autorizam o soberano a ser senhor de suas vontades. Quem desobedecer as leis civis desobedece ao soberano. Todas as ações do soberano devem sempre, proteger seu Estado e garantir a paz. Os homens fazem o pacto (contrato) por temor à morte e não por temor a alguém. O poder do soberano é intransferível. O soberano não pode ser punido pelos seus súditos, pois ele é o único legislador. Para Hobbes a noção de liberdade dentro e fora do Estado. No Estado deNatureza, refere-se à ausência de impedimentos externos: LIBERDADE significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além [...] homem livre é aquele que, naquelas coisas graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de HOBBES, T. Leviatã ou a matéria, forma e poder de um ESTADO eclesiástico e civil. Tradução: Rosana D’ Angina; Consultor Jurídico Thélio de Magalhães. 3 ed. São Paulo: Ícone, 2008. 5 O conceito de estado de natureza tem a função de explicar a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente, sem a presença de um Estado Soberano. 6 Hobbes não separa estado de natureza e estado de guerra. O estado de guerra é um estado de guerra de todos os homens com todos os homens, onde o homem utilizava de sua força para se defender. 7 Na teoria Contratualista a forma do Estado de Natureza determina a forma da Sociedade Civil. 4

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fazer o que tem vontade de fazer (HOBBES, 2008, p.171).

Os súditos quando se põe aos laços das leis civis, tem dificuldades de rompê-las, pois a liberdade do súdito é determinada pelo soberano. A liberdade individual é sempre submetida ao Estado. Hobbes destaca que a propriedade só vem através do Estado. A lei da propriedade dá a cada o que é seu por direito. O autor também vai falar da natureza das leis civis: que são leis que o homem deve observar por ser membro de um Estado. E o conhecimento dessas leis tem que se dar por parte de todos os membros do Estado. Segundo Hobbes a igualdade dentro do estado é determinada pelo soberano, mas na condição de súditos somos todos iguais porque nós submetemos todas as vontades a ele e não devemos questionar suas ações porque são também nossas ações. Natalia Muruyama, comentadora de Hobbes, através do texto “Liberdade, lei natural em Hobbes: limiar do direito e da política na modernidade.” nos traz um panorama bem relevante para aprofundar a liberdade na obra do Leviatã. Muruyama (2009)8 fala que na obra de Hobbes a liberdade é mais que um valor moral, ou seja, está submetido a necessidade e ao mundo externo. Hobbes separa Direito Civil e Natural. Salienta que para Hobbes direito civil é uma criação humana e direito natural, é uma brecha na lei, baseada numa lei de natureza. A liberdade do súdito dentro do Estado vai até onde o Soberano não proíbe. E que deve-se sempre observar os direitos naturais para se criar as leis civis. Outro aspecto interessante é que para Hobbes o pacto faz os súditos reconhecer o direito de outros e que no Estado um valor moral não pode ser usado como desculpa para se descumprir uma lei civil. Outro autor que complementa o que foi dito acima é Malherbe (2002)9ao falar que uma ação pode ser livre e necessária, como por exemplo a instituição da república. Liberdade e poder para esse autor estão ligados, você é tão livre quanto mais tem poder pra exprimir essa liberdade. Para Malherbe (2002), dentro do Estado, a lei do soberano é absoluta. Na sociedade civil continua as necessidades naturais. Os súditos transferem suas ações ao soberano: reconhecem as ações do soberano como suas. Impõe um único meio, é necessário que se tenha uma vontade única, é preciso substituir o aparato natural pelo moral. O pacto fez com que se impusesse uma única forma racional de resolver as questões. Outro texto que ajuda Frateschi, intitulado “Liberdade e Livre-Arbítrio em Hobbes”. 10 Nesse artigo a autora trabalha com duas concepções de liberdade, que é a de Thomas Hobbes e de Bramhall11. A concepção de Liberdade presente no Leviatã, ésegundo Hobbes (2008) entendida como a ausência de impedimentos externo. Já para Bramhall livre arbítrio é causa de pecado e punição, para Hobbes, segundo Frateschi (2011), a liberdade está submetida ao mundo externo, minha vontade me segura. Ao analisar a concepção de Liberdade de Hobbes, Bramhall critica que o autor tira a responsabilidade do sujeito, o 8

MARUYAMA, N. Liberdade, lei natural e direito natural em Hobbes: limiar do direito e da política na modernidade. Trans/Form/Ação[online].2009, vol.32, n.2, pp. 45-62.ISSN 0101-3173. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732009000200002 9 MALHERBE, M. Liberdade e Necessidade na filosofia de Hobbes. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12, n. 1-2, p. 45-64, jan.-dez. 2002. 10

FRATESCHI, Y. Liberdade e Livre-arbítrio em Hobbes. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 17, n. 1, p. 109-124, jan.-jun. 2007. Jequié v.1 n.1 p. 51-77 set./dez. 2011. 11 A polêmica entre Hobbes a Bramhall acerca do livre-arbítrio e da liberdade humana começou em 1645 e se estendeu até 1658, com a publicação de um textode Bramhall que não recebeu resposta de Hobbes (CastigationsofMr Hobbes). Este artigo e baseiaemquatrotextos: Discourse of liberty and necessity e A defence of true liberty de Bramhall; Of liberty and necessity e Questions concerning liberty, necessity and chance, de Hobbes. (Frateschi, 2001)

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individuo não é livre para escolher pecar ou não pecar. A noção que Bramhall nos traz de livre arbítrio gira em torno da responsabilidade, Para Bramhall o pecado é errado porque é uma ação que o homem pode evitar, para este autor as escolhas do sujeito são feitas moralmente e não por determinismo. Frateschi (2011) disserta que ao negar parte moral da liberdade, Hobbes nega todos os dogmas da igreja. Bramhall crítica Hobbes ao falar que sua noção de liberdade aponta para a inutilidade das leis já que o sujeito não pode ser responsabilizado pelos seus atos. Hobbes defende das acusações argumentando, segundo Frateschi (2011), que a lei é justa porque é lei e não cabe ao súdito questionar o poder do soberano. A leiturada obra hobbesiana e de seus comentadores tem um conteúdo muito peculiar e interessa imensamente ao artigo, pois interpretando o que foi exposto acima dá pra se notar que a incorporação de direitos dos grupos minoritários vai acontecer pela ampliação das leis estatais, nunca violando as leis do Estado, mas ampliando o poder de grupos e sempre observando os direitos naturais, a necessidade e a vontade da maioria, que é soberana, através de leis racionais. Por mais que na obra de Hobbes a sociedade é governada pelo povo, o poder do soberano é quase incontestável, pois ao ser defensor do autoritarismo, não cabe ao povo contradizer o soberano. SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO (1690) - JONH LOCKE Para Locke (2006)12 liberdade é ação de omitir ou não suas ações. De controlar suas ações em decorrência da sua mente. Está ligada com a vontade, pois é a mente que tem a vontade e o corpo o poder. Ele separahomem e agente. O primeiro seria a liberdade física. E o segundo seria a capacidade de controlar a ação pela razão. Liberdade13 está na capacidade de fazer leis. No estado de natureza eram todos livres e iguais só estando submetido a uma lei, que era de não prejudicar outro. Todos tem o poder executivo nas mãos, tendo a capacidade de julgar o que o outro fez e por isso que o pacto acontece porque não havia imparcialidade nas decisões. Por issoo homem só amplia sua liberdade e dá a sociedade o seu poder de julgar tendo a quem recorrer se este sentir-se injustiçado. O poder legislativo é soberano na sociedade e sempre será feito pelo povo. Ao analisarmos a obra de John Locke o conceito de liberdade sofre algumas modificações, em relação a obra do Leviatã, mas ainda há aquele caráter de liberdade sobre leis civis, a liberdade dentro do estado é melhor do que fora dele. Locke ao contrário de Hobbes não vê o individuo preso dentro de um estado, ele dá a possibilidade do povo, se assim quiser, sair dos limites da sociedade civil e voltar ao estado de natureza. 14Na obra deste autor consegue-se mais claramente a diferença entre poder soberano e formas de governo. Ele defende a forma de governo monárquica é a mais incompatível com a sociedade civil, esse fato nos diz muito da concepção de liberdade deste autor, pois se deixamos o estado de natureza para termos a mesma igualdade jurídica é incompatível nos submetermos a um único rei. Neste autor fica muito mais evidente a noção de colocar limites ao poder soberano. 12

LOCKE J. Segundo tratado sobre o governo. Tradução Alex Marins. 2 ed. São Paulo: Martin Claret, 2006. Ver YOLTON (1996) 14 Locke pensa em um estado deextrema liberdade onde o homem pode regular suas posses e suas vidas conforme for conveniente. Para Locke o Estado de natureza tinha uma regra que era baseada em uma lei de natureza. Nenhum temdireito de prejudicar a vida de outrem. A lei de natureza proibi o suicídio. Destruir qualquer coisa que esteja em sua posse. É um estado de paz e prosperidade. O autor separa estado de natureza e estado de guerra. Para Locke (2006) estado de guerra é a inimizade declarada ameaçando a vida do outro. Quem tenta impor poder absoluto sobre outro está em estado de guerra com ele. Não se deve tirar a liberdade do cidadão se não estará em estado de guerra com ele. Diferencia estado de guerra e estado de natureza. É estado de natureza quando dois homens vivem de maneira igual, só tendo a lei de natureza como reguladora. Quando um homem tenta subjugar o outro e tirar sua liberdade é estado de guerra. 13

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Para este autor no estado de natureza já tínhamos posses individuais, a liberdade já estava instituída, então só há uma ampliação dessas liberdades. Ele na maioria das suas passagens usa o termo sociedade civil para se referir ao termo soberania. Segundo Locke (2006) o inconveniente que faz os homens abandonarem o Estado de natureza é que todos os homens por serem iguais têm capacidade de julgar o que o outro fez. O lesado pode pedir reparação do dano ou ainda perdoar o que o outro homem fez. Como a punição parte da razão de cada um, sem lei que regulamente cada um pode punir do jeito que quiser. Todos nesse estado têm o poder executivo nas mãos e por conseqüência disso não há imparcialidade nas punições. A propriedade tem importância fundamental na obra de Locke. Segundo Locke (2006) o que firma seu direito sobre alguma coisa é o seu trabalho em cima daquela coisa, pois ele que dá mais valor as coisas que o rodeiam porque supõe que você transformou aquela coisa. Você só deve consumir os bens da natureza conforme a necessidade e também não deve deixar apodrecer aquele bem. A posse de um bem não deve prejudicar ninguém. No começo das sociedades o povo se contentava com o que era de uso comum, com o aumento da população e com o uso do dinheiro se fez necessário o pacto. O dinheiro possibilitou aos homens o aumento das posses, pois não estragava e não apodrecia e podia ser trocado com mais facilidade. A abordagem de Locke é interessante para o tema da artigo, pois coloca a vontade da maioria na centralidade da discussão e vê que o povo, que é soberano pode questionar as ações dos governantes, pois o poder de legislar é do povo e é isso que assegura a sua soberania. Ele vê a melhor separação entre formas de governo e soberania. Pode-se concluir que na visão de Locke, a incorporação de direitos por grupos minoritários acontecerá quando amaioria quiser, fazendo leis que assegurem esses direitos.

DO CONTRATO SOCIAL (1762) - JEAN-JACQUES ROUSSEAU Para Rousseau (1983)15 renunciar a liberdade é renunciar a essência humana. O homem tem a capacidade de frear os instintos. Toda a ação livre é portanto moral. Liberdade é eliminar os obstáculos. É o espaço que temos para fazer o que nos agrada. Ninguém nasce escravo. Cada um é seu próprio juiz. Restrição só é valida quando parte de todos. Deve-se respeitar a liberdade dos outros, ou seja, não ser tirânico. Para Rousseau existem dois tipos de desigualdades: 1) naturais 2) sociais. O homem dentro da Sociedade civil quer ser superior, mas é necessário uma igualdade básica que ninguém esteja em relação de escravidão. É necessário também que todo o cidadão tenha igual autoridade, que todo o poder venha do povo. Rousseau (1983) expõe a ideia de liberdade dentro da ordem social. A restrição da liberdade pela força é temporária, a não ser que transforme a lei em direito. Ceder da liberdade através da força se dá por vontade e não por necessidade. A força não gera direito, mas o consentimento. Para o autor tem uma grande diferença entre subjugar a sociedade e governar a sociedade. O poder deve vir de uma associação, ou seja, o povo só se submeterei por deliberação. Chegou um momento no estado de natureza1617 que o homem viu que tinha 15

ROSSEAU, J. J..Do contrato social; Ensaio sobre a origem das línguas; Discurso sobre a origem das desigualdades e o fundamentos das desigualdades entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes. Tradução Lurdes Sanches Machado; Introdução e notas: Paul Arbouse-Batisde e Lourival G. Machado. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 16 Ver Santos (2000) e Dent (1996). 17 Rousseau acredita que esse estado é de felicidade, onde os homens viviam em harmonia com a natureza, tendo a liberdade de movimento. O ato de associar-se, na concepção deste autor, deprava e perverte o individuo. A

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mais força se formasse associações. Então ele abdica da força de viver individualmente e não da liberdade. Rousseau (1983) acredita que o contrato social não se dá pela alienação total de direitos, se não causaria desigualdade. No estado de natureza há um aumento da racionalidade e o individuo ganha a posse de tudo que possui e também a liberdade jurídica. A força dos indivíduos é transferida ao Estado, mas ela não muda de natureza. O direito que cada um tem sobre a posse está submetido à comunidade. Rousseau ainda afirma que só a vontade geral pode dirigir os rumos do Estado, visando sempre o bem comum. Toda a parte do poder legislativo, executivo e judiciário deve estar submetido à vontade geral. A vontade do soberano tem que estar presente na vontade de cada um e não a vontade individual. A vontade individual tem que estar baseada na vontade geral. O contrato tem como objetivo a proteção do contratante. Você só pode proteger sua vida dando ela a outro. O Estado tem a função de proteger a vida do cidadão, por isso se alguém tentar contra a vida do cidadão está agindo contra o Estado. Defende que existe uma diferença entre poder executivo e legislativo. Esse último, segundo Rousseau (1983), é o poder que os homens tem de fazer leis, que está nas mãos do povo. O poder executivo é o governo que faz com que as leis sejam executadas. Mas deixa claro que os governantes só administram a sociedade e por isso estão submetidos ao povo. Reafirma que o povo faz parte do soberano e está a ele submetido. O governante não pode usar do poder dado ao soberano para fazer prevalecer vontades individuais. Expõe que a dissolução do governo se dá basicamente quando o soberano deixa de visar interesses públicos e visa interesses privados. Nenhuma forma de governo é eterna. Outros dois autores nos ajudaram a compreender a obra Roussiana foram eles: Sahd através do texto The notionofliberty in Rousseau´s Emile18 e Santos com a obra: Notas sobre o conceito de Liberdade em Rousseau19. No primeiro texto faz uma discussão bem interessante sobre o conceito de liberdade em Rousseau, mas voltada para o processo educativo. Segundo ele a criança tem sua liberdade limitada por suas forçasfísicas. Ele pensa um modelo de educação baseado na liberdade e para a liberdade, ou seja, segundo Sahd (2005) deve-se exigir que façam mais por si mesmo e dependa menos dos outros, ou seja, incitando a liberdade. Segundo o autor a liberdade do homem civil é limitada pelos seus próprios desejos. Para resolver esse problema o homem tem q se dar a vontade da maioria e não a vontade particular, pois essa submissão seria a pior forma de liberdade.20 De acordo com a noção de Sahd (2005) o homem deve controlar as paixões e também estar submetida a leis positivas. As necessidades naturais devem ser priorizadas, resignando racionalmente a vontade da maioria. Santos (2000) expõe em sua obra que para Rousseau a liberdade é algo inalienável, em outras palavras, o homem não perde a sua liberdade mais só amplia. Com a passagem do estado de natureza para a sociedade civil, na perspectiva Rousseauniana é que o homem adquire a noção de moral, em outras palavras, no estado de natureza o homem não tinha a noção de bem e de mal, pois vivia numa situação de desumanização e esse fator impedia o mesmo de se desenvolver economicamente. sociedade é o um lugar onde as tendências corruptas se afloram Mas Rousseau também concebe, por outro lado, que esse estado é onde a capacidade cognitiva do homem é limitada e que ele é um ser que nasceu para viver em sociedade através de leis racionais. 18 SAHD, L. F. N. de A. e S.The notion of liberty in Rousseau´s Emile.Trans/Form/Ação, (São Paulo), v.28(1), 2005, p.109-118. 19 SANTOS, S. G. B. Notas sobre o conceito de Liberdade em Rousseau. Síntese, Belo Horizonte, v.27, n.89, p. 375-386, 2000. 20 A República é a única forma de governo que na visão de Rousseau que podia impedir que as vontades particulares se sobrepõem a vontade da maioria.

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Segundo Santos (2000) também o Estado pensado por Rousseau é algo deliberativo, diferentemente de Hobbes. Como os homens aqui não estão desesperado para sair do estado de natureza, eles podem conhecer as vantagens na associação. Na passagem ele ganha tudo o que se perde, ou seja, ele abre mão de coisas para ganhar em dobro.

CONCLUSÃO Com base no que foi exposto acima dá para se tirar conclusão que a questão da participação da maioria iria se dar de forma diferente na visão dos três autores. Na visão de Hobbes a liberdade está ligado ao movimento, isso significa que dentro do Estado a liberdade cai até aonde o Soberano quiser, não cabe ao povo questionar as decisões do Soberano. A participação da minoria e as liberdades individuais será sempre determinada pelo rei. Essa interpretação deriva do fato de que o estado de natureza é o estado de guerra. E qualquer decisão do soberano é melhor que o estado de guerra. Locke já dá uma abertura maior a participação da maioria. Ele vê melhor a separação entre estado e governantes. Ele vê a forma monárquica de governo como incompatível ao estado e o súdito tem mais liberdade, pois se quiser pode voltar ao estado de natureza. Esse autor desenvolve argumentos mais democráticos, falando que o povo deve reger o Estado. Para Rousseau, defensor da democracia, a participação da maioria é essencial para o Estado, pois a liberdade é fazer leis que você mesmo criou. A Sociedade Civil é regida pela vontade da maioria e ele claramente defende que o poder legislativo é sempre a sociedade que fará, pois ele é o Soberano na sociedade, aos outros poderes só cabe fazer com que as leis sejam executadas e julgadas, com base na constituiçãoA democracia para esse autor acontece de forma direta.

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DO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO: UMA REFLEXÃO SOBRE EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E TRABALHO Giovane Lozano 1 Pamela Pecegueiro 2 Resumo: O presente artigo tem como intuito apresentar as relações existente entre Educação, Sociedade e Trabalho dentro da sociologia clássica – Durkhein, Marx e Weber – assim como fazer um paralelo com a sociedade atual, onde certas formas de relações não se alteraram de forma significativa. O texto foi dividido em três momentos: no primeiro será discutido a sociedade e o trabalho na literatura clássica; no segundo momento será tratado educação e sociedade, como elas se relacionam e se afetam; e no terceiro momento será desenvolvido educação e trabalho na contemporaneidade discutindo com autores de renome que debatem os assuntos na atualidade.

Palavras-chave: educação, sociedade, trabalho.

Introdução Para entendermos minimamente o processo educacional e sua relação com o mundo do trabalho é preciso fazer uma pequena reflexão sobre a sociedade contemporânea e a sociedade moderna onde as indústrias começam a se desenvolver e dessa forma, carecem de mão de obra competente e barata. Nesse contexto, levando em consideração a internacionalidade do capital, propõe-se uma breve análise da conjuntura histórica da relação trabalho, sociedade e educação. Esse último segmento vêm sendo passado como mecanismo de encaminhamento e preparação do indivíduo para sua iniciação no mercado de trabalho, pondo em segundo plano o seu "desenvolvimento genérico humano". Nessa perspectiva, o presente artigo foi dividido em três tópicos para facilitar a exposição e o entendimento das discussões propostas. O primeiro visa analisar a relação entre trabalho e sociedade dentro da concepção da Sociologia Clássica, observando as 1

Acadêmico do Curso de Ciências Sociais Licenciatura/Bacharel da Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE/Toledo. E-mail: [email protected] 2 Acadêmica do Curso de Serviço Social pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioete/Toledo.email: [email protected]

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características históricas presentes em tal processo. No segundo momento será observada a relação educação e trabalho, como estão atreladas e como uma é reflexo da outra. Por fim, o terceiro tópico abordará o impacto das mutações do mundo do trabalho sobre as práticas pedagógicas e alguns apontamentos referentes à relação entre sociedade e educação, tomando como base conceitos de alguns grandes pensadores influentes sobre o tema.

1. Trabalho e Sociedade na Sociologia Clássica. Para entender a relação existente entre as categorias trabalho e educação na sociedade contemporânea é preciso, antes de qualquer coisa, apontar qual a perspectiva de sociedade que será utilizada. Neste sentido, constatam-se três perspectivas distintas entre si, mas que permitem entender quais os fatores determinantes do convívio social. A primeira delas observa a sociedade sobreposta e determinante das relações entre os indivíduos; a segunda considera a sociedade como sendo resultante das relações individuais que, por sua vez são definidas e determinadas por fatores diversos; e, a última, aponta a sociedade e as relações individuais como produtos da necessidade de consumo dos indivíduos, ou seja, o individuo só se relaciona em sociedade por depender da troca de seus produtos e a sociedade só se compõe a partir das relações de interdependência produzidas por esses indivíduos. A concepção de Durkheim3 atribui à sociedade um caráter de superioridade em relação aos indivíduos, pois a mesma possui o poder de reger a conduta dos homens e mulheres mantendo-os num padrão controlado e sujeito as suas variações. A partir da divisão social do trabalho, onde o individuo já não tem uma consciência do todo, mas apenas uma preocupação imediata em cumprir sua função social, constata-se um processo de fracionamento da sociedade, onde os laços de sociabilidade são definidos pelas relações de interdependencia estabelecidas. Em outras palavras, o individuo é incapaz de tomar decisões independentemente, pois todas as ações estão alicerçadas em representações ou valores que são essencialmente coletivos, desempenhando funções sociais e garantindo a manutenção da harmonia social. Segundo Durkheim4, toda sociedade permanece unida devido a moral existente em cada momento histórico. Esta moral é fruto da organização social de cada organização, mas especificamente do tipo de solidariedade existente nas mesmas. Na visão do autor existem dois tipos de solidariedade que seriam a orgânica e a mecânica. Ao estudar a solidariedade orgânica,

3

Cf. BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira, OLIVEIRA, Márcia Gardênia e QUINTANEIRO, Tânia. Um toque de clássico: Marx, Durkheim e Weber. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2000. 4 Ibidem.

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Durkheim faz uma comparação da organização existente entre as diferentes instituições que compõem uma sociedade e os órgãos presentes em um ser vivo no intuito de ressaltar que as relações de interdependência existente entre cada órgão ou entre cada instituição.

Nesta

perspectiva, todos os elementos que estão no interior de uma sociedade ou do corpo social trabalham juntos e são igualmente indispensáveis para a vida e para a totalidade do coletivo. A consciência coletiva, não é o total de uma sociedade, mas é o conjunto de cada individuo que contribui para a formação do todo, sendo assim, cada pessoa tem o seu particular, mas é o coletivo que os unem, por depender do outro e pelas suas crenças, costumes e tradições. Por outro lado, Max Weber5 se contrapõe a Émile Durkheim ao afirmar que a sociedade é composta por indivíduos, ou seja, cada indivíduo a partir da sua relação com o coletivo constrói seus valores. Estes valores não se modificam espontaneamente, ocorrem alterações nas suas bases a partir de um processo histórico. Em suma, os valores que a sociedade contemporânea obedece foram produzidos anteriormente e modificados até chegarem a nós, estes sofrerão evoluções no decorrer do tempo e resultarão em mudanças às gerações futuras a partir do processo de racionalização da vida social. Portanto, o individuo como parte do conjunto, pode por sua vez modificar as relações mutuas, no sentido de se adequar à sociedade ou adequar a sociedade ao seu modo, dando assim as mudanças no conjunto de relações sociais. A sociedade para Weber6 se compõe de diversas esferas (política, religiosa e econômica) carregadas de valores intrínsecos e particulares. Estas esferas sofrem influência das ações individuais, que se expressam de forma afetiva, tradicional e racional. Assim, o individuo é o elo entre as diversas esferas através das suas próprias ações, que podem ser: 1) tradicionais derivadas de costumes já enraizados; 2) afetivas, oriundas do afeto ou dos sentimentos; 3) racional a valores, onde o individuo esta ligado a algum valor social importante e organiza estratégias racionais para atingi-lo e preserva-lo; e, 4) racional a fins, onde o indivíduo organiza estratégias para atingir suas metas pessoais. Já Karl Marx7, analisa a sociedade através do materialismo histórico dialético e atribui as relações entre as práticas sociais e o meio de produção capitalista, que se baseia no princípio da acumulação, extirpando o valor do indivíduo, pois este é determinado de acordo com sua capacidade produtiva. O homem como um ser pensante e modificador do seu ambiente se relaciona com o outro através do trabalho, não somente o trabalho como um objeto de troca, mas de interação e relacionamento social entre os integrantes da sociedade. Neste sentido, observa-se a existência de uma noção ampliada de trabalho, dando ênfase para seu aspecto ontológico. 5

Ibidem. Ibidem. 7 Ibidem. 6

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Na busca de controlar as condições naturais, os homens criam novos objetos os quais se incorporam ao ambiente natural, modifica-o, e passam as mãos das próximas gerações8.

A dialética de Hegel9 dizia que o mundo intelectual determinava a vida material, considerando desta forma que o ser era anterior a própria existência. Karl Marx inverte essa lógica, pois para ele a natureza da sociedade passa por um constante processo de transformação, processo esse que se move através da luta de forças contrárias. Essas lutas promovem mudanças tanto qualitativas quanto quantitativas na sociedade, mas o elemento determinante nestas transformações é sempre a matéria, ou seja, as relações concretas, as práticas diárias, que os homens efetivam durante o seu cotidiano. Marx aborda a sociedade como sendo um artifício da produção histórica, onde a evolução do homem deriva das conseqüências e mudanças que ocorrem no tempo de sua existência. Essa visão se concretiza quando analisada, por exemplo, a evolução dos modos de produção. O ato de produzir gera novas necessidades que até então não faziam parte do conjunto de necessidades primarias do homem, porém com o decorrer da história passaram a fazê-la modificando o conjunto ações do homem no intuito de suprir tais necessidades e desejos. A fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, comida com faca e Garfo, não é a mesma fome que come a carne crua, servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes. Por conseguinte, a produção determina não só o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, e não só de forma objetiva, mas também subjetiva. Logo, a produção cria o consumidor.10

Para Marx a relação recíproca entre os homens juntos dos fatores condicionantes da revolução histórica do homem com a natureza forma o indivíduo e este através do seu trabalho transforma o meio. Esta atividade é o fator que caracteriza a sociedade materialista. O individuo em uma sociedade capitalista passa a ser caracterizado de acordo com o que produz, passando a ser identificado de acordo com essa prática. Assim surgem as especificações atribuídas de acordo com a profissão e a própria estigmatização criada a partir destes posicionamentos, como 8

Ibidem, p. 31. Ibdem. 10 Ibidem, p.31. 9

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por exemplo, a exclusão de quem está fora do mercado de trabalho, que muitas vezes são observados como se não pertencessem aos componentes da sociedade ou até mesmo a espécie humana.

2. Educação e Sociedade. De acordo com as perspectivas que caracterizam a sociedade apontada anteriormente, que se referem a essa por três pontos distintos, subtrai-se que os autores da sociologia clássica Durkheim, Weber e Marx - apontam como fatores determinantes da configuração social, respectivamente: a sobreposição dessa sobre o indivíduo; a evolução e modificação da sociedade sendo determinada historicamente pela necessidade de adequação homem/natureza, alterando o conjunto de valores e formas de produção dos indivíduos; e, a influência das ações individuais sobre o conjunto social. Dentro dessas perspectivas existem elementos que tendem a movimentar as relações internas das sociedades, tais como a economia, a política, a cultura, etc. Esses elementos se representam através das instituições, que assumem as suas respectivas funções dentro de cada grupo social. A estas estruturas Weber refere-se como “esferas sociais”. Destas, o que importa destacar no momento é a educação, que a princípio se vincula à cultura, porém, devido às interrelações entre as “esferas”, acaba se vinculando ao todo social e sendo atribuída de uma ampla função dentro das sociedades. Ao se analisar essa educação como “esfera” social, legitima-se a tripla atribuição desta abordada por Cipriano Luckesi11, onde ele ponta essas como sendo fator de reprodução, redenção ou transformação da sociedade. É importante ressaltar que a Educação se faz presente na sociedade de duas formas: “institucionalizada” ou “não institucionalizada”. A Educação “não institucionalizada” corresponde ao tipo mais “puro” desta, aprendida no convívio familiar e social. Quando institucionalizada (inserida em um sistema educacional que compreende escolas, universidades, etc.) essa passa a assumir seu papel de esfera social e ser subjetivada a um conjunto de regras que constituem sua função. Quando posta como “educação para reprodução da sociedade”, ela é vista como uma instância interna a essa e inteiramente ao dispor da mesma. A educação é um elemento constitutivo da sociedade, uma de suas esferas internas, resultante e determinada pelas demais esferas (econômica, política, religiosa). A esfera educacional é atribuída, assim, como 11

LUCKESI, Carlos Cipriano. Filosofia da educação. São Paulo, SP: Editora Cortez, 21ª imp. 2005.

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mecanismo para perpetuar essa sociedade, reproduzindo às novas gerações o conjunto valorativo acatado pelo grupo, reproduzindo a sociedade nos seus mais variados aspectos. Sendo assim: A educação tem por objetivo nos enquadrar às expectativas do meio social em que

vivemos – nossa classe, nossa profissão, nosso

meio moral. Cada geração transmite a seguinte, através da educação, os elementos fundamentais para a manutenção da estabilidade das coletividades humanas.12 Essa função reprodutora da educação pode ser vista, por exemplo, na abordagem da “Pedagogia Tradicional”. Essa corrente pedagógica que data de meados do século XIX, credita ao professor a atribuição de dominar os “saberes” e sistematizá-los para que seus alunos aprendam. O professor seria o condutor dos alunos rumo ao conhecimento, tornando-os esclarecidos. Este ser “esclarecido” será o individuo que melhor tiver assimilado os inúmeros conhecimentos produzidos anteriormente pela sociedade “esclarecida”. Ou seja, ser esclarecido introduzirá o individuo ao conjunto social. Nesse quadro, a marginalidade é identificada com a ignorância. É marginalizado da nova sociedade quem não é esclarecido. A escola surge como um antídoto à ignorância, logo, um instrumento pra equacionar o problema da marginalidade. Seu papel é difundir a instrução, transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente. O mestre-escola será o artífice dessa grande obra. A escola se organiza, pois, como uma agência centrada no professor, o qual transmite, segundo uma gradação lógica, o acervo cultural aos alunos. A estes cabe assimilar os conhecimentos que lhes são transmitidos.13 Em outras palavras, a educação ao reproduzir os valores aceitos pelo conjunto social estará incluindo os novos indivíduos ao grupo, tornando-os membros da sociedade. Caso não se cumpra esse processo, os indivíduos estarão posicionados fora da sociedade, à margem da mesma. A segunda função da educação, também apontada por Luckesi, atribui à educação uma capacidade redentora da sociedade. Quando atribuída dessa função a educação é posicionada 12 13

RODRIGUES, Alberto Tosi. Sociologia da educação. Rio de Janeiro, RJ. Editora DPGA, ed. 5°. 2004, p. 35. SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. São Paulo: Editora Cortez/Autores Associados. 1983, p. 18.

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externamente a sociedade numa posição superior a essa, como uma instância extra social voltada à formação da personalidade do individuo. Segundo Luckesi14, nessa perspectiva “a educação nada mais tem a fazer do que se estabelecer como redentora da sociedade”. A educação nessa perspectiva tem a finalidade de adaptar o individuo ao contexto social. Ela vem munida do poder de redimir as mentes simples e através disso readequá-las a sociedade. A educação enquanto fator de equalização social será, pois, um instrumento de correção da marginalidade na medida em que cumprir a função de ajustar, de adaptar os indivíduos à sociedade, incutindo neles o sentimento de aceitação dos demais e pelos demais. Portanto, a educação será um instrumento de correção da marginalidade na medida em que contribuir para a constituição de uma sociedade cujos membros, não importam as diferenças de quaisquer tipos, se aceitem mutuamente e se respeitem na sua individualidade específica.15 Apesar da semelhança com a função “reprodutora”, a “educação para a redenção” tem seu campo de ação associados às mentes que por algum motivo assumiram um comportamento desviante, ou não tenham sido introduzidos ao conjunto valorativo aceito pelo grupo. Essa forma de educação aplicar-se-ia, por exemplo, na reeducação de “infratores”, assemelha-se também à educação religiosa. Esse modelo educacional trabalha com a transformação das mentes dotadas de uma “cultura”, porém que se difere às culturas dominantes, sendo, portanto, marginalizados da sociedade. Levando-se em conta que: A sociedade é concebida como essencialmente harmoniosa... A marginalidade

é,

pois,

um

fenômeno

acidental

que

afeta

individualmente um número maior ou menor de seus membros o que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não só pode como deve ser corrigida. A educação emerge aí como um instrumento de correção dessas distorções... no que respeita as relações entre educação e sociedade, concebe-se a educação uma ampla margem de autonomia em face da sociedade. Tanto que lhe cabe um papel decisivo na conformação da sociedade evitando sua desagregação e, mais do que isso, garantindo a construção de uma sociedade

14 15

LUCKESI. Op.cit., p. 40. SAVIANI. Op.cit., p. 20.

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igualitária.16 A pedagogia de Paulo Freire17, por exemplo, condiz a essa perspectiva. Segundo ele, o educador deveria conhecer com minúcias a cultura com a qual iria trabalhar no intuito de se utilizar da “linguagem” comum a seus educandos para, a partir dessa linguagem, poder conduzi-los ao conhecimento e torná-los “cultos”. O educador já não é apenas o que educa, mas o que enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos autoritários” já, não valem.18 Percebe-se que ao se objetivar induzir o educando a um “saber”, o educador estará moldando esse individuo ao modelo de “saber” que a sociedade deseja. Agindo-se dessa forma estará cooptando esse indivíduo e inserindo-o ao modelo de “culto” que a sociedade onde esse indivíduo vive admira. Enfim, estará redimindo-o a uma sociedade mais forte e mais complexa, ou seja, dominante. Já a terceira função da educação contraria as anteriores e atribui à mesma uma função “transformadora do contexto social”. Nessa perspectiva a educação não apenas é vista como integrante da sociedade, mas como único caminho viável para a superação das desigualdades e construção dos novos valores sociais que deveram ser adotados posteriormente a mudança. Em suma, a educação assume um papel de combustível para a inovação da sociedade, para a superação dos fatores que promovem a desigualdade, através do esclarecimento dos indivíduos. Nessa perspectiva a educação é vista dotada de um potencial emancipador, capaz de superar a marginalização promovida pela ignorância e ascender nas ideologias, tanto proletárias como dominantes, o modelo de sociedade mais igual e mais justa a ser seguida por todos. Essa função transformadora (ou melhor, dizendo capacidade transformadora) esta contida na pedagogia escola-novista (pelo menos em sua teoria, pois na sua consolidação ela se manifestou contraria e assumiu função reprodutora da “sociedade do trabalho”) na qual o educador motiva o educando a buscar o “saber” de maneira independente, o educador só entrava em cena como agente auxiliador no caminho do “esclarecimento”. Dessa forma o individuo era motivado a pensar seu contexto social e lhe era facultado o caminho que ele seguiria.

16

SAVIANI. Op.cit., p. 16. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Editora Paz e Terra, ed. 17°. 1970. 18 FREIRE. Op.cit., p. 39. 17

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A realidade é vista como “problema”, isto é, como algo que pode ser resolvido ou melhorado. A educaçäo entäo é conceituada como a transformaçäo da pessoa enquanto ela, junto com seu grupo, tenta transformar a realidade. O protagonista da aprendizagem é o próprio aluno, o qual, junto com seus companheiros, deve conhecer a realidade para transforma-la.19 Após conhecer essa tríplice função da educação, torna-se possível relaciona-las com as perspectivas da “sociologia clássica” – de Durkheim, Weber e Marx. Para Durkheim a educação tem função unicamente “reprodutora”, pois para ele a sociedade é coercitiva e superior ao individuo. Para Weber a educação corresponde a um mecanismo redentor da sociedade. E pra Marx, ela corresponde à atribuição “transformadora da configuração social”. A concepção de Durkheim condiz à função reprodutora à medida que se compreende como se constitui a sociedade para o autor. Para ele a sociedade se sobrepõe ao individuo coagindo-o a seguir suas doutrinas e respeitar seus valores, de modo a impor-lhe suas ações de acordo com as determinações previas do conjunto e acatadas por todos. A sociedade para este autor é vista como um “ser” superior que vem reger os comportamentos individuais. Quando a pessoa nasce ela já esta vinculada a sociedade, seus comportamentos já estão previamente construídos e determinados através da “ética”, da “moral”, dos valores, da religião, etc. Em outros termos, o individuo não terá a opção de escolher se será parte daquele determinado grupo. Se ele nasce no Brasil será brasileiro e deverá respeitar o conjunto de valores éticos, morais e comportamentais construídos e aceitos pela “sociedade brasileira”. Nesse ponto, a educação entra em cena como: A ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio moral que a criança, particularmente, se destine.20 A Educação entra como mecanismo que introduzirá o novo indivíduo ao contexto social. Para Durkheim, a educação inicia-se no momento em que o indivíduo nasce e será repassada, a princípio, de maneira não institucionalizada, acerca das práticas familiares. E, em 19

BORDENAVE, Juan Díaz. A Pedagogia da problematização na formaçäo dos Profissionais de Saúde. Petrópolis: Vozes; 1978, p. 4. 20

RODRIGUES. Op.cit., .p 34.

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um segundo momento, será regida por um sistema coordenado pelo Estado (parte integrante da sociedade) através do sistema educacional (outra esfera da sociedade). Quando inserida no sistema educacional, ou seja, institucionalizado, o “educar” será vinculado aos conhecimentos mais amplos da sociedade e corresponderá a reprodução dos valores aceitos pelo grupo. Essa reprodução abrangerá as mais distintas esferas da sociedade, no intuito de promover o conhecimento amplo e, respectivamente, a inserção do indivíduo. Para o francês o “homem que a educação deve realizar, em cada um de nós, não é o homem que a natureza fez, mas o homem que a sociedade quer que ele seja; e ela o quer conforme o reclame a sua economia interna, o seu equilíbrio”.21 Já a perspectiva de Max Weber de como se compõe a sociedade, induz a uma associação da educação com a função de “redentora” apontada anteriormente. Para o autor a sociedade é resultado da ação dos indivíduos entre si e portanto não esta previamente definida, ela resultará de inúmeros fatores. Ou seja, não existe uma sociedade sem existir indivíduos. O conjunto de valores que se obedece é resultante de “ações sociais” e estão em constante processo de mudança. Essas mudanças estarão subjetivadas a intenção do individuo ao agir de tal forma, ao esboçar tal comportamento. Assim a educação, tida como mecanismo extraposto a sociedade, terá um amplo campo de ação. Se a sociedade é composta de indivíduos, a educação deverá agir de maneira a induzir o individuo a aceitar uma ideologia (que lhe será facultativa). A educação cumprirá a função atribuída a ela como “esfera” a serviço da sociedade quando conseguir coptar o maior numero de indivíduos a lógica “dominante”. Ou seja, correspondera às vontades da sociedade se trouxer o individuo para o interior dela. A educação, para Weber, não é mais, então, a preparação para que o membro do todo orgânico aprenda sua parte no comportamento harmônico do organismo social, como propôs Durkheim. Ela passa a ser, na medida e que a sociedade se racionaliza, historicamente, um fator de estratificação social, um meio de distinção, de obtenção de honras, de prebendas, de poder e de dinheiro.22 Para Marx a educação, no meio social, cumpre a função de permitir, através do domínio do conhecimento, a transformação da sociedade. O autor caracteriza a sociedade como resultante de um constante processo de readequação do homem a natureza, promovendo dessa 21 22

DURKHEIM, E. Educação e Sociologia, apud, Rodrigues, op.cit., p.06. RODRIGUES. Op.cit. p.78.

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forma a mudança no conjunto de valores que uma sociedade acata. Para ele o movimento da história é o que determina a configuração da sociedade em um dado período e em determinado local. Ou seja, o passo seguinte da evolução está presente na sociedade de hoje e se manifesta no momento de crise. Por exemplo, um trabalhador só reconhecerá como objetivo sua liberdade e valor, quando se sentir explorado e/ou dominado por seu empregador, então passará a lutar por este objetivo – talvez ele conquiste, ou não. Pra que haja uma mudança essa sociedade precisa ser assimilada por todos que a compõem para que, assim, reconheçam os problemas presentes nela. Dessa forma, estes indivíduos poderão esboçar a sociedade que desejam construir para o futuro. Assim, a educação entra nesse contexto como mecanismo para produzir os “pensantes” que promoverão essa reforma através da mudança nas práxis sociais. [...,] se pretendemos a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.23 Os seres pensantes, produzidos na sociedade em que a educação cumpre seu papel de pleno esclarecedor, não correspondem apenas ao modelo de intelectuais os quais a sociedade busca formar. Estes novos “pensantes” estarão dotados de todo um conhecimento históricosocial que lhes permitirá pensar quais fatores componentes da sociedade devem ser preservados e quais deverão ser modificados. Porém, as modificações não serão instantâneas, elas ocorrerão gradativamente e esta ordem de desenvolvimento será palpável ao trabalhador durante seu desenvolvimento intelectual.

Educação e Trabalho Ao refletirmos as transformações ocorridas no mundo do trabalho, constatamos tendências crescentes de redução do número de trabalhadores em postos de trabalho antes considerados "estáveis” e que eram ocupados por trabalhadores altamente escolarizados e qualificados. Constatamos também que estes postos de trabalho, não necessariamente foram extintos, mas sim transferidos para empresas terceirizadas.

23

FREIRE. Op.cit., p. 38.

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Setores crescentes nos meios industriais e também comerciais, este fato evidencia um significativo crescimento deste setor, com implicações em termos de qualidade, pois se trata de novos postos de trabalho que não requerem uma alta qualificação profissional. Segundo Castel24, há dois segmentos de emprego, um mercado "primário", formado por elementos bem qualificados, melhores pagos, protegidos e mais estáveis, e um segundo mercado “secundário", constituído por elementos de qualificação precária, menos remunerados e diretamente submetidos às flutuações das demandas de mercado. A flexibilidade do mercado de trabalho acentua a degradação do mercado “nacional". Com as industrializações tradicionais e as subqualificações dos empregos, os processos de contratações agravaram-se ainda mais com a terceirização das atividades. A flexibilização não reduz a necessidade de se ajustar mecanicamente a uma tarefa pontual, porem exige do operador, que esteja disponível para adaptar-se as flutuações do mercado de trabalho. Para suprir esta demanda a empresa pode recorrer a uma subcontratação (terceirização) ou a um treinamento do seu pessoal, para a flexibilização e a polivalencia a fim de lhe permitir enfrentar toda a gama de novas situações. No primeiro caso, o cuidado em assumir as flutuações de mercado é confiado às empresas satélites, no segundo caso, a empresa assume os riscos pela adaptação do seu quadro de pessoal e as mudanças tecnológicas. Diante de todas essas mudanças, o trabalhador deverá adequar-se ao mercado vencendo dificuldades, tornando-se polivalente e respondendo com rapidez as demandas impostas ou corre o risco de ser substituído por outro profissional mais qualificado e eficiente. Com isso a educação formal e tecnicista servirá de aparato e de mecanismo para manter o futuro profissional atento, flexível e preparado para as mudanças, manutenções e alternâncias no trabalho. Nesse sentido percebemos uma metamorfose na educação, e em especial nas universidades, em organizações e não mais instituições sociais, ou seja, a universidade passa a ser “uma entidade administrada, cujo sucesso e eficácia se medem em termos da gestão de recursos e estratégias de desempenho”25. Isso se evidencia claramente a partir de 1996 com as ideias propostas pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para as universidades 24

CASTEL, Robert. As Metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, ed. 4°. 2003. 25

CHAUÍ, Marilena. Reforma do ensino superior e autonomia universitária. In: Serviço Social e Sociedade, ano XX, nº 61, São Paulo: Cortez Editora, 1999, p. 119.

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na América Latina e Caribe, chegando inclusive a propor tipologias de funções do ensino superior. Essa reforma no ensino implica diversas modificações que se expressam também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei nº. 9.394/1996)26 onde, apesar de declarar em seu texto que: “[...] a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e nas manifestações culturais”, apresenta claramente um ideário neoliberal afirmando no §2º que a “A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e a pratica social”. A partir do exposto, poder-se-ia acreditar que a educação realmente prepara o indivíduo para conviver em sociedade e, também, promove os meios para essa ocorrência, entretanto, a realidade a qual presenciamos e os estudos sobre a área, direcionam a uma perspectiva totalmente adversa a esta.

Considerações finais Por fim, observamos que a educação não passa de um mero instrumento do capital para manter e regular o trabalhador dentro e fora do seu ambiente de trabalho, assim, mantendo-o nos moldes da sociedade vigente. As reflexões feitas são ainda mínimas para tirarmos conclusões suficiente para uma real transformação de uma educação ou até mesmo de uma proposta de sociedade mais igualitária, justa e de equidade. A educação é um reflexo da sociedade que temos, por isso precisamos pensar e propor alternativas de mudança social. A sociedade atual é uma sociedade de classe e dual, onde há burgueses e operários, opressores e oprimidos, dominadores e dominados, por isso, necessitamos de uma educação que forme pensadores livres e revolucionários que não fiquem amarrados na educação formal burguesa. Consideramos portanto, que o objetivo do presente texto se cumpri a partir do momento em que ao fazer a relação entre Educação, Sociedade e Trabalho dentro da sociologia clássica trazendo elementos da contemporaneidade se evidencie alguns pontos para refletirmos sobre uma educação e uma sociedade que possa ser transformadora de realidade social.

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BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional. Lei nº 9.394. Disponível em: Acessado em 20 de set de 2014.

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DIÁLOGOS COM GRAMSCI: IMPRENSA E A CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS SOBRE A REGULARIZAÇÃO DO “POUSO FRIO” DE TOLEDO/PR (1970-1990) Maria Cristina de Castro Pereira1 Antônio Gramsci, ao se colocar questões referentes à organização do sistema educacional e jornalístico, aponta sugestões ainda hoje pertinentes e instigantes 2. Estas duasgrandes áreas parecem ter importância fundamental pela amplitude de seu alcance, podendo assim intervir efetivamente no plano político-cultural da sociedade. Em relação à educação, Gramsci destaca a crise percebida na educação promovida pela escola clássica e profissional3 e sugere o desenvolvimento de uma escola única inicial, de cultura geral, humanista, formativa e que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual – a escola unitária (GRAMSCI, 2001, p. 36). Em relação ao jornalismo, Gramsci propõe a elaboração do “jornalismo integral”. Um jornalismo que

não somente pretende satisfazer todas as necessidades (de uma certa categoria) de seu público, mas pretende também criar e desenvolver estas necessidades e, consequentemente, em certo sentido, gerar seu público e ampliar progressivamente a sua área (GRAMSCI, 2001, p. 197). É uma formulação que propõe como base ou premissa, um autêntico sistema de iniciativas editoriais. Gramsci faz uma série de indicações sobre os tipos de revista, sobre as orientações das redações, sobre os “gêneros” jornalísticos. É um verdadeiro programa político editorial que se coloca como instrumento na construção de um novo consenso em torno de determinadas concepções de mundo. O jornalismo integral, juntamente com a escola unitária, produziria, organizaria e difundiria consciência e cultura, concorrendo para a formação de uma sociedade civil mais 1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História (PPGH), Poder e Práticas Sociais, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), nível mestrado, campus Marechal Cândido Rondon. 2 GRAMSCI, A. Caderno 12 (1932) Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. Caderno 24 (1934) Jornalismo. In: Cadernos do cárcere. Vol. 2. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 3 A última destina-se às classes instrumentais e é viabilizada pelas escolas profissionais especializadas, nas quais o destino do aluno e sua futura atividade são predeterminados. Enquanto a clássica,com caráter “desinteressado” e “formativo”, destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais sem preocupação com um futuro profissional (GRAMSCI, 2001, p. 33).

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intensa e dinâmica, maleável à transformação: “A elaboração nacional unitária de uma consciência coletiva homogênea requer múltiplas condições e iniciativas” (GRAMSCI, 2001, p. 205).Com esta intenção, tanto a escola como o jornalismo, partiriam, com realismo e rigor, de um perfil do próprio público submetido ao escrutínio da experiência, combinando elementos para a informação e também esclarecimento, o que permite “fazer pensar concretamente, transformar, homogeneizar, de acordo com um processo de desenvolvimento orgânico que conduza do simples senso comum ao pensamento coerente e sistemático” (GRAMSCI, 2001, p. 201). Desta forma, compreende-se que, não só a escola, como também os meios de comunicação podem ter o importante papel de conscientizar e promover uma ação transformadora. Gramsci argumenta que, ao leitor,

Não basta fornecer-lhe conceitos já elaborados e fixados em sua expressão “definitiva”; a concreticidade de tais conceitos, que reside no processo que levou àquela afirmação, escapa ao leitor comum: deve-se por isso, oferecer-lhe toda a série dos raciocínios e das conexões intermediárias, de modo bastante detalhado e não apenas por indicações (GRAMSCI, 2001, p. 202). Neste sentido, o jornal não “ensinaria” conceitos para a conscientização e formação, mas construiria todo o processo de construção do raciocínio para chegar a esse conceito, tal como uma aula.Certamente podemos supor que o jornalismo integral pode desenvolver também papel de grande importância na tarefa de manter a memória dos movimentos sociais e operários. Considerando os apontamentosde Antônio Gramsci, percebemos que verdadeiramente a imprensa atua como um efetivo partido político na sociedade.Além de ela poder criar e manter espaços para a memória, seja dos opressores ou dos oprimidos.RicardVinyes 4 estudou justamente as relações entre Estado e memória, destacando alguns elementossobre a relação entre memória e história que podem contribuir para a reflexão que se apresenta neste texto. O primeiro elemento apontado pelo autor diz respeito à confusão que por vezes se faz entre por um lado, o conhecimento histórico e por outro lado, a socialização do conhecimentopor meio de filmes e outras criações artísticas. Fazer esta confusão é reduzir o conhecimento a uma responsabilidade individual à margem do discurso público institucional, 4

VINYES, Ricard. La memoria del Estado. In: El estado y la memoria: Gobiernos y ciudadanos frente a los traumas de la historia. Espanha, RBA Libros, 2009.As traduções aqui apresentadas foram realizadas pela autora, sem pretensão e habilidade de ser completamente fiel ao texto em espanhol.

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que não se alimenta da produção científica e cultural (VINYES, 2009, p. 32). O segundo apontamentoé específico sobre a relação entre memória e história: não se pode concebê-las em termos de contraposição e exclusão recíproca, como se a memória dissesse respeito a coisas subjetivas e triviais, cabendo ao historiador transformá-la em algo sério.Da mesma forma, não se pode subordinar uma à outra, quando na realidade estabelecem relações de complementariedade. Vinyes, dialogando com Paul Ricoeur, aponta que são narrativas complementares, cada uma com estratégias próprias de aproximação ao conhecimento da realidade. Nesta perspectiva, memória e história se enriquecem, mas não se substituem (VINYES, 2009, p. 33). História e memória também se aproximam ao concebermos ambas como espaços de disputa e de poder. E é justamente neste espaço conflituoso que percebemos a atuação do Estado em algumas situações difíceis. Vinyes indica que o Estado democrático têm decretado como socialmente superado os conflitos mais intensos que fazem parte da sua história, como por exemplo, o caso da ditadura militar e da guerra civil na Espanha, supostamente “superadas” pela democracia instaurada (VINYES, 2009, p. 35). Os conflitos não são reconhecidos e ainda são decretados como superados. Podemos perceber estas questões ao direcionar nosso olhar para a história da cidade de Toledo, no oeste do Paraná, onde se verifica uma nítida diferença entre a urbanização em ambos os lados do Rio Toledo, que corta a cidade. De um lado uma construção organizada pela empresa Maripá, destinada a acolher moradores oriundos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, descendentes de italianos e alemães. Do outro lado do rio, uma grande área que não lhe pertencia, chamada de “Pouso Frio”, ocupada por trabalhadores vindos de diversas regiões do Brasil e do Paraguai, em busca de melhores condições de vida. O que estes trabalhadores encontraram aqui foram terrenos baratos (ilegais) e trabalhos árduos e desgastantes em fazendas das proximidades e no frigorífico Sadia. Num texto5publicado no jornal “Nova Geração”6, as condições de vida e moradiaencontradas no

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Pouso Frio. Nova Geração. Toledo/PR. 23 de outubro de 1976. Outros dados da publicação não foram encontrados. O texto foi encontrado no Museu Municipal Willy Barth, como recorte do jornal, contendo apenas uma data indicando o nome do jornal e data de publicação. 6 O Jornal Nova Geração foi uma fusão de outros dois jornais da cidade, o Tribuna do Comércio e OAtecano. O primeiro jornal era produzido pela ACIT, enquanto o segundo pela ATEC (Associação Toledana dos Estudantes em Curitiba). Ambos tinham circulação mensal. Nova Geração circulou mensalmente entre os anos de 1973 e 1978, e tinha como redator chefe Oscar Silva e Nelton Friedrich como diretor proprietário, ambos com vínculo com a antiga Tribuna do Comércio. Em 1977, constava como diretor geral Edílio Ferreira. Este jornal possui dois momentos: um primeiro em que se pauta era composta por muitas matérias locais e regionais, com a particularidade de haver grande interesse nas relações dessas dimensões com o governo estadual e outro

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chamado “Pouso Frio” são apontadas pelos próprios moradores entrevistados pela equipe do jornal: fundos de terrenos mal divididos, comportando até quatro “ranchinhos” de pequeno porte; falta de iluminação pública (gerando gastos com querosene e gás, além de impossibilitar o funcionamento de comércios que necessitavam de energia elétrica na região, obrigando os moradores à se deslocarem até o centro da cidade); medo de reformar ou ampliar casas e perder o investimento (os moradores temiam perder suas casas, já que desconheciam os donos das terras); entre outras dificuldades. A regularização dos terrenos na década de 1980 não parece ter ocorrido de forma harmoniosa. Apesar de encontrarmos “indícios” (apontados no decorrer do texto) que nos permitem identificar neste processo a atuação permanente dos moradores – reivindicando melhorias ou resistindo a determinadas mudanças, pressionando de alguma forma o poder público municipal – os jornais locais e os governos municipais parecem ter se preocupado em construir uma memória que atribua a um ou a outro prefeito a regularização do antigo Pouso Frio.Uma ação supostamente concedida por bondade e completamente benéfica ao conjunto de moradores. Inclusive a atribuição da iniciativa de regularizar esta área a um ou a outro prefeito municipal têm sido alvo de disputas. Possivelmentetais disputas no interior do grupo político que toma a frente do governo municipalà décadas, se deve ao fato do número de votantes no bairro, desde a década de 1970, o maior da cidade. Na campanha eleitoral de 2012, por exemplo, o candidato à prefeitura municipal, João Carlos Poletto (PP – Partido Progressista), apresentou em página eletrônica7, sua trajetória familiar e profissional, com destaque para sua atuação na execução de ações que “levaram Toledo a vivenciar este momento de franco desenvolvimento”. Entre estas ações, poucas são específicas como a regularização do “Pouso Frio”, sendo as outras mais amplas e vagas, como “programas de urbanização, habitação, saúde e educação”. Em outra ocasião, a associação de Duílio Genari (naquele momento líder do Bloco Parlamentar PP/PV/PTB/PSL, na Assembleia Legislativa) ao processo de regularização do

verificado em 1978, quando o jornal apresentava uma pauta diferenciada e, no editorial de cinco de setembro daquele ano, foram apontadas questões que orientariam seu perfil, após ficar um tempo fora de circulação. Nesse momento, o veículo de informação se engajou no processo de abertura política do regime militar e efetuava críticas à ditadura, além de dar visibilidade ao MDB e à lutas, como a “anistia”. Sem abandonar por completo as notícias locais e regionais, a pauta desse jornal passou a ser composta por matérias sobre o Brasil e a América Latina e, dessa maneira, conferia-lhes amplo destaque. In:LANGARO, Jiani Fernando. Quando o futuro é inscrito no passado: “Colonização” e “Pioneirismo” nas memórias públicas de Toledo-PR (1950-2010). 2012. 470 f. Tese (Curso de Pós-Graduação em História). PUC/SP, São Paulo, 2012, p. 62. 7 Disponível em:http://www.joaopoletto.com.br/site/?pag=4&t=Jo%E3o%20Poletto%20-%20PP&banner=off. Acessado em 25/06/2013.

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“Pouso Frio” também foi realizada. Ao ganhar a comenda “Ordem Estadual do Pinheiro” pelo governador Beto Richa (PSDB) em 2011, o “Jornal do Oeste”

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destacou sua atuação

como prefeito no município de Toledo em 1976-1980, destacando justamente como de sua autoria, os projetos de reurbanização do Pouso Frio e a criação do Centro Social Urbano neste bairro 10. Cabe destacar que os bairros que compõem hoje a “Grande Pioneira”, antigo “Pouso Frio”, é o mais populoso da cidade e certamente com proporcional número de votantes. Aparentemente não é apenas o jornal local que confere protagonismo ao Duílio Genari no processo de regularização do “Pouso Frio”. Jiani F. Langaro11, ao entrevistar um morador deste bairro – João12, pedreiro, com 49 anos no momento da entrevista – percebeu que ele também tratou o ex-prefeito como o único administrador público que teria atuado na causa:

quem deu uma mão, pra fazer... fazer tudo a papelada desse, desse Pouso Frio aqui foi o... o Duílio Genari, sabe? [...] Foi ele, não foi outro, outro prefeito de jeito nenhum, foi ele.(...) ele arrumou um cartório de imóvel aí então cada pessoa ia lá e... se era, comparação, duzentos, pra fazer uma escritura aquele tempo, a pessoa ia pagar setenta e cinco, oitenta reais, que ele tinha um, um convênio com o, escriturário, então eles fizeram, ah mas aqui[lo] ajudou muita gente você imagina o... né? (...)Então através, dele que todo, todo pessoal hoje aí está com seu terreninho, cercadinho é... escrituradinho beleza, mas, mas é, aqui era difícil, era

A Comenda “Ordem Estadual do Pinheiro” foi instituída pelo Decreto 2.877, de 1º de dezembro de 1971, com a finalidade de “galardoar - ou homenagear - brasileiros, estrangeiros, civis e militares, que se hajam distinguido pela notoriedade do saber ou por serviços relevantes prestados ao Estado do Paraná” - supostamente. 9 Jornal criado em 1984, como propriedade de Jacó Carlos Diel, desde então o principal periódico da cidade. Em sua primeira edição, de 20 de maio de 1984, possuía uma tiragem de três mil exemplares, número que praticamente dobrou em julho do mesmo ano. Em julho de 1985 já chegava a oito mil exemplares. Desde sua primeira edição apresentava o formato standard com apenas seis páginas, mas em 1985 (quando a circulação deixou de ser semanal para tornar-se diária) passou a contar com oito. Em 2010 as edições publicadas em dias úteis possuíam 24 páginas, enquanto a dominical chegava a 32. In: LANGARO, Jiani Fernando. Quando o futuro é inscrito no passado: “Colonização” e “Pioneirismo” nas memórias públicas de Toledo-PR (19502010). 2012. 470 f. Tese (Curso de Pós-Graduação em História). PUC/SP, São Paulo, 2012. 10 Deputado Duílio recebe Comenda do Pinheiro nesta segunda-feira. Jornal do Oeste. Toledo/PR. 16/12/2011. Disponível em:http://www.jornaldooeste.com.br/cidade/estado/deputado-duilio-recebe-comenda-do-pinheironesta-segunda-feira-14198/. Acessado em: 20/07/2014. 11 LANGARO, J. F. Do Pouso Frio à vila Boa Esperança: Transformações urbanas nas memórias e narrativas orais de trabalhadores de Toledo-PR (décadas de 1970 e 1980). In: XXVII Simpósio Nacional de História/ANPUH Brasil. Conhecimento Histórico e diálogo social. 2013. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1363925246_ARQUIVO_TrabalhoCompletoJianiFernandoLa ngaro_SNH2013_.pdf. Acessado em: 20/07/2014. 12 João nasceu no município de Alto Piquiri, próximo a Toledo, para onde seus pais se mudaram em 1961. Ali, inicialmente, compraram um terreno na Vila Operária, bairro de trabalhadores da cidade, surgido ainda na década de 1940, em princípios da formação urbana de Toledo. Após, sua família comprou um dos sítios que existiam no chamado Pouso Frio. In: LANGARO, J. F. Do Pouso Frio à vila Boa Esperança: Transformações urbanas nas memórias e narrativas orais de trabalhadores de Toledo-PR (décadas de 1970 e 1980). In: XXVII Simpósio Nacional de História/ANPUH Brasil. Conhecimento Histórico e diálogo social. 2013. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1363925246_ARQUIVO_TrabalhoCompletoJianiFernandoLa ngaro_SNH2013_.pdf. Acessado em: 20/07/2014. 8

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difícil [...].13

Neste caso, porém, como o próprio Langaro indica, o trabalhador, ao ressaltar a atuação do ex-prefeito, possivelmente teve a intenção de combater as propagandas realizadas por administrações posteriores à de Genari, que deram continuidade à política de urbanização daquela região da cidade (LANGARO, 2013, p. 5). O governo de Albino Corazza Neto (PMDB) que tomou posse em 198314, após o fim do mandato do Duílio Genari, publicou até mesmo uma revista para divulgar a atuação do prefeito no processo de regularização do “Pouso Frio”. A revista se intitulou “Toledo: Comunidade no Poder” e é composta por cinco números. O primeiro número foi publicado em fevereiro de 1985 e se intitula: “Toledo: Comunidade no poder – Um balanço de dois anos de trabalho – Democracia: participação e emprego pleno”. O segundo número foi publicado em fevereiro de 1986, e já continha textos apontando para a “solução após mais de 30 anos” do “Pouso Frio”. O terceiro número foi publicado em fevereiro de 1987, intitulado “4 anos – Toledo: Comunidade no Poder – Participação e Democracia”. Também apresentou um extenso texto sobre a regularização do Pouso Frio, indicando “a atuação política na defesa do social”, com o realinhamento de postes, extensão da rede de energia elétrica entre outros serviços. Na argumentação apresentada no texto, a atuação desta gestão se contrapõe à gestão anterior:

Situado na periferia da cidade, nas Vilas Brasil e Pioneira, onde moram mais de 22 mil toledanos, que até 1983, não tinham garantia de propriedade do imóvel onde residem e nenhuma infraestrutura sanitária. Graças ao trabalho conjunto desenvolvido, em que a Prefeitura assumiu a luta da comunidade residente naquela área e buscou os recursos necessários, a situação começa a mudar. Dos 2.281 lotes existentes, 382 já estão com escritura definitiva, 1.100 com contratos legais, fornecidos pela Prefeitura, e os restantes 800 em fase de elaboração de contratos (PREFEITURA MUNICIPAL DE TOLEDO, 1987, p. 44) Além destas ações, afirmam ter realizado o realinhamento, alargamento e abertura de ruas; extensão da rede de energia elétrica; relocação de postes e hidrômetros; relocação, rebaixamento e extensão da rede de água; realinhamento de cercas e muros; drenagem de

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João, pedreiro, morador do bairro Boa Esperança de Toledo-PR. A entrevista foi realizada em 20 de janeiro de 2010, quando ele possuía 49 anos de idade. Entrevista realizada por J. F. Langaro. 14 Albino Corazza Neto atuou como prefeito em Toledo entre 1983 e 1988 e novamente entre 1993 e 1996. No primeiro mandato representava o PMDB, e no segundo o PDT.

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áreas alagadiças, recuo e transporte de casas e prolongamento de bueiros e galerias. Isto feito na gestão do prefeito Albino Corazza Neto, sempre em contraposição a suposta pouca presença de intervenção da gestão municipal anterior a 1983. As melhorias realizadas aparecem como resultado do posicionamento do prefeito Albino Corazza Neto, disposto a mudar a realidade dos moradores do Pouso Frio e de todos os habitantes “carentes” da cidade. Contraditoriamente, em outro texto, publicado no primeiro número da revista, seu protagonismo pode ser questionado:

No decorrer da caminhada muitas coisas aconteceram, e também a equipe por sua vez pôde aprender muito já que as organizações de cima para baixo logo foram se afogando já que muitas lideranças um tanto despreparadas haviam tomado a frente, mas com o decorrer do tempo as associações e movimentos foram se solidificando e se tornando independentes, servindo até de estímulo para o surgimento de outras; já então as associações de moradores e movimentos populares de bairros passaram a exercer pressão na luta por melhorias nos distritos e bairros. Podemos fazer lembrar da luta da população do BNH Parizotto que em comissões esteve por 6 vezes no Gabinete do Prefeito até conseguir o acesso, que há três anos vinha reivindicando. A luta da união das associações da grande Vila Pioneira pela escola Boa Esperança, que hoje funciona com três turmas tendo doze salas de aula; inúmeras lutas nos distritos reivindicando pontes, bueiros, estradas e outras melhorias (PREFEITURA MUNICIPAL DE TOLEDO, 1985, p. 20) Aqui o protagonismo do prefeito não me parece tão evidente. São os moradores dos bairros que se organizam e buscam melhorar suas condições de moradia e acesso à cidade através das pressões realizadas ao poder público municipal. Devido ao caráter inicial da minha pesquisa, não foi possível ainda estabelecer relações mais diretas e específicas a respeito de pressões de determinadas mobilizações populares que resultaram na formulação de políticas públicas efetivas. Cabe destacar que o texto citado acima, apesar de possibilitar percebermos a atuação dos moradores dos bairros, enfatiza a criação, pelo prefeito Albino Corazza Neto, em fevereiro de 1984, da Assessoria de Assuntos Comunitários. Esta Assessoria teria participado de “centenas de reuniões e lutas com os moradores, sempre com a coordenação de líderes de bairros e líderes de classe.” Mesmo ao apontar para atuação dos moradores, enfatizam a atuação do prefeito, que teria tentado sempre contribuir para a construção de uma gestão democrática, em que a comunidade estaria no poder. 201

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O quarto número da revista foi publicado em fevereiro de 1988, intitulado “Toledo, 35 anos. Uma explosão de progresso.” Nesta publicação um balanço da gestão de Albino Corazza Neto foi realizado. O próprio prefeito afirmou para a elaboração de um dos textos: “Nossa maior obra no contexto dessas comemorações (...) pode ser considerada a solução para o drama das 2.443 famílias carentes da área antes conhecida como Pouso Frio e que, finalmente, estão conseguindo legalizar seus terrenos”. Por fim, o quinto e último número foi publicado no final desta gestão, em dezembro de 1988. O título é bastante sugestivo: “1983-1988 – 6 anos de participação, obras e democracia – Urgente Administração Toledo Comunidade no poder comunica: Final do mandato prefeito Albino Corazza Neto, Missão Cumprida. Agora Toledo cem por cento. Saudações. Viva Toledo”. Nesta revista novamente o processo de regularização do Pouso Frio foi explorado:

Legalizar o chamado Pouso Frio foi um das mais árduas tarefas abraçadas pela administração de Albino Corazza (...) As pessoas que “moravam” no Pouso Frio, viviam uma situação crítica. As 49 casas de ribeirinhos, que a cada enchente viam-se invadidas pelas águas do Rio Toledo, foram as primeiras a serem removidas. Os ribeirinhos tiveram suas casas transportadas até a Vila Boa Esperança, hoje complementada com a construção de 168 casas e com a legalização de 2.443 lotes, cujos proprietários agora possuem documentação de seu imóvel e a segurança de que não mais serão desalojados pelas águas ou mesmo por pendengas judiciais que envolviam a área ilegal. (PREFEITURA MUNICIPAL DE TOLEDO, 1988, p. 11) Além da regularização dos lotes do Pouso Frio, repetidamente mencionada, também foi destacado neste texto a intensificação das atividades do Centro Social Urbano, no novo loteamento Boa Esperança, que entre outras coisas, atendia mais de 492 crianças (de 7 a 18 anos) por dia e a criação de módulos sanitários anexos às casas dos moradores que não dispunham de banheiro. Foram construídas 139 unidades: 57 no Jardim Europa; 64 na Vila Boa Esperança e sete em outros bairros. No passado ou no presente evidencia-se a tentativa de alguns políticos locais de se associarem ao planejamento das transformações urbanas que ocorreram ao longo da década de 1980 em Toledo. Esta associação parece ter importância em momentos eleitorais em que se torna necessária a aceitação popular e o angariamento de votos. Mas não só isso. O conjunto de textos publicados em diferentes jornais e revistas locais contribui na construção de uma memória que enfatiza a atuação dos prefeitos municipais e os benefícios “concedidos” por estes protagonistas aos moradores sem atuação do Pouso Frio. Nesta memória construída, não 202

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cabe nenhuma ação organizada pelos próprios moradores no sentido de reivindicar e pressionar o poder público ou mesmo resistir a determinadas mudanças. Da mesma forma, as condições de moradia e de acesso à cidade vivenciadas pelos moradores do Pouso Frio são apresentados constantemente como uma questão já resolvida, e aqui, o diálogo com Veyne me parece enriquecedor. Os governos locais, por meio dos meios de comunicação de que dispõe (ou que criam), têm decretado como socialmente superados as tensões e os conflitos mais intensos que fazem parte da sua história. “O Pouso Frio não existe mais”15 e com ele supostamente foram aniquilados os problemas relacionados à moradia em Toledo. Os conflitos presentes no processo não são reconhecidos e ainda são decretados como superados. Neste sentido, o papel e a influência da imprensa na construção de memórias que se querem hegemônicas é evidente. Certamente pode ser ferramenta de luta também para outros sujeitos sociais. Alexandre Barbosa, no artigo “O jornalismo e a construção da contra hegemonia: análise da revista do MST a partir dos conceitos gramscianos de jornalismo” 16, indica que a “imprensa alternativa”

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desenvolve também papel de grande importância na

tarefa de manter a memória dos movimentos sociais e operários. Seu modo de produção (jornalismo) se diferencia radicalmente do modo adotado pela indústria jornalística, que visa apenas aumentar seu lucro com a venda de espaço publicitário (BARBOSA, 2009). Reconhecer e ocupar espaços que podem ser utilizados positivamente pelas classes trabalhadoras em suas lutas – como a escola e a produção jornalística – parece ser uma importante possibilidade na construção de uma nova hegemonia. Neste processo, o diálogo crítico e permanente com A. Gramsci me parece pertinente e instigante.

Bibliografia: BARBOSA, Alexandre.O jornalismo e a construção da contra hegemonia: análise da revista do MST a partir dos conceitos gramscianos de jornalismo. In: Revista Latino Americana de ciências de lacomunicación. V. 9, n° 17 (9), Julho/Dez 2009. GRAMSCI, A. Caderno 12 (1932) Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios 15

O Pouso Frio não existe mais. Em seu lugar nasce a Vila Boa Esperança.Tribuna do Oeste. 17 de outubro de 1981. Outros dados da publicação não foram encontrados. O texto foi encontrado no Museu Municipal Willy Barth, como recorte do jornal, contendo apenas uma data indicando o nome do jornal e data de publicação. 16 BARBOSA, Alexandre. O jornalismo e a construção da contra hegemonia: análise da revista do MST a partir dos conceitos gramscianos de jornalismo. In: Revista Latino Americana de ciências de lacomunicación. V. 9, n° 17 (9), Julho/Dez 2009. 17 Cabe ressaltar que Gramsci não usa este termo.

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sobre a história dos intelectuais. Caderno 24 (1934) Jornalismo. Cadernos do cárcere. Vol. 2. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. LANGARO, Jiani Fernando. Quando o futuro é inscrito no passado: “Colonização” e “Pioneirismo” nas memórias públicas de Toledo-PR (1950-2010). 2012. 470 f. Tese (Curso de Pós-Graduação em História). PUC/SP, São Paulo, 2012. VINYES, Ricard.La memoria del Estado. In: El estado y la memoria:Gobiernos y ciudadanos

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A LUTA POR MORADIA EM FOZ DO IGUAÇU E AS OCUPAÇÕES URBANAS Lucas Eduardo Gaspar1 Resumo: A cidade de Foz do Iguaçu – Paraná, nos anos de 2012 e 2013 foi palco de uma série de ocupações em áreas urbanas por famílias pobres, uma destas ocupações atualmente conta com cera de 860 famílias, a “Ocupação do Bubas” atualmente é a maior no estado do Paraná, é esta ocupação o foco deste trabalho, pois a partir dela, de seus moradores e suas ações são encontrados diversos elementos que se relacionam com a história da luta por moradia na cidade de Foz do Iguaçu. Parindo então da observação desta situação da cidade e da proporção que tomou este movimento, o presente trabalho objetiva refletir a cerca da constituição histórica da luta por moradia na cidade de Foz do Iguaçu e da participação e experiência da classe trabalhadora da cidade neste processo que chega até os dias atuais. Para isso são utilizados os documentos da prefeitura, reportagens televisivas e principalmente as narrativas dos moradores destas áreas ocupadas a análise destas fontes permite refletir a cerca de quando se agrava o problema da moradia no município, como se dão algumas disputas entre diversos grupos sociais em torno desse problema e também como atualmente o problema aparece na cidade de Foz do Iguaçu, quais os sujeitos envolvidos e quais as experiências e significados atribuídos por eles nesta constante luta não só pela moradia mas também pela cidade. Palavras-Chave: História; Cidade; Luta por Moradia; Trabalhadores.

O município de Foz do Iguaçu, no início do ano de 2013, foi o local de uma série de ocupações de áreas urbanas por trabalhadores pobres. Esses movimentos foram mostrados e conceituados pela mídia local como “invasões de terras particulares”. Com o intuito de ampliar a visão sobre esse movimento, e mesmo me contrapor a algumas versões, dei ênfase aos sujeitos que efetivamente construíram este processo. Analisei, assim, de maneira maisgeral, as diversas ocupações e, de forma especifica, uma ocupação que ocorreu, a partir de janeiro de 2013, em uma área particular de mais de 40 hectares – chamada popularmente pelos moradores como invasão do Bubas. Pretendi com isso ampliar a visão sobre os sujeitos que constituem aquele processo e como eles significam, elaboram e reelaboram, não só suas ações, mas também o conjunto da sociedade em que vivem e as disputas em que se inserem, disputas essas que não são somente pelo direito à moradia, mas pelo pertencimento à cidade. Antes de iniciar as reflexões a respeito do tema, considero importante explicitar de 1

Acadêmico do curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Faz parte da equipe do laboratório de Trabalho e Movimentos Sociais e do grupo História Social do Trabalho e da Cidade. Tem experiência em pesquisas sobre área rural, relações de trabalho no campo e processos trabalhistas. Atualmente pesquisa assuntos relacionados a ocupações de áreas urbanas, moradia, problemas de habitação e movimentos sociais. E-mail: [email protected]

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onde parto para as realizá-las, ou seja, da “História Vista de Baixo”. Quando falamos em “História Vista de Baixo” ou “História da Gente Comum”, de início já deixamos claro que tipo de conhecimento histórico queremos construir: um conhecimento que leva em consideração e explicita o antagonismo de classes presentes em nossa sociedade, mostrando como isso se distancia da chamada História Oficial. Este último tipo de história é, em suma, construída pelos grupos dominantes, uma história que tem um caráter, em geral, triunfalista e homogeneizador. Observando os acontecimentos urbanos, em especial a Ocupação do Bubase sua repercussão, tanto na mídia local como no Poder Público e na população, é que decidi pesquisar a questão da moradia em Foz do Iguaçu, principalmente o que está relacionado com ocupações nas áreas urbanas da cidade. Ao entrevistar os moradores desta ocupação em específico, tive contato com uma série de experiências, sentimentos e significados provenientes desses sujeitos que nos informam e contribuem para as reflexões a respeito das motivações de um determinado grupo ao invadir um terreno, também quais são seus desafios diários de permanecia neste lugar, as lutas que são travadas dentro e fora da ocupação. Nesta pesquisa, foram realizadas 10 entrevistas com moradores da ocupação. 5 desses entrevistados são os chamados “líderes” do movimento, fazendo parte de uma “comissão” que auxilia na organização e luta dos moradores. Partindo então desses trabalhadores que lutam por habitação é que construímos o conhecimento histórico. Conjuntamente, entendo a classe não como totalmente determinada pelo Estado, sociedade ou economia de um período, mas sim a classe no seu próprio fazer-se, como pessoas que a constituem, pensam e agem, ou seja, como sujeitos, assim como afirma Thompson no primeiro volume de A formação da classe operaria inglesa: “ a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, essa é sua única definição.”2 Por isso, é importante o uso das fontes orais, que foram as fontes principais analisadas nesse trabalho e que propiciam a investigação que leva em conta este ângulo de observação e análise das ações e pensamentos dos sujeitos, partindo assim da análise de como eles próprios relatam suas histórias. Mas, apesar das fontes orais abrirem esse leque depossibilidades de análises, as fontes escritas ou oficiais não serão deixadas de lado, “na realidade, as fontes

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THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesaI: A árvore da liberdade. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.p.12.

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escritas e orais não são mutuamente excludentes”3, mas cumprem funções específicas que, em seus campos. No caso, me explicitaram percebera forma como parte da classe dominante se situava em relação ao movimento, bem como as ações implementadas.

Cidade e moradia: As lutas e seus significados O agravamento do problema da habitação na cidade de Foz do Iguaçu não é recente, desde a década de 1970 o município passou por uma série de transformações, que afetou, entre outros setores, a questão da habitação da cidade. Os problemas urbanos de Foz do Iguaçu assumem dimensões maiores e mais preocupantes ao mesmo tempo da construção e os “benefícios” trazidos pela Usina de Itaipu, a construção da hidrelétrica trouxe profundas transformações para a cidade, devido a grande mão de obra empregada na construção da barragem – cerca de 40 mil trabalhadores - em conjunto com a massa trabalhadora que se deslocou para a cidade e não conseguiu emprego na Usina de Itaipu, o município sofre um inchaço populacional que, segundo a historiadora Aparecida Darc de Souza, resultaram três grandes problemas para a classe pobre e para a cidade “o aumento da pobreza, a falta de moradia e o aumento da criminalidade.”4 Três décadas depois da construção da Usina de Itaipu o problema da moradia em Foz do Iguaçu ainda é latente, a Ocupação do Bubas -foco deste trabalho- é um exemplo claro de como as políticas públicas direcionadas a habitação no município são precárias e não suportam e nem atendem a toda a população necessitada, mas, além disso o caso da Ocupação do Bubas nos mostra também um outro elemento deste processo: a ação, consciência e organização da classe pobre da cidade que se insere na luta por moradia. Apesar do descaso do Poder Público para com esta classe, que constantemente nas entrevistas realizadas criticavam a gestão municipal e as instituições que deveriam pensar e regular a questão da habitação na cidade – que é o caso do Poder Público e do FozHabita – estes ocupantes constituíram a maior ocupação do estado do Paraná, justamente porque perceberam que a espera pela ação destas instituições não seria suficiente para a resolução de seu problema com a falta de moradia. A Prefeitura Municipal de Foz do Iguaçu em conjunto com o Instituto deHabitação de 3

PORTELLI. A. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo, Educ, n. 14, p. 25-39, fev.1997.p. 26. 4

SOUZA, A. D.FORMAÇÃO ECONÔMICA E SOCIAL DE FOZ DO IGUAÇU: um estudo sobre as memórias constitutivas da cidade (1970-2008). 2009. 218f. Tese (Doutorado em História Econômica)– Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.p.48

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Foz do Iguaçu (FozHabita) foram alvos de diversas críticas dos moradores da ocupação do Bubas, pois estas instituições estavam relutantes em dialogar com os integrantes da ocupação. O FozHabita foi criado em 2001 com o intuito de “planejar, organizar, dirigir, coordenar, executar, delegar e controlar a prestação de serviços públicos à habitação popular, também executando programas de desfavelamento.”5 Muitos moradores da ocupação do Bubas tem o cadastro nesta instituição à vários anos, e por ela não suportar a demanda de habitações da população necessitada de Foz do Iguaçu são constantes os relatos questionando e pressionando alguma atuação do FozHabita para estas famílias. Uma das lideres do movimento, Vanessa, relata sua reunião com dirigentes do FozHabita, em sua fala percebemos elementos comuns que dialogam com as falas dos outros entrevistados, primeiramente há uma desconfiança muito grande em relação ao FozHabita, pois os integrantes da ocupação avaliam que esta instituição não vem cumprindo seu papel auxilio na questão da moradia para os que necessitam na cidade de Foz do Iguaçu, do mesmo modo a prefeitura, por ter o controle dessa instituição também é responsabilizada pela falta de atendimento aos pobres da cidade, essa visão aparece em quase todas as entrevistas quando os entrevistados recebem o espaço para darem um recado final na entrevista, como foi o caso das entrevistas de Julia e Ana: Lucas: A senhora quer deixar algum recado final, como agente deixou aquele dia lá? Julia: No geral agente quer pedir que o prefeito né? Ele olhe pra essas família que tá aqui, que foi essas famílias que elegeram ele, eu pessoalmente consegui muito voto pra ele né? Ele me conhece muito bem, pedi a ele que olhe praessas família que dê uma força.6 Ana:teve político que não entrou aqui porque disse que eles não iam fazer nada por essa gentalha, não, não é gentalha, isso aqui são pessoas, são seres humanos, eles trabalham, eles levantam cedo, uns passa fome porque muitas vezes não tem o que comer, como deu esses dias que deu 15 dias de chuva aí, o pessoal não pode trabalhar, quem trabalha na rua, é o único recado que eu tenho pra dar pra eles, é o que eu penso também né?7 Mais do que um desabafo essas palavras se constituem como uma reivindicação, uma necessidade e uma tentativa de garantia de seus interesses, as entrevistadas avaliaram que 5

FOZHABITA, Histórico. Disponível http://www.pmfi.pr.gov.br/conteudo/%3bjsessionid%3d25cf01975bb4a3ce1f556358d12d?idMenu=555 em: 12/05/2014 6 JULIA . Entrevista realizada em 03/07/2013, por Lucas Eduardo Gaspar. 7 ANA . Entrevista realizada em 08/07/2013, por Lucas Eduardo Gaspar.

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em: Acesso

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foram elas que colocaram aqueles políticos no poder e por isso tem total direito de explicitar o quanto estes mesmos políticos estavam negligenciando o movimento, mais do explicitar elas estão lutando por ações desses governantes para a resolução dos problemas ou pelo menos uma melhora na condição de vida. Outro problema que nos deparamos ao longo da pesquisa foi o papel da mídia local em relação ao movimento. As reportagens analisadas foram as vinculadas ao jornal ParanáTV, que é exibido em duas edições diárias na cidade de Foz do Iguaçu, jornal esse exibido na afiliada da Rede Globo, RPCTV. Diante destas poucas características pode-se ter uma noção básica de quais são os interesses compartilhados, não só pelos grupos que controlam o jornal, mas também das emissoras a qual estão ligados. São os interesses das classes dominantes então que prevalecem no conteúdo e sentido do telejornal. Os jornais tentam, de diversas formas, deslegitimar essas ocupações feitas pelos moradores pobres de Foz do Iguaçu, um argumento utilizado pelos jornais televisivos, com este intuito são as afirmações em relação às consequências e àe o comprometimento da segurança da sociedade em geral que essa série de ocupações trazem para a cidade, pois,como fala o próprio jornal e depois odiretor da Guarda Municipal de Foz do Iguaçu, Cleomar, em uma reportagem exibida no dia 17/01/2013: Repórter: A Guarda Municipal atendeu 42 ocorrências de invasão desde o início desse ano, é mais que os casos de roubos, furtos, prisões e disparos de arma de fogo, no mesmo período somados Cleomar:Se você me perguntar nesse sentido: “Atrapalha a segurança como um todo?” É, preventivamente atrapalha. Vou ficar só fazendo atendimento nessas áreas, se essa pessoa me ligar e pedir a presença de uma viatura próxima de seu comércio ou à sua rua pra tá fazendo patrulhamento eu vou tá dizendo: “olha, neste momento não vou poder te atender porque estou fazendo um outro tipo de serviço”.8 Ou seja, ressaltando a ilegalidade das “invasões” e o comprometimento da paz pública que estas trazem para toda a sociedade, a mídia local tem um papel claro em relação àpublicização do movimento: o de deslegitimá-lo para o restante da população iguaçuense.Outro exemplo desta tentativa de deslegitimação é a tática usada pelo telejornal de sempre contrapor as falas dos moradores entrevistados nas ocupações com a de um agente da PARANÁ TV 1ª EDIÇÃO – FOZ DO IGUAÇU. Segurança em áreas invadidas deixa outras áreas descobertas pela Guarda Municipal. PUBLICADO EM 17/01/2013. Visto em 10/10/2013. Disponível em: http://globotv.globo.com/rpc/parana-tv-1a-edicao-foz-do-iguacu/v/seguranca-em-areas-invadidas-deixa-outrasareas-descobertas-pela-guarda-municipal/2351098/ 8

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Guarda Municipal, Polícia Militar ou até mesmo, da própria prefeitura, para que assim estas autoridades “esclareçam” o que esta acontecendo e, ao mesmo tempo, ressaltando a sua ilegalidade. As comissões dos moradores da ocupação, percebendo este caráter pejorativo que estavam ganhando as reportagens, decidiram não mais dar entrevistas para o telejornal até que ele se comprometesse em mudar sua postura. Estas elaborações dos moradores são de grande importância, pois mostram como eles estão cientes, tanto da condição que estão vivendo quanto do caráter que o movimento havia ganhado nas reportagens. E mais: decidiram até mesmo lutar contra isso e a maneira que encontraram para enfrentar a mídia local foi a não realização deentrevistas. A fala de um morador entrevistado explicita esta indignação: Rafael: Na verdade, na minha opinião, a televisão, a mídia, ela sempre distorce, como nóis mesmo já demo muita entrevista, como eu mesmo já di muita entrevista, agente fala uma coisa, chega lá eles cortam a metade, o que é o básico que é que o pessoal tá aqui interessado não de tomar terra de ninguém, que é que eles tão querendo ganhar a casa, eles já distorce, disconversa, as vezes fica te chato pro nosso lado né?9 A fala de Julia é ainda mais incisiva: Julia: porque se nós somos tratados como bicho, então vamo agir como bicho, se eles trataram nós como bicho vamo agir como bicho, então nós não dá mais reportagem até que eles mudem também, que eles enxerguem que aqui tem mulheres tem criança, nós temos né? Nós temos famílias aqui que tem 9, 12 criança morando debaixo do barraco, é uma situação bem difícil pro pessoal, então eu acho que a mídia não favoreceu nós, e nem nóis a eles então.10 Esta ação expressava toda a revolta dos moradores da ocupação, pois, por diversas vezes nas entrevistas, quando questionados sobre o tratamento que a sociedade e o Poder Público estavam dando ao movimento, foi comum ouvir a palavra “bicho”, de que estavam sendo tratados como “bichos”. Os moradores viram nas reportagens, que não mostravam a sua realidade como um meio de divulgar esta visão por toda a cidade e sim, a tentativa deconvencimento da população de que estes moradores realmente eram “bichos”. Analisar este movimento através de seus sujeitos não foi tarefa fácil, devido ao porte desta ocupação e a diversidade dos grupos populares da cidade de Foz do Iguaçu o que se formou na região sul da cidade foi um espaço de reclamações e convergências. As

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RAFAEL. Entrevista realizada em 13/07/13, por Lucas Eduardo Gaspar. JULIA . Entrevista realizada em 03/07/2013, por Lucas Eduardo Gaspar.

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convergências não ocorrem no sentido de uniformizar ou homogeneizar o grupo pelo qual constitui a ocupação do Bubas, mas em perceber que dentro de toda esta diversidade que constitui esse grupo, que é formado por sujeitos pobres das mais diversas origens, que trabalham em quase todos os setores da cidade, de famílias enormes a mães solteiras com filhos pequenos, da enorme quantidade de criançasao numero significativo de idosos. Diversidade essa que converge quando o assunto é casa própria e respeito, que converge quando avaliam que a ocupação não é um ato de “roubo”, mas de evidenciar um grupo negligenciado e garantir seus direitos. Constitui-se um espaço também de reclamações porque a maioria dos sujeitos daquele lugar, no ato de ocupar uma área, estão “gritando” suas reclamações ao restante da sociedade e ao poder público, estão mostrando sua existência e necessidades, mais do que isso, agora estão disputando-a com o restante da sociedade. Por isso devemos não somente visualizar o movimento e seus sujeitos, mas atentar esse olhar para toda a diversidade que constitui este espaço, seja da ocupação do Bubas ou da cidade de Foz do Iguaçu, identificar também as contradições, disputas, experiências, interesses significados e sentimentos desses sujeitos, para que assim possamos não enquadrálos como “pobres” ou “invasores”, mas como um movimento constituído homens e mulheres históricos, pertencentes a uma determinada sociedade e que sentem na pele a luta de classes. Vanessa foi uma das primeiras ocupantes da área do Bubas, atualmente faz parte da comissão que organiza o movimento, por escolha dos próprios moradores, tem família constituída de marido e mais 3 filhos, já morou em diversas regiões da cidade de Foz do Iguaçu sempre pagando aluguel. Quando questionada na entrevista sobre esses outros locais que já havia residido na cidade Vanessa preferiu não responder, pedindo para que eu prosseguisse com as perguntas. Na narrativa de Vanessa percebemos outro tipo de abandono relatado por ela, que extrapola os abandonos de terrenos, barracos e objetos, um abandono que toca o movimento de forma muito mais profunda, que é o abandono social sofrido pelos integrantes do movimento e pela classe pobre da cidade. Segundo Vanessa: “no geral,eles [Poder Público]esqueceram dos menos favorecidos”. Nesta pequena frase, podemos perceber claramente como os moradores desta ocupação percebem, tanto sua situação social como também o descaso do Poder Público com a classe mais pobre e quando seu companheiro, também presente nesta mesma entrevista, ressalta: “teve que invadir pra saber que nóisexistimo”, ele evidencia justamente o processo de disputa pelo espaço urbano e pelo reconhecimento como sujeito social e portador de direitos que são 211

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todos estes moradores. O ato da “invasão” então não é significado como um crime para estes sujeitos, mas sim como uma ação de necessidade de condições mínimas de moradia, sobrevivência e pertencimento social. Além do mais, o uso dos termos “esqueceram” ressalta o sentimento desses moradores de pertencimento a cidade que foi negligenciado à eles, através justamente das políticas públicas de moradia ineficazes. Podemos reforçar esta idéia a partir de outras entrevistas realizadas, como a de Marta, quando ressalta que: “eu não tive a oportunidade de ter uma casa; daí, a gente tem que sofrer esses riscos pra poder conquistar, né?”, ou seja, esses“riscos”, que neste caso é o ato de ocupar um terreno, é considerado como um elemento necessário para que se alcance uma conquista, conquista essa que se trata apenas de um direito básico do cidadão, o da casa própria. Ainda na narrativa de Marta, percebemos como estes sujeitos enfrentam a si próprios, seus medos, receios e angústias, para que possam concretizar, ou lutar pela garantia de sua moradia. [...]a gente veio e eles a recém começaram a invadir aqui, né? [...]A minha irmã, minha mãe morava aqui no Bubas; daí, a minha irmã ficou sabendo, daí, eu fiquei: “ ai, será que eu vou?”, daí ele falou assim: “vamo lá, você vai conseguir sua casa”, daí eu: “será?”, daí meu marido falou assim: “a Marta não vai ter coragem de ficar”.Até ele se impressionou comigo.Porque a gente vem, montou o barraco e eu fiquei.11

Nesta fala percebemos o quanto esta ação mexe com os sentimentos e o interior das pessoas, pois a necessidade, ligada a oportunidade de se conquistar uma casa própria, fez com que Marta reelaborasse uma série de concepções que, para ela, eram imutáveis. Esta mudança foi tão expressiva que nem mesmo seus familiares próximos, como é o caso de seu marido, em um primeiro momento, acreditassem que seria capaz de realizar. Isto caracteriza uma “tomada de consciência” de Marta em relação a sua situação social e de classe, consciência essa que não se deu de forma espontânea na mente de Marta, mas cheio de incertezas e contradições, e que veio a tona a partir do momento em que percebeu na “invasão” um espaço para que ela pudesse efetivar o desejo da casa própria e de uma melhora na condição de vida. Este elemento de consciência é compartilhado também por outros integrantes do movimento, como é caso de Júlia que apesar de morar perto da ocupação nem estava sabendo dela:

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MARTA . Entrevista realizada em 27/10/2013, por Lucas Eduardo Gaspar.

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Júlia: Eu fiquei sabendo por telefone, através do telefone que eu fiquei sabendo da invasão, foi na segunda-feira ao meio dia, me ligaram né? A minha sobrinha até que me ligou lá do Porto Belo, e falou: “Aí tia, tá tendo uma invasão aí pertinho da senhora”, porque eu moro no Morenita I né? Lucas: E porque que a senhora decidiu sair de lá e vim pra cá? Júlia: Pelo aluguel né? Que o dinheiro do aluguel ninguém guenta pagar o aluguel, como eu tenho uma filha especial e crio dois sobrinho meu de uma irmã minha que mataro, não ganho nada, só ganho da minha filha, 600 e poucos reais que é com isso que eu sobrevivo, que a minha filha tem que levar, tem que buscar da APAE então não tem como eu trabalhar, aí a situação fica difícil, chega um mês que você tem pra pagar o outro mês você não tem pra pagar e por isso que eu...12 Júlia sendo mãe solteira de uma filha com deficiência e ainda como responsável por mais alguns filhos de seus familiares teve esses motivos como elementos principais que a levaram à pensar na ocupação como uma possibilidade de melhoria de condição de vida, além, é claro, do preço do aluguel que era pago por ela que compromete boa parte de seu orçamento e aparece, não só para Júlia mas para grande parte dos ocupantes, como elemento principal para a ocupação de uma área particular. Em suma, apesar das dificuldades enfrentadas por este movimento, percebe-se o quanto os sujeitos que o integram estão em constate luta, não só pelo espaço ou por uma casa própria, mas também pela integração na sociedade e pelos sentidos que o movimento pode ter, usam como armas então, não somente sua força física, necessária para ocupar, mas suas ideias, memórias e histórias para legitimar suas ações. Apesar disso, dos enfrentamentos não só com a mídia mas com o poder público e com o restante da sociedade os ocupantes permanecem até hoje na luta não só pela moradia mas pela cidade, de serem reconhecidos como sujeitos com direitos e que no ato de ocupar não estão “roubando” ninguém, mas tentando sob outras vias, que não a oficial e institucional, garantir sua inserção dentro do município. É diante deste quadro que a fala de um morador no início da ocupação toma forma de protesto e luta e não de aproveitamento ou crime. Ele diz: “nós vamos ficar aqui, se vocês tiver de acordo vamos ficar até no ultimo e vamos pegar porque nós tamo conquistando, nós queremos isso daqui.”13 Referências: 12

JULIA . Entrevista realizada em 03/07/2013, por Lucas Eduardo Gaspar. ASSEMBLEIA. Foz do Iguaçu. 05/02/2013. Gravada por Lucas Eduardo Gaspar.

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ANA . Entrevista realizada em 08/07/2013, por Lucas Eduardo Gaspar. ARANTES, A. A. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. 1. ed. Campinas: Unicamp, 2000. ASSEMBLEIA. Foz do Iguaçu. 05/02/2013. Gravada por Lucas Eduardo Gaspar. FOZHABITA, Histórico. Disponível em: http://www.pmfi.pr.gov.br/conteudo/%3bjsessionid%3d25cf01975bb4a3ce1f556358d12d?id Menu=555 Acesso em: 12/05/2014 JULIA . Entrevista realizada em 03/07/2013, por Lucas Eduardo Gaspar. MARTA . Entrevista realizada em 27/10/2013, por Lucas Eduardo Gaspar. PARANÁ TV 1ª EDIÇÃO – FOZ DO IGUAÇU. Área invadida por famílias é desocupada pela Guarda Municipal. PUBLICADO EM 16/01/2013. Visto em: 10/10/2013. Disponível em: http://globotv.globo.com/rpc/parana-tv-1a-edicao-foz-do-iguacu/v/area-invadida-porfamilias-e-desocupada-pela-guarda-municipal/2348958/ PARANÁ TV 1ª EDIÇÃO – FOZ DO IGUAÇU. Segurança em áreas invadidas deixa outras áreas descobertas pela Guarda Municipal. PUBLICADO EM 17/01/2013. Visto em 10/10/2013. Disponível em: http://globotv.globo.com/rpc/parana-tv-1a-edicao-foz-do-iguacu/v/segurancaem-areas-invadidas-deixa-outras-areas-descobertas-pela-guarda-municipal/2351098/ RAFAEL. Entrevista realizada em 13/07/13, por Lucas Eduardo Gaspar. SOUZA, A. D.FORMAÇÃO ECONÔMICA E SOCIAL DE FOZ DO IGUAÇU: um estudo sobre as memórias constitutivas da cidade (1970-2008). 2009. 218f. Tese (Doutorado em História Econômica)–Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. VANESSA . Entrevista realizada em 30/06/2013, por Lucas Eduardo Gaspar. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesaI: A árvore da liberdade. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. PORTELLI. A. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo, Educ, n. 14, p. 25-39, fev.1997.

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CIDADE E SUAS CONTRADIÇÕES: OS “BAIRROS DE MÁ FAMA” DE GUAÍRAPR Joselene Ieda dos Santos Lopes de Carvalho1 Resumo: Esta comunicação é desdobramento de uma pesquisa de mestrado que está em andamento, da qual propomos discutir aspectos relacionados a dois bairros específicos localizados na cidade de Guaíra-Pr: “Vila Alta e Parque Hortência”. São bairros dos quais cotidianamente aparecem nos jornais locais como sendo violentos e habitados por “classes perigosas”. No entanto, ao entrevistarmos as pessoas que moram nestes bairros, é perceptível que são trabalhadores, diferentemente do que aparecem nos noticiários, caracterizando-os como “bandidos, marginais”. A violência e as formas de trabalho “ilícitas ou informais” são caracterizadas como problemas individuais. Não se questiona de modo mais amplo porque se torna comum o meio de sobrevivência de tantos trabalhadores estarem associados a uma destas duas formas de trabalho. Portanto, visamos discutir como os moradores destes bairros vivenciam diariamente a luta de classes na cidade e como para as classes dominantes a violência é sinônimo da pobreza. Compreendemos assim, como uma hipótese fundamental desta pesquisa, que a cidade é um dos locais do qual é possível observamos a vasta contradição do Capital. Palavras-Chave: Trabalhadores; cidade; bairros de má fama. O que é cidade? Cada qual tem uma resposta e entre tantas, provavelmente todas estarão corretas e se complementarão. No entanto, a cidade não se forma apenas por suas estruturas, mas, principalmente pelas relações sociais das quais é constituída. Sendo assim, a cidade não é vivenciada da mesma forma para todos. São inúmeras contradições que norteiam a vida dos moradores da cidade. E são essas contradições que buscaremos contextualizar neste trabalho. A cidade de Guaíra embora seja relativamente pequena com cerca de trinta e cinco mil habitantes, possui conotações negativas pelo alto índice de violência constante, que possibilita com que a cidade apareça sempre nas listas das cidades mais violentas do Brasil. Guaíra está entre as dez cidades mais violentas do país Edição 816- 02 à 08 de Agosto de 2013 (Fonte: Aqui Agora) 1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Poder e Práticas Culturais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE, vinculada à linha de pesquisa: Trabalho e Movimentos Sociais, Campus de Marechal Cândido Rondon. Email: [email protected]. Sob a orientação do Prof. Dr. Rinaldo José Varussa.

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Os resultados divulgados pela pesquisa, Mapa da Violência, também aponta que o Paraná está mais violento. Em 1998, o Estado ocupava o 14º lugar, com uma taxa de 28,5 mortes de jovens de 15 a 24 anos a cada 100 mil habitantes. Dez anos depois, esse índice aumentou 157,3%, passando para 73,3. Campina Grande do Sul, na Região Metropolitana de Curitiba, é a 3ª cidade com a maior taxa de homicídios no país, com índice de 125,5 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Em primeiro lugar encontra-se Itupiranga (PA), com taxa de 160,6, e em segundo Simões Filho (BA), com 152,6. No Paraná figuram ainda na lista das dez cidades com maior número de assassinatos no país Guaíra, na fronteira do Estado com o Paraguai. A cidade do Oeste do Paraná está em 10º lugar, com taxa de 103,6 homicídios a cada cem mil habitantes (grifo nosso). Entre as cem cidades mais violentas do país mais oito municípios paranaenses aparecem na lista. Santa Terezinha do Itaipu, no Oeste do Paraná, está em 31º colocado e Piraquara, na Região Metropolitana de Curitiba, em 35º. Guaratuba, no Litoral, ocupa a 40ª posição no ranking das cidades mais violentas do país, enquanto que Almirante Tamandaré, na Grande Curitiba, fica em 46º lugar. Foz do Iguaçu, no Oeste, ocupa a 54ª colocação e Rio Bonito do Iguaçu, na região central do Paraná e com apenas 15 mil habitantes, está no 68º lugar. Curitiba, além de ser a sexta capital mais violenta do país e a mais violenta do Sul do Brasil, também figura entre as cem cidades mais violentas. A capital paranaense encontra-se na 94ª colocação entre os municípios com a maior taxa de homicídios a cada cem mil habitantes. Para completar a lista das cidades paranaenses, em 99º lugar encontrase São Miguel do Iguaçu, no Oeste do Paraná.2 Conforme a nota acima, podemos perceber que morar na cidade de Guaíra, implica em lidar com afirmações negativas sobre o lugar em que se vive. No entanto, dentro do próprio espaço da cidade, há bairros que são conhecidos negativamente por se tratarem de “bairros de má fama”3 e são esses os lugares onde moram a classe trabalhadora da qual neste trabalho nos propomos investigar. Se por um lado, há constantes informações negativas sobre os bairros, por outro, há moradores que enxergam nestes lugares sua “comunidade”. Compartilham experiências em comum, e seus cotidianos possuem implicações das quais são obrigados a criarem meios de 2

Disponível em http://www.rioparanazao.com.br/home/?pag=materiasint&materia=92 Termo utilizado por Friedrich Engels em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, para descrever os bairros nos quais havia forte presença da classe operária e que eram ausentes de infraestrutura sanitária. “Outros bairros densamente habitados estão desprovidos de rede de esgotos- e esta, quando existe, é insuficiente. Em muitas fileiras de casas, raramente se encontra um porão que não esteja úmido; em muitos bairros, as ruas estão tomadas por uma lama em que os transeuntes se atolam. Inutilmente,os moradores procuram melhorá-las, lançando-lhes pás de cinzas, apesar disso, o esterco e as águas sujas ficam espalhadas diante das casas até que o sol e o vento os sequem e dispersem.” (cf. o relatório do Conselho Municipal no StatiscalJournal, v.2, p.404). (ENGELS, p.84, 1988) 3

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sobreviver. As formas de trabalho, por exemplo, são as evidências sustentadoras de que o Capital interage no âmbito legal e ilegal, lícito e ilícito, intensificando os modos de exploração. Para quem não conhece de perto os embates de lidar com o trabalho ilegal, o juízo de valor torna-se comum, porém, quando se está de frente com a fome, ou pior que seja, a fome de seus filhos, arriscar sua vida com algo “ilegal” torna-se sinônimo de sobrevivência. Para esses trabalhadores, torna-se legítimo o meio que lutam para sobreviver. É de seu suor e de sua capacidade de agüentar as pressões que esta forma de trabalho exerce sobre suas vidas: sair de casa todos os dias sem a certeza de voltar. Não deve ser fácil sentir-se assim constantemente! Segundo Vera Telles4, em sua obra “A cidade nas fronteiras do legal e ilegal” a pobreza é vista como um grande negócio para o Capital: as redes transnacionais por onde circulam produtos e pessoas, criam condições para a circulação de produtos que, em outras situações, não chegariam a esses mercados: embargos, interditos, controles que marcam as fronteiras, diferenciais de renda e riquezas que tornam difícil, quando não impossível, o acesso a esses bens e mercadorias. Portanto, a própria forma de trabalho “ilegal” é mantida pelo Estado pelos favorecimentos que este causa ao capital. Como (sobre)vivem estes trabalhadores que moram nos “bairros de má fama”? Como se articulam entre os espaços dos quais lutam? Estas são questões que procuramos responder nesta pesquisa. Maria5 tem cinqüenta e seis anos e é moradora do Parque Hortência. Embora já tenha morado em outras cidades pela constante busca de uma vida melhor, Maria todas as vezes (totalizando três vezes) que mudou de outra cidade para Guaíra, morou no Parque Hortência. Quando relata sobre sua vida como moradora do Parque Hortência, faz questão de mencionar o “espírito de comunidade” entre os moradores, pois, para Maria isso é o mais importante. Passaram juntos pelas dificuldades de morarem em um bairro que não possuía o mínimo de condições para se viver.

Depois que fez a escola no ano de 1983, depois vinha a missa na área da escola, ali cabia todo mundo e sobrava lugar. Aí junto com esse colégio veio a luz, porque ninguém tinha luz, era sem luz.(...) Nós chegou no ano de 1982 e a luz chegou no finalzinho, pro Natal de 4

TELLES, Vera da S. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: MG:Fino Traço, 2010.

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Pseudônimo criado por mim. Entrevista realizada no dia 29/07/2014.

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1983. Todo mundo instalou as casas né? Deixou tudo instaladinho as luzes, daí nós saiu de casa e eles falavam “qualquer dia, qualquer hora, essa luz vai ser ligada”. (...) Aí quando nós chegamos estava tudo pronto, tudo aceso, ai meu Deus! Nós dávamos pulo de alegria.6 As experiências dos moradores iniciais do bairro Parque Hortência foram compartilhadas de forma que a realidade era vivenciada da mesma forma por todos. As casas eram afastadas umas das outras e havia alguns lotes que não eram ocupados e portanto, os moradores criaram uma horta em comum, da qual uns plantavam milho, outros alface, arroz, frutas, enfim, cada vizinho ao plantar naquele espaço já sabia que qualquer morador do bairro poderia retirar para seu sustento e assim, aconteceu por vários anos, até que na década de 1990 o Parque Hortência passou a ser mais habitado. O exemplo de Maria pode simplificar-nos o que os moradores almejavam naquele momento: condições básicas para sobreviver. As casinhas eram precárias, insalubres, de forma que ao imaginar uma família com quatro pessoas (a família de Maria nesse período) fica quase incompreensível como viveram sem energia elétrica por tantos meses. Porém, mesmo com a instalação da energia surgiram outros problemas sérios dos quais a comunidade precisou lutar para conseguir. Algo que aparece constante na fala dos entrevistados foi a construção do centro comunitário ao lado da igreja. Maria relata que na primeira semana que se mudou para o bairro foi convidada a fazer um curso de preparação para se tornar catequista, pois, o bairro tinha apenas um senhor que havia proposto catequizar as inúmeras crianças e como já era de idade avançada, não estava conseguindo dar conta de catequizar à todos. Perante este fato, surge uma preocupação geral dos moradores: era necessário preparar mais catequistas, pois, as crianças precisavam apreender sobre Deus. Quando Maria quer explicitar as mudanças ocorridas no bairro, remete-se sempre às modificações que através da luta e da unidade, realizaram na capela do bairro. Inicia a entrevista falando que quando começou a ser catequista, não possuíam um espaço específico, mas, os pais percebendo a importância da catequese na vida dos filhos, decidiram se unir e criaram o centro comunitário. Por ser um bairro pobre, tudo passou a ser efetivado neste salão. Casamentos, festas, catequese e até mesmo velórios. A entrevistada lembra-se de alguns fatos e relata a considerável melhoria que houve no bairro através da luta dos 6

Maria é trabalhadora aposentada devido à doenças que se fortificaram ao longo dos anos enquanto era bordadeira e passava a maioria do tempo sentada costurando. Atualmente, costura para a vizinhança, quando está possibilitada e efetua serviços leves. Moradora do Parque Hortência desde o início de 1982. Entrevistada no dia 29/07/2014.

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moradores, pois, atualmente, a capela foi reformada e o centro comunitário também. Criou-se um salão para festas da igreja e outro para encontros específicos como velórios. O que pode nos parecer como momentos insignificantes para Maria, expressam sua história no bairro. Quando comecei a entrevistá-la, por nenhum momento imaginei que me relataria de forma tão específica e detalhada a história da construção da capela do bairro, porém, isso significa uma conquista para ela e os demais moradores. Menciona um morador que de tanto trabalhar carregando tijolos na construção do bairro, desencadeou uma doença nas pernas, mas, isso é um grande orgulho para ele e para todos do bairro. Pois, “se não fosse ele, não conseguiríamos erguer essa capela”. Maria sente-se orgulhosa de seus vizinhos, pois, juntos formaram uma comunidade da qual hoje “falta espaço na igreja de tanta gente nas missas aos domingos”. Outra semelhança na vida desses moradores é lidar cotidianamente com o “legal e ilegal”, “lícito e ilícito”. Maria afirma que no bairro os moradores sabem quem são as pessoas que lidam com essas formas de trabalho, mas que a relação que possuem é de respeito. Embora diga não concordar com essa forma de trabalho, Maria diz que “ninguém se intromete na vida de ninguém”, mas, que em anos anteriores a vida no bairro era difícil. Haviam mortes quase todos os dias e era comum os moradores saírem de casa armados, como meio para se defender de possíveis contratempos. Interessante constatar que, nesta pesquisa analisamos também a imprensa da cidade de Guaíra, e pouco aparecem nos anos iniciais da construção do bairro relatos de crimes. No geral, o contexto de assassinatos e roubos é imenso, mas, no âmbito de toda a cidade. Já Maria e seu esposo João, afirmam que nos dias atuais viver no Parque Hortência é “uma maravilha em vista do que já foi um dia”. O que nos possibilita questionar se havia interesse dos órgãos municipais em ocultar as informações sobre os crimes na década de 1980 no bairro, justamente com a intenção de fazer com que a classe trabalhadora fosse morar naquele espaço. Esta é uma das questões que ao longo da pesquisa buscaremos responder. Uma das formas de trabalho mais presentes e efetuadas pela juventude na cidade de Guaíra é o trabalho ilícito (contrabando). Portanto, algo constante é a preocupação dos pais em ver seus filhos lidando com isso. Algumas gerações anteriores de trabalhadores, mesmo que ganhando o mínimo para sobrevivência de sua família, orgulhavam-se em dizer que eram assalariados de carteira assinada, mas, o que podemos perceber atualmente é que o trabalho formal não tem sido tão interessante já que além da remuneração baixíssima se comparada

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com a diária que a barranca do rio proporciona pouco se têm na cidade de Guaíra possibilidades de trabalhos formais. Lembro-me do período em que estudava em uma escola na cidade de Guaíra, a quantidade de colegas que desde bem jovens (aproximadamente quatorze anos) efetuavam essa forma de trabalho. No geral, a compreensão que eu tinha naquela época era a de que trabalhavam com o contrabando para comprar meios de consumo que eram na verdade fetiches7. Poucos eram para sobrevivência, muitos arriscavam suas vidas para comprar uma moto, um carro ou até mesmo o par de tênis que aparecia na televisão. E foi assim que perdi inúmeros amigos. E não no sentido de que me afastei deles por circunstâncias da vida, mas, porque foram mortos pelos conflitos que essa vida os desencadeou. Por puro fetiche? Talvez! O que deve-nos preocupar não é somente o que essa forma de trabalho proporciona mas, a que ponto chegamos em que viver é sinônimo de possuir, caso eu não consiga arrecadar dinheiro para comprar determinado bem, não vale a pena viver. Isso se tornou comum na vida das pessoas, e por quê? Quanto menos comeres, beberes, comprares livros, fores ao teatro, ao baile, ao restaurante, pensares, amares, teorizares, cantares, pintares, esgrimires, tanto mais tu poupas, tanto maior se tornará o teu tesouro, que nem as traças nem o roubo corroem teu capital. Quanto menos tu fores, quanto menos externares a tua vida, tanto mais tens, tanto maior é a tua vida exteriorizada tanto mais acumulas da tua essência estranhada. (...) E tudo aquilo que tu não podes, pode o teu dinheiro: ele pode comer, beber, ir ao baile, ao teatro, sabe de arte, de erudição, de raridades históricas, de poder político, pode viajar, pode apropriarse disso tudo para ti; pode comprar tudo isso; ele é a verdadeira capacidade. (...)Todas as paixões e toda atividade têm, portanto de naufragar na cobiça. Ao trabalhador só é permitido ter tanto para que queira viver, e só é permitido querer viver para ter.8 Sendo assim, o trabalho não está desassociado das outras esferas da vida social. De modo que sua própria vida, sua própria condição de ser humano é confundida com o seu trabalho. “Aquele ali mexe com contrabando”, mas, e se “aquele ali” for o sr. João, pai de família que tinha o sonho de comprar sua casa própria e que o único meio de conquistar isso foi o de (veja, sabendo de todos os riscos que corre, inclusive o de perder sua própria vida)

MARX, Karl. “A Mercadoria” e “O processo de troca”. In: O Capital. Livro 1, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p.45-85. 7

8

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. pgs.141 e 142

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trabalhar ilegalmente. Neste sentido, classificar os moradores dos bairros “Parque Hortência” e “Vila Alta” como sendo perigosos impossibilita que os compreendamos como pessoas que constantemente lutam criando mecanismos para sobreviver. As relações sociais das quais vivenciam são muito mais complexas do que expressam os números de dados oficiais. Sair para trabalhar e não ter a certeza de que voltará vivo para casa, não é algo incomum para aqueles que lidam com a violência como conseqüência da vida em que mediante as (im)possibilidades foi a que deu para escolher.

BIBLIOGRAFIA ENGELS, Friedrich.A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo, SP: Global, 1988. TELLES, Vera da S. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: MG:Fino Traço, 2010. MARX, Karl. “A Mercadoria” e “O processo de troca”. In: O Capital. Livro 1, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p.45-85. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. pgs.141 e 142

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INTERPRETAÇÕES DO BRASIL: CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NO MODERNISMO KarlineWolfart1 Resumo:De forma a agregar aspectos do que conhecemos hoje de Brasil, lembrada como fruto da caracterização dada por nomes referenciais na historiografia brasileira, dentre os quais podemos citar Sergio Buarque de Holanda2, Darcy Ribeiro3, Caio Prado Junior4, esta pesquisa tem por finalidade abordar um período anterior às publicações dos autores, construindo as retratações do Brasil e as transformações na historiografia nacional, a fim de propor uma escrita que aborde o povo brasileiro em suas mais diversas etnias e culturas. O Brasil conhecido pelas suas mais diversas interpretações, ao longo dos anos, e pelo diálogo entre as mais diversas culturas e etnias. Cada nova interpretação vem a “analisar” a visão anterior, não com a intenção de elimina-la, e sim, modifica-la ou partir a um novo ângulo de interpretação, plausível com o momento histórico atual. Pensar em uma sociedade cultural divergente da vivida, elementada pelos diversos campos, tendo sua representação em Artes, História e Literatura. O Modernismo vem acatar novos ideais, não apenas artísticos, mais também de cunho social e histórico, com o intuito de “quebrar” conceitos como o “eurocentrismo” e agregar ao Brasil uma identidade voltada as suas origens, valorizando o negro e o indígena. Palavras-chave: Identidade Nacional, Interpretação, Modernismo. Introdução:O Brasil conhecido pelas suas mais diversas interpretações, ao longo dos anos, e pelo dialogo entre as mais diversas culturas e etnias. Cada nova interpretação vem a “analisar” a visão anterior, não com a intenção de elimina-la, e sim, modifica-la ou partir a um novo ângulo de interpretação, plausível com o momento histórico atual. Pensar em uma sociedade cultural divergente da vivida, elementada pelos diversos campos, tendo sua representação em Artes, História e Literatura. Na história da historiografia brasileira, “Pré-Proclamação da Republica”, temos desde o Brasil construído pelo naturalistas a partir do século XVII, como também na História construída como benfeitora do período lusitano, chegando ao momento de controvérsias sobre aquilo que realmente caracteriza o povo brasileiro. Ao buscarmos referências sobre a caracterização do Brasil pós republica, nos deparamos com vários segmentos de abordagens e construções do que é o Brasil, podendo 1

Graduação em História pela UNIPAR, 2012. Especialista em História, Cultura, Arte e Sociedade brasileira, UNIPAR, 2014. 2 Com a obra “Raízes do Brasil”, onde ele elabora categorias para o entendimento histórico do Brasil, um exemplo disso é o retrato do Homem Cordial. Obra originalmente publicada em 1936. 3 Em “O povo brasileiro”, de 1995, ele aborda questões de como o povo brasileiro se fez, retratando questões históricas e antropológicas. 4 “Formação do Brasil contemporâneo” de 1942 traz o pensamento social e a relação nação e colônia no processo de formação do Brasil.

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subdividir esses trabalhos em categorias, tendo assim, no grupo literário nomes como Oswald de Andrade e Raul Bopp, e na historiografia (podemos também nos referir a obras de cunho social, dado que a grande parte dos escritores publicavam sobre diversos contextos) citamos referenciais como Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. Podemos dividir esta fase de caracterização em três grupos, considerando debates sobre a cultura, o clima e a miscigenação das raças, que cabem aos atributos do primeiro grupo, ao segundo cabem os intelectuais que relatam em suas obras à desestabilização cultural e o terceiro grupo as estruturas administrativas e políticas brasileiras; como também sugere Júlia Silveira Matos5, em seu artigo “As interpretações do Brasil nas telas de Tarsila do Amaral”.Podemos nos referir assim, a esse grupo de intelectos como os “interpretes da nossa sociedade6”. De forma a agregar aspectos do que conhecemos hoje de Brasil, lembrada como fruto da caracterização dada por nomes referenciais na historiografia brasileira, dentre os quais podemos citar Sergio Buarque de Holanda7, Darcy Ribeiro8, Caio Prado Junior9, esta pesquisa tem por finalidade abordar um período anterior às publicações dos autores, construindo as retratações do Brasil e as transformações na historiografia nacional, a fim de propor uma escrita que aborde o povo brasileiro em suas mais diversas etnias e culturas. Desenvolvimento: A busca por uma identidade nacional, parte do momento em que o Brasil torna-se uma República, dado que, anteriormente, a identidade do povo era depositada na figura do Imperador. Mesmo em meio à defesa do federalismo, que unia os grupos dominantes, o período pós-proclamação da república foi marcado por transformações socais 10,

5

Em seu artigo: As interpretações do Brasil nas telas de Tarsila do Amaral. In: Cad. Esp. Fem., Uberlândia/MG, v. 24, n. 2, p. 315-337, Jul./Dez. 2011. 6 Foram assim chamados os nomes: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior; descritos por Antônio Candido, em 1967, ao prefácio que ele escreve para o livro “Raízes do Brasil”, de Sergio Buarque de Holanda, onde além de relatar o Brasil naquele momento, ele descreve o inicio de trabalhos como dos autores nomeados acima e a tentativa da escrita do Brasil em suas mais diversas categorias. Neste prefácio ele também faz uma breve explanação de cada capituloda obra (Raízes do Brasil), terminando com uma analogia da sociedade na década de trinta, em voga o autoritarismo e o caudilhismo entre os integralistas, materializando o Novo Estado. 7 Com a obra “Raízes do Brasil”, onde ele elabora categorias para o entendimento histórico do Brasil, um exemplo disso é o retrato do Homem Cordial. Obra originalmente publicada em 1936. 8 Em “O povo brasileiro”, publicado no ano de 1995, ele aborda questões de como o povo brasileiro se fez, retratando questões históricas e antropológicas. 9 “Formação do Brasil contemporâneo” de 1942, traz o pensamento social e a relação nação e colônia no processo de formação do Brasil. 10 A partir da Proclamação da República, em 1889, a sociedade brasileira passa por uma fase de instabilidade política, resultado da crise institucional e econômica que havia se instalado, aumentando assim as desigualdades sociais. No mesmo período são robustecidas as oligarquias regionais, com a influência do governo federal e estadual, nos interiores do país se intensificam o poder dos coronéis.

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políticas e econômicas, que provocavam inúmeras dissensões11, abalando também os intelectuais da época, que continuaram a ter os padrões artísticos idealizados pelas características da Europa, trazida pelos estudantes que de lá retornavam com ideias novas, porém, aos padrões do velho continente: A história da literatura brasileira teria sido uma história de integrações, mais ou menos felizes, da nossa realidade aos padrões cultos europeus. Diante deste fenômeno de civilização que é, em primeira instância, um fenômeno de transplante e de adaptação, soariam românticas, isto é, falsas, as visões nacionalistas do processo.12

Em meio à crise instalada nas duas primeiras décadas do século XX, resultado da década final do século anterior, o Brasil passava por um momento de restauração das ideologias, com reformulações na historiografia e nas artes. Assim como discorre Boris Fausto13, estávamos em um período onde tudo era parecia possível, estávamos à espera do lançamento de novas ideias, tanto no âmbito político como no campo das artes, estávamos em busca de uma Identidade Nacional. Varnhagen14, um interprete do Brasil no período monárquico, discorre sobre um Brasil que permanecesse continuo ao Brasil português, interpretando-o de um modo conservador e aperfeiçoando o passado para um país tal qual seu antigo colonizador. Um pouco da escrita de Varnhagen parte de sua admiração pelas terras brasileiras, juntamente com a necessidade, após a Independência do Brasil, de criar um passado glorioso, um passado que viesse a impregnar nos brasileiros orgulho e crenças em um Brasil em formação. Partindo dos ideais da elite, queríamos uma identidade que não fosse pautada no passado indígena, na mescla do negro com o branco, na pluralidade religiosa. Sendo assim, Varnhagen teve patrocínio da monarquia portuguesa, que precisava se legitimar no poder através de uma bela historia do passado e confiança no futuro, pautada na criação de heróis dos feitos portugueses. A história da formação intelectual também justifica o gosto cultural e artístico do momento, a formação estrangeira como fator essencial para a cultura do Brasil na época, 11

Para uma melhor compreensão dos diferentes projetos de república em disputa no período consultar: CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 12 MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: 1933-1974. 9 ed. São Paulo: Ática, 1994.p.15. 13 Para um melhor entendimento, ver a obra: FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: Historiografia e História. 12ºed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. 14 Francisco Adolfo de Varnhagen, considerado um dos fundadores da Historiografia Brasileira, recebendo a alcunha de “Heródoto brasileiro”. Escreveu um dos mais completos elogios da Historia brasileira sobre a colônia portuguesa, publicado por volta de 1850, o livro “Historia Geral do Brasil” com um relato documentado da historia brasileira desde 1500.

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como mesmo cita Darcy15: “A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como variantes da versão lusitana da tradição civilizatória europeia ocidental”. O processo de construção de uma Nação a partir da Proclamação da Republica vem ao encontro do embate ideológico, no discurso historiográfico essa construção se daria pela continuação do processo colonizador português, sendo contrario a metrópole lusitana apenas em questões politicas, pois o “modelo” de viver e se portar em sociedade, aqui já havia se posto, segundo Reis: O Brasil queria continuar a história que os portugueses fizeram na colônia. A identidade da nova nação se assentaria sobre a ruptura com a civilização portuguesa; a ruptura seria somente política. Os portugueses são os representantes da Europa, das Luzes, do progresso, da razão, da civilização, do cristianismo. O Brasil queria continuar a ter uma identidade portuguesa, a jovem nação queria prosseguir na defesa desses valores.16

A busca por uma historiografia que retratasse o modo de vida brasileiro, sem um culto de seguimento e pertencimento aquilo que era lusitano, os quais podem conceituar como “originalidade brasileira” tem seu inicio no começo do século XX, com os conceitos de João Capistrano Honório de Abreu, que propõe um novo modelo de historiografia nacional, questionando assim as abordagens factuais que antes privilegiavam o herói, como no caso da historiografia escrita por Varnhagen, retirando o povo brasileiro do papel de mero coadjuvante e colocando-o como ator principal de sua própria historia, superando conceitos como o eurocentrismo e diferenças étnicas e culturais. Tanto para a historiografia quanto para as outras áreas (Literatura e Artes), construir um conceito de povo brasileiro, criando uma identidade cultural era uma adversidade a ser enfrentada. O Brasil vivia até o momento (1889) as sombras da metrópole europeia, sobre a visão de um Estado Imperial que se baseava em relações de exploração e dominação da raça branca. Era necessário criar um Brasil com a mescla de raças, substituindo conceitos de “colônia” por “nação”. O processo de criação de um sentimento de pertencimento perpassa, conforme José Murilo de Carvalho, pela criação de um imaginário coletivo, formado através de símbolos nacionais como a bandeira, o hino, o brasão, podendo também ser representado pela arquitetura, pela criação de um mito, pela representação artística e literária, em uma linguagem pratica:

15 16

RIBEIRO, 1995, p20. REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 5º ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p.31.

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Ele não poderia ser feito por meio do discurso, inacessível a um publico com baixo nível de educação formal. Ele teria de ser feito mediante sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos (...) também houve entre nós batalha de símbolos e alegorias, parte integrante das batalhas ideológica e politica. Tratava-se de uma batalha em torno da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recria-lo dentro dos valores republicanos. 17

A carência de uma tradição originária em um país o coloca em um conflito cultural, não perpassando pelas etapas das descobertas artísticas e da pluralidade cultural, como por exemplo, os diversos movimentos artísticos existentes. No Brasil, passamos apenas brevemente pelo conflito trazido pelo cubismo e sua contradição como o romantismo, a não ser pela caudalosa experiência com o Barroco, vivemos perambulando pelas experiências artísticas advinda do academicismo. O manifesto da poesia Pau-brasil, escrito por Oswald de Andrade, retrata bem o período que antecede o Modernismo no Brasil, com a compilação daquilo que é estrangeiro:

Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas artes que dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotográfico18.

Formular uma identidade social submete-se a realçar uma necessidade individual, que parte para um conjunto coletivo, que é elaborada juntamente com um conjunto de sentimentos de pertencimento, seja ele a um grupo social, ou simplesmente a um consenso de Arte e de “belo”. Sendo assim, a identidade torna-se um fator social, que é exercido por cada individuo, e pelo qual cada um deriva, emergindo assim, das narrativas e vivencias sociais. Uma identidade social é mutável, sendo passiva de mudanças a cada estagio do individuo. A partir da narrativa de uma liderança, temos a possibilidade de mudança ideológica. Segundo a teoria de George Herbert Mead19 a identidade do sujeito é oriunda dos processos de formação da sociedade, podemos assim, exemplificar melhor a situação da “crise” ideológica após a proclamação da republica, o individuo tinha sua identidade social formulada em uma sociedade monárquica, que após a proclamação, executada “para o povo, 17

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: O imaginário da Republica no Brasil. 11ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p.10. 18 Manifesto da poesia pau-brasil. Foi publicada inicialmente no ano de 1924, no jornal “Correio da Manhã”. 19 In: MENDES, José Manuel Oliveira. O desafio das identidades.

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mais sem o povo”, a população brasileira encontrou-se “perdida” e em meio a uma crise social e financeira. A imprensa divulgava ideais republicanos, nomes como Benjamin Constant e Silva Jardim eram tidos como novos lideres na difusão de um novo patamar ideológico, mesmo assim, havia apenas teorias, não um exemplo na pratica de como seria. Com esta analise do período que antecede o Modernismo, aborda-se a importância da criação de uma Identidade Nacional que seja norteadora de ideias, contrárias ou não, e a necessidade que o Brasil tinha resultado da criação desta identidade, de desprender-se da forma europeia de retratar seu cotidiano, agregando aos novos conceitos características e peculiaridades do nosso próprio país, a fim de mostrar, a pluralidade cultural existente. A Semana da Arte Moderna caracteriza o próximo passo, como marco do Modernismo no Brasil, reúne no ano de 1922 artistas iniciantes20, que tinham o objetivo de buscar uma identidade própria para suas obras e a liberdade de expressão. Eram artistas que se viam em meio aos conceitos estéticos antigos vinculados em nosso país, dos quais eles julgavam precisar ser abandonados para dar lugar a um estilo:

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio do toucheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e o genro de D. Antônio de Mariz. A alegria é a prova dos nove. A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antesque algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé da Maria da Fonte21.

O passo inicial para a mudança artística e ideológica deu-se com a exposição de Anita Malfatti em São Paulo, com obras que tinham o intuito de escandalizar o publico e os artistas, confrontando o meio artístico brasileiro, que seguia a risca a transcrição do conceito artístico francês, com o movimento expressionista alemão. Muitas foram às críticas recebidas, 20

Tidos como artistas iniciantes, que a partir da exposição durante a Semana de 1922, passam a ter prestígios e agregações de valores a suas obras. Dentre os artistas podemos destacar: Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Anita Malfatti e Guilherme de Almeida. Tarsila do Amaral não participou da Semana, mesmo tendo seu nome agregado ao evento, devido a sua obra Antropofagia (1929), tida como ícone do Modernismo no Brasil. 21 Parte do Manifesto antropofágico, escrito por Oswald de Andrade, possui teor político, ele busca com seu manifesto mostrar que só a antropofagia une as pessoas, e propõem “deglutir” o legado cultural europeu imposto e digeri-lo na forma de arte tipicamente brasileira.

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especialmente em relação à temática futurista das obras, uma quebra com o “francesismo”. Conclusão: A caracterização de uma sociedade perpassa pelos mais diversos âmbitos de análises, desde fontes obtidas através da analise de diários, escritos literários como a poesia, os livros e manifestos, cartas e documentos oficiais, musicas, fotografias e pinturas. A busca por uma identidade inicia-se com a conceptualização de independência, independência em suas mais diversas faces. Observamos no Brasil um longo percurso de busca por identidade, mesmo que antecessora a Proclamação da Republica, precisávamos pautar nosso cotidiano como reflexo de uma sociedade “que deu certo”, voltando assim nossos olhares para o estrangeiro “comportamentismo” europeu. Em um momento pelo qual a aristocracia estava em busca de um novo ideal de belo e de uma nova proposta de “identidade” que os representa-se, o Modernismo trouxe ao brasileiro o Brasil desconhecido, uma nova identidade nacional voltada para aquilo que o Brasil realmente tem de especial: a cultura miscigenada, uma estrutura agrária, um passado indígena, pluralidade religiosa e a diversidade de cores que após muitas décadas de povoamento ainda perpassa por novas descobertas e múltiplos ideais. Referências: ABREU, João Capistrano Honório de. Ensaios e Estudos: Critica e Historia. 1ªed. Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, Livraria Briguiet, 1931. ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: O imaginário da Republica no Brasil. 11ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: Historiografia e História. 12ºed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia do Livro, 2008. MENDES, José Manuel Oliveira. O desafio das identidades. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org). A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2005, pp. 503-540. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: 1933-1974. 9 ed. São Paulo: Ática, 1994. PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 12. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972.

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REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 5º ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A formação e o Sentido do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SKIDMORE, Thomas E. Uma Historia do Brasil. 3ªed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. VIÉGAS, João Alexandre. Nada será como antes: Das fazendas de café às metrópoles industriais. 1ºed. São Paulo: Nascente Música Ltda, 2013.

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A LEI DE COTAS NO CONTEXTO DA REALIDADE BRASILEIRA* Leila Aparecida Garcia1 Vanessa Cairony Cardoso2 Resumo: O presente artigo reflete sobre a Lei de Cotas no âmbito da Política Nacional de Educação, contextualizando-a no cenário brasileiro a fim de entender a necessidade de sua criação. Trata especificamente da situação do negro na realidade social do país, na qual o racismo e a discriminação permanecem como práticas atuais e afirmativas da crença na superioridade do branco. Por meio de pesquisa bibliográfica, procura estabelecer as raízes do pensamento que deu origem à Lei, assumindo, de um lado, que a predominância de uma classe sobre outra seja um traço do modo de produção capitalista e fator determinante na geração do preconceito sofrido por afrodescendentes em solo brasileiro, e de outro, que a influência de órgãos internacionais de incentivo à aceleração do crescimento econômico, marca a formulação da Lei de Cotas. Partindo dessas premissas, discute alguns argumentos que a defendem enquanto iniciativa política de combate às desigualdades sociais, compreendendo que, para alguns, ela representa uma ação paliativa e reformista, enquanto que, para outros, pode representar, a longo prazo, mudanças culturais significativas na medida em que sugere um caminho para assegurar o acesso à graduação para uma parte da população historicamente excluída, o que pode, neste sentido, permitir a inferência de que a implantação de políticas de inclusão sirva como fator de motivação para a classe trabalhadora, impulsionando os movimentos sociais na busca pela articulação dos interesses entre as classes, diminuição das desigualdades e estímulo à luta por uma sociedade mais justa. Palavras-chave: Lei de Cotas. Discriminação. Desigualdades. No Brasil, a política de cotas tem proporcionado à inclusão de um número crescente de estudantes nas universidades públicas. Apesar de todas as polêmicas em torno do assunto, em 29 de agosto de 2012 a Lei de Cotas nº 12.711 foi sancionada, obrigando as instituições públicas de nível superior a reservarem metade das vagas existentes para alunos cotistas. O sistema de cotas determina que do total de vagas 50% delas sejam destinadas à disputa entre estudantes com renda mínima, afrodescendentes, pardos e indígenas. Esse percentual considera o número de pessoas segundo o perfil da população e a realidade regional de cada instituição. O critério utilizado para determinar quem pode disputar essas vagas como cotista, conforme previsto no artigo nº 19, inciso I da Lei de Diretrizes e Base para a Educação (LDB), Lei nº

* Trabalho realizado sob orientação da Profa. Dra. Cleonilda Sabaini Thomazini Dallago do curso de Serviço Social, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Toledo. 1 GARCIA, Leila. Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Campus Toledo. Graduanda do segundo ano de Serviço Social, bolsista vinculada ao Programa de Educação Tutorial - PET. E-mail: [email protected] 2 CARDOSO, Vanessa C. Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Campus Toledo. Graduanda do segundo ano de Serviço Social, bolsista vinculada ao Programa de Educação Tutorial - PET. E-mail: [email protected]

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9394/96, visa atender alunos que tenham concluído o ensino médio em escolas públicas, egressos de Programas para Educação de Jovens e Adultos (EJA) ou ainda os que tenham obtido certificado equivalente por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). De acordo com o Ministério da Educação3, esse sistema tem conseguido abranger um número cada vez maior de universidades pelo país. Até agosto de 2013 alcançou 34% de adesão das Universidades Federais e 83% dos Institutos Federais de educação antes do término do prazo final de quatro (4) anos determinado em Lei para que as instituições públicas aderissem ao sistema. Segundo Aloizio Mercadante4, Ministro da Educação, a Lei de Cotas tem proporcionado às populações de baixa renda maior acesso a educação superior e o Programa Universidade para Todos (ProUni) ajudou a democratizar o acesso ao ensino superior, possibilitando que até o momento, 10% da população negra do Brasil tenha chegado à universidade, sendo que 630 mil são bolsistas negros. Na tentativa de garantir a permanência universitária do aluno bolsista, o governo aindapretende oferecer um benefício de R$ 400,00 através de concessão de bolsas de iniciação científica especificamente direcionadas aos estudantes cotistas, com o intuito de contribuir na diplomação desses alunos.5 Não obstante o aparente sucesso obtido com a referida Lei e apesar dos esforços do governo no sentido de orientar a população disseminando informações pelos meios de comunicação sobre a importância das cotas raciais, podemos observar, seja por meio de dados obtidos pela mídia ou através de pesquisa de opinião pública, que ela ainda gera muitas discussões que transitam tanto pela busca por explicações plausíveis que justifiquem sua necessidade, quanto pelos debates que evocam a problemática econômica e racial, sugerindo que sua manutenção gera mais desigualdades, questionando, ao mesmo tempo, se o acesso representa igualmente garantia de permanência do aluno na universidade e a conclusão das graduações. Segundo Gaudêncio Frigotto (2010),6 não se trata de ser a favor ou contra a Lei de Cotas, mas de entender o movimento histórico que originou sua existência. Para esse autor, numa realidade cheia de contrastes, como a sociedade capitalista no contexto brasileiro, não seria difícil encontrar justificativas para a existência de programas de acesso aos direitos, bastando recorrer à formação da sociedade brasileira, cujo princípio histórico esteve marcado pela segregação e exploração de mão de obra escrava, dando origem à Questão Social que, entre outros fenômenos, constitui o presente 3

Conf.visualizado em: 15/07/2014) 4 idem. 5 Conf.< http://permanencia.mec.gov.br/> visualizado em 27/07/2014 6 FRIGOTTO, Gaudêncio. Os circuitos da história e o balanço da educação o Brasil na primeira década do século XXI. Revista Brasileira de Educação, v.16 n.46 jan/abr. 2011.

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cenário em plano nacional.

CARACTERES PRESENTES NA FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA E A LEI DE COTAS É de conhecimento geral que a miscigenação é uma das principais características da nação brasileira, fato que expõe uma perspectiva determinante para a compreensão de como a sociedade brasileira se formou. A escravidão étnica representa um traço importante de nossa história e seus contornos e desdobramentos mantêm-se mascarados na atualidade, fazendo com que determinadas faixas da população sejam excluídas dos seus direitos enquanto cidadãos. Diante desta questão da miscigenação tão presente e ao mesmo tempo camuflada em meio a diversos interesses econômicos, políticos e sociais, trataremos neste artigo da questão racial, evocando especificamente a de origem negra. Para falar de raça, conforme esclarece Ianni (1992, p. 116),7 são frequentemente evocados, além da análise antropológica, elementos psicológicos, morais, culturais e outras idiossincrasias que permitem abstrações e a classificação de supostos “[...] puros e impuros, superiores e inferiores, civilizados e bárbaros, históricos e não históricos[...]”. Particularmente, entretanto, esclarecemos que o uso do termo “raça”, como nomenclatura, deveu-se à nossa dificuldade de encontrar outra equivalente para a devida referência, pois, em se tratando de pessoas, consideramos que exista apenas uma raça, a humana. Afirma esse autor, que o imigrante europeu em terras brasileiras, assumindo-se como estereótipo ideal, do tipo branco ariano, como sujeito “puro”, capaz de realizar um trabalho de qualidade “superior”, apto, portanto, a transformar um aglomerado de pessoas em nação, em povo brasileiro, submete o negro e o índio ao processo civilizatório mediante a educação europeia, para que, enfim, então colonizados, possam realizar trabalho igual, com a mesma competência (IANNI, 1992, p.128). É notável, nessa perspectiva, a presença de forte conteúdo ideológico introduzido pelo sistema econômico, dividindo as pessoas em classes hierárquicas, onde o branco europeu se sobrepunha ao negro africano, numa perspectiva da supremacia capitalista, pois o imigrante já estava habituado a este sistema, fato que lhe dava vantagens em relação ao escravo.

7

IANNI, Octavio. A Idéia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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Diante disso, conclui-se que o racismo e o preconceito nasceram da disseminação da ideologia de dominação de uma classe sobre a outra em função das relações de trabalho, característica própria do modo de produção capitalista, de modo que a diferença da cor da pele determinasse o lugar do negro na sociedade. As ideologias que colocaram o negro em situação de inferioridade em relação ao branco geraram uma cultura que perpassa o cotidiano social, influenciando o pensamento e a linguagem, dando margem a discriminação e aos preconceitos. Não é raro encontrarmos traços dessa ideologia no senso-comum, como por exemplo, a crença de que a igreja católica em algum momento de sua história tenha afirmado que os negros não possuíam alma, estabelecendo como verdade uma afirmação de origem histórica duvidosa, mas que passa a ser histórica por conta de sua afirmação cotidiana. Na verdade, como afirma Santos (2001, p.6),8 essa ideia predominava entre os escravagistas que acreditavam também que os negros eram desprovidos de inteligência, sendo, portanto, inferiores aos brancos. A título de ilustração deste fenômeno, em programa veiculado no dia 21 de outubro de 2007, a Rede Globo de Televisão, em quadro de reportagem intitulado “É muita História” 9 teria afirmado que a igreja aceitava a escravidão porque acreditava que os escravos não possuíam alma. Ainda que não caiba aqui a confrontação dessa suposta afirmação com a opinião de historiadores cujos nomes sejam de relevância e respeitabilidade para a academia, é fato que as críticas a essa afirmação foram inúmeras, algo que pode ser facilmente atestado em uma consulta breve aos mecanismos de busca da internet, bastando-se utilizar o nome do referido quadro jornalístico e a data de sua exibição. Considerando-se o poder que as redes de televisão têm quando se discute a difusão de princípios na e para a cultura, é possível compreender como tais verdades acabam entranhadas no imaginário social. Assumindo-se, aqui, como hipótese, que tal afirmação não tenha origem numa bula papal que, como documento histórico, possa atestar sua veracidade, ainda assim é possível asseverar que seu surgimento tenha por marco as relações de poder da sociedade. Podemos, então, observar que foi introjetado na sociedade um conceito pejorativo, negativo, associado à cor preta (SANTOS, 2001). Nesse sentido, por exemplo, costumamos nos referir àquele nosso parente considerado 8

SANTOS, Hélio. Discriminação racial no Brasil. In: SABÓIA, Gilberto. Anais de seminários regionais preparatórios para a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Brasília: Ministério da Justiça, 2001. 9

http://revistadehistoria.com.br/secao/reportagem/e-muita-historia

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rebelde como a “ovelha negra” da família ou quando passamos por alguma dificuldade, costumamos dizer “a coisa está preta”. De mesma forma, na cultura popular, a figura do gato preto aparece associada ao azar; causam temores possíveis rituais de magia “negra” onde hipoteticamente se realizam sacrifícios de animais, principalmente se forem da cor preta. Em relação às práticas religiosas, não se pretende discutir o mérito, mas sim demonstrar como (pré) conceitos sem compromisso com a realidade são criados ideologicamente e servem, na maioria das vezes, aos interesses de classe. Ainda no âmbito desses aspectos socioculturais, existe o fato de que, para o negro, as marcas estéticas de sua ascendência, são na maioria das vezes evidentes, permanecendo associadas ao preconceito em função de estereótipos físicos considerados ideais. Em meio a tais questões, há ainda a cultura econômica que está acostumada a relacionar o desemprego e o subemprego ao negro, segundo Santos (2001, p.6 e 7), para quem o formato da abolição condenou os negros à imobilidade social por não lhes permitir possibilidades econômicas e sociais, configurando uma “[...] espécie de beco sem saída que os economistas costumam denominar ‘problemas estruturais’ [...]”. Tais dificuldades econômicas dos antigos negros se refletem até hoje, não sendo, portanto, momentâneas, mas figurando como resquícios da escravidão e ou da abolição ainda presentes na atualidade em virtude da situação de miséria a que foram jogados no dia seguinte à sua “libertação”. Sobre esse ponto, Prado Júnior (2006)10 relata que para a burguesia o pagamento de salários aos imigrantes era mais vantajoso economicamente do que a manutenção de trabalhadores escravos, além do elevado nível técnico do branco europeu para a realização do trabalho. Sob este aspecto, percebemos que o assalariamento permite um sentido de “justiça” às relações de trabalho, retirando dos ombros do empregador, ex-escravocrata, o peso moral outrora imposto pela escravidão. Por outro lado, os trabalhadores, com a ideia fetichizada de liberdade advinda da ideologia burguesa, se colocam na condição de assalariados à disposição do mercado numa situação pior do que a anterior, fortalecendo a lógica capitalista, onde o exército industrial de reserva deve se manter farto, de modo que a exploração do trabalho alcance nível máximo, a fim de que o acúmulo de capital permaneça em escala elevada, permitindo concluir que a libertação dos escravos só aconteceu por estar em conformidade com os interesses da classe dominante, que usufruiu do trabalho escravo enquanto este foi lucrativo. Juntando-se os aspectos econômicos à cultura de servidão e a ideologia que construíram o perfil do negro brasileiro, teremos uma raça marcada, ao longo da história, por todo tipo de 10

PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006.

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exclusão. Ao discutirmos a Lei de Cotas observamos que as palavras exclusão/inclusão, preconceito/discriminação são usadas tanto por aqueles que são favoráveis quanto pelos que são contrários a este sistema, restando, diante do quadro descrito, a certeza de que o sistema de cotas se configurara numa ação paliativa e reformista combatendo o efeito e não a causa, podendo desarticular a luta por outra ordem societária onde a exploração seja eliminada. Sua leitura superficial pode levar à compreensão de que esta Lei é contraditória e fomenta ainda mais discriminação ao constatarmos que a inclusão de uns implica na exclusão de outros. Entretanto, uma reflexão pautada no movimento histórico abre espaço para a análise de que esta Lei institui um parâmetro de equidade e ameniza o problema da desigualdade social, na medida em que coloca sujeitos historicamente excluídos de seus direitos em uma situação que lhe dá condições de concorrer a uma vaga num banco universitário, gerando nova perspectiva de vida, coisa que não ocorria antes da promulgação desta Lei, mesmo que tal sistema se configure numa solução ilusória travestida de justiça social, tratando-se de um fato que tanto ignora a alta competitividade entre os chamados cotistas revelando-se mais dura do que a competição por vagas com os chamados brancos, quanto mantém camuflado outro processo perverso de escravização, porque consentido pelos contratos de trabalho, o do livre comércio da força biológica humana submetida à lei de oferta e de procura, como mercadorias das quais o capital pode dispor segundo suas necessidades, negando o direito básico à vida pelos processos sombrios de automação do trabalho humano convertendo-os em números numa planilha de dados, conforme exemplo no Anexo A. A Lei de Cotas, como já foi divulgada pelo Ministério da Educação em 2013, surgiu como um mecanismo de combate à desigualdade social no Brasil por meio do acesso à educação superior11. Contudo, uma reflexão mais aprofundada revela que a motivação provavelmente mais significativa para a consolidação desta Lei tenha sido a influência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que impôs regras e metas educacionais a serem cumpridas pelo governo brasileiro em troca de financiamentos direcionados à aceleração do desenvolvimento econômico e social numa perspectiva neoliberal de fortalecimento das instituições de ensino privadas, onde a formação de baixa qualidade compensa por não gerar custos ao Estado e por oferecer um baixo grau de politização dos seus alunos, além de estarem em conformidade com a modernização exigida sem os entraves dos conflitos políticos, em contraposição às universidades públicas. 12 Conf. Política de Cotas supera metas em seu primeiro aniversário – visualizado em: 15/07/2104 12 CHAUÍ, Marilena. Reforma do ensino superior e autonomia universitária. Revista Serviço Social & Sociedade, 11

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Este fato expõe os interesses que estão ocultos por trás da Lei de Cotas, descaracterizando o ato de benesse do governo em prol da parcela mais fragilizada da sociedade brasileira, em função de que as motivações que fomentaram o aparecimento dessa Lei e a necessidade de sua introdução na política de educação, não correspondem somente à promessa inicial, mas também aos interesses econômicos do modo de produção capitalista, que visa, principalmente, a acumulação, de maneira que as políticas educacionais implementadas terminam por precarizar a educação, uma vez que as universidades funcionam apenas como prestadoras de serviço, fazendo com que surjam, cada vez mais, cursos técnicos e/ou à distância, voltados para a formação de profissionais para atender às necessidades imediatas do mercado segundo as exigências da ordem capitalista, para fins de reprodução e acumulação de capital em sintonia com o BID que “[...] trata o ensino superior exatamente como trata todos os seus outros investimentos [...]” 13 Não causa estranheza o fato de que a Lei de Cotas seja convergente com os interesses econômicos, pois, conforme observamos no decorrer dessa pesquisa, os movimentos históricos que ocorreram em favor da classe trabalhadora só aconteceram por atenderem a interesses maiores e mais rentáveis tendo como beneficiária direta a classe dominante, donde se conclui que todas as concessões e benefícios criados em forma de lei e/ou políticas sociais atendem primeiramente e majoritariamente ao modo de produção capitalista, na perspectiva de sua reprodução e fortalecimento. Contudo, essa realidade perversa não pode servir como fator de desmotivação da classe trabalhadora e sim para impulsionar os movimentos sociais e introduzir uma nova mentalidade na perspectiva de formar uma sociedade livre de preconceitos, de modo que a articulação de interesses entre classes promova a diminuição do grau de exploração, fomentando a luta por uma sociedade mais justa.

ANEXO A – A divisão pelo sistema de Cotas

n. 61, p.119-126, São Paulo: Cortez, 1999. 13 Idem. p.121.

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(Universidades federais: como funciona a nova lei de cotas.OnLine. Revista Veja, Ed. 63. Jan.2013 Disponível em Acesso em 20 Jun. 2014).

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A IDEOLOGIA RACIAL NO BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO XX Murilo de Almeida Brasil1

Resumo Em que pese todas as questões étnicas e raciais existente no Brasil, bem como as provenientes da existência de preconceito – seja ele velado ou explicito – ou não e todas as implicações sociais relacionadas à desigualdade racial no país, pretendo aqui lançar olhares específicos para a construção e tentativa de implementação de uma ideologia racial no Brasil que era vigente no mundo europeu no século XIX e defendia a existência de uma hierarquia racial. Pela qual, acreditavam seus defensores e partidários que, a partir de um branqueamento racial o Brasil alcançaria a qualidade de país desenvolvido. Como veremos essas ideias e políticas que nas duas primeiras décadas tiveram grande expressão no meio intelectual brasileiro acaba por não ser totalmente implantada em nossa sociedade e perde espaço nos debates intelectuais com o advento de autores como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre que começam a ver na miscigenação uma característica benéfica da população brasileira. Juntamente com estas novas concepções referente a raça e miscigenação, a politica Varguista e o esforço de consolidar uma identidade nacional impulsionam e fomentam a perspectiva positiva da miscigenação nacional. Para tanto se trabalha aqui a partir das perspectivas de obras como Retrato do Brasil de Paulo Prado e as análises de Demétrio Magnoli em sua obra Uma Gota de Sangue referente esta ideologia racial. Palavras-chave: Ideologia Racial; Miscigenação; Hierarquia Racial Introdução No decorrer da história e da formação do Brasil tem se evidenciado a diversidade étnica enquanto característica salutar na formação e estruturação social do país. E particularmente a partir da década de 1930 tem sido tema recorrente de estudos e análises por parte de cientistas sociais. A miscigenação é assim, além de inconteste no sentido biológico, também um dos principais traços cultural e identitário do brasileiro. A ideologia racial existente na Europa no século XIX teve grande influência no pensamento racial no Brasil. Ela surge a partir do pensamento racial que se pretende cientifico onde, haveria uma hierarquização racial para os seres humanos. Durante todo o processo de 1

Aluno Especial do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar Sociedade e Desenvolvimento pela Unespar/Fecilcam na disciplina de Desenvolvimento econômico, economia social e solidária e políticas públicas; Especialista em História, Cultura, Arte e Sociedade Brasileira pela Universidade Paranaense. Formado em História pela Universidade Paranaense.

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evolução desta linha de pensamento, houve diversas classificações raciais.Os cientistas que se propunham a elencar esta hierarquia, dificilmente concordavam ou chegavam ao mesmo número de raças, tomando cada um seus próprios princípios classificatórios. No entanto, a mais aceita foi a hierarquização com cinco tipos de raças: a caucasiana, a africana, a americana, a asiática e a malaia. Já nos anos finais do século XIX no Brasil, seguindo esta corrente de pensamento, a miscigenação era vista como um dos fatores que degredavam a sociedade e havia um esforço intelectual para disseminar a ideia de superioridade racial, com vistas numa tentativa de “branqueamento” da população nacional. As teorias raciais na Europa No final do século XVII surgiram as primeiras classificações raciais com o intuito de classificar a humanidade feita pelo francês François Bernier (1625 – 1688), foi também a primeira vez que se utilizou o termo raça no sentido atual. Após um século de estudos CarolusLinnaeus (1707 – 1778) procurou criar a primeira teoria cientifica baseada na divisão das raças a partir da geografia e da cor da pele. A classificação se deu em Homo Americanus, Homo Africanus, Homo Asiaticuse Homo Eurpeanus, respectivamente caracterizados pela cor da pele avermelhada, negra, amarela e branca. Linnaeus ainda classificou outras duas formas: a de Homo Ferus(selvagem) e Homo Monstruosus(anormal). De acordo com esta primeira teoria, argumenta Flavio Raimundo Giarola: “a raça Europeanus era constituída por indivíduos inteligentes, inventivos e gentis, enquanto os índios americanos seriam teimosos e irritadiços, os asiáticos sofreriam com inatas dificuldades de concentração e os africanos não conseguiriam escapar a lassidão e à preguiça”.2

Na passagem do século XVIII para o XIX, com a efervescência das discussões em torno das teorias e classificações racistas na Europa, o antropólogo e zoólogo alemão Johann Blumenbach (1752 – 1840)surgiu como outro eminente pensador que ajudaria a formular o pensamento racial ao apresentar uma nova classificação em 1806, aliás, muito similar a de CarolusLinnaeus. Partindo também da caracterização fenotípica e principalmente a cor da pele ele definiu a espécie humana em cinco raças, a saber: caucasiana, mongoloide, 2

GIAROLA, Flávio Raimundo. Racismo e teorias raciais no século XIX: Principais noções e balanço historiográfico. Link: http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=313#_ftn2 acesso em 07 de Agosto de 2014.

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americana, africana e malaia. Nesta composição racial Johann Blumenbach utilizou-se também da noção platônica de tipo ideal como referencia de qualificação – quanto mais próxima às características do tipo ideal platônico uma raça fosse, superior às demais ela seria – acrescentando assim, características comportamentais e psicológicas ao critério de classificação e hierarquização racial que até então se pautava estritamente em questões geográficas e biológicas. Dentro do conhecimento cientifico a questão da classificação racial liga biologia e história mais ou menos um século após a apresentação da tese de Blumenbach referente às raças. Como destaca Demétrio Magnoli: “Mais um século se passou até que o tema da classificação racial derivasse para apreciações que conectavam Biologia e História. Nos tempos de Charles Darwin, tornara-se usual hierarquizar as raças humanas em função de suas capacidades intelectuais e explicar as realizações culturais e econômicas dos povos a partir de potencialidades raciais.”3

Destas classificações, surge a hierarquização referente a estas raças. Evidentemente, estas classificações colocavam os europeus como superiores na escala hierárquica, logicamente herdeiros

da responsabilidade

de “civilizar” e

governar

os

outros

povos.Acreditava-se que haveria estágios de evolução e que a raça europeia estaria em um grau de evolução mais adiantado, o que justificaria, para estes intelectuais a supremacia europeia sobre as demais raças, como ressalta Giarola: “Para os antropólogos do período, a evolução biológica darwiniana sugeria uma hierarquia das raças, o que sua disciplina procurava comprovar através de minuciosas medições cranianas (frenologia) e através do método comparativo entre as culturas (antropologia cultural), onde o nome de E. B. Tyler (1832 – 1917) ganhou destaque. Tyler e outros observavam comunidades e culturas que os levavam a concluir que elas não eram diferentes por natureza, mas representativas de um estágio anterior da evolução no caminho da civilização moderna.” 4

Durante o século XIX foi construída a ideia de que as potências mundiais tinham a obrigação de civilizar – o que eles chamavam de – os povos primitivos e atrasados. Neste processo de consolidação desta ‘missão’ humanitária teve grande influência o darwinismo social, a antropologia e a etnografia. Neste período também houve aquilo que pode ser chamado de colapso classificatório, 3

MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue - História do Pensamento Racial. São Paulo - SP: Editora Contexto, 2009. p. 21. 4 GIAROLA, Flávio Raimundo.op. cit.

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onde os cientistas não se definiam no numero de raças existentes, variando a classificação entre 3 e superando a contagem de 100 raças classificadas, segundo Demétrio Magnoli. “Contudo, no século XIX ninguém se entendia sobre a própria classificação racial. Georges Cuvier reduziu as raças em 3, James Prichard encontrou 7, Louis Agassiz5 aumentou-as para 12, Charles Pickering preferiu 11 e Thomas Huxley sugeriu 4. As coisas pioraram no século XX, com as novas descobertas dos exploradores e etnólogos.”6

Algo relevante neste processo de definições é o reconhecimento da biologia que a espécie humana fosse monotípica. Diferentemente das espécies politípicas – onde é possível a identificação de raças diferentes -, na monotípica é impossível esta identificação de forma consensual. E como vimos acima, a divergência referente à quantidade de raças eram inúmeras. Neste aspecto, a genética foi vital, ao provar que as diferenças raciais não passam de características físicas superficiais. Segundo Magnoli, “Quando os contemporâneos de Darwin experimentavam classificações das raças humanas, já existia suficientes indícios científicos para pelo menos se colocar em duvida a validade daquele empreendimento.” 7

E citando Guido Barbujani, Demétrio ainda ressalta o fato de a raça humana ser uma espécie relativamente nova, e por este fato ainda não possuir diversidade de raças, visto que seria necessário tempo e isolamento reprodutivo para isto. E o ser humano é uma espécie nova e móvel. Em finais do século XIX, surge novas teorias racistas as quais credita à miscigenação racial a degeneração e a fraqueza, tanto clinica quanto moralmente do individuo. A partir deste conceito fundamenta-se a ideia de eugenia. Seus representantes mais significativos, tanto para o mundo quanto para o Brasil foram Gobineau (1816 – 1882) e o já mencionado Louis Agassiz (1807 – 1873). Referente a degeneração causada pela miscigenação, Agassiz escreveu: “Que qualquer um que duvide dos males dessa mistura de raças, e se inclina, por mal-entendida filantropia, a botar a baixo todas as barreiras que a separam – venha

5

Louis Agassiz teve grande influência no pensamento racista do final do século XIX e início do XX para alguns teóricos brasileiros como por exemplo Raimundo Nina Rodrigues. 6 MAGNOLI, Demétrio. op. cit. p. 21 7 MAGNOLI, Demétrio. op. cit. p.22

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ao Brasil”8

Enquanto Gobineau afirmava, segundo Flavio Raimundo Giarola: “(...) outros viajantes expuseram o seu ponto de vista sobre o Brasil. Foi o caso de Gobineau que julgou o Brasil como culturalmente estagnado e como um risco permanente para a saúde. Desprezava os brasileiros que via como irrevogavelmente manchados pela miscigenação.”9

É neste período também que o racismo “cientifico” atinge seu auge, representado na Conferência de Berlim nos anos de 1884 e 1885. A conferência foi o ponto de partida para a partilha da África entre as grandes potências mundiais da época ao cumprir uma função ideológica com vistas de legitimar as pretensões imperialistas destas potências. Pode-se notar esta concepção de missão civilizatória assumida pelo homem branco nas palavras do diplomata francês Jules Hardmand, escritas em 1910: “É necessário, pois, aceitar como princípio e ponto de partida o fato de que existe uma hierarquia de raças e civilizações, e que nós pertencemos à raça e civilização superior [...]. A legitimação básica da conquista de povos nativos é a convicção de nossa superioridade, não simplesmente nossa superioridade mecânica, econômica e militar, mas nossa superioridade moral. Nossa dignidade se baseia nessa qualidade, e ela funda nosso direito de dirigir o resto da humanidade.” 10

Neste contexto a teoria do eugenismo se mescla a questão de identidade nacional e se manifesta de forma mais ampla saindo do campo da Biologia e adentrando também no campo cultural – o que terá como exemplar mais notório e extremo o “arianismo” nazista. Porém, a ideia de superioridade da raça ariana já existia antes do nazismo, ela foi desenvolvida por Gobineau. Como pode ser apreendido até aqui, basicamente a Europa, tida como centro civilizado e moderno do mundo, produz um discurso racista postulando certa cientificidade para justificar o seu domínio sobre os demais países e continentes com vistas de expansão do imperialismo vigente na época.Notadamente, principalmente Inglaterra, França e Alemanha, não por acaso, a maioria dos teóricos que defendiam e buscavam aperfeiçoar estas ideias eram naturais destes países. Essas teorias tiveram grande influência em todo o mundo inclusive no Brasil, como será demonstrado a seguir.

8

Apud. SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1976; p. 47 9 GIAROLA, Flávio Raimundo. op. cit. 10

SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo. Companhia das Letras. 1995. p. 48.

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A questão racial no Brasil na virada do século XIX “Além de manifestações explícitas de racismo, a desigualdade étnica, assim como outras, está implícita nas injustiças sociais. Trata-se de uma forma especialmente perversa de racismo, já que se mascara e se perpetua por detrás de uma enorme distância socioeconômica.” – Editorial da Folha de São Paulo, datada de 22 de maio de 1995 chamado “Racismo à brasileira”. 11

Falar de raça12 no Brasil é no mínimo complexo. Historicamente, temos três matrizes étnicas – o conceito de etnia aqui, se encaixa melhor que o de raça13 - principais, a europeia (os portugueses, colonizadores), a matriz tupi (os nativos ou ameríndios) e os negros trazidos como escravos desde o início da colonização. Fora essas três etnias, temos a imigração dos povos italiano, alemão, japoneses entre outros (ucranianos, polacos, holandeses – em menor número). O que, podemos dizer, proporcionou naturalmente uma miscigenação na formação do povo brasileiro. Encontramos então aí o embrião da miscigenação, não só do povo brasileiro, como da América Latina de uma forma geral. Os primeiros anos de colonização passaram, e a política de povoamento do Brasil perpassa pelo cunhadismo14 - num primeiro momento. A prática de misturar as etnias perdura com a chegada dos escravos e escravas – diferentemente do cunhadismo, que ocorreram com as tribos indígenas, a mistura étnica com os escravos e escravas se deram mais por mero apetite sexual e desejo dos senhores de escravos, do que pelo intuito de mesclar as “raças”. E a miscigenação aumentou no país. Gerando um grande percentual populacional de mestiços, mamelucos e mulatos.Como assegura Mary Del Priori em sua obra Histórias Intimas: “Os convites diretos para a fornicação são feitos predominantemente às negras e pardas, fossem elas escravas ou forras. Afinal, a misoginia racista classificava as mulheres não brancas como fáceis, alvos naturais de investidas sexuais, com quem 11

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Preconceito e Discriminação. São Paulo - SP: Editora 34, 2004. p. 69 Embora trate de características biológicas, o conceito de raça dos indivíduos e por isso denote as características internas, genéticas (genótipo), costuma-se considerar como sendo atributos raciais as características externas (fenótipos): cor da pele, altura, tipo de cabelos, etc. 13 As matrizes étnicas do povo brasileiro é um conceito trabalhado por Darcy Ribeiro em sua principal obra O Povo Brasileiro. 14 O Cunhadismo foi adotado pelos europeus que aqui chegaram, consistia em beneficiar-se de uma prática indígena (que recebe o nome de cunhadismo) em que, ao receber um estranho (no caso, o europeu) na aldeia e começar a conviver com a tribo, era oferecida uma esposa para o mesmo. Ao aceitar essa esposa, todos se tornavam parentes e o estranho começava a fazer parte da tribo. Logo esse europeu colocava toda a tribo para trabalhar para ele. 12

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se podia ir direto ao assunto sem causar melindres, reproduzindo o ditado popular: “Branca para casar, mulata para foder e negra para trabalhar.” 15

É importante ressaltar que, à época do império – antes da abolição da escravatura – a questão racial não era de relevante importância na discussão referente à classificação e hierarquizaçãosocial da população. O negro em sua esmagadora maioria era escravo e estava para a sociedade como um objeto, um item comercial e não um ser humano. Era a mercadoria humana, matéria prima trazida da África (e produzida aqui também). O índio, em sua maioria tinha sido exterminado nos primeiros séculos, e os demais em sua grande maioria estava na mata fechada, efetivamente distante do contexto social da nação. A hierarquização da sociedade estava, nas palavras de Magnoli “definida pela propriedade”16. Apenas com o advento da abolição houve espaço para a difusão do “racismo científico”. A mestiçagem não era bem vista pela sociedade cientifica mundial, tampouco bem quista pelos intelectuais e elite brasileira e se tornou tema central da discussão racial no Brasil. A ideia da miscigenação não agradava a elite, que almejava inserir o país num nível mais elevado dentro do contexto mundial. Para tanto, era necessário – segundo a concepção da época – promover um “branqueamento” populacional. Neste aspecto as políticas de imigração surgiram, sempre incentivando a imigração de alemães, italianos, povos escandinavos, etecetera. Quanto mais “branca” a cor da pele dos imigrantes, melhor seria. A teoria seria passar por uma transição – inevitavelmente a partir de uma nova miscigenação – onde em algumas décadas o contingente populacional de brancos se tornaria maior que o negro. Com aspirações até de extinção do negro. Neste sentido, a miscigenação se tornaria um mal necessário para a prosperidade nacional. Porem, na concepção racista da época, a mestiçagem acarretava problemas genéticos, intelectuais, psíquicos e morais. Os mestiços eram mais lascivos e propensos às más condutas, enquanto os brancos, ditos de “raça pura”, superior, seriam o tipo ideal, com intelecto mais avançado, imbuídos de espírito forte e moral para melhor conduzir a nação. “O tema da miscigenação logo alçou-se a uma posição central no projeto civilizatório das elites brasileiras (...). O médico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues (...) não admitia a miscigenação, pois as três ‘raças’ componentes da população brasileiras estariam em fases diversas da evolução biológica. A PRIORE, Mary Del. Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil. São Paulo – SP. Planeta, 2011. 16 MAGNOLI, Demétrio. op. cit. p. 146. 15

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mistura, argumentava, geraria indivíduos física e intelectualmente desequilibrados. (...) A degeneração pela miscigenação é um dos núcleos argumentativos de Retrato do Brasil, a grande obra de Paulo Prado.”17

Estava posto a problemática para os intelectuais brasileiros que ao importar as teorias racistas para o interior da nação, se deparava com o problema da miscigenação inconteste no Brasil e, a consequente degeneração racial e social, que como visto, estava embutido na ideia de miscigenação. Como saída para o problema, a fim de inserir o país no contexto mundial da ideia de progresso e civilidade, afirma Giarola citando Thomas Skidmore: “Em busca da negação da ideia de inferioridade inata dos mestiços, a intelectualidade brasileira forjou uma conclusão otimista baseada na afirmação chave de que a miscigenação não produzia inevitavelmente degenerados, mas uma população brana, tanto cultural quanto fisicamente. A tese do branqueamento se apoiava na hipótese de que a mistura racial, da forma em que ocorria no Brasil, produzia naturalmente uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas procurassem parceiros mais claros que elas”.18

Esta tese de branqueamento teve em Silvio Romero (1851 – 1914) seu principal expoente e defensor. Silvio acreditava que através da mestiçagem o sangue negro e indígena desapareceria por completo. Por outro lado, havia também o já citado Nina Rodrigues, médico baiano que representava uma corrente racista mais radical. Baseado nos conceitos de degeneração de Agassiz e Gobineau, Rodrigues chegou a afirmar que possivelmente ocorreria uma divisão entre sul de população branca e o norte de negros e mestiços19. Por fim, outro nome igualmente icônico e importante neste período e na tentativa de implementação das diversas teorias raciais, com fins de branqueamento da população brasileira foi Oliveira Viana (1883 – 1951) através do arianismo, como argumenta Giarola se valendo da obra de Muryatan Santana Barbosa: “Também o arianismo encontrou adeptos no Brasil, sendo que dentre eles se destaca Oliveira Viana (1883 – 1951). Segundo sua teoria, a miscigenação, propiciada por uma política eugenista, formaria com o tempo uma nova raça ariana nos trópicos. De acordo com Muryatan Santana Barbosa, o sucesso do projeto de Viana baseava-se em causas tidas como naturais da superioridade da raça branca, como: a maior reprodução da raça branca; a maior taxa de mortalidade dos negros e mulatos, 17

MAGNOLI, Demétrio. op. cit. p. 147. GARIOLA, Flavio Raimundo. op. cit. 19 MEDEIROS, Carlos Alberto. Na Lei e na Raça: Legislação e Relações Raciais, Brasil – Estados Unidos. Rio de Janeiro. DP&A, 2004. p. 44. 18

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submetidos à miséria e à fome após a abolição; e no controle político-ideológico deste projeto eugenista através da imigração europeia.”20

Entre os pensadores que destoavam desta visão negativa referente a miscigenação ganha notoriedade no âmbito nacional Gilberto Freyre que procura exaltar a mestiçagem como o diferencial brasileiro. “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo [...] a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro.[...]Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra.”21

Para Freyre, as culturas dos diferentes componentes da nação brasileira existem em cada um dos brasileiros – e, nesse sentido, ele expressou na linguagem da sociologia o ideal modernista de nação. “Diferentemente de alguns ‘estudiosos de seu tempo’, Freyre propunha que a mestiçagem teria se mostrado benéfica para o Brasil, em que pese toda a necessária problemática que deve presidir a discussão em torno da ‘democracia racial’.”22

Gilberto Freyre acabou por ser um divisor de águas no pensamento sociológico e racial na intelectualidade brasileira. A sociologia freyreana revolucionou conceitualmente este pensamento com sua obra Casa-Grande e Senzala. O que propiciou que a imagem referente a população negra – até então vista como o principal obstáculo para a construção de uma civilização moderna – fosse superada. Obviamente que esta superação não significa uma alteração total na percepção e na forma do negro, mulato e mestiço ser tratado e entendido. Outro sim abriu portas para novos conceitos e novas analises o que com o passar do tempo e o aprofundamento intelectual nesta área, concorreu para mudanças significativas na sociedade. Um exemplo é as analises e integrações nos domínios da cultura, esporte e religião. “Nos amplos domínios da cultura, a conversão da mestiçagem em traços definidor da nacionalidade teve variadas repercussões. O samba articulou-se como gênero musical no início do século XX no Rio de Janeiro. [...] O futebol converteu-se em esporte nacional de massas nos anos 1920 e, em 1923, o Vasco 20

GARIOLA, Flavio Raimundo. op. cit. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: Introdução da história da sociedade patriarcal no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. 22 SILVA, Eliazar João da. A Seleção Brasileira de Futebol nos Jogos da Copa do Mundo Entre 1930 e 1958: O Esporte Como Um dos Símbolos de Identidade Nacional. Assis, SP: UNESP/Tese de Doutorado, 2004. 21

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da Gama tornou-se o primeiro clube brasileiro a admitir negros em sua equipe. Em 1929, Nossa Senhora Aparecida, uma santa ‘mestiça como os brasileiros’, foi elevada à padroeira do Brasil. [...] A capoeira [...] reprimida desde o final do século XVIII e inscrita como crime no Código Penal republicano de 1890, ganhou um Código Desportivo em 1928 [...] e foi oficializada como modalidade esportiva nacional em 1937. [...] O presidente Getúlio Vargas [...] esforçou-se para traduzir a mestiçagem na linguagem da ideologia oficial.”23

Neste período da primeira república até o governo Vargas percebe-se a transição desta questão racial. É um período particularmente perturbado e complexo em diversos aspectos da história do Brasil e do mundo24. Entre estas complexidades talvez as que mais estão diretamente ligadas ao contexto racial no país são as políticas imigratórias que estão diretamente ligadas a falta de espaço no mercado de trabalho para o negro, e a crença nas teorias racistas adaptadas para a realidade brasileira aqui trabalhadas. Conclusão Buscou-se fazer um levantamento do pensamento racial na Europa e de sua introdução no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, a forma como estas ideias racistas ganharam forma no país e como os intelectuais brasileiros buscaram implementar algumas destas teorias. O Brasil do final do século XIX e inicio do XX procurava alcançar o progresso a “civilidade” com bases nos conceitos europeus, portanto, grande parte dos intelectuais da época procuraram importar teorias e doutrinas visando a evolução da sociedade a partir da crença no racismo “cientifico” e da eugenia. No entanto, ao importar essas teorias, principalmente no que tange a questão da miscigenação, estes intelectuais se obrigam a fazerem adaptações, visando uma política de branqueamento racial. Vê-se também, que até os anos de 1930 se perduraram com maior ênfase os conceitos europeus referente a mestiçagem e a superioridade da raça branca. Porém, a partir dos anos 30 abriu-se espaço no meio intelectual para, de maneira lenta e gradual, desvincular da consciência brasileira o conceito pejorativo da mestiçagem. No entanto, ainda nos tempos atuais vê-se resquícios de tais ideias, 23

MAGNOLI, Demétrio. op. cit. p. 156. Período entre 1898 e início dos 30 ocorre a proclamação da república; políticas imigratórias (principalmente a vinda de italianos e alemães); o crescimento das cidades como Rio de Janeiro e São Paulo; o aumento do contingente populacional negro desempregado – os ex-escravos -; Getúlio Vargas assume a presidência do país; luta – ou busca – por uma identidade nacional. Em âmbito internacional, de maior relevância tem a primeira guerra mundial e a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929 e as ideologias e governos nacionalistas em diversos cantos do mundo. 24

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seja explicita ou implicitamente na sociedade brasileira.

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A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL NO EXTREMO OESTE DO PARANÁ: repressão, coerção e formas de convencimento na cidade de Guaíra durante a ditadura civil-militar (1964 – 1985)1. Mara Dhulle dos Santos Silva2 Resumo: O trabalho se dará a partir da analise da Doutrina de Segurança Nacional e sua aplicação durante a ditadura civil – militar na cidade de Guaíra, localizada no extremo oeste paranaense. Pontuando como se deu e quais as implicações da presença da ditadura nesta cidade. Como foram aplicadas diferentes formas de repressão, coerção e como foi construído o consenso civil a partir da grande presença das Forças Armadas. O objetivo é analisar o ‘impacto’ causado pelas Forças Armadas onde atualmente se localiza a cidade de Guaíra e os municípios em torno, desta região paranaense que perfaz as divisas com o estado do Mato Grosso do Sul e o país vizinho Paraguai. Analisando com o poder militar se intensificou nesta região paranaense, como estas ações militares se apresentavam de forma ambígua, de forma a constituir uma dupla face, ora agiam com assistencialismo para manter o consenso, ora atuavam de forma extremamente repressivos e coercitivos. Estas ocorrências partiam dos ditames da Doutrina de Segurança Nacional, que nos anos de 1964 e 1985 atuava no Brasil conforme o regime de ditadura, e que ainda não teve suas leis reelaboradas. Palavras Chave: Doutrina de Segurança Nacional; Ditadura; Guaíra - PR; Repressão, Coerção e Consenso. Introdução O presente texto busca tecer algumas considerações a respeito da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e como está ideologia de Segurança Nacional se aplicou durante a ditadura civil – militar na cidade de Guaíra-Pr. As reflexões que se seguem fazem parte da pesquisa que resultará na dissertação de mestrado defendida em 2016, vinculado ao grupo de pesquisa Estado e Poder do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. As reflexões giram em torno de como esta DSN atuava e quais as implicações da presença da ditadura nesta cidade que perfaz divisa com o país vizinho Paraguai e com o estado do Mato Grosso do Sul. Assim como, analisar quais foram as diferentes formas de repressão e coerção aplicadas, além de buscar identificar como foi construído o consenso civil a partir da grande presença das Forças Armadas e de uma política do medo3. 1

Artigo apresentado ao XIV ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA - 1964-2014: 50 anos do Golpe Militar no Brasil organizado pela Seção Estadual do Paraná da Associação Nacional de História – ANPUH/PR. 2 Discente do PPGH nível Mestrado, vinculado à linha de pesquisa Estado e Poder, do Programa de PósGraduação em História (PPGH) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. 3 PADRÓS, Enrique Serra. América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. Revista História & Luta de Classes, 2004.

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Deste modo, os autores Henrique Serra Padrós e P. Joseph Comblin importantes para o desenvolvimento desta reflexão, pois, a partir dos escritos destes dois autores pode-se ter a compreensão básica da Doutrina de Segurança Nacional (DSN). No intento de compreender a DSN, em sua teoria e aplicações, será possível fazer uma análise de como esta doutrina se aplicou durante o regime ditatorial no Brasil na cidade de Guaíra - Pr, e das diferentes formas que sua ideologia foi implantada e desenvolvida a partir das especificidades guaírenses.

A Doutrina de Segurança Nacional Ao analisarmos a América Latina a partir dos anos de 1960, é possível a identificação de uma série de golpes militares ditatoriais. Neste processo de análise pode-se localizar um fator que marca a história destes diferentes países dentro deste período, uma característica que ultrapassa as peculiaridades de cada região, e que procede fora do território latino-americano, ou seja, a ideologia implantada a partir da Doutrina de Segurança Nacional (DSN)4. A DSN surgiu como um dos aspectos da Guerra Fria, pautada por uma concepção de “defesa nacional”. Com influencia estadunidense chega ao Brasil a partir de diferentes fontes, mas principalmente com a Escola Superior de Guerra (ESG), que é vinculada ao Estado Maior das Forças Armadas. Essa escola foi estruturada a partir dos moldes das escolas estadunidenses National War College e Industrial CollegeoftheArmed Forces5. Deste modo pode-se compreender, que foi dentro da ESG que se formulou os princípios da DSN no Brasil, pautando as especificidades deste país, bem como alguns dos seus subprodutos, como, por exemplo, o Serviço Nacional de Informações (SNI). Apesar de anterior a isso, a DSN virou lei somente em 1968, com a publicação do decreto-lei numero 314/68, tendo em seu objetivo principal a identificação e principalmente a eliminação dos “inimigos internos”, ou seja, de todos que questionassem regime estabelecido, estando claro que este “inimigo interno” era basicamente o ‘comunismo’6. Implantada assim, a partir do contexto de Guerra Fria e principalmente do medo do comunismo, a Doutrina de Segurança Nacional chega ao Brasil, já na instalação da Escola

4

BARBIAN, Luciano. A Ditadura de Segurança Nacional na América Latina e as especificidades do caso boliviano. Revista Vestígios do Passado. 2008. 5 ZAGO, Luciana Grespan. Fronteira e Segurança Nacional no Extremo Oeste Paranaense: um estudo do munícipio de Marechal Candido Rondon. Dissertação (Mestrado), Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo – RS, 2007. 6 FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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Superior de Guerra em 1949, mas toma suas proporções com o golpe de 1964, e com a implantação da lei de Segurança em 1968, o que transformar e legaliza a luta política em uma guerra interna, sem deixar espaços para negociações. No contexto de ‘Segurança Nacional’, a guerra interna é uma guerra total e permanente, que atribui um forte papel aos aparelhos de segurança e informações que agem pela violência. Pode-se compreender um pouco do sentido ideológico da DSN com a compreensão de que as ações não são apenas militares, pois, a guerra interna se converte em ‘guerra psicológica’, trata-se de aniquilar moralmente o inimigo e separá-los dos demais cidadãos, com base numa tipologia que distingue os inimigos, os indecisos e os neutros dos engajados. Além de gerar um convencimento da população, que existe um ‘inimigo’ e este está infiltrado entre a população, outro dos diversos pontos da ideologia de Segurança Nacional é distanciar a política desta população, pois se pregava que a política é uma ferramenta muito importante para estar nas mãos de civis, uma vez que a “democracia era uma fonte geradora de desordens por permitir a atuação dos setores desconformes com a ordem vigente, a qual devia ser defendida através de todos os meios disponíveis”7. Uma das formas de convencimento é através do Terror de Estado8, neste contexto o terror é utilizado numa ‘política de medo’9, que serviria não apenas para intimidar o inimigo interno, sendo este inimigo os civis em geral e/ou os grupos tidos como “subversivos”, mas também para dissuadir os indecisos e ‘neutros’. O mito da guerra e do inimigo interno permitiu aos golpistas dominarem e instaurarem sua política repressiva, acionando os aparelhos de segurança e informação para exercerem seus interesses, pregando assim sua ideologia. A aplicação da ideologia de Segurança Nacional no contexto brasileiro Ao analisar o contexto brasileiro durante as décadas de 1960 à década de 1980, podese ponderar sobre alguns dos aspectos da ideologia da DSN, entre esses aspectos podem ser considerados fundamentais para compreender a estabilidade do golpe, os componente principais dos objetivos nacionais, pois estes são a cristalização dos interesses, das aspirações, 7

COMBLIN, P. Joseph. A ideologia da Segurança Nacional - o poder militar na América Latina. Ed. Civilização Brasileira, 1980. 8 PADRÓS, Enrique Serra. América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. Revista História & Luta de Classes, 2004. 9 PADRÓS, Enrique. Como elUruguay no hay... Terror de Estado e segurança nacional no Uruguai.Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, 2005.

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dos valores e das regras de uma nação desejada pelos ideólogos da DSN, e que a Junta Militar tenta colocar em prática por todos os meios que tem ao seu dispor. Os Objetivos Nacionais, que podem ser nominados como Interesses Nacionais e/ou Aspirações Nacionais, na ótica da Escola Superior de Guerra, são as metas e as necessidades de uma ‘Nação’. Essas metas podem ser Objetivos Nacionais Permanentes (OPN), quando os interesses subsistem por um longo período e geralmente exprimem os desejos da “Nação”; e Objetivos Nacionais Atuais que correspondem aos interesses intermediários ou realísticos, ou seja, a realidade conjuntural do país. Todos esses objetivos e desejos da “Nação” podem ser lidos também como os desejos e interesses de uma classe dominante, que implanta sua ideologia como a visão de mundo ideal, tudo isto revestido coma o desejo da Nação ou como sendo uma ‘questão nacional’. Outro elemento importante da ideologia de ‘Segurança’ era a Estratégia Nacional. A Estratégia Nacional atua como forma de preparar e aplicar o poder nacional, para alcançar ou manter os objetivos fixados pela ‘política nacional’. Se os Objetivos Nacionais tinham sido definidos pela Política Nacional, agora era necessário encontrar os meios para que as metas fossem cumpridas. Portanto, “Estratégia Nacional é a arte de preparar e aplicar o Poder Nacional, para alcançar e/ou manter os objetivos fixados pela Política Nacional”10. Nesse sentido são estabelecidas as áreas estratégicas nas quais serão implementadas ações estratégicas. Para os formuladores da doutrina são consideradas áreas estratégicas setores como Educação, Saúde e Comunicações; ou áreas geográficas como a região Amazônica, regiões de fronteira, áreas com recursos hidrominerais, grandes centros urbanos e industriais e cidades portuárias11. De modo que ao analisar quais são as áreas de estratégia, pode-se compreender como a ideologia da DSN funcionava, e mesmo como uma ideologia está relacionada a todos os âmbitos da sociedade, desde cultura a política em si. Em suma, a ideologia pregada não estabelecia limites para garantir a “Segurança Nacional”, não havia distinção entre os âmbitos culturais, militares e políticos, a intervenção se dava de todas as formas, principalmente a violenta, seja uma violência preventiva ou repressiva. O amparo legal para a implantação da ideologia de Segurança Nacional e todo seu

PESSOA, Mário. Da aplicação da lei de Segurança Nacional, São Paulo – SP, Editora Saraiva, 1978. COMBLIN, P. Joseph. A ideologia da Segurança Nacional - o poder militar na América Latina. Ed. Civilização Brasileira, 1980. 10 11

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terror veio com a criação dos Atos Institucionais12. O primeiro foi o Ato Institucional numero 01 (AI-1), que permitiu a abertura de inquéritos e processos, a revelia dos interesses dos golpistas. Neste mesmo sentido o AI-2 foi desenvolvido a partir de alegações como a defesa da nação contra “a ameaça dos ‘inimigos internos’ e da ‘guerra psicológica’”, entre os diferentes poderes estabelecidos neste ato está o de extinguir partidos; decretar recesso do Congresso Nacional; legislar sobre decretos leis e foros especiais, para civis acusados de crimes contra segurança nacional e instituições militares.

Com AI-2, foi limitado à existência e o

funcionamento de apenas dois partidos políticos, foi autorizado à atuação da Aliança Renovadora Nacional – ARENA, para dar apoio ao governo montado a partir do golpe militar, e a do Movimento Democrático Brasileiro – MDB, como partido de oposição13. A partir dos atos institucionais foi garantida a soberania do poder militar, possibilitando aos golpistas investir-se em poder constituinte, o mais absoluto, emanando ‘direitos’. Deste modo, o poder Legislativo e todos os outros são entregues nas mãos dos golpistas, controlando a presidência da Republica e a Junta Legislativa, o que monopoliza todos os poderes. Todo este monopólio do poder, mas principalmente todo o Terror de Estado implantado gerou uma onda de contestação e mesmo de luta armada, sendo retalhadas pelos ditadores a partir do aumento do rigor e da repressão, entre as diferentes saídas utilizadas pelos ditadores uma foi à instalação do AI-5. De modo que este Ato pode ser considerado um marco decisório para efetivar a ideologia de ‘segurança’, pois a partir deste surge a Comissão geral de Inquérito policial Militar e o novo Código de Processo Penal Militar, assim como as Polícias Militares passam a serem forças auxiliares do Exército. Mesmo já existindo um Sistema Federal de Informação e Contra-Informação (SFICI), desde o governo Kubitschek, relacionado com o Conselho Nacional de Segurança, o objetivo era criar um sistema de informações que condissesse com a ideologia da DSN14. Sucedendo Castelo Branco, Costa e Silva, assume tendo seus poderes restringidos pela Constituição de 1967, aprovada dois meses antes. Essa nova carta Magna da nação incorporava arbitrariedades que constavam nos Atos Institucionais e propiciou a criação de um setor específico de repressão política. Os crimes contra a Segurança Nacional, previstos 12

FICO, Op. Cit, 2001. ZAGO, Op. Cit., 2007. 14 FICO, Op. Cit., 2001. 13

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nessa Constituição foram tipificados na Lei de Segurança Nacional, elaborada por Carlos Medeiros, então Ministro da Justiça, e Ernesto Geisel. Sua forma final foi dada por Castelo Branco, que também foi responsável por especificar o conceito de guerra interna, o que municiou legalmente os radicais para perseguirem os civis descontentes, que a partir de então passaram a serem tidos como subversivos. A repressão passava a se constituir em um grupo, um sistema de segurança que investigava, caçava, prendia e interrogava comportando-se como “polícia política”15. Próximo ao término da década de 1960, aguçada a luta entre governo e oposição, é criado o Sistema Nacional de Informações (SISNI), baseado no SNI, instituído em 1964. Esse órgão mais do que manter o presidente bem informado, deveria invadir a vida de milhares de brasileiros, até mesmo instituindo-lhes punições. A ideologia de Segurança ia além das vidas públicas, as vidas privadas passaram a ser esquadrinhadas e as agressões físicas, morais e psicológicas, por parte das polícias políticas, tornaram-se mais veementes16. Foram criados diferentes sistemas de informação e controle, como por exemplo, a Escola Nacional de Informação (EsNI), a Assessoria de Segurança de Informações (ASI) ou Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), vinculadas à Divisão de Segurança e Informações (DSI). No âmbito militar, destacavam-se as siglas do Centro de Informações do Exército, CIE, do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, CISA, e a do Centro de Informações da Marinha, CENIMAR. Entre estas diferentes siglas de órgãos de informação militares, uma das mais temidas era o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), que além de informações, executava prisões, interrogatórios e torturas17. Todos estes órgãos foram espalhados pela sociedade em geral, sendo seus altos postos reservados aos oficiais militares, toda esta estrutura era mantida para garantir a ‘colaboração’ a favor da ideologia de Segurança nacional. De forma que um simples indício era suficiente para produzir um futuro suspeito, incriminado como subversivo, qualquer fator que estivesse fora das normas estabelecidas pela ideologia pregada pelos golpistas serviam para taxar como inimigo da nação, desde suas vestimentas e corte de cabelo á uma fala dita em lugar improprio. Assim, ao utilizar o discurso moralizador buscavam justificar e legitimar suas ações violentas, entre os diversos orgãos de ‘moralização’ um dos que chamam a atenção é a 15

FICO, Op. Cit., 2001. FICO, Op. Cit., 2001. 17 FICO, Op. Cit., 2001. 16

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Comissão Geral de Investigação (CGI) criado no AI-5 para combater a corrupção, fracassando miseravelmente, pois teve que enfrentar duas grandes dificuldades, sendo a primeira as divergências com os funcionários do governo, e a segunda e principal, teve que enfrentar a corrupção dos seus próprios agentes, teve fim com o governo Geisel18. Outro fator importante da moralização, foi a censura, diferentes setores e níveis foram censurado, as orientações sobre o que deveria ser censurado vinham diretamente do Ministério da Justiça, mas haviam temas gerais que eram sempre e fortemente censurados, temas como a política, a sexualidade, a liberdade de imprensa, a moral e os bons costumes, entre outros. Todos os temas que poriam em risco a visão de mundo estabelecida. Todos estes temas censurados tiveram influencia direta na atenção especial que os golpistas deram aos professores, ou seja, a repressão acentuada, o controle rigoroso da atuações dos professores, devido ao fato de estes fundamentais na formação dos jovens, sendo estas novas gerações muito susceptíveis as más influencias, traduzindo, ao comunismo ou qualquer oposição a ideologia implantada. Além dos professores outro setor que era rigorosamente investigado era a religião, sendo este um âmbito fundamental de convencimento da população, o apoio da Igreja é altamente utilizado na implantação da ideologia de Segurança Nacional. De forma que a ideologia de Segurança Nacional é a maior ou menor grau assegurado por meio de ações políticas, econômicas, psicossociais e militares do Estado. Assim, o Estado cumpre sua função de convencimento, de mediador e/ou unificador, proporcionando à coletividade nacional. A DSN permite a legitimidade para implantar dos ‘objetivos nacionais’, conforme os interesses das Forças Armadas e contra a ação adversa de fatores internos e externos. Guaíra e a DSN: os primeiros pontos de relação encontrados Guaíra é um município localizado no extremo Oeste do Paraná, é uma cidade secular situada à margem esquerda do Rio Paraná, sua área atual é de aproximadamente 560,00 km², que perfazem suas divisas com o Estado do Mato Grosso do Sul ao Norte, com o município de Mercedes ao Sul, ao Leste se encontra o município de Terra Roxa e a Oeste está localizado a República do Paraguai. A história de Guaíra pode ser relacionada com os caminhos pré-coloniais que levavam á travessia do Rio Paraná, ás origens da Cidade Real do Guairá, entre diversas outras

18

FICO, Op. Cit., 2001.

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associações. Mas foi somente em 1951, a partir da Lei Estadual n° 790, que a cidade de Guaíra foi emancipada tornando-se um munícipio19. Até então, fazia parte do município de Foz do Iguaçu – PR. Treze anos depois da emancipação do munícipio, no período de 1964 foi eleito pelo voto popular o quarto prefeito de Guaíra, o Sr. Kurt Walter Hasper, com 683 votos, sua posse ocorreu em 14 de dezembro de 1964 e seu mandato durou até 05 de junho de 1985 quando, o até então prefeito, pediu demissão do cargo, empossando assim, o Presidente da Câmara Municipal Sr. Mario Barbosa Rodrigues como Prefeito interino. Durante a gestão de Kurt Walter Hasper a cidade de Guaíra passa a ser declarada área de interesse nacional pela Lei Federal n° 5.449, em 04 de junho de 1968, suas eleições são realizadas de forma indireta, por meio de nomeações, o que mantém no cargo, por mais de 20 anos o sr. Kurt Walter Hasper. Com Guaíra fazendo parte destes municípios incluídos como de Interesse, assim como: Barracão, Capanema, Foz do Iguaçu, Marechal Cândido Rondon, Medianeira, Planalto, Perola d’Oeste, Santo Antonio do Sudoeste e São Miguel do Iguaçu20. A DSN tem sua influência sobre a cidade de Guaíra em três pontos principais, o primeiro está voltado para a geopolítica, pois sendo Guaíra uma cidade de fronteira deveria ser “protegida”; a segunda grande influência também decorre da geopolítica, mas no sentido da presença dos militares na cidade, com a instalação da 15ª Companhia de Infantaria Motorizada (que mais tarde seria transformada na 5ª Companhia de Fronteira), como esses sujeitos atuavam de forma central no cotidiano da sociedade guaírense. Esta força é referência em todas as entrevistas, a relação do exército, da 5ª Companhia de Fronteira com o restante da população guaírense neste período é muito intensa, tanto no seu controle repressivo quanto nas questões sociais (festas e/ou assistencialismo), esta presença constante, seja nos momentos oficiais e/ou nos momentos de lazer, demostra a dualidade dos militares durante o período, ora necessitam se legitimar perante a população, ora precisam conter as contestações desta mesma população diante de seus atos. O que pode ser observado na entrevista realizado com o Sr. Manuel21: “nós saía pras cidade, nesses sítios, nas fazenda, concertar a 19

GREGORY, Valdir. Guaíra, um mundo de águas e histórias. Ed. Germânica, 2008, p. 23. GREGORY, 2008, Op. Cit., p. 266. 21 Sr. Manoel Pereira, morador de Guaíra desde 1973, quando foi transferido para a junta militar de fronteira no intuito de se estabilizar para aposentar, militar aposentado com o grau de terceiro sargento, atualmente com 68 anos, mora em Guaíra com sua esposa, nasceu em Pernambuco, mas se alistou no exercito em 1964 em Ponta Grossa – PR. Entrevista realizada em 21-09-2013 por SILVA, M.D.S. 20

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estrada, concertar ponte, reformar escolas, fazer pinturas, reformava as escolas, tinha dentista que trabalhava fazia trabalho na criançada na população toda né, fazia extração de dente, esse era uma trabalho a saúde, sempre trabalha nessa parte... tinha médico na cidade só que os médicos não vencia, e outros também não tinha condições de pagar, e o exército fazia esse trabalho na rua, eles falavam assiso, eles fazia esse trabalho era tudo de graça, ninguém pagava nada, fazia extração de dente, consulta, os dentistas trabalhavam, os médicos faziam consultas, várias consultas, fazia até cirurgia e ninguém pagava nada, era tudo de graça, tudo por conta da União, e hoje não existe mais isso”. O terceiro, mas não menos importante fator, está relacionado com a política de medo e o convencimento decorrente disto, de como a memória destes atos ocorridos durante o período em que Guaíra esteve sobre o decreto de área de segurança, como a população em sua maioria procura não mencionar e/ou busca sempre se afastar destas questões. O que pode ser identificado na fala do Sr. Luiz, um simples colono do município, que ao ser questionado responde rapidamente, logo mudando de assunto: “Isso ai eu não lembro ... Ditadura eu não, não lembro não, mas devia de ser, eu não tenho lembrança, mas pode ser”22. Nesta simples fala do sr. Luiz, pode ser identificado a ação de um dos aspectos da ideologia da DSN, ou seja, a implantação de mecanismos da chamada "guerra psicológica", da política do medo, a qual teve por consequência que o poder estatal regulava, vigiava e estabelecia sanções no funcionamento da vida política, social e cultural, assim as informações passadas a população eram passadas conforme o interesse do Estado, sendo que estas informações passavam por uma padronização que interioriza valores, no caso do Sr. Luiz fica claro a interiorização do conhecimento. Conclusão Através da criação e do convencimento da existência de um "inimigo interno" (apresentado como tal pela DSN), cria-se a necessidade de confrontá-lo radicalmente. A consequência da aplicação dessas diretrizes foi a subordinação do poder civil. O resultado 22

Sr. Luiz Francisco de Arruda, morador de Guaíra desde anos de 1960, quando se mudou para a cidade para conhecer a região, vindo da cidade de Vertente Taquaritinga em Pernambuco se muda para Guaíra com a esposa para trabalhar nas lavouras deste município. Atualmente com 86 anos, aposentado, passou a maior parte de sua vida em Guaíra – PR, cidade que quando chegou, como diz em suas próprias palavras: “Guaíra não era nada, não tinha nada, só roça”. Entrevista realizada em 06-08-2013 por SILVA, M.D.S.

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desta orientação significou a extrapolação ilimitada da ação militar; sendo assim, as Forças Armadas se auto perceberam como fator fundamental da "construção nacional", com a consequente tendência de intervir nos mais diversos âmbitos da vida social, para impor sua lógica securitista23. A conformação de uma política de Segurança Nacional implicou na ocupação militar do país e na utilização de todos os recursos estatais disponíveis, humanos, políticos, econômicos, militares, psicológicos, culturais, técnicos, ideológicos, repressivos. Com as Forças Armadas no poder do Estado, controlando os diferentes setores estatais, permitiu aos militares dominar as funções policiais de controlar e vigiar as diferentes camadas sociais, assumindo assim responsabilidades sobre as funções de defesa das instituições, o que mantiveram não só a ordem e a segurança dos discursos, mas também mantiveram os militares no poder – resquícios dessas ações reverberam ainda nos dias atuais. A pesquisa ainda está em andamento, por isto este artigo ainda é bem inicial, e não se pretende enquanto um fechamento, muito pelo contrário, são apenas algumas reflexões que se propõem.

Referências BARBIAN, Luciano. A Ditadura de Segurança Nacional na América Latina e as especificidades do caso boliviano. Revista Vestígios do Passado. 2008. COMBLIN, P. Joseph. A ideologia da Segurança Nacional - o poder militar na América Latina. Ed. Civilização Brasileira, 1980. FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. GREGORY, Valdir. Guaíra, um mundo de águas e histórias. Ed. Germânica, 2008. PADRÓS, Enrique Serra. A ditadura civil-militar uruguaia: doutrina e segurança nacional. Revista Várias Histórias – Dossiê: Relações Civis Militares e Segurança Nacional, Belo Horizonte – MG, vol.28, n.48, jul/dez. 2012. Acesso em: 11 de maio de 2013. PADRÓS, Enrique Serra. América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. Revista História & Luta de Classes, 2004. PADRÓS, Enrique. Como elUruguay no hay... Terror de Estado e segurança nacional no Uruguai.Tese (Doutorado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul –

23

COMBLIN, Op. Cit., 1980.

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UFRGS, 2005. ZAGO, Luciana Grespan. Fronteira e Segurança Nacional no Extremo Oeste Paranaense: um estudo do munícipio de Marechal Candido Rondon. Dissertação (Mestrado), Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo – RS, 2007

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COLONIZAÇÃO DO OESTE DO PARANÁ: POSSIBILIDADE DE PESQUISA ATRAVÉS DAS FOTOGRAFIAS DO MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (MIS) DO MUNICÍPIO DE CASCAVEL1 Janaina Rodrigues dos Santos2 Sara Munique Noal3 Resumo:O presente artigo tem como principais objetivos expor as atividades desenvolvidas no projeto de extensão “Ações para a Higienização, Catalogação e Digitalização do Acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Município de Cascavel”, além de apresentar a possibilidade de pesquisa sobre a colonização da região oeste do Paraná por meio das fotografias disponíveis no museu. O projetoé resultado de uma parceria, firmada em 2009, entre a Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Marechal Cândido Rondon e a prefeitura do município de Cascavel. As atividades são desenvolvidasno Núcleo de Pesquisa e Documentação sobre o Oeste do Paraná (CEPEDAL) e consistem nahigienização, catalogação, digitalização e a inserção no site do Museu da Imagem e do Som de um conjunto de fotografias (cerca de 40 mil) que retratam diferentes aspectos, públicos e privados, sobre a história do município de Cascavel e da região, desde a sua colonização até a realização de eventos culturais nos últimos anos. Palavras-chave:Museu; Fotografias; Colonização. Introdução

O presente trabalho tem dois objetivos principais, primeiramente iremos discutiras questões referentes ao primeiro deles, que é apresentar as atividades desenvolvidas no projeto de extensão “Ações para a Higienização, Catalogação e Digitalização do Acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Município de Cascavel”, para depois apresentarmos as possibilidades de pesquisa sobre a colonização da região oeste do Paraná a partir das fotografias disponíveis no acervo do museu. O projeto em questão foi firmado em 2009, através de um convênio entre a Prefeitura de Cascavel e a Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Marechal Cândido Rondon. As atividades do projeto são realizadas no Núcleo de Pesquisa e Documentação Sobre o Oeste do Paraná (CEPEDAL), o qual é um órgão suplementar vinculado ao Centro de Ciências Humanas, Educação e Letras da Este artigo compõe parte dos resultados das atividades desenvolvidas no projeto de extensão “Ações para higienização, catalogação e digitalização do acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS) do município de Cascavel/PR”. 1

2

Acadêmica do 4º ano do curso de História, Centro de Ciências Humanas, Educação e Letras na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus Marechal Cândido Rondon. 3

Acadêmica do 2º ano do curso de História, Centro de Ciências Humanas, Educação e Letras na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus Marechal Cândido Rondon.

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UNIOESTE e tem como objetivos proporcionar espaços para pesquisa e para preservação de acervos documentais sobre a região Oeste do Paraná e as populações de fronteira a ela vinculadas. O MIS localiza-se no município de Cascavel, foi criado em 21 de abril de 1988 e conta com um acervo de cerca de 40 mil fotografias. Os assuntos tratados em tais fotografias são os mais diversos, abrangem questões relativas a administração pública, a vida cotidiana, a espaços sociais e a momentos vividos pela população que reside em Cascavel e região. Nestes termos, devido ao conteúdo e a quantidade de fotografias, este projeto de extensão é de grande importância para toda sociedade cascavelense e da região. Ao disponibilizar online as cópias digitais das fotografias do acervo do MIS estamos atuando diretamente no sentido de facilitar o acesso a informações, memórias e histórias das pessoas que no seu dia a dia constroem a sua história, a do município e a da região. É importante registrar ainda que o projeto contribui diretamente na preservação desses documentos.

Projeto Ações para Higienização, Catalogação e Digitalização do Acervo do Museu da Imagem e Som (MIS) do município de Cascavel.

As atividades realizadas no projeto consistem na higienização, catalogação, digitalização e inserção das fotografias do acervo no site do MIS. As pastas de fotografias e os catálogos são enviados do Museu de Cascavel para o CEPEDAL, quando recebidas, o trabalho consiste na conferência da numeração para na sequência realizar o processo de higienização (limpeza) das fotografias. Em seguida, realizamos o processo de digitalização, sendo que os catálogos são gravados em DVD’s para serem enviados para o Museu e em um HD para constituição de cópias de segurança do material digitalizado. Ao final do processo, enviamos as cópias digitais de volta ao Museu junto com as pastas físicas das fotografias. Também realizamos o processo de inserção das fotografias no site do MIS. As informações inseridas são retiradas dos catálogos enviados pelo museu. Até o momento, julho de 2014, o total de fotografias inseridas no site é de 20.182. Sobre as atividades realizadas no projeto, primeiramente devemos apontar que o Museu realiza o trabalho de separação dessas fotografias, organização delas em pastas por tema e também produzem os catálogos com as informações das fotos. As pastas com as fotografias são separadas por folhas A4, para melhor conservação, são enviadas de Cascavel

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para o CEPEDAL onde realizamos as atividades antes relatadas. Cada um dos processos requer grande concentração, pois o erro de qualquer etapa pode comprometer todo o trabalho. Ao recebermos o material, realizamos o trabalho de conferencia, a partir do qual constatamos a quantidade de pastas vindas, iniciando-se assim o processo de higienização, que consiste na limpeza das fotografias. A higienização é realizada com o uso de materiais específicos, que são pincéis de sardas finas, utilizados para a retirada de impurezas da superfície impressa da foto, pincéis de sardas grossas, utilizados para retirada de impurezas do verso da foto, este último jamais pode ser usado para limpeza da parte impressa, pois pode riscar e causar grandes danos ao material. Além dos pincéis, também utilizamos uma “bucha” confeccionada de raspas de borrachas envoltas em um pano de algodão, que serve para limpar a superfície do verso da foto, sem danificá-la. A borracha também é utilizada para a retirada de riscos feitos a lápis. Paralelamente ao processo de higienização realizamos o trabalho de numeração das fotografias, ou seja, passamos o número vindo do museu escrito nas folhas que separam as fotografias, para o versode cada foto. Isto é essencial para a nossa organização durante a digitalização, pois a ordem numérica deve ser mantida para que as informações do Catálogo enviado pela coordenação do Museu coincidam com as fotografias durante o processo de inserção online. Depois de higienizadas e numeradas, as fotografias passam pelo processo de digitalização. Nesse momento as fotografias são expostas em ordem sobre a superfície do scanner. Depois de digitalizadas são recortadas individualmente pelo técnico da equipe de microfilmagem e digitalização, então, a equipe do projeto realiza a conferência da ordem das fotografias recortadas. Posteriormente, realizamos a gravação das cópias digitais em DVD’s, que devem conter uma pasta original, com o scanner completo, uma pasta em baixa resolução com as fotografias recortadas em formato JPEG, uma pasta em alta resolução com as fotografias recortadas em formato TIFF. O formato JPEG, serve para inserimos as fotos no site, e em TIFF, poderão ser usadas para produção de pôsteres, painéis, etc. O DVD também contém o catálogo digital com as informações que correspondem às fotografias. Após esse processo concluído, os documentos retornam ao museu juntamente com os DVD’s, onde ficam arquivados para consultas e também para a realização de exposições que envolvem inúmeros temas.

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Ademais, é realizada a etapa de inserção online das cópias digitais no site do MIS (www.cascavel.pr.gov.br/museu/). As informações do catálogo digital enviadas pela equipe que trabalha no Museu são transferidas para o site. A catalogação consiste em inserir no site a data em que fotografia foi tirada, quem a tirou, por quem foi identificada, por quem foi doada, a cor, o tamanho e a descrição. Além disso, também são preenchidos campos que tratam dos seguintes aspectos: TEMA, ASSUNTO E GALERIA. Abaixo segue uma imagem ilustrativa da página de cadastramento:

IMAGEM 1: Página do cadastro das fotografias no site e exemplo de como é visualizada após as informações e a imagem.

O projeto em questão possibilita o aumento do número de acessos a documentos que até então só poderiam ser consultados em seu local de guarda. O acervo fotográfico do MIS retrata momentos e situações que traduzem as mais variadas experiências vividas por pessoas que residem na região oeste do Paraná. Além disso, por meio do projeto de extensão, tais experiências vêm sendo levadas ao conhecimento de um público cada vez maior e,dessa forma, a execução do projeto contribui diretamente para o desenvolvimento da pesquisa histórica.

Fotografia como fonte histórica

A fotografia surgiu na década de 1830e durante os primeiros anos ela era vista como o espelho do real, assim como a pintura que até então tinha a função de reproduzir exatamente o que se via. Após o surgimento da fotografia a pintura ficou marginalizada, pois se tornou

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muito mais simples registrar um momento a partir de um flash. Com o passar dos anos e com o desenvolvimento dos estudos acerca da fotografia a sua classificação enquanto espelho do real foi desconstruída, passando a ser uma fonte histórica carregada de possíveis interpretações. No início da pesquisa histórica sabemos que eram consideradas como fontes apenas documentos escritos, isto se estendeu até as primeiras décadas do século XX. Mais tarde, estudos desenvolvidos por historiadores como LucienFebvre e Marc Bloch passam a indicar que a noção de fonte histórica deveria ser ampliada4, propondo que todo material que fosse objeto sobre o qual o homem interferiu/agiu poderia servir como fonte para se escrever história. É neste contexto que a fotografia, enquanto fonte, ganha espaço, pois toda a produção material humana passa a ser considerada como tal. Ao utilizarmos a fotografia como fonte é preciso uma série de procedimentos, pois assim como os documentos escritos ou monumentos (outras fontes históricas), a fotografia também traz consigo a intencionalidade de seu produtor. Dessa forma, devemos primeiramente fazer uma leitura inicial, que consiste na identificação, para depois interpretála e analisá-la. Durante este processo de análise devemos ter em mente que a imagem vai muito além do que conseguimos ver, pois ela é resultado de um ato carregado de sentidos, que é feito através de vários recursos, até mesmo técnicos. Portanto, a fotografia trata de uma escolha, de determinados isolamentos, focos, perdas, etc. Sobre a análise da fotografia enquanto documento histórico, a historiadora Ana Maria Mauad, nos traz uma questão: Desde a sua descoberta até os dias de hoje a fotografia vem acompanhando o mundo contemporâneo, registrando sua história numa linguagem de imagens. Uma história múltipla, constituída por grandes e pequenos eventos, por personalidades mundiais e por gente anônima, por lugares distantes e exóticos e pela intimidade doméstica, pelas sensibilidades coletivas e pelas ideologias oficiais. No entanto, a fotografia lança ao historiador um desafio: como chegar ao que não foi imediatamente revelado pelo olhar do fotográfico? Como ultrapassar a superfície da mensagem fotográfica e, do mesmo modo que Alice nos espelhos, ver através da imagem?5 4

Para saber mais ver: OLIVEIRA, Rosangela Silva; BITTENCOURT JUNIOR, Nilton Ferreira. A fotografia como fonte de pesquisa em História da educação. Disponível em: http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/ 03-FONTES E METODOS EM HISTORIA DA EDUCACAO/A FOTOGRAFIA COMO FONTE DE PESQUISA EM HISTORIA DA EDUCACAO.pdf>. Acesso realizado em 17/07/2014 ás 15h 58min. 5 MAUD, Ana Maria. Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradascariocas, na primeira metade do século XX. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, N. Sér. v. 13, n. 1, p.133-174, jan-jun 2005. p. 136-137

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Para vermos através da imagem é preciso analisar o conteúdo da mensagem fotográfica, pois a fotografia é uma construção. Ao pensarmos a fotografia, temos não somente a fotografia em si, mas além dela temos o fotógrafo, que é um sujeito, que fará escolhas ao tirar a foto e temos o leitor que irá interpretá-la depois, levando em conta que as pessoas vivem diferentes experiências durante a vida, esta interpretação pode diferir uma da outra, portanto a imagem é carregada de sentidos. Porém, mais do que isso a fotografia trata de uma marca, uma materialidade, e esta se volta para um respectivo presente em algum momento ou espaço, que nos leva a buscar suas interpretações. Para tal análise é preciso considerarescolhas técnicas e também estéticas, como a iluminação, o enquadramento, também os objetos que compõem tal imagem. Além disso, a imagem sempre deve ser analisada em conjunto com seu contexto histórico, Assim como as demais fontes de informação históricas, as fotografias não podem ser aceitas imediatamente como espelhos fiéis dos fatos. Assim como os demais documentos elas são plenas de ambigüidades, portadoras de significados não explícitos e de omissões pensadas, calculadas, que aguardam pela competente decifração. 6

Diante disto tudo, concluímos que a imagem não é somente aquilo que está no papel, e também que ela não fala por si só. É nesta conjuntura que entra o trabalho do pesquisador, que deve fazer as perguntas ao documento, tais como: quem a produziu? Quando? Por quê? Com qual objetivo? Para quem? Entre outras mais. Após esta breve apresentação, passamos para a apresentação de algumas fotografias. Apresentaremos a seguir uma possibilidade de pesquisa que pode ser feita a partir do uso das fotografias que compõem o acervo do Museu da Imagem e do Som do município de Cascavel. Para tanto, tomaremos como referência o tema do povoamento e da colonização da região oeste do Paraná.

Colonização do Oeste do Paraná: Possibilidade de Pesquisa através das fotografias do Museu

A Europa, durante os séculos XIX e início do XX, sofreu intensas transformações econômicas, sociais e políticas as quais impulsionaram a vinda de imigrantes para o Brasil. 6

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002. p.22.

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Um dos grandes motivos que levaram o governo brasileiro a desenvolver políticas voltadas a atrair imigrantes europeus era o problema da substituição da mão de obra escrava pela livre. Questão que afetava diretamente a região sudeste do Brasil que na segunda metade do século XIX assistiu a expansão e o desenvolvimento da agricultura cafeeira. Contudo, mesmo que a maior parte dos imigrantes que vieram ao Brasil tenham se estabelecido no sudeste, uma parte significativa foi direcionada para outras regiões, especialmente para as províncias do Sul, onde se estabeleceram como pequenos proprietários de terras em núcleos coloniais administrados pelo Estado ou por empresas particulares. Por esse motivo passaram a ser chamados de colonos. Segundo pesquisa desenvolvida porValdir Gregory “a colonização foi a instalação de pequenas propriedades rurais do tipo europeu em solo brasileiro, a instalação da pequena propriedade de terra sob domínio do latifúndio em áreas permitidas por este”7. O Rio Grande do Sul foi uma das províncias que mais recebeu esse tipo de colonização e, por volta de 1920, devido ao desenvolvimento das regiões coloniais e o considerável aumento demográfico dele resultante começou um processo de “exportação de migrantes”para outras regiões do Brasil, primeiramente Santa Catarina e Paraná. Na década de 1930 ocorreu uma intensificação na vinda de migrantes para o estado paranaense. Um exemplo disso é a forma como aconteceu o processo de colonização das terras que conformam a região oeste do Paraná, onde situa-se o município de Cascavel que oficialmente passou a receber a primeira leva desses migrantes a partir de 1930, sendo que 20 anos depois, em 1950, já era alçado a condição de munícipio. Fato que demonstra a rapidez com que o processo foi realizado e o número significativo de pessoas que passam a se deslocar para região. Diante destas informações gerais, cabe destacar que não é nosso objetivo recontar, interpretar ou contar a história do processo de colonização das terras do oeste paranaense pelas populações migrantes provindas de diferentes regiões do Brasil. Essa história já foi objeto de diferentes análises e interpretações8. Nosso objetivo, portanto, é apenas apresentar algumas fotografias que compõem o acervo do MIS e que, de forma direta e indireta, 7

GREGORY, Valdir. Os eurobrasileiros e o espaço colonial: migrações no oeste do Paraná (1940-70). Cascavel: EDUNIOESTE, 2002. p. 25 8 Para uma ideia geral dessa produção, ver: DUARTE, Geni Rosa; FROTSCHER, Méri; LAVERDI, Robson. Experiências e memórias de deslocamentos no Oeste do Paraná. Cascavel: EDUNIOESTE, 2012. FREITAG, Liliane da Costa. As fronteiras perigosas, migrações internas e a ocupação de um espaço vital: o extremo oeste paranaense (1937-1954). São Leopoldo: UNISINOS, 1997 [Dissertação de mestrado em História] GREGORY, Valdir. Os eurobrasileiros e o espaço colonial: migrações no oeste do Paraná (1940-70). Cascavel: EDUNIOESTE, 2002. MULLER, Keith Derald. Colonização pioneira no sul do Brasil: o caso de Toledo, Paraná. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janiero, v. 43, n.1, p. 83-139, jan./mar. 1986.

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registram momentos desse processo. Nesse sentido, não realizaremos análises daquilo que está registrado nas imagens e apenas apresentaremos os dados de sua identificação e as descrições que foram realizadas por aqueles que doaram as fotografias ao Museu.9 Para dar conta disso selecionamos cinco fotografias que estão presentes no site do museu em diversas galerias e são listadas abaixo pela ordem cronológica de sua produção.

A Colonização do Oeste do Paraná sob o olhar fotográfico

IMAGEM 2: Formação do lote colonial TEMA: Meio ambiente ANO: Desconhecido COR: Preto e Branco TAMANHO: 23 x 17 DESCRIÇÃO: Desmatamento para plantação das primeiras lavouras e fixação dos agricultores no interior do município. Árvores no chão, homens trabalhando e casas de madeira. Disponível em: http://www.cascavel.pr.gov.br/museu/detalhe.php?imagem=20130123151945.jpg .

IMAGEM 3: Família migrante

9

Cabe destacar que os dados de descrição presentes no Site são formulados pela equipe do Museu da Imagem e do Som de Cascavel, os quais são produzidos a partir de informações prestadas pelas pessoas que doaram as fotos ao museu. Portanto, como chamamos atenção na segunda parte deste artigo, antes de serem usadas precisam ser problematizadas.

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TEMA: Pioneiros ANO: 1949 COR: Preto e Branco TAMANHO: 13 x 18 DESCRIÇÃO: FamiliaFavarin – Macieira, Santa Catarina; Esq. p/ dir.: Idalino, Angelo; Ao fundo: Miguel, Olivio, Valentim, Ubelina, Agostino; A frente: Valdir Favarin, Maria com Olindo ao colo, Anita FavarinRedivo e InacioRedivo. Disponível em: http://www.cascavel.pr.gov.br/museu/detalhe.php?imagem=20120301171509.jpg.

IMAGEM 4: Colonização de poloneses TEMA: Pioneiros ANO: 1950 COR: Preto e Branco TAMANHO: 23 x 17 DESCRIÇÃO: Senhores Felipe Stoker, Domingos Villaca, OlimpiaFogaca e outras famílias. Colonização dos Poloneses, que foram os primeiros colonos de Cascavel. Foto tirada na Igreja São Salvador. Disponível em:http://www.cascavel.pr.gov.br/museu/detalhe.php?imagem=20120411183650.jpg.

IMAGEM 5: Transporte de migrantes

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TEMA: Pioneiros ANO: 1953 COR: Preto e Branco TAMANHO: 10 x 15 DESCRIÇÃO: O pampeiroPrimeiro ônibus adquirido por Armando Zanato para transportar colonos do RS para as terras de Cascavel e Corbélia – Benção por Sacerdote em Carázinho-RS. Disponível em: http://www.cascavel.pr.gov.br/museu/detalhe.php?imagem=20140325143741.jpg.

IMAGEM 6: Inicio da urbanização de Cascavel TEMA: Cidade-Cascavel ANO: 1955 COR: Preto e Branco TAMANHO: 23 x 17 DESCRIÇÃO: Avenida Brasil. Destaque para o Hotel Americano e Boiada, trazida pela família Gabana.

Disponível em: http://www.cascavel.pr.gov.br/museu/detalhe.php?imagem=20120615151714.jpg.

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IMAGEM 7: Processo de formação do município TEMA: História ANO: 1959 COR: Preto e Branco TAMANHO: 23 x 17 DESCRIÇÃO: Vista aérea da cidade: ao centro a quadra onde hoje se localiza a catedral metropolitana. A direita o prédio da prefeitura e o colégio Rio Branco (hoje Marista). A esquerda, o colégio Nossa Senhora Auxiliadora. Disponível em: http://www.cascavel.pr.gov.br/museu/detalhe.php?imagem=20131126104009.jpg.

Considerações finais O desenvolvimento das atividades vinculadas ao projeto de extensão “Ações para a Higienização, Catalogação e Digitalização do Acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Município de Cascavel”, como é possível verificar nas descrições feitas acima, tem grande relevância em termos da pesquisa, do ensino e da extensão, uma vez que cumpre um papel importante no sentido de aproximar o conhecimento e os trabalhos que são desenvolvidos na universidade com a população que vive na região Oeste do Paraná e em outros territórios do Brasil. Para pesquisa, os trabalhos realizados permitem que os estudiosos tenham acesso a uma quantidade de fontes importantes e que tratam sobre diferentes aspectos da história da região e aqui chamamos atenção para o tema da colonização. Para o ensino, a disponibilização do acervo em forma digital permite que professores e alunos de diferentes níveis (ensino fundamental, médio e superior) tenham acesso a uma ferramenta alternativa para realizarem seus estudos e trabalhos.

Referências Bibliográficas: ABREU, Ana Lucia. Acondicionamento e Guarda de Acervos Fotográficos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1999. 271

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ALVES, Monica Carneiro; VALERIO, Sergio Apelian. Manual para indexação de documentos fotográficos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Departamento de Processos técnicos, 1998. BITTENCOURT JUNIOR, Nilton Ferreira. A fotografia como fonte de pesquisa em História da educação. Disponível em: http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/03- FONTES E METODOS EM HISTORIA DA EDUCACAO/A FOTOGRAFIA COMO FONTE DE PESQUISA EM HISTORIA DA EDUCACAO.pdf . GREGORY, Valdir. Os eurobrasileiros e o espaço colonial: migrações no oeste do Paraná (1940-70). Cascavel: EDUNIOESTE, 2002. JUNIOR, Jaime Spinelli. A Conservação de Acervos bibliográficos e documentais. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Departamento de processos técnicos, 1997. KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002. MAUD, Ana Maria. Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradascariocas, na primeira metade do século XX. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, N. Sér. v. 13, n. 1, p.133-174, jan-jun 2005. TACQUES; M, N, M. Manual de Entrada de Dados em Formato MARC. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997. Formas de contato: Site do Museu: www.cascavel.pr.gov.br/museu/; Telefone do Museu: (45) 3902-1445; Facebook: Museu da Imagem e do Som MIS –Cascavel –PR. Site da Unioeste: www.unioeste.br/; telefone CEPEDAL: (45) 3284- 7869; Endereço: Rua Pernambuco, 1777, CEPEDAL Centro85960-000 - MCR, PR - Brasil - Caixa-postal: 91.

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RELIGIÃO E LUTA DE CLASSES EM “AS GUERRAS CAMPONESAS NA ALEMANHA” DE ENGELS Jonas Christmann Koren1 Resumo: Neste artigo iremos abordar, de maneira introdutória a relação entre a religião e luta de classes em “As Guerras Camponesas na Alemanha” de Friedrich Engels. Nessa obrapublicada em 1850, Engels analisou historicamente a Reforma religiosa na Alemanha, entendendo as funções sociais, políticas e ideológicas que a religião assumiu no período, especificamente em relação com os levantes camponeses que tomam caráter de movimento de massa poucos anos depois das Teses de Lutero, sob liderança de Tomas Münzer.Engels buscou explicar a origem da guerra camponesa, a posição ocupada por diferentes partidos que nela interviram, as teorias políticas e religiosas com que esses partidos procuram explicar a si mesmos a sua posição, assim como o desfecho da luta como uma consequência necessária das condições históricas da vida social dessas classes naquela época. Além disso, fez um comparativo com a revolução de 1848.Nesta perspectiva, a religião deixa de ser objeto de investigação metafísica ou teológica para ser analisada em sus fundamentações materiais, sua relação com a luta de classes. Palavras chave: Religião, luta de classes, Engels. Nesse artigo irei discutir, introdutoriamente, a relação entre religião e luta de classes em “As Guerras Camponesas na Alemanha” de Friedrich Engels. A religião assume um papel central nessa obra, onde Engels analisa a Reforma religiosa na Alemanha e a revolução camponesa que ocorre na sequência, além de trabalhar com movimentos religiosos anteriores à Reforma e com as heresias na idade média, dando principal atenção ao seu fundamento material, a importância política e social e sua influência nas classes subalternas. Friedrich Engels apresentou maior interesse pelo fenômeno religioso e seu papel histórico do que Marx. Interessava-se principalmente pela análise da relação das representações religiosas com as lutas de classes – método para entender e explicar as formas históricas da religião. Escreveu sobre o cristianismo primitivo e criticou Feuerbach, que via o cristianismo como “essência temporal”, demostrando a sua relação com a conjuntura social em diferentes períodos: cristandade como religião dos escravos, como ideologia estatal do Império Romano, como sustentação da hierarquia da Igreja Católica na Idade Média ou adaptada à sociedade burguesa. “As Guerras Camponesas na Alemanha” foi publicado em 1850, e neste Engels buscou “explicar a origem da guerra camponesa, a posição ocupada por diferentes partidos 1

Discente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Esta pesquisa é financiada pela CAPES.

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que nela intervêm, as teorias políticas e religiosas com que esses partidos procuram explicar a si mesmos a sua posição”, assim como o “desenlace da luta como uma consequência necessária das condições históricas da vida social dessas classes naquela época”2. Além disso, fez um comparativo com a revolução de 1848, a qual foi contemporâneo, de modo a identificar as permanências e diferenças entre as duas, com o interesse em compreender a impotência das classes revolucionárias diante das estruturas dominantes e sua capacidade em viabilizar uma aliança que abrangesse desde a burguesia, a plebe urbana e os camponeses3. O texto inicia com a apresentação do aspecto geral da estrutura econômica e social da Alemanha no início do século XVI. Esse período é marcado por profunda crise social e pela incapacidade do país em acompanhar o movimento das mudanças que atingia outros países da Europa naquele momento. As estruturas tradicionais alemãs impediam o país de participar do processo de expansão marítimo-comercial, do colonialismo e de centralizar-se politicamente, formando seu estado nacional, além disso, o desenvolvimento industrial era dificultado pelas corporações de oficio4. Essas circunstâncias alimentavam disputas internas entre as classes alemãs. Os príncipes, saídos da alta nobreza, defendiam o direito à soberania política em seus territórios, em oposição ao Imperador do Sacro Império. A pequena nobreza opunha-se aos príncipes, ao clero e classes urbanas. Essas opunham-se ao clero que, também dividia-se entre alto e baixo clero. Enquanto o patriciado urbano, as famílias de aristocratas que governavam e exploravam as cidades, opunham-se à burguesia. Por sua vez, todas essas classes opunham-se politicamente à plebe urbana e aos camponeses, cuja todos dependiam, direta ou indiretamente: [...] no início do século XV as diferentes classes do Império, os príncipes, a nobreza, os prelados, os patrícios, os burgueses, os plebeus e os camponeses formavam uma massa sumamente confusa, com interesses divergentes e inteiramente contraditórios. Cada classe constituía um estorvo para a outra e todas se encontravam em luta contínua5.

Essa diversidade de interesses contraditórios impedia a união das classes sociais em dois campos opostos, como no caso francês, um revolucionário e outro conservador. “Aquela ENGELS, Friedrich. “As guerras camponesas na Alemanha”. In. ENGELS, Friedrich. Revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular. p. 07. 3 MACIEL, David. “Engels e o problema da revolução burguesa no Alemanha”. Revista Antítese, nº.9, Goiânia, dezembro 2010. p. 96. 4 Idem. p. 97. 5 ENGELS, Friedrich. “As guerras camponesas na Alemanha”. In. ENGELS, Friedrich. Revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular. p. 31. 2

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divisão de uma nação inteira em dois campos, que existiu na França ao estalar a primeira revolução e que hoje se manifesta em uma etapa superior nos países adiantados, era completamente impossível nessas circunstâncias”6. Na Alemanha foi a reforma religiosa que conseguiu reunir as classes e suscitar a sublevação da plebe e dos camponeses, trazendo a possibilidade da revolução. A descentralização, a autonomia local e regional, a diversidade comercial e industrial das províncias e a insuficiência das comunicações tornaram impossível o agrupamento, em um conjunto único, dessas classes tão diversas, o que só veio a realizar-se ao se difundirem as ideias revolucionarias político-religiosas7.

A religião ganhou importância nas doutrinas revolucionárias na Alemanha da época devido ao poder e ao monopólio da instrução exercido pela Igreja Católica. Como escreve, nas “mãos dos sacerdotes, a política, a jurisprudência e todas as outras ciências não passavam de simples ramos da teologia”. Então, qualquer tentativa de mudança social deveria, em primeiro lugar contra a hegemonia católica: Torna-se evidente que qualquer ataque geral contra o feudalismo devia primeiramente dirigir-se contra a Igreja e que todas as doutrinas revolucionárias sociais e políticas deveriam ser, em primeiro lugar heresias teológicas. Para atingir-se a ordem social existente era preciso despojá-la de sua auréola.8

Nas heresias medievais a partir século XII, Engels entendeu ataques contra a igreja católica e uma tentativa de mudanças sociais, e as divide entre heresias de aspiração burguesas e heresias camponesas e plebeias, que mais tarde influenciariam nas guerras camponesas. Enquanto as heresias burguesas exigiam a restauração do cristianismo primitivo com o seu “aparelho eclesiástico simplificado e a supressão do sacerdócio profissional” acabando com os monges, prelados e a cúria romana e com tudo que a Igreja tinha de custoso, a heresia dos plebeus e camponeses: Pedia o estabelecimento da igualdade cristã entre todos os membros da comunidade e seu reconhecimento como norma para a sociedade inteira. A igualdade dos filhos de Deus devia traduzir-se pela igualdade civil e mesmo social de todos os cidadãos9.

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Idem. p. 31. Ibidem. p. 37. 8 Ibidem. p. 39. 9 Ibidem. p.40. 7

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Enquanto a burguesia queria uma Igreja barata, do mesmo modo que a burguesia contemporânea a Engels pedia um governo barato, as heresias plebeias e camponesas tinham um caráter mais revolucionário, exigindo mudanças sociais mais profundas. Porém, foi o caráter revolucionário da reforma religiosa que trouxe à disputa teologia um conteúdo ideológico que expressava reivindicações sociais diretamente vinculadas à luta de classes, expressando interesses políticas e sociais distintos. Engels deixou clara na análise dessa questão a interpretação do processo de luta de classes como fundamento metodológico da perspectiva analítica do materialismo histórico. Criticou a tratamento dado pela historiografia idealista alemã ao estudo das guerras camponesas e do processo revolucionário Francês: “nossos mestres de história pátria e nossos sábios de gabinete” querem “ver nas lutas que deram cabo na Idade Média apenas uma ardorosa disputa teológica”10. E na Revolução Francesa “apenas uma discussão um tanto acalorada a respeito das vantagens da monarquia constitucional sobre a monarquia absoluta”11, sem remeterem tais processos ao seu conteúdo de classe: Igualmente nas chamadas guerras religiosas do século XVI trata-se sobretudo de interesses materiais de classes muito positivos e estas guerras foram lutas de classe, do mesmo modo que os conflitos internos ocorridos posteriormente na França e Inglaterra. O fato dessas lutas de classe se travarem com pretexto religioso e dos interesses, reivindicações e necessidades das diversas classes se ocultarem sob o manto da religião, em nada muda os seus fundamentos e se explica facilmente pelas circunstâncias da época.12

Na Alemanha após a reforma, as disputas teológicas traziam consigo interesses das classes agrupadas em três concepções: catolicismo romano que representava os interesses do alto clero, do imperador, dos príncipes eclesiásticos e parte dos seculares, dos prelados e do patriciado urbano, correspondiam a parte mais conservadora, interessados na preservação da ordem social; a reforma luterana representando os interesses da burguesia, a pequena nobreza e alguns príncipes seculares; e o partido revolucionário, representando os interesses dos camponeses e plebeus, liderados por ThomásMünzer: Enquanto no campo católico conservador se agrupavam todos os elementos interessados na conservação do que existia, que dizer, do poder imperial, dos príncipes, eclesiásticos e parte dos seculares, dos nobres ricos, dos prelados e do patriciado das cidade, a reforma luterana burguesa e moderada agrupa os 10

Engels. p. 37. Engels. p. 36. 12 Engels. p. 38. 11

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elementos opositores bem instalados na vida: a massa da pequena nobreza, a burguesia e até uma parte dos príncipes seculares que queriam enriquecer arrebatando os bens do clero e que aproveitaram esta oportunidade para conseguir independência maior do poder imperial. Os camponeses e plebeus por fim formaram o partido revolucionário, cujo porta-voz mais ardente foi Tomás Münzer13.

O luteranismo protestante inicialmente agrupou todos os grupos interessados no fim dos privilégios do clero e dos príncipes, atraindo a burguesia, a plebe urbana os camponeses e alguns setores da nobreza. Assim, ao atacar pela primeira vez as instituições da Igreja Católica, na forma da antiga heresia burguesa, não excluía as tendências mais radicais: “nesse primeiro momento era preciso reunir todos os elementos da oposição, tinha de demostrar a energia revolucionária mais decidida, era preciso se representar a totalidade das heresias em face da ortodoxia católica”14. Porém, essa união das classes não durou, os camponeses e plebeus viram nos “apelos contra os padres no sermão sobre a liberdade cristã no sermão sobre a liberdade cristã, o sinal da sublevação” acreditando que havia “chegado o dia do ajuste de contas com seus opressores”.Já os burgueses moderados, grande parte da pequena nobreza e alguns príncipes uniram-se a Lutero apenas para “destruir o poder dos curas, a hegemonia romana e enriquecer-se pelo arrebatamento dos bens eclesiásticos”. Assim, os partidos se dividiram e escolheram seus representantes. Lutero, ao ter que escolher, “não vacilou nem um momento. Deixou para traz os elementos populares do movimento para unirse ao séquito burguês, aristocrático e monárquico”15. A oposição entre os dois grupos que se formaram após a reforma, reunidos em torno dos interesses burgueses de um lado e dos camponeses e plebeus de outro. Demonstra através dos discursos e panfletos a atuação de seus líderes, Lutero e Münzer e a relação com as atitudes de seus grupos no processo das guerras camponesas da Alemanha. Para Engels, “o caráter e a atuação de ambos os chefes refletirá fielmente a atitude de seus respectivos partidos”. E continua: Se indecisão e, o medo ante a potência cada vez maior do movimento e o servilismo covarde de Lutero correspondia exatamente à política vacilante e ambígua da burguesia, a decisão, a energia revolucionária de Münzer eram reflexo da fração mais avançada dos plebeus e camponeses.

13

Engels. p. 42. Ibidem. p. 42. 15 Ibidem. p. 43. 14

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Quanto a atuação de Lutero, em várias passagens Engels se referiu como sendo “ambígua”, “vacilante”, condizente com o medo da burguesia frente aos rumos que tomavam a reforma. E apresenta dois fragmentos publicados pelo líder reformista burguês. Em um primeiro momento, quando Lutero dando “livre curso a toda veemência de seu temperamento de camponês vigoroso”, escreveu: Se sua fúria (a dos padres romanos) tivesse que continuar, parece-me que seria o melhor conselho e remédio esmagá-la pela violência, armando-se reis e príncipes para atacar essa gente daninha que envenena o mundo inteiro e com ela acabar pelas armas e não por palavras. Não castigamos os ladrões pela espada, os assassinos com o garrote e os hereges com o fogo? Por que então não atacamos esse mestre da perdição que são os papas, cardeais e bispos e toda gentalha da Sodoma romana? Por que não os atacamos com toda a classe de armas e lavamos nossas mãos em seu sangue?16

Em um segundo momento, quando “o raio que Lutero lançara caiu no paiol de pólvora” e o “povo alemão se pôs em movimento”, Lutero muda o teor de seu discurso, silencia os seus apelos à guerra de extermínio contra Roma e recomenda a evolução pacífica e a resistência pacífica: Não quero que o evangelho se imponha pela violência, vertendo sangue. O mundo foi conquistado pela palavra, a Igreja foi instituída pela palavra e pela palavra renascerá e o anticristo cairá sem violência uma vez que tudo isso foi conseguido sem violência17

Essa posição ficaria ainda mais clara com o início das guerras camponesas. De início assume uma posição conciliadora, pondo a culpa da insurreição na opressão dos governantes, ao mesmo tempo que considerava a sublevação “ímpia e contrária ao Evangelho”, aconselhando ambas as partes a fazerem concessões e reconciliarem-se. Mais tarde, vendo que a “revolução burguesa era arrastada pela maré da revolução camponesa e plebeia” e que “comparados aos bandos camponeses, os servidores da Sodoma romana eram mansos cordeiros”,Lutero alia-se ao Papa e assume uma postura mais violenta contra os insurretos. “Temos que despedaçá-los, degolá-los e apunhala-los em segredo e em público, e que os matem todos os que possam matá-los, como se mata um cão furioso! gritava Lutero. Por isso, queridos senhores, ouvi-me e matai, degolai-os sem piedade...”18. Lutero, primeiro “dera um poderoso instrumento ao movimento plebeu” com sua tradução da bíblia e suas pregações que falavam sobre o “cristianismo primitivo simples dos 16

Ibidem. p. 43. Ibidem. p. 43. 18 Ibidem. p. 45. 17

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primeiros séculos” em oposição ao cristianismo feudal complexo e hierarquizado. Tal instrumento foi usado a fundo pelos camponeses contra os príncipes, a nobreza e o clero. Depois, Lutero traiu essa rebeldia popular e o próprio desenvolvimento burguês ao se aliar aos príncipes19. Em oposição à Lutero, o “reformador burguês”, Engels apresenta Thomas Münzer, “o revolucionário plebeu”, que torna-se o porta voz dos camponeses e plebeus na reforma e nas guerras camponesas. Desde cedo Münzer“tratava com o maior desprezo os dogmas e ritos da igreja”, e viu na Reforma e na agitação da época o “princípio do novo reino milenário, o juízo de Deus sobre a Igreja degenerada e o mundo corrompido que havia descrito o Calabrês”. Em 1520 foi enviado para Zwickau como primeiro pregador evangélico, onde encontrou a seita dos anabatistas. Münzer posicionou-se ao lado desses que se encontravam em conflito com o Conselho de Zwickau, conseguindo tê-los sobre influência. Fugindo da repressão do conselho, em 1921, Münzer e os anabatistas abandonaram a cidade. Estabeleceuse em Praga, onde tentou ganhar terreno com o que restou do movimento hussita, não consegue e foge para a Boêmia. Em 1922, faz-se pregador em Altstadt, onde começa a “reformar o culto”20. Com sua doutrina teológica e filosófica não atacava somente o catolicismo, mas também alguns princípios do cristianismo: negava o caráter de revelação única e infalível da Bíblia e acreditava na razão humana como sendo a revelação ou o próprio espírito santo. Acreditava em um Cristo humano e via a santa ceia como refeição comemorativa, onde se toma o pão e o vinho, sem nenhum adorno místico. Suprimiu totalmente o uso do latim, antes de Lutero, permitindo que o povo lesse a bíblia em sua totalidade. Para Engels, a doutrina de Münzer “dissimulava sob uma fraseologia cristã por detrás da qual a nova filosofia teve de esconder-se durante algum tempo”, porém, através dos seus escritos também via princípios arqui-heréticos – segundo Engels, o “adorno bíblico” lhe importava muito menos do que a certos discípulos de Hegel em temos recentes21. Por sinal, Engels faz uma divisão entre o Münzer teólogo e Münzer agitador político. De início, antes de romper completamente com a reforma, “continuava sendo teólogo”, dirigindo seus ataques “quase exclusivamente contra o clero”. Porém, ao contrário de Lutero, não defendia uma discussão pacífica, pregava a violência e conclamava os príncipes saxões e

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Ibidem. p. 46. Ibidem. p. 47. 21 Ibidem. p. 48. 20

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o povo à intervenção armada contra os padres romanos. Porém, como esses apelos não surgiram efeito, as ideias de Münzer tornaram-se mais precisas e mais audazes e este separase da “Reforma Burguesa fazendo-se agitador político”22. Nessa fase que coincide com a organização da sua liga, suas pregações tomaram caráter mais “revolucionário e violento” e “com a mesma paixão que mostrava ao condenar o clero troava agora contra os príncipes, a nobreza e o patriciado”.23 Quanto a sua doutrina política, escreve Engels que, “procede diretamente do pensamento religioso revolucionário e adianta-se à situação social e política de sua época da mesma maneira que sua teologia às ideias e conceitos correntes”, enquanto a filosofia religiosa aproximava-se do teísmo, “seu programa político tinha afinidade com o comunismo”24. O programa político de Münzer estaria mais próximo de “uma antecipação genial das condições de emancipação do elemento proletário que apenas acabava de fazer sua aparição entre os plebeus25” do que com o resumo das reivindicações plebeias da época: Tal programa exigia o estabelecimento imediato do reino de Deus, do reino milenário de felicidade, tantas vezes anunciado pela volta da Igreja à sua origem e pela supressão de todas as instituições que se achassem em contradição com esse cristianismo que se dizia primitivo e que em realidade era altamente moderno. Porém, segundo Münzer, esse reino de Deus não significava outra coisa senão uma sociedade sem diferença de classe, sem propriedade privada e sem poder estatal independente e alheio aos membros da sociedade. Todos os poderes existentes que se conformarem e se opusessem à revolução seriam destruídos; os trabalhos serão comuns e se estabelecerá a igualdade completa26.

Em suas pregações “descrevia em cores sombrias opressão presente comparando-a com o quadro fantástico de seu reino milenário de igualdade social republicana”, também publicava panfletos revolucionários e enviava a toda parte enquanto organizava a liga em Altstadt e arredores. A propaganda de Münzer tem efeito, facilitada “pela agitação crescente que reinava entre os camponeses” e pelo trabalho dos anabatistas que “incansáveis, fanáticos e impávidos na agitação, cerraram firmes suas fileiras em torno de Münzer”27. A propaganda de Münzer teria contribuído grandemente para a organização do partido popular e para as sublevações na Suábia e na Francônia, dando definição clara para as reivindicações. Seus discípulos eram a maioria dos “revolucionários camponeses mais 22

Ibidem. p. 48. Ibidem. p. 49. 24 Ibidem. p. 48. 25 Ibidem. p. 48. 26 Ibidem. p. 49. 27 Ibidem. p. 51 23

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decididos e compartilhavam das suas ideias”. As sublevações coincidem com a estada de Münzer no sul e embora não se possa provar diretamente a sua intervenção no desencadeamento e marcha do movimento, para Engels isso pode ser comprovado indiretamente, pela ação de seus discípulos, dos anabatistas e pelo teor das reivindicações camponesas. Nos destacamentos, compostos de elementos muito diversos, o partido revolucionário estava em minoria, porém, constituía “o eixo e o sustentáculo principal dos bandos camponeses”28. Também a simultaneidade de todos esses movimentos locais demonstra que à frente de todos eles se encontravam organizadores, emissários, anabatistas e outros. Já na guerra dos camponeses na Turingia, Alsácia e Austria, Münzer participou de maneira mais ativa. Logo que começaram as insurreições na Suábia, esta volta à Turíngia, fixando residência em Mühlhausen, onde tinha mais força o seu partido. Para Engels: “a miséria que reinava entre os camponeses oprimidos, assim como as doutrinas revolucionárias, religiosas e políticas que circulavam” haviam preparado o “terreno para a insurreição geral”29. O conselho patrício foi destituído e o “conselho eterno” foi eleito sob a presidência de Münzer. Sobre o período de presidência de Münzer, Engels escreve que não apenas o movimento que ajudara a construir, como também todo o século não estava preparado para a realização das suas ideias. A classe que ele representava ainda não estava completamente formada e ainda não tinha condição de subjugar e transformar a sociedade inteira. As mudanças sociais imaginadas por Münzer também não tinham fundamentos materiais existentes e o que se achava em gestação era “exatamente o contrário da ordem que ele havia sonhado”, ou seja, a atual sociedade burguesa O pior que pode acontecer ao chefe de um partido revolucionário é ver-se forçado a tomar o poder num momento em que o movimento ainda não está bastante amadurecido para que a classe que representa possa assumir a direção e para que se possam aplicar as medidas necessárias ao domínio dessa classe30.

Segundo Engels, essa era a situação de Münzer ao assumir a presidência do conselho eterno. Mesmo assim, continuava pregando sobre a igualdade cristã e a comunidade evangélica de bens e, percebendo “o abismo que separava suas teorias da realidade 28

Ibidem. p. 79.

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Engels. p. 101. Ibidem. p. 102.

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objetiva”, tinha de efetuar pelo menos uma tentativa de aplicação. Proclamou-se então, a comunidade de bens, o trabalho obrigatório para todos e a supressão de toda autoridade. Porém, o que fez foi uma espécie antecipação da sociedade burguesa. Porém, na realidade, Mühlhausen continuava sendo uma cidade livre republicana com uma constituição um tanto mais democrática, um senado eleito por sufrágio universal e controlado pela assembleia e uma organização de beneficência apresentadamente improvisada. Esta revolução social que tanto horrorizava os burgueses protestantes da época, não passou, na realidade, de um ensaio tímido e inconsciente para estabelecer prematuramente a atual sociedade burguesa31.

Ao final das guerras camponesas, com a derrota das sublevações camponesas, o principal efeito foi a divisão ainda maior da política alemã. A única classe que sai beneficiada foi a dos príncipes que aumentaram o seu poder com a centralização provincial. O clero e a nobreza sofreram sérias consequências e danos com a guerra. A burguesia, que unida ao clero lutou contra os camponeses, se desenvolveu “o bastante para não mais tolerar o absolutismo burocrático feudal, porém ainda não tinha forças bastantes para subordinar aos seus desejos os de outras classes”32. O proletariado, que ainda era demasiadamente débil, não tinha o poder para ir além ao período burguês ou esperar uma conquista, porém, adquiriu desenvolvimento suficiente para perceber que a emancipação da burguesia não correspondia à sua própria emancipação33. Os camponeses voltaram a ser submetidos ao domínio dos eclesiásticos, nobres e patrícios, e ainda foram obrigados a pagar indenizações aos vencedores. Engels, analisando os limites e possibilidades do processo revolucionário e o papel de cada classe, demonstra que a história é escrita pelas ações das classes enquanto sujeitos históricos, porém, os processos ocorrem em condições históricas concretas. Assim, a revolução não se dá apenas pelo ato de vontade dos sujeitos históricos, pois estes também dependem de condições pré-existentes. Os resultados dos processos históricos também não estão definidos a priori, pois são resultados definidos pela ação das classes durante o processo. O texto de Engels sobre a questão religiosa e a luta das classes subalternas só pode ser compreendido de maneira histórica, sendo que as leituras que a consideram a religião mero resquício de um pensamento antigo, incrustação que necessariamente teria de ser eliminada na construção do homem novo, acabam por perpetuar uma leitura pobre, mais próxima do 31

Engels. p. 103. Ibidem. p. 115. 33 Ibidem. p. 115. 32

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positivismo que do marxismo – e que infelizmente foi a leitura dominante durante o século XX, e que levou a conclusões no mínimo desastrosas, caso do stalinismo e dos expurgos religiosos e da revolução cultura chinesa. A religião escapa dos modelos fáceis desta “ortodoxia”, não podendo ser necessariamente considerada impedimento para a luta social, mas elemento formador e conformador da vida cotidiana das classes laboriosas (também do proletariado urbano, não somente do campesinato rural). Deste modo, tem de ser considerada como força social material e historicamente relevante.

Referências Bibliográficas ENGELS, Friedrich. “As guerras camponesas na Alemanha”. In. ENGELS, Friedrich. Revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular. MACIEL, David. “Engels e o problema da revolução burguesa no Alemanha”. Revista Antítese, nº.9, Goiânia, dezembro 2010

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ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA DOCENTE: O ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DAS CONCEPÇÕES DE PAULO FREIRE Paloma Mariana Caetano1 Resumo: Opresente trabalho tem como objetivo apresentar algumas considerações sobre o ensino de História, a partir de uma concepção problematizadora e engajada, pautada em discussões do tempo presente. Procuro elencar o papel da teoria e do método da educação libertadora, proposta por Paulo Freire, para a construção do conhecimento histórico, além de abordar a importância do método dialógico para a relação professor/aluno e sua contribuição para o questionamento crítico da realidade. Os apontamentos presentes nesta produção resultam das indagações e debates promovidos entre os membros do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência de História - PIBID, subprojeto de Marechal Cândido Rondon – Paraná, gestão de 2014. Palavras-chaves: ensino de História; transformação da realidade; método dialógico. O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível de ação. (Paulo Freire) No Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) de História, de Marechal Cândido Rondon – PR, nós (alunos da graduação e professores - da rede estadual de ensino e universitários) realizamos uma reflexão teórica, que, resultou nas questões propostas nesta produção, mas isto não é, de nenhuma maneira, a principal contribuição deste projeto em minha formação acadêmica. Os debates teóricos que permitiram compreender a real importância da História, principalmente vinculada a carreira de docente. Mais que isso, me possibilitaram pensar o que é História, rever conceitos, entender concepções e repensar na vida, em formas de agir e ser. Ao propor discutir os atuais desafios para o ensino da disciplina de história, seja na esfera escolar como em outros níveis de educação, acredito que a primeira questão a ser problematizada é justamente: o que é História? E, consequentemente, qual sua importância para a vida dos sujeitos? Pretendo, a partir das contribuições de algumas correntes teóricas

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Graduanda do 2º ano do Curso de História, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Marechal Cândido Rondon-PR. Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID, financiado pela Capes, sob coordenação da Profª. Drª. Aparecida Darc de Souza. E-mail: [email protected].

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(entre o século XIX e XX) e a metodologia de ensino proposta por Paulo Freire, provocar uma reflexão crítica sobre o papel da educação na sociedade em que vivemos, que seja capaz de evidenciar as contradições presentes em nosso mundo. Primeiramente, o conceito sobre História não é homogêneo. Não existe uma única explicação aceita sobre o que é a História, principalmente pelo fato de que, a partir do século XIX iniciou-se disputas ideológicas entre vertentes distintas, que surgiram neste contexto histórico, que buscavam legitimar sua concepção de História perante as outras. Isto possibilitou diversas noções sobre este campo de saber e maneiras de ensinar História. Isto indica que, dependendo da “concepção” adotada por determinada instituição, ou, a linha teórica que um professor utiliza, irá refletir direta ou indiretamente em sua maneira de entender o que é História (e isso influenciará em sua abordagem com os alunos no ambiente de ensino), pois é a maneira como se orienta em sua forma de ver as questões pragmáticas da vida, de entender determinados problemas, de agir e de pensar. Sendo assim, por exemplo, segundo a visão positivista, do século XIX, a História era, inicialmente, considerada como um campo que pesquisava e investigava apenas sobre o conhecimento do passado.Os fatos eram marcadoscronologicamente (de maneira linear e contínua) para uma explicação histórica, que partia do mais longínquo para o recente. Engrandecia os feitos de determinados indivíduos ligados ao poder, ao estado, que eram as figuras retratadas por este tipo de historiografia. Entretanto, em oposição a estas concepções, uma das principais contribuições da “escola” dos Annales, desenvolvidas por Marc Bloch e LucienFebvre no século XIX, (para a criação da Revista Annales d’HistoireÉconomique et Sociale) é mostrar que a história não se restringe a uma ciência do passado, mas é a ciência dos homens! E segundo o próprio Bloch “é preciso acrescentar: ‘dos homens, no tempo’” (BLOCH). Ainda, em um fragmento de seu texto intitulado como “Introdução a História”, o autor propõe que “o conhecimento do presente tem ainda maior importância que a inteligência do passado”, assim, “na verdade, conscientemente ou não, é sempre com as nossas experiências quotidianas que, para a diferenciar, ali onde deve ser, novas aparências, damos, em última análise, os elementos que nos servem para reconstruir o passado”.2 Isso evidencia que é o nosso presente que nos motiva a olhar o passado. São as questões impostas pelas demandas do dia a dia, presentes em nossas rotinas, que nos fazem 2

BLOCH, Marc. Introdução à História. Tradução de Maria Manuel, Rui Grácio e Vítor Romaneiro. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997, p. 101.

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pensar: mas por que isso é assim? Será que sempre ocorreu desta forma? Onde isto se iniciou e de que maneira? Utilizamos o passado, desta forma, para suprir as necessidades atuais. Neste sentido, é possível perceber que a principal mudança está na relação entre o passado e o presente. Portanto, a história deixa de ser vinculada a uma ciência que se destina a estudar o que se passou, o que já esta definido e acabado e permite que o presente de sentido e significado ao passado. Sobretudo, vale a pena resaltar que é o presente que permite problematizar as contradições da realidade e que o passado ainda está em um processo de (re) descobertas e (re) formulações. Esse elemento se torna significativo ao pensar sobre o ensino de História capaz de promover uma reflexão crítica sobre a sociedade em que vivemos, sobre nossa realidade, uma vez que nós propomos a provocar o debate entre esses diferentes tempos históricos. Para exemplificar o que estamos discutindo, que é por meio do presente que entendemos o passado, basta observarmos nosso comportamento perante o tempo. Desde crianças apreendemos que existe uma hora determinada para acordar, para almoçar, estudar, dormir... Ao frequentar o ambiente escolar, as horas servem para indicar o horário: das aulas, da entrada, do intervalo, da saída. Quando se começa a trabalhar existe a jornada de trabalho que se deve cumprir diariamente, semanalmente, mensalmente, anualmente, controlada por instrumentos como cartão ponto. Mas a relação do homem com o tempo nem sempre foi deste modo. O tempo se tornou uma moeda de troca a partir de um processo histórico. Thompson, em “Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial” demonstra, citando o trabalho dos tecelões, de artesões e de pequenos camponeses, que suas funções eram inicialmente controladas pela necessidade da produção, e não pela imposição de quantas peças devem ser produzir por minuto, de quanto tempo um trabalhador leva em média para desenvolver uma tarefa. O que desejo salientar, chamando a atenção para este aspecto, é que a alteração do sistema de manufatura para o industrial só faz sentido se entendermos como estas modificações influenciam na atual forma de trabalho, no jeito das pessoas pensarem, agirem, e, de controlarem o tempo. Do mesmo modo, que por ser desta forma, procuremos na transição dos séculos XIV para o XV vestígios para tal transformação. Partindo dessa premissa, o ofício do historiador e o trabalho do professor possuem um “compromisso” político e social, ou seja, em suas atividades desenvolvidas existem elementos 286

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e instrumentos que este pode utilizar para transformar a maneira de encarar a realidade, seja de seus alunos como de seus leitores.Jean Chesneaux ao escrever sobre o papel da história e dos historiadores, aponta que: Se o passado conta, é pelo que significa para nós. Ele é o produto de nossa memória coletiva, é o seu tecido fundamental. Quer se trate daquilo que se sofreu passivamente – Verdun, a crise de 1929, 1930, a ocupação nazista, Hiroshima – ou do que se viveu ativamente – a Frente Popular, a Resistência, Maio de 1968. Mas esse passado, próximo ou longínguo, tem sempre um sentido para nós. Ele nos ajuda a compreender melhor a sociedade na qual vivemos hoje, a saber o que defender e preservar, saber também o que mudar e destruir. A história tem uma relação ativa com o passado. O passado está presente em todas as esferas da vida social. O trabalho profissional dos historiadores especializados faz parte dessa relação coletiva e contraditória de nossa sociedade com seu passado.3 Mas, Chesneaux deixa claro que o passado é apropriado tanto pela “classe dominante”, como pela “classe subalterna”. Ambas utilizam o passado como uma ferramenta, como um instrumento para se legitimarem. Selecionam entre os fatos históricos o que convém e ocultam/silenciam o que deve ser desvinculado a sua construção e identificação. Mas, em meio a tudo isso, o que é História, pelo menos para mim? Como a definiria? Qual o conceito que utilizaria para designa-la? Considero que a História é mais do que uma disciplina, mais que a relação passado/presente (e até mesmo futuro como destaca Chesneaux), é a forma de pensar criticamente as mais diferentes sociedades, sem que ocorra juízo de valor. A História nós permite problematizar elementos cotidianos, e é muito mais do que pensar, é uma atitude, uma forma de ser e de agir (no tempo e no espaço). O papel do historiador é de observar o mundo, questionar e se posicionar diante dele, prestando atenção às contradições inerentes nele. LucienFebvre, ao escrever sua obra “Combates pela História” faz a seguinte referência sobre o ofício do historiador, demonstrando que realmente devemos ser comprometidos com nossos ideais, pois Só é digno desse belo nome aquele que se lança totalmente na vida, com o sentimento de que ao mergulhar nela, ao penetrar-se de humanidade presente, decuplica as suas forças de investigação, os seus poderes de ressurreição do passado. De um passado que detém CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tabula rasa do passado? – Sobre a história dos historiadores. São Paulo: Editora Ática, 1995, p. 22. 3

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e que, em troca, lhe restitui o sentido secreto dos destinos humanos.4 A teoria permite dar embasamento para a metodologia de ensino que se procura desenvolver para a aprendizagem dos alunos, ou seja, fundamenta a prática docente. Assim, se acredito, como professor de História, que esta se vincula ao passado, como esperar que meus alunos critiquem a realidade a partir de uma compreensão histórica baseada no tempo presente? Nesse sentido, a concepção de ensino propostas por Paulo Freire condiz com a noção de história que buscamos trabalhar no PIBID, uma vez, que permite a problematização e o enfrentamento das contradições, baseada em uma História do tempo presente, questionadora e engajada. Assim, desconstruir uma educação bancária (termo utilizado por Freire em “Pedagogia do Oprimido”), ou deixar de repetir o método tradicional de ensino, onde o professor transfere o conhecimento pronto e definido para o aluno, considerando este como um sujeito inferior, que está ali apenas para aprender é o primeiro passo, já que Não é de se estranhar, pois, que nesta visão “bancária” da educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quando mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos.5 Gostaria de destacar ainda, que nessa forma de ensino a relação entre professores e alunos é vertical (de cima para baixo mesmo) onde, o primeiro impõe o que será estudado ao segundo. Discordo dessa maneira de relacionamento, hierarquizada, por não permitir (ou inibir) o diálogo entre estes, criando barreiras que por vezes, separam tais indivíduos. Subverter a relação vertical presente nas salas de aula, onde o professor é a autoridade e o detentor do conhecimento, não implica dizer que queremos que este seja minimizado na dinâmica do aprendizado. Reconhecemos sua importância, mas para organizar e promover o debate e a construção do conhecimento. Para indicar o caminho, para somar. Ao optar por uma relação horizontal (uma relação mais “igualitária”) estamos reafirmando que tanto aluno como professor são seres cognitivos, que possuem um espaço 4

FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editora Presença, 1989, p. 50. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 17ª edição, 1987, p. 60.

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ativo no ambiente escolar, e que mesmo com funções distintas, complementam e enriquecem as trocas de experiências e de saberes. O conhecimento é construído coletivamente. O método dialógico deve ser a peça fundamental para que este modelo de educação ocorra. Vale a pena resaltar que a base deste método é o diálogo estabelecido entre os sujeitos. Mas, Paulo Freire especifica que noção este “diálogo” deve ter para ser realmente emancipador. Segundo ele, [...] deveríamos entender o “diálogo” não como uma técnica apenas que podemos usar para conseguir obter alguns resultados. Também não podemos, não devemos, entender o diálogo como uma tática que usamos para fazer dos alunos nossos amigos. Isso faria do diálogo uma técnica para a manipulação, em vez de iluminação. Ao contrário, o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza histórica dos seres humanos. È parte de nosso progresso histórico do caminho para nos tornarmos seres humanos. Está claro este pensamento? Isto é, o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e refazem.6 Portanto, o diálogo é fundamental para o desenvolvimento humano. Percebemos que, na relação horizontal, o diálogo é capaz de selar o relacionamento entre professores e alunos. Permite a construção do conhecimento, baseado em uma relação de trocas e contribuições. E no que tange a “refletir sobre sua realidade”, Freire ainda aponta a importância de que conhecer os elementos presentes nas vidas dos alunos. Como assim? No que isso interfere na relação de ensino? Por meio da observação e da investigação, o professor pode identificar aspectos que estão naturalizados como “normais” e “imutáveis” no universo dos educandos e assim, usar esse conhecimento, essa experiência para relacionar e dar sentido ao estudo da História. Isto contribui para instigar o debate por meio de “provocações/instigações” as práticas e ações que estes estão vivenciando. Partir de algo familiar, presente, para algo mais complexo, imaginável, abstrato. Mas que isto, não devemos esquecer que fazemos parte destes dilemas reais. Rosiska e Miguel Darcy de Oliveira destacam esse elemento em seu texto sobre “Pesquisa Social e

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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 17ª edição, 1987, p. 123.

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Ação Educativa – conhecer a realidade para poder transforma-la”, onde De fato, os fatos sociais não são coisas mas sim o produto de ações humanas. Os homens e as mulheres fazem a sociedade da mesma maneira que são feitos por ela. Somos autores e protagonistas de nossa história da mesma maneira que somos definidos e condicionados por ela.7 Deste modo, criticar a realidade é fundamental para a produção do saber histórico que estamos propondo. Só assim, seremos seres engajados em prol da luta social em favor da emancipação do homem, pois recusamos que o conhecimento histórico é neutro, e consideramos que a ação de educar também constitui em uma ação de intervir no mundo. Cabe, enquanto alternativa, a cada docente escolher a metodologia de ensino que lhe é mais pertinente. Afinal, como mencionado no começo deste texto, existem outras maneiras de lecionar, de entender o que é História e sua função na vida das pessoas. Porém, mesmo ciente de que “o processo didático na sala de aula não pode, por si só, refazer a sociedade” (FREIRE, 1987, p.161), qual é o ambiente em que se pode ser debatido seriamente estas questões, com jovens e adolescentes, senão em um ambiente escolar? É por meio do estranhamento e do incômodo que podemos instigar os alunos a serem mais críticos diante do mundo em que estão inseridos. É por meio das contradições evidenciadas que esses sujeitos, podem refazer e transformar a realidade, numa ação não apenas do nível das ideias e conceitos, mas na prática de suas condutas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLOCH, Marc. Introdução à História. Tradução de Maria Manuel, Rui Grácio e Vítor Romaneiro. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997. FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editora Presença, 1989. CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tabula rasa do passado? – Sobre a história dos historiadores. São Paulo: Editora Ática, 1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 17ª edição, 1987. OLIVEIRA, Rosiska Darcy. OLIVEIRA, Miguel Darcy. Pesquisa social e ação educativa: 7

OLIVEIRA, Rosiska Darcy. OLIVEIRA, Miguel Darcy. Pesquisa social e ação educativa: conhecer a realidade para poder transforma-la. CEI – Caderno n°20, Editora Tempo e Presença: Rio de Janeiro, 1978, p. 24.

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conhecer a realidade para poder transforma-la. CEI – Caderno n°20. Rio de Janeiro: Editora Tempo e Presença, 1978. THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes em comum. Trad. RosauraEichemberg. São Paulo: Editora Schwarcz, 1998. p. 267 – 30

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“O PODER DA FÉ”: PRESENÇA DA CONGREGAÇÃO BENEDITINA EM NOVA SANTA ROSA- PARANÁ (1970/1985) ShaienyPhilippsen Cardoso1 Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo analisar os embates em torno da Presença dos Monges Beneditinos na Cidade de Nova Santa Rosa, no qual, a chegada de um grupo de Monges Beneditinos vindos de São Paulo no início da década de 1970, passou a fazer parte dos projetos religiosos e políticos da Diocese de Toledo. A partir da análise do livro ‘Tombo’ da Paróquia Santa Rosa de Lima, da biografia de Dom Armando Círio - Apóstolo e Missionário do Oeste do Paraná, que foi publicada em 2010 e da entrevista concedida pelo Bispo Emérito Armando Cirio em 2012, foi possível verificar, de um lado, que os discursos e trabalhos pastorais diocesanos visava atender ao "Povo de Deus". Entretanto, receber na diocese um grupo de monges oriundos de uma Congregação Contemplativa fora uma decisão importante e satisfativa ao bispo, uma vez, que os Beneditinos são doutos em disciplina e rigidez. Por outro lado, os monges foram instalados pelo Bispo Diocesano na Cidade de Nova Santa Rosa, local onde havia Capela Católica e grande parte da sua população eram migrantes Teutos. Dessa forma, o intuito em recepcionar os Monges Beneditinos foi além de mera cordialidade. Era preciso legitimar o Catolicismo num espaço dominado religiosamente pelo Protestantismo. Palavras - Chave: Catolicismo; Fé; Nova Santa Rosa. A Presença da Congregação Beneditina no oeste do Paraná, em especial, na vila Nova Santa Rosa durante as décadas de 1970 e 1980 ocorreu devido a “decisões tomadas” 2 pelo bispo diocesano de Toledo, Armando Círio3. Para compreender tal decisão, precisamos entender a atuação religiosa que a Diocese de Toledo, da qual essa vila faz parte, passou nos anos anteriores à chegada dos Beneditinos. De acordo com a deliberação do Papa João XXIII, no dia 20 de junho de 1959, novas adaptações modela a Igreja Católica. Tais adaptações substitui a Prelazia4 de Foz do Iguaçu pela criação de duas novas dioceses no Brasil, chamadas de Campo Mourão e Toledo. A partir de então, a Diocese de Toledo é criada em 06 de Janeiro de 1960, na qual, abrangia as

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Acadêmica do 4° ano do curso de graduação em História - UNIOESTE.

“Em 1969, os padres Beneditinos são aceitos na Diocese com a finalidade de preparar a formação da paróquia de Nova Santa Rosa e construir ali um seminário”. CIRIO, Dom Armando. Apóstolo e missionário do Oeste do Paraná. Organização de Pe. AntôncioCapelesso, Dom Irineu Roque Scherer, Nilceu Jacob Deitos. Cascavel: Coluna do Saber, 2010. P.77-80. 3 CÍRIO, Armando. Entrevista concedida a ShaienyPhilippsen Cardoso. Cascavel, 07 de abril de 2012. 4 Segundo o direito da Igreja Católica, a Prelazia foi criada pelo Concilio Vaticano II. No qual, o decreto conciliar Presbyterorumordinis (7-XII-1965), n.10, estabelece a realização de obras pastorais peculiares em favor de diversos grupos sociais em determinadas regiões, nações, ou seja, em todo o mundo. Disponível em: . Acesso 03/06/2014. 2

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paróquias de várias cidades, entre elas, Quatro Pontes5. Neste contexto, a vila Nova Santa Rosa recebe sua primeira Capela Católica no dia 25 de setembro de 1960, essa pertencia a Paróquia de Quatro Pontes, sendo os trabalhos pastorais e religiosos realizados na vila pelo pároco da paróquia. Todavia, o bispo diocesano Armando Cirio delibera aos fiéis católicos de Nova Santa Rosa sua primeira Paróquia em 1969. De acordo com os dados apontados no site oficial do município, a vila Nova Santa Rosa foi iniciada em 19 de setembro de 1954, em 07 de julho de 1962 torna-se distrito, e apenas em 29 de abril de 1976 a vila se tronou oficialmente município, contudo, o site também aponta que a “vila” foi constituída por “migrantes teutos, sujeitos que tem o trabalho enquanto responsabilidade”. Tais dados são usados ainda hoje, pelo poder público da cidade para rememorar que esta foi colonizada por “descentes de origem alemã”, adeptos ao “cristianismo”6. Assim, a partir desses dados também é possível compreender que a religiosidade manifesta-se como uma “representação simbólica”7, no qual, as pessoas fazem recorrência para dar significado às suas vidas. No entanto, os migrantes que chegam à “vila”eram de diferentes locais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, cada qual, seguia seus credos religiosos. Tal diferenciação religiosa é perceptível em Nova Santa Rosa, pois várias Igrejas foram constituídas, ao mesmo tempo, que cada sujeito busca consolidar a sua fé na religião que fora batizado. Partindo desse imaginário, construir uma Igreja e organizar os trabalhos em seu interior apresentava uma ideia de compromisso com Deus e estabelecer sua devoção a ele. Cabe, no entanto, apresentar alguns destes aspectos que estão presente nas primeiras páginas do Livro Tombo da Igreja Batista: Mata fechada, animais selvagens, falta de estradas, serviço pesado, recursos financeiros escassos, falta de veículos para locomoção foram alguns dos obstáculos enfrentados pelos primeiros moradores de Nova Santa Rosa, em sua maioria oriundos de Santa Rosa, oeste do Rio Grande do Sul. Porém, o desejo de um grupo de irmãos e irmãs, os pioneiros, para viver em comunhão, divulgar o Evangelho de Cristo e 5

A diocese de Toledo territorialmente tinha uma área de 7.946 quilômetros quadrados. Considerada a Diocese mãe, comparada às dioceses de Cascavel e Foz do Iguaçu. Era formada por 23 paróquias, e contava com a presença de 42 padres, 57 religiosas e alguns Irmãos Lassalistas. A população era estimada em 400 mil habitantes. Cf. CIRIO, op. Cit. P. 90-92. 6 Site oficial da Prefeitura Municipal da cidade de Nova Santa Rosa. Este site foi criado no ano de 2008, no qual, disponibiliza uma História Oficial sobre a criação e desenvolvimento do Município e atualização dos eventos culturais e sociais que ocorrem no mesmo. Disponível em: . Acessado em: 18/08/2014. 7 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Editora Bertrand Brasil S.A: Rio de Janeiro, 1989.

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exercitar a sua fé foi maior que todos os obstáculos encontrados por aqui. [...] Um serviço muito pesado. Havia muitos mosquitos, mas o Senhor compensa os pioneiros com uma terra abençoada, muito produtiva, não permitindo que ninguém passasse fome. Tudo era natural e saudável. Neste cenário os pioneiros iniciaram as atividades da Primeira Igreja Batista em Nova Santa Rosa8. Assim, os dados acima apontam que nas primeiras paginas do Livro Tombo da Igreja Batista é importante para os sujeitos que seguem esses credos religiosos relatar e rememorar a “origem dos colonos e as dificuldades que esses sujeitos passaram”, reforçando a crença e devoção na palavra de Deus. Em contrapartida, nas primeiras páginas do Livro tombo da Paróquia Católica apresenta que “Nova Santa Rosa foi fundada em 1954 pela Colonizadora Maripá (Madeireira Rio Paraná)” (1959: p.02). Os dados seguintes presente no livro, dizem respeito aos primeiros trabalhos que foram realizados na Igreja, dentre esses dados chama atenção um “Convite”. No qual, o bispo diocesano Armando Cirio, convida os fiéis católicos de Nova Santa Rosa para recepcionar um grupo de Monges Beneditinos vindos do Mosteiro de São Geraldo de São Paulo. Segundo as informações presente no Livro Tombo, tal recepção ocorreu com a abertura de missa solene e posteriormente a realização da “Festa de Santo Américo”, na qual, estiveram presentes importantes lideranças políticas e religiosas locais, como também, a presença da “comunidade” de Nova Santa Rosa (1971: p.03). Para tanto, as informações presente no Livro Tombo da Paróquia Católica são registros de datas e acontecimentos, focando as informações mais extensas nos trabalhos realizados pela Igreja e para a Igreja. Assim, para compreender o discurso do bispo diocesano é preciso entender a realidade que a Igreja Católica passava no período. A presença católica no oeste do Paraná ocorreu num período em que a “Igreja Católica registra uma Nova Fase”9. Essa fase, era marcada pela inovação do Concilio Vaticano II, no qual, ocorreu através deste, o XXI Concilio Ecumênico da Igreja. De acordo com as propostas apresentadas pelo Papa João XXIII em 1962 no concilio e dada sequencia pelo Papa Paulo VI a partir de 1963 a 1965, a Igreja precisava passar por reformas doutrinarias, litúrgicas e pastorais. A ideia de tal mudança era atribuir uma imagem mais aberta e receptiva da Igreja Católica para com os fiéis. Tal ideia de mudança é apresentada ao clero a partir da elaboração da Constituição Conciliar (SacrosanctumConcilium- Sobre a Sagrada Liturgia) aprovada em 1963, Constituição 8

Livro Tombo da Igreja Batista. Dado redigido em 1962 p.02. Cf. CIRIO, op. Cit. P.77-80.

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Dogmática (Lumen Gentium- Sobre a Igreja) aprovada em 1964, Constituição Pastoral(GaudiumEtSpes- Sobre a Igreja no Mundo Actual) aprovada em 196510. Por isso, as constituições marcaram o trabalho da Igreja em duas fases, dogmática e pastoral11. Convém salientar, que as fases que marcam a Igreja Católica vão de encontro ao que Bourdieu aponta, “as classificações práticas estão sempre subordinadas a funções práticas e orientadas para a produção de efeitos sociais”12. Nesse caso, cabe ressaltar a introdução apresentada na Constituição Dogmática, para compreender a ideia de “reforma” que a Igreja visava: A Liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, «se opera o fruto da nossa Redenção» (1), contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultâneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na acção e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível ao invisível, a acção à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos (2). A Liturgia, ao mesmo tempo que edifica os que estão na Igreja em templo santo no Senhor, em morada de Deus no Espírito (3), até à medida da idade da plenitude de Cristo (4), robustece de modo admirável as suas energias para pregar Cristo e mostra a Igreja aos que estão fora, como sinal erguido entre as nações (5), para reunir à sua sombra os filhos de Deus dispersos (6), até que haja um só rebanho e um só pastor (7). De acordo com o documento, é perceptivel a importância em torno da “Liturgia”. Porém, na tradição cristã a Liturgia significa que o povo de Deus toma parte na Obra de Deus. Tal anunciação requer a exaltação do nome de Cristo nas celebrações, anunciando o Evangelho e a caridade em acto, pois Cristo representa a “Obra de Deus” 13. Assim, traçando a trajetória da Igreja Católica na segunda metade do século XX, no Concílio Vaticano II é apresentado uma nova proposta, cujo “concilios anteriores” não apresentavam. O Trabalho Pastoral.

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Site oficial do Vaticano; disponível em: Acessado em 06/06/2014. 11 CIRIO, Dom Armando. Apóstolo e missionário do Oeste do Paraná. Organização de Pe. AntôncioCapelesso, Dom Irineu Roque Scherer, Nilceu Jacob Deitos. Cascavel: Coluna do Saber, 2010. P. 77-80. 12 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Editora Bertrand Brasil S.A: Rio de Janeiro, 1989. 13 Site oficial do Vaticano, disponível em: Acesso 06/06/2014.

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Uma vez, que a década de 1960 estava sendo marcadas por inumeras transformações sociais, politicas e economicas a nivel mundial, os representantes da Igreja sentiram a necessidade de remodelar as doutrinas, pois o trabalho de Evangelização precisava ser anunciado, mas também, realizado em acto14. Assim, levando em consideração que a constituição de uma prática religiosa envolve a atuação de um ‘sujeito de religiosidade’ e sua posição experiencial e simbolica, em face de um ‘campo religioso’15, a Igreja Católica precisou se adequar a realidade mundial, e não mais, a realidade criada por ela própria. Em razão disso, adequar-se a nova realidade significava que o clero deveria acompanhar o “Povo de Deus” no seu cotidiano, estar atento às transformações sociais e não apenas realizar celebrações e ficar enclausurado no Espaço Sagrado16. Nesse sentido, a “nova” configuração da igreja é afirmada na Constituição Pastoral, sendo visivel nos primeiros parágrafos do documento a mudança de discurso: Por isso, o Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo de Deus por Cristo congregado, não pode manifestar mais eloquentemente a sua solidariedade, respeito e amor para com a inteira família humana, na qual, está inserido, do que estabelecendo com ela diálogo sobre esses vários problemas, aportando a luz do Evangelho e pondo à disposição do género humano as energias salvadoras que a Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Trata-se, com efeito, de salvar a pessoa do homem e de restaurar a sociedade humana. Por isso, o Homem será o fulcro de toda a nossa exposição: o homem na sua unidade e integridade: corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade. Eis a razão por que este sagrado Concílio, proclamando a sublime vocação do homem, e afirmando que nele está depositado um germe divino, oferece ao género humano a sincera cooperação da Igreja, a fim de instaurar a fraternidade universal que a esta vocação corresponde. Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas ùnicamente este objectivo: continuar, sob a direcção do Espírito Consolador, a obra de Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade (2), para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido (3). Dessa forma, é perceptivel no documento oficial, como também, nas Praticas Liturgicas e Doutrinarias a saliencia ao “Homem” enquanto essencia primordial de vida. Consequentemente se apresenta os nomes de “Jesus Cristo” e “Espirito Santo”, a base 14

Cf. CIRIO, op. Cit. P.77-80. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Editora Bertrand Brasil S.A: Rio de Janeiro, 1989. 16 O tempo sagrado é o mais importante para a vida do homem, no entanto, não é o único. Durante séculos a religião só estava presente na vida do homem enquanto estrutura concreta, ou seja, Igreja. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 15

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espiritual para o Homem enquanto corpo físico. No que se refere aos nomes, encontramos em Bourdieu17, ao tempo que apresenta um “poder simbólico” expressam “força ao ser manifestado”. Dessa forma, o “poder não expressado nas palavras” e “reproduzido pelos signos” quando idolatrados. Tais ações toda vez que produzidas, “fortalece e legitima a crença”, neste caso, o catolicismo. Sendo assim, o discurso papal visa uma nova fase para a Igreja Católica. A importância do Homem enquanto essencia de vida. De acordo com Roger Chartier18 esse modelo de discurso aponta, “estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezadas, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas”. Partindo desse pressuposto a Igreja precisou adotar novos meios de interração, tornando um processo que se “contextualiza culturalmente” e lentamente a partir do “cotidiano” dos fiéis19. Porém, desenvolver um trabalho religioso na diocese de Toledo se torna uma tarefa árdua. Uma vez que, o clero era responsável para educar e transmitir aos fiéis à doutrina católica. Diante dessa realidade, o bispo diocesano Armando Círio buscou por alternativas que lhe possibilitassem a Evangelização. Entretanto, as alternativas eram baseadas nas Constituições Dogmáticas e Pastoral elaboradas pelo Concílio Vaticano II. Alternativas que Armando Círio reafirma:

Para se criar este processo de atualização, precisa ver, dar uma nova organização. Criar uma nova mentalidade, quer dentro da igreja, e quer na sociedade civil. Então foi todo um processo, um processo de melhorar a preparação dos sacerdotes, dos religiosos, para enfrentar com sucesso o ambiente. O ambiente que ia sendo criado pelas circunstâncias. Quer dizer, o concílio compreendeu que nós estamos vivendo num mundo de contínuas mudanças, e a igreja então também tinha que passar por mudanças contínuas20. Nessa perspectiva, o bispo aponta que foi necessário a Igreja Católica passar por novas “mudanças”, como criar uma “nova mentalidade” que conhecida com a realidade momentânea. Essas mudanças proporcionaram o aumento de sacerdotes, atividades pastorais, casas de formação a partir dos princípios católicos. 17

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Editora Bertrand Brasil S.A: Rio de Janeiro, 1989. 18 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. P.17 19 Cf. CHARTIER, op. Cit. 20 CÍRIO, Armando. Entrevista concedida a ShaienyPhilippsen Cardoso. Cascavel, 07 de abril de 2012.

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Pensando nessa “nova mentalidade” é pertinente observar, que o bispo diocesano recebe a visita de Monges Beneditinos vindos de São Paulo no inicio da década de 1970 à Diocese de Toledo21. Segundo o bispo diocesano Armando Círio: Foi à congregação do mosteiro beneditino de São Paulo. Este mosteiro é de origem da Hungria, eram todos húngaros. […] Eles eram poucos membros e queriam multiplicar, os membros da congregação. Então pediram a mim se poderiam abrir um seminário aqui na Diocese de Toledo, abriram o seminário. Eu apontei Nova Santa Rosa! Porque naquele tempo as vocações do seminário vinham todas daquela região […]. Tinha muitas vocações na diocese, que vinham daquela região. Então ai, a Nova Santa Rosa eu vou criar paróquia, que precisa ter uma base, então ai eles aceitaram. Criei paróquia, tomaram conta da paróquia e no mesmo tempo construíram o seminário22. Entretanto, o bispo reafirma suas palavras apontando que os jovens a procura de formação religiosa em seminários católicos estavam “naquela região”. Também é notável que houvesse um acordo entre a Diocese e a Congregação. Há um lugar, “Nova Santa Rosa! Em troca de cuidar da paróquia”. Tal acordo realizado por Armando Cirio é claro, pois na “vila” outras religiões tinham maior força de expressão. Assim, os acordos entre o Bispo Diocesano e os Monges Beneditinos possibilitam a construção do Seminário Santo Américo, como também, a construção da Paróquia Santa Rosa de Lima. De acordo com Pierre Bourdieu, “o poder simbólico torna possível o controle social pelo uso do capital simbólico que um sujeito ou instituição tem” (1990: p.17). Entretanto, cabe diferenciar e identificar que os trabalhos de Evangelização em Nova Santa Rosa, eram elaborados pelo bispo diocesano e ministrados pelos monges beneditinos.

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Livro Tombo da Paróquia Católica Santa Rosa de Lima. Dado redigido em 1971, p.02. CÍRIO, A. Entrevista concedida em 07/abril/2012.

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TRABALHO E ADOECIMENTO DOS TRABALHADORES NAS LINHAS DE PRODUÇÃO Simone Teresa HeckMumbach23 Resumo: A comunicação apresentada é oriunda da pesquisa que está sendo realizada sobre o processo de adoecimento dos trabalhadores nas linhas de produção no município de Toledo – Paraná. Parte-se do pressuposto que o trabalho é fundamental ao homem, é através dele que a história é construída e a natureza transformada em valores de uso, produzindo e reproduzindo os seres sociais, distinguindo-se dos animais. Foi através do trabalho, durante o desenvolvimento da sociedade capitalista, que esta se desumanizou no processo de exploração da força de trabalho. Restou apenas o trabalho alienado e assalariado para aqueles vivem da venda de sua própria força de trabalho. Constata-se a ampliação das contradições entre capital e trabalho, a separação das classes sociais. Criam-se métodos, organizações, formas de trabalho e produção visando a ampliação da produção e do lucro. O fordismo e o taylorismo geraram maior produtividade com a fixação do trabalhador em uma única função. O toyotismo, utiliza a força de trabalho de forma mais abrangente, transformando os trabalhadores em polivalentes, usando ferramentas para aumentar a produção e usufruir dos trabalhadores. As doenças psicológicas estão associadas às cobranças dentro do local de trabalho, e fora dele. O controle das atividades do trabalhador se torna mais abrangente, pois os grupos de trabalho criam reações psíquicas de autocontrole nos seus integrantes. As doenças físicas mais comuns são as de caráter crônico-degenerativas, como as Lesões por Esforços Repetitivos (LER), os Distúrbios Osteomosculares Relacionados ao Trabalho (DORT) e as perdas auditivas. As doenças de trabalho prejudicam os trabalhadores nas empresas, mas também nas pequenas atividades domésticas e de higiene pessoal. Palavras chaves: Trabalho, saúde do trabalhador, métodos produtivos. Introdução

O artigo é oriundo da pesquisa que está sendo realizada sobre o processo de adoecimento dos trabalhadores nas linhas de produção no município de Toledo – Paraná. Este texto abrange a primeira parte do estudo, que diz respeito ao desenvolvimento dos processos produtivos e o seu impacto na saúde dos trabalhadores de uma maneira mais conceitual. Define-se a categoria trabalho na visão de Ricardo Antunes e a condição do trabalho na sociedade capitalista, onde o trabalho se torna precarizado e alienado. A divisão do trabalho fragmenta a transformação da matéria prima em valor de uso, sendo realizado em parcelas. Desse modo o proletário perde a ideia (construção) de todo o processo de produção, estando pautado apenas em uma parte específica do processo. Acadêmica do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

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A fragmentação do trabalho foi intensificada com o surgimento dos modos de gestão do trabalho no século XX, o taylorismo, primeiro modo de gestão, regula o trabalho de cada operário, ou seja, propõe que cada operário faça apenas uma parte do processo produtivo, o fordismo, outro modelo, com a mesma lógica de fragmentação de trabalho, vem complementar o taylorismo, fixando o trabalhador comas esteiras, o operário fica na mesma posição aguardando a peça chegar até ele, onde sempre fará a mesma tarefa, repetidas vezes de acordo com a velocidade que a esteira for programada. Nos anos 1970, o capitalismo entra em crise e á uma transição dos modelos tayloristas e fordistas para uma acumulação mais flexibilizada, surgindo o toyotismo. O toyotismo, é uma gestão adaptada a nova situação econômica, produzindo o que é exigido pela demanda no tempo justo, diminuindo estoques e flexibilizando o operário, para que este possua mais conhecimento do processo e produza mais em menos tempo. A relação de trabalho também é flexibilizada, havendo a terceirização da empresa, a subcontratação e o trabalho temporário. O adoecimento do trabalhador é intensificado com as modificações que houveram ao longo da história no processo produtivo, estando mais suscetível ao seu aparecimento (doenças físicas e psíquicas) devido aos movimentos repetitivos ocasionados pelas esteiras em alta velocidade e a pressão dos empregadores para cumprir metas e valores da empresa.

Trabalho e trabalho na sociedade capitalista

O trabalho é fundamental ao homem, é através dele que a história é construída e a natureza transformada em valores de uso, produzindo e reproduzindo os seres sociais, distinguindo os dos animais. “Por um lado, o próprio homem que trabalha é transformado pelo seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, a sua própria natureza; "desenvolve as potências nela ocultas" e subordina as forças da natureza "ao seu próprio poder””24. Originalmente, a categoria trabalho guardava no seu interior um sentido teleológico, permitindo que o sujeito tivesse conhecimento da totalidade do processo de produção de um valor de uso. A primeira construção era idealizada na mente do trabalhador, em seguida refletida no seu processo de desenvolvimento, execução e, por fim, possíveis usufrutos do resultado da ação: “o ser social dotado de consciência tem previamente concebida a

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configuração que quer imprimir ao objeto do trabalho no ato de sua realização” 25, e “o trabalho mostra-se, então, como momento fundante de realização do ser social, condição para a sua existência; é por isso, ponto de partida para a humanização do ser social”26. É através do trabalho que o homem extrai os recursos necessários para a sua sobrevivência, mas, foi através dele, durante o desenvolvimento da sociedade capitalista que a sociedade se desumanizou no processo de exploração da força de trabalho27. A divisão do trabalho garantiu e garante o aumento da produção e o afastamento do trabalhador do fruto de seu próprio trabalho, fragmenta o processo teleológico, pois cada trabalhador se torna responsável por uma pequena parte do todo, “do produto individual de um artífice autônomo, que faz muitas coisas, a mercadoria transforma-se no produto social de uma união de artífices, cada um dos quais realiza ininterruptamente uma mesma tarefa parcial”28. O capitalismo se beneficiou do trabalho parcial, através dele o trabalhador aperfeiçoa a atividade, a “repetição contínua da mesma ação limitada e a concentração da atenção nela ensinam, conforme indica a experiência, a atingir o efeito útil desejado com um mínimo de gasto de força”29, a repetição de movimentos e o foco em apenas uma atividade possibilita o aparecimento de danos a saúde do trabalhador. O capitalismo dividiu a sociedade em classes, substancialmente em duas, uma detentora dos meios de produção e, consequentemente, dos lucros gerados pela produção da classe que apenas tem a oferecer seu corpo como mão de obra, ou seja, “as fundações produtivas e de controle do processo de trabalho social são radicalmente separadas entre aqueles que produzem e aqueles que controlam”30. As mutações do trabalho ampliam o processo de alienação ao afastar ainda mais o trabalhador do resultado de seu trabalho: “o trabalho se torna meio, e não ‘primeira necessidade’ de realização humana”31. Entre os muitos sentidos do trabalho, restou apenas o trabalho alienado, assalariado e subordinado para aqueles que vivem da venda de sua própria força de trabalho. Como consequência, o desenvolvimento do sistema produtivo continua mutilando fisicamente e psicologicamente seus trabalhadores (de modo que nos faz lembrar as

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ANTUNES, 2005, p. 67. ANTUNES, 2005, p.68. 27 ANTUNES, 2005. 28 MARX, 1996, p.454. 29 MARX, 1996, p. 456. 30 ANTUNES, 2009, p. 24, grifos do autor. 31 ANTUNES, 2005, p. 69. 26

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condições de trabalho do início da Revolução Industrial na Inglaterra)32. Durante o desenvolvimento do sistema capitalista, constata-se a ampliação das contradições entre capital e trabalho. A separação das classes sociais, o distanciamento cada vez maior das classes trabalhadoras em relação as classes dominantes.

Os processos produtivos

Criam-se métodos, organizações, ferramentas de trabalho e produção visando a ampliação da produção e da lucratividade. Em grande medida, modelos produtivos como o taylorismo e fordismo geraram maior produtividade com a fixação do trabalhador em uma única função. Eles são responsáveis pela produção em etapas, a criação de esteiras rolantes e cronômetros para ditar o ritmo de produção e a produção em massa. O fordismo produz suas mercadorias em parcelas de atividades, onde 75% da produção é realizada dentro da fabrica, sendo uma estrutura de produção verticalizada33. Neste período o trabalhador é especializado, possui total conhecimento da atividade que realiza, porém como já salientado, perde a ideia do processo como um todo. Nos anos 1960 e 1970, segundo Antunes (2009, p.42-43, grifos do autor): [...] deu-se a explosão do operário-massa, parcela hegemônica do proletariado da era taylorista/fordista que atuava no universo concentrado no espaço produtivo. Tendo perdido a identidade cultural da era artesanal e manufatureira dos ofícios, esse operário havia se ressocializado de modo relativamente “homogeneizado”, quer pela parcelização da indústria taylorista/fordista, pela perda da destreza anterior ou ainda pela desqualificação repetitiva de suas atividades, além das formas de sociabilização ocorridas fora do espaço da fábrica. Isso possibilitou a emergência, em escala ampliada, de um novo proletariado, ofereceu as bases para a construção de uma nova identidade e de uma nova forma de consciência de classe. [...]

O capitalismo apresentou um longo tempo de crescimento e de acumulo de capital com os modelos taylorista/fordista, desde o pós-guerra, mas a partir dos anos 1970 começou a passar por dificuldades, econômicas e lutas de classe, acabando por se reformar, sem modificar sua base estrutural, havendo assim “a transição do padrão taylorista e fordista anterior para as novas formas de acumulação flexibilizada”34. O toyotismo surge neste período com novas características, produzindo produtos 32

ANTUNES, 2005. ANTUNES, 2009. 34 ANTUNES, 2009, p. 38 33

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variados e heterogêneos, atendendo as individualidades do consumidor. Esta forma de gestão de trabalho utiliza a força de trabalho de forma mais abrangente, transformando os trabalhadores em flexibilizados (polivalentes), ou seja, onde exercem várias atividades dentro de suas funções. O operador de máquina se torna inspetor de qualidade e mecânico, havendo uma relação de dominação ainda maior, na intensificação do uso da força de trabalho35. O trabalhador é utilizado para verificar formas de aumentar a produção com os chamados Círculos de Controle de Qualidade, onde se formam grupos de trabalhadores, para planejar e indicar melhorias dentro da fabrica, para aumentar a produção com baixos custos.Um instrumento importante para o capital se apropriar do conhecimento do operário, que está em constante contato com o processo: “A adoção do toyotismo visa a constituição de um novo nexo psicofísico capaz de moldar e direcionar ação e pensamento de operários e empregados em conformidade com a racionalização da produção”36. Para controlar estoque e gastos de produção, o toyotismo cria ferramentas como o justi in time, fazer tudo no seu tempo justo, ou seja, produzir apenas por demanda e o kanban, uma ferramenta para sinalizar a reposição de estoque através de placas ou senhas, barateando o custo de gestão de estoques e diminuindo a sua burocratização37. O toyotismo emprega uma estrutura horizontalizada, tendo como foco o que é essencial em sua produção, as demais atividades serão terceirizadas. As empresas terceirizadas trabalham com a mesma estruturação e métodos de produção do que a empresa principal. Comparando o toyotismo ao fordismo, há uma inversão de fatos, sendo no toyotismo 25% da produção realizada no interior de uma mesma plataforma industrial, enquanto no fordismo são 75% das fases produtivas realizadas na indústria principal38. No momento que é implantado plenamente o toyotismo, o trabalhador é motivado a se reconhecer na mercadoria que produz, se sentindo responsável pela qualidade39. A empresa busca transformar o local de trabalho a continuação da casa do trabalhador e implantar a ideia de “comunidade”. A polivalência e a rotatividade, são as formas encontradas pelos empresários para manter a produção no caso de ausências, paradas e demais dificuldades. No toyotismo: “as rígidas formas de controle, típicas do modelo taylorista/fordista, aparecem transformadas em lideranças motivadoras, num ambiente em que o próprio grupo exerce 35

ANTUNES, 2009. ALVES, 2009, p.187. 37 ANTUNES, 2009; PINTO, 2011. 38 ANTUNES, 2009. 39 MALAGUTI, 1996. 36

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pressão sobre os indivíduos”40. Desse modo, otoyotismo possui uma densidade manipulatório maior que as demais organizações de trabalho, pois “busca ‘capturar’ não é apenas o ‘fazer’ e o ‘saber’ dos trabalhadores, mas a sua disposição intelectual-afetiva, sua capacidade de aprendizagem voltada para a cooperação com a lógica instrumental da valorização”41. O que se espera do trabalhador é que saiba resolver os problemas antes mesmo que eles aconteçam, cobrando deles envolvimento total com as atividades. A organização do trabalho é a principal determinante do prazer ou do sofrimento, ou seja, as condições nas quais o trabalho é realizado podem torná-lo agradável e o trabalhador se identificar e fortalecer, ou pode torná-lo penoso e doloroso, esse confronto entre o seu subjetivo e as privações socioculturais e ambientais são o reflexo de como o trabalho está sendo organizado42. A agressão à saúde do operário é diretamente relacionada a fragmentação das tarefas geradas, que podem provocar a monotonia e o medo a seus agregados. O medo pode estar ligado à desestruturação da relação entre colegas, dadas pela discriminação ou violência, ou a repressão dada por si mesmo, para seguir as regras impostas pelos empregadores e a impotência de conseguir mudar esta realidade43. Verifica-se atualmente nas empresas uma junção do taylorismo/fordismo e toyotismo para a organização dos processos de produção e prestação de serviços, aumentando a velocidade dos equipamentos que ditam o ritmo de produção, criando metas inatingíveis, aumentando a pressão sobre os trabalhadores, fazendo-o acreditar que deve “vestir a camisa” e seguir os valores da empresa, mesmo que não tenha mais condições físicas e psicológicas para tal44.

O adoecimento dos trabalhadores

As doenças físicas as quais os trabalhadores mais são acometidos são principalmente as doenças de caráter crônico-degenerativas, como as Lesões por Esforços Repetitivos (LER),

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MERLO; LÁPIS, 2007, p. 66. ALVES, 2009, p.188, grifos do autor. 42 CARRASQUEIRA, BARBARINI, 2010. 43 MERLO; LÁPIS, 2007. 44 PINTO, 2011. 41

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os Distúrbios Osteomosculares Relacionados ao Trabalho (DORT) e as perdas auditivas45. As grandes quantidades de equipamentos dentro das indústrias ocasionam uma intensa exposição dos trabalhadores aos ruídos, provocando a gradual perda auditiva. A LER ocorre principalmente nos setores menos mecanizados, regidos por esteiras rolantes, pois esta impõe o ritmo de trabalho, pode-se observar esta realidade no documentário “Carne e Osso”, dirigido por Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, produzido em 2011. Os trabalhadores de frigoríficos de várias regiões do Brasil relatam o seu cotidiano nas indústrias, a cobrança por atingir metas, a atenção necessária para realizar o trabalho com qualidade para não estragar as peças de carne e garantir que os trabalhadores não se ferissem nas máquinas. A alta velocidade das esteiras, e o cansaço ocasionado por esse ritmo frenético durante várias horas diárias, repetido todos os dias, com a utilização de instrumentos de corte, oferece ao trabalhador inúmeros riscos de acidentes e doenças, mas a necessidade de se submeter a tal condição para sobreviver e manter sua família não oferece escolhas aos trabalhadores. As doenças de trabalho prejudicam os trabalhadores nas empresas, mas também nas pequenas atividades domésticas e de higiene pessoal. Este fato também é relatado por Alves, quando diz que a LER. “[...] incide negativamente limitando a capacidade de trabalho e a execução de tarefas simples, como atividades domésticas”. Além da humilhação que sofrem quando buscam tratamento de saúde, por ser uma doença não reconhecida e a perda de identidade como trabalhador46. As doenças psicológicas estão associadas às cobranças dentro do local de trabalho, e fora dele, pela pressão exercida pelo fetiche, as metas e a cobrança pela máxima eficiência dos trabalhadores em várias atividades, estas podem acarretar no aumento do estresse dos operários47. O controle das atividades do trabalhador pelos grupos de trabalho, criam reações psíquicas de autocontrole nos seus integrantes, tais como: a introjeção dos valores da empresa, o estímulo ao orgulho profissional, o controle “corpo a corpo” e a emulação psicológica48. As empresas estimulam entre seus trabalhadores a competição, e a ameaça de demissão, deixa todos os trabalhadores em estado de tensão e sofrimento o tempo todo, essa 45

FINKLER, 2007; PINTO, 2011. ALVES, 2004, p.68. 47 ALVES, 2009. 48 MALAGUTI, 1996. 46

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forma de administração é utilizada pelos gestores da empresa para exigir demandas de grande proporção, as vezes quase impossíveis de serem atendidas49. A fragmentação das tarefas do trabalho, provocam o medo e a monotonia a seus agregados. O medo pode estar ligado à desestruturação da relação entre colegas, pela discriminação ou violência, ou a repressão dada por si mesmo, para seguir as regras impostas pelos empregadores e a impotência de conseguir mudar esta realidade, acarreta problemas mais graves de saúde50. O trabalhador que “não quer ver seu nome na lista de demissões deve estar sempre pronto a colaborar”51. Assim, ocorre a naturalização do trabalho como modelo de sobrevivência: Nesse contexto de tendência à precarização das relações de trabalho e de risco constante de ingressar nas estatísticas alarmantes do desemprego, aumentam a ansiedade e o medo do trabalhador, a tal ponto que os desgastes físico e psicológico passam, muitas vezes, a ser banalizados e encarados como se fossem parte da forma normal de trabalhar e viver52.

Considerações Finais A precarização do trabalho nas linhas de produção permite através dos métodos de produção, comportar maior produtividade com menor qualificação, promovendo o adoecimento dos trabalhadores. O oeste do Paraná é uma região com várias indústrias de grande porte, os trabalhadores que desempenham atividades nas linhas de produção destas indústrias, principalmente ligadas ao abate e beneficiamento de carne de aves e suínos, estão sujeitos as doenças provocadas pelos movimentos repetitivos, altos ruídos provocados pelas máquinas e pela pressão psicológica imposta pelos empregadores para alcançar os índices de produção desejados. Adoecidos os trabalhadores acabam sendo afastados do trabalho e perdem sua identidade como trabalhadores, em uma sociedade do trabalho. Referências ANTUNES, Ricardo. O caracol e a sua concha:ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.

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CARRASQUEIRA, BARBARINI, 2010. MERLO; LÁPIS, 2007. 51 MERLO; LÁPIS, 2007, p. 67. 52 MERLO; LÁPIS, 2007, p. 67. 50

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______. Os sentidos do trabalho:ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009. ALVES, Giovanni. A condição de proletariedade: a precariedade do trabalho no capitalismo global. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2009. ALVES, Natália Cristina Ribeiro. Corpos entre saúde e trabalho: a construção sociopolítica da LER como doença. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.

CARNE E OSSO. Direção de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros. Brasil: Repórter Brasil, 2011, 65 minutos. Colorido. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2014. CARRASQUEIRA, Flora Allain; BARBARINI, Neuzi. Psicodinâmica do trabalho: uma reflexão acerca do sofrimento mental nas organizações. Jornada de Saúde Mental e Psicanálise da PUCPR, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 01-19, nov. 2010. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2014. LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. Tradução de Carlos Neto Coutinho. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. MALAGUTI, Manoel Luiz. A ideologia do modelo japonês de gestão. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 17, n. 1, p. 43-73, 1996. Disponível em: . Acesso em: 22 maio 2014. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. MERLO, Álvaro Roberto Crespo; LÁPIS, Naira Lima. A saúde e os processos de trabalho no capitalismo contemporâneo: reflexões na interface da sociologia do trabalho e da psicodinâmica do trabalho. Psicologia & Sociedade, Cidade, v. 19, n. 1, p. 61-68, jan./abr. 2007. Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2014. PINTO, Geraldo Augusto. A máquina automotiva em suas partes:um estudo das estratégias do capital na indústria de autopeças.São Paulo: Boitempo, 2011.

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CONFLITOS POR TERRAS E EXPERIÊNCIAS DE VIDA Tatiane Karine Matos da Silva1 RESUMO: Esta reflexão tem como objetivo destacar algumas dimensões acerca dos conflitos por terras no município de cidade de Santa Helena-PR, entre as décadas de 1960-1990. Nesse sentido, busco destacar o caminho de pesquisa percorrido até o momento. A perspectiva é a de construir uma problematização sobre os embates entre diversos sujeitos e como eles alteraram seus modos de vida e suas relações com o trabalho. Discutir este processo conflituoso implica também na necessidade de pensarmos os diferentes sentidos atribuídos a terra pelos sujeitos que experimentaram essa dinâmica. Trata-se de um debate significativo ao pensarmos a movimentação e atuação dos trabalhadores no contexto de uma sociedade desigual e contraditória, cujas relações de poder têm como substrato a propriedade privada da terra. Palavras chaves: Trabalhadores, Santa Helena, Conflitos por Terras. A produção de memórias por vezes opera como forma de ressaltar ações de determinados sujeitos e grupos sociais e seus interesses. Um olhar, mediatizado pelo diálogo com fontes históricas, possibilita observar, no município de Santa Helena, a produção de memórias que buscam construir/legitimar determinada história para o referido município, ressaltado a perseverança de alguns sujeitos e o suposto desenvolvimento da cidade sede. Frente a essas indicações faremos análise de uma das matérias publicadas pelo Jornal Costa Oeste2 em comemoração aos 34 anos do município: Quem esperava que com o advento da Hidrelétrica de Itaipu a demanda de imigrantes fosse acabar com as pequenas cidades lindeiras se enganou. Estamos no mês de março de 1982. O pessimismo é geral. Diariamente caminhões carregados de mudanças deixam a região, muitos rumo ao desconhecido. Quem fica se divide entre a vontade de ir junto e a ansiedade de ver se formar aqui o lago da maior Usina Hidrelétrica do mundo. O medo, porém, é geral. As pessoas se perguntam, o que será de quem fica... Esta cena, que marcou muitos cidadãos dos municípios da região também foi vista no semblante dos moradores de Santa Helena. Aliás, os heróicos 1

Mestranda vinculada ao Programa de Pós Graduação -Nível Mestrado- da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico. (CNPQ). Orientador Dr. Davi Felix Schreiner. 2 O Jornal Costa Oeste está situado na Avenida Brasil -956, no centro de Santa Helena - Paraná. Possui circulação semanal todas as sextas-feiras nos municípios Lindeiros ao Lago de Itaipu, além de distribuição direcionada em Curitiba e Brasília, inaugurado em 1 de Janeiro de 1991.

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pioneiros que desbravaram o Oeste paranaense perceberam o município cair de quase 60 mil habitantes para pouco mais de 10 mil em pouco tempo. Estaria encerrado o ciclo da prosperidade? O tempo provou que não, quem olha o município hoje se depara com uma realidade de progresso e desenvolvimento3. A matéria ressalta, a partir de algumas formulações sobre o processo de construção do reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipu, o suposto desenvolvimento da cidade, que apesar de ter passado por tempos difíceis recuperou-se, construindo uma ‘’realidade de progresso’’. Não se limitando a isso, os editores do jornal não perderam a oportunidade de fazer referencias aos “pioneiros’’ do município. Esses são então citados como aqueles que visualizaram a diminuição da população, mas que ainda assim optaram por permanecer em Santa Helena.4. Desse modo, as indicações presentes na matéria elaborada através do Jornal Costa Oeste nos instigam a pensar não apenas a construção de uma determinada memória, mas também nos da margem para nos perguntarmos, qual é a função da memória? François Hartog, em seu trabalho: ‘’Memória, história,presente’’discute diversas problemáticas relacionadas ao tempo tentando pensar de que forma a história se relaciona com o mesmo. Nesse sentido Hartog nos indica que em determinados momentos o futuro, o passado ou ainda o presente são ressaltados pelo historiador, no entanto o autor nos diz que está aproximação ou distanciamento da historiografia/historiadores á um determinado tempo histórico não se da de forma simplista, pelo contrário esta pratica está diretamente ligada à função da memória em determinados momentos históricos. Nessa perspectiva de discussão Hartog nos ajuda também a pensar o papel da mídia na sociedade: A mídia, cujo extraordinário desenvolvimento acompanhou esse movimento que é, em sentido próprio, sua razão de ser, faz a mesma coisa. Na corrida cada vez mais acelerada para ao vivo, ela produz, consome, recicla cada vez mais palavras e imagens e comprime o tempo: um assunto, ou seja, um minuto e meio para trinta anos de história.O turismo é também um poderoso instrumento presentista: o mundo inteiro ao alcance da mão, em um piscar de olhos e em quadricromia5. 3

A prova do tempo. Jornal Costa Oeste, edição especial. Santa Helena 34 anos parabéns!!! Maio de 2001 (Editorial) 4 Sobre as experiências de desapropriação VER:SILVA, Tatiane, K.M.: Trabalhadores e proprietários na ‘’Terra da aguas’’: Conflitos, desapropriações e expectativas sobre os modos de viver em Santa HelenaPR (1960-2013). UNIOESTE-Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Marechal Candido Rondon, Centro de Ciências humanas, educação e letras- CCHEL. Colegiado de História. 2013. 5

HARTOG, François. Memória, história, presente In: Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo/ François Hartog-Belo Horizonte: Autentica editora, 2013 (Coleção História e Historiografia). p 148.

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As indicações do autor desconstroem qualquer áurea neutra que alguns querem elaborar para as diferentes formas midiáticas. A mídia, pelo menos grande parte dela, elabora a notícia de acordo com os interesses do grupo social que representa, ou do qual os donos do meio de comunicação fazem parte, permeando as relações de poder da sociedade local. De acordo com os apontamentos de Hartog, o tempo se tornou ao longo do movimento histórico uma mercadoria, desse modo, a mídia busca cada vez mais de forma imediata, produzir palavras e imagens minimizando conflitos e possibilidades de discussão presentes nas noticias que lançam desmedidamente. É essa a dinâmica que podemos observar a partir da matéria publicada no Jornal Costa Oeste. Ou seja, a necessidade de ‘’vender’’ a imagem de uma cidade supostamente ‘’perfeita’’ suprime o processo desigual e conflituoso das disputas por terras vivenciadas por diversos sujeitos em Santa Helena. Essa problemática nos permite pensar o passado, o presente, e o futuro como tempos históricos amalgamados e que se constituem em meio a relações de poder e interesses desiguais. São tempos históricos e como tal se constituem como campos de disputas, a partir dos quais são empreendidas diversas tentativas de construção de sentidos sobre os mesmos, seja à medida que se insere em uma dinâmica que visa o lucro, seja na medida em que se coloca como base nas disputas frente a construção de memórias. Desse modo, por vezes o historiador é responsável por construir determinados sentidos ao passado, ao presente e ao futuro, sendo assim responsável também pela construção de memórias. Frente a isso, dialogaremos agora com as indicações feitas pelo historiador José Augusto Colodel sobre a cidade de Santa Helena, na apresentação de seu trabalho, o autor indica as motivações que originaram seu livro (financiado pela prefeitura municipal de Santa Helena e pela Itaipu Binacional). Para ele: Não podíamos conceber que todo este passado tão rico em manifestações fosse simplesmente colocado no esquecimento. Alguma coisa precisava ser urgentemente feita para que nós, os filhos e as futuras gerações tivessem acesso a toda essa riqueza. Para nós é inconcebível que esta comunidade continue vivendo sem ter o menos conhecimento de todas as realizações das gerações que a antecederam. Somente tendo acesso a esse passado é que poderemos melhor compreender a realidade a que estamos submetidos. É através dele que poderemos ter uma melhor consciência do nosso papel político frente à sociedade atual e da importância da nossa participação.6

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COLODEL, José Augusto. Obragens e Companhias Colonizadoras, Santa Helena na História do Oeste Paranaense até 1960. Santa Helena: ASSOESTE, Ed. Educativa, 1988. p 15.

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De acordo com Colodel, a realização e publicação de seu trabalho se justifica pela necessidade de se contar a ‘’história’’ do município de Santa Helena. Nesse sentido, compartilho do posicionamento do autor quando se refere ao fato de que muitas das relações elaboradas no presente estão diretamente ligadas às relações elaboradas no passado, entendo que passado e presente não se anulam, mas se complementam em meio ao movimento histórico.7No entanto, quem são os trabalhadores e protagonistas com os quais Colodel dialoga e de que modo suas experiências são apresentadas? De forma geral, Colodel expõe alguns feitos daqueles que são entendidos por ele como os colonizadores do município, e que por isso mereceriam fazer parte da ‘’história’’ de Santa Helena. Porém, ainda que de forma limitada, seu trabalho nos permite discutir relações que ultrapassam o clima harmonioso que é por vezes ressalta. Os conflitos, quando aparecem no seu texto, são colocados como algo a parte, como curiosidades para quem tiver contato com sua obra. Refletir em torno da pratica do historiador e sobre as dinâmicas da história não significa dizer, porém, que os diferentes sujeitos não tenham consciência das relações que experimentam. É o que podemos perceber analisando as indicações de uma trabalhadora que entrevistei em 2012. Ela mencionou sobre suas práticas de trabalho ao longo de sua trajetória, assim: Pesquisadora: E dai a senhora começou trabalha no quê? Beatriz: De boia-fria, nóis arrendava terra dai plantava né? Uma terra... daí numa nóisarrendemo, plantemo soja, na outra nóisarrendemo, plantemo arroz... eu acho, e assim a gente vivia e trabaiava. Assim, pra gente se mantê naquela época [entre as décadas de 1960/ 1970] não tinha luz não tinha telefone, e ainda que a gente era saudável, guentava né? E hoje em dia, que nem agora do jeito que eu tô, ai não guento mais trabaia direito né? Mais tem que trabaia. Daí dois ano antes de nóis trabaia lá no Luzani [1985] o Elio já trabaiava pra ele. Daí depois nóis moremo10 ano lá. Daí lá melhorô a situação, só que eu não tinha a carteira assinada, mais trabaiva mais quase do que ele [marido], porque ele trabaiva com o caminhão (buscava porco, levava), porque nóis engordava pra ele [Luzani], engordava o gado no confinamento. Pesquisadora: Então vocês na trabalhavam na roça? Beatriz: Não, nóis engordava porco, gado, tratava as galinha. Assim, vaca de leite criava os bezerro, guacho de leite pra eles, e o Elio 7

Josep Fontana nos indica que nós historiadores devemos estar atentos para a função social da História. O autor nos diz que devemos observar os métodos e fundamentos teóricos que dão base a nossos trabalhos, sem esquecer que estes devem nos dar a possibilidade de discutir os problemas reais dos homens, dialogando com passado e presente em busca da construção de uma História de todos, ou seja, em busca da construção de discussões que deem conta das diversas e desiguais relações elaboradas ao longo do movimento histórico. VER: FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004.

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puxava ração e triturava o pasto. A única coisa que eu não fazia era sangrá a criação e triturá o pasto. O resto eu tratava, limpava chiqueiro, carneava tudo, ajudava a carneá, tirava o couro dos bicharedo. Daí deu que o Elio teve um problema na coluna dai nóis saimo de lá [1997]. Pesquisadora: Então vocês saíram de lá só por causa desse problema, se não vocês tinham continuado lá? Beatriz: É, se não tinha ficado lá, lá não era ruim, assim... só que daí ele não podia mais fazê força, pega no pesado. Daí saimo sem emprego, os direito dele... ele nem recebeu tudo. Pesquisadora: Mais mesmo assim ele não... por que ele não foi atrás? Beatriz: Porque igual, não adianta. Porque igual se tu vai na lei, tu não consegue mais arrumá emprego. Então deixa lá, é melhor deixa lá, porque como diz o outro, as veiz não é aproveitado, porque muitos puxa os patrão pra lei porque perdeu, as veiz perde tudo e não aproveita nada. Mais graças a Deus, deu certo, no começo aqui melhorô mais ainda, quando ele puxava aluno ele ganhava mais de dois salário e meio, mais por causa de politicagem tiraram os ônibus do patrão (as linha dos aluno) né? Daí o patrão diminuiu o salário né? Pra um salário e meio.8 Beatriz nasceu no Rio Grande do Sul, e veio para Santa Helena com sua mãe. Ao casar-se mudou para Capanema em torno de 1975, onde junto com o marido trabalhou por algum tempo nas terras do cunhando de Beatriz. Entre as constantes mudanças da família, em busca de melhores condições de trabalho. Em 1987, Beatriz e o marido foram trabalhar definitivamente para um proprietário de terras. Antes do trabalho com o Luzani, Beatriz indica que trabalhou como boia-fria, ou seja, trabalhava por dia para outros sujeitos e, concomitantemente, a família arrendava terras. Nesse sentido, ela fala sobre a motivação da família em deixar o trabalho na propriedade do senhor Luzani, - a doença do marido - entretanto, ela indica também que quando saíram de lá não receberam o que eles entendiam como seus direitos trabalhistas, possivelmente os desentendimentos entre a família de Beatriz e o patrão foram significativos para sua saída, ainda que o problema de saúde de seu marido também tenha contribuído para essa decisão. Ainda que Beatriz manifeste os receios com o enfrentamento judicial é possível aferir que nem por isso ela deixou de destacar a saída de trabalhadores do campo, ou mesmo o confronto por despejos de arrendatários e meeiros. O contato com trabalhos que se debruçaram sobre o estudo de ações cíveis, sugerem que essa realidade de confronto fez parte das experiências vivenciadas por trabalhadores como Beatriz e, possivelmente, foram decisivas para a decisão tomada por ela e sua família -de não mover um processo judicial 8

Beatriz pseudônimo. Entrevista realizada pela autora na residência de Beatriz em 03/04/2012.Santa Helena-PR.

312

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contra o patrão. Ao dialogar com a entrevistada, o interesse é não se limitar à interpretação que faz de sua prática, mas percebê-la no conjunto de determinados enfrentamentos que ocorriam naquele mesmo processo de transformação das relações no campo, envolvendo trabalhadores que são sujeitos ativos diante as situações que vivenciam em suas diferentes condições de classe. Nesse sentido, ao problematizar as práticas dos intelectuais nos indica que: Pensaram que sabiam mais do que as pessoas comuns e que esse saber lhes outorgava um só privilegio: comunica-los, se preciso fosse, impôlo a maiorias cuja condição social as impedia de ver com clareza e, consequentemente, trabalhar no sentido de seus interesses9. Pensar as relações elaboradas em sociedade, pensar a relação do historiador e da historia com a sociedade, não significa dizer que nós, historiadores, estejamos fazendo com os trabalhadores

tenham

consciência

das

dinâmicas

que

vivenciam,

estamos

sim

problematizando articulações sociais, mas de forma alguma lidando com sujeitos inconscientes ou inertes, mas sim como sujeitos que constroem e reconstroem suas práticas. Desse modo, entendo que a experiência da entrevistada, nominada por nós como Beatriz, é significativa ao pensarmos as tensões diante ao acesso a terra no município de Santa Helena, tensões que foram vivenciadas de diferentes formas e que irão ser problematizadas ao longo desta pesquisa.

9

SARLO, Beatriz. Intelectuais. IN: Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Tradução Sergio Alcides, 3aed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2004. p. 159

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SERTANEJOS DO CONTESTADO: A DISPUTA PELA MEMÓRIA DO MOVIMENTO E SEUS SUJEITOS Vagner Melo Figueiredo1 A Guerra do Contestado foi um conflito com múltiplos desdobramentos e pressões, cuja eclosão se preparava desde o final do período imperial brasileiro, durando de 1912 a 1916. O nome dado ao conflito tem suas origens na disputa pelo direito de administrar as terras existentes entre os estados do Paraná e de Santa Catarina, cuja discussão já vinha de longa data (desde a indefinição de limites quando da separação da província do Paraná da de São Paulo, em 1853). Em um Brasil recentemente republicano, com profundas diferenças sociais, as péssimas condições de vida dos sertanejos, permeadas pelo sentimento religioso, levaram ao conflito conhecido como Guerra do Contestado. Entre as pressões exercidas para o início do movimento podemos citar: a própria questão da divisa entre os Estados do Paraná e Santa Catarina; a questão da ocupação do solo para a produção agrícola; o investimento do capital estrangeiro na região (a Ferrovia São Paulo – Rio Grande e a madeireira e colonizadora Lumber); a política coronelista; e a religiosidade e o messianismo daquele povo. Não tendo atuado de forma preventiva, o Estado interveio para reprimir o movimento empregando tropas militares que, durante a campanha, conviveram com os sertanejos aos quais se contrapunham, proporcionando-lhes a oportunidade de testemunhar a respeito do modo de vida daqueles sujeitos, conforme fizeram Demerval Peixoto2 e Fernando Setembrino de Carvalho3 (as impressões destes militares serão mais detalhadamente estudadas ao longo do desenvolvimento da minha pesquisa de mestrado, procurando entender suas contribuições para a construção da memória do movimento e de seus sujeitos). Observando os acontecimentos a partir de seu local social, eles (e outros militares 4) escreveram sobre o

1

Mestrando do PPGH UNIOESTE Campus Marechal Cândido Rondon.

2

Oficial do Exército Brasileiro que participou da guerra e registrou suas impressões em obra literária. Oficial General do Exército Brasileiro, comandante da última expedição contra os sertanejos do Contestado, tendo registrado suas impressões a respeito do episódio em documentos oficias, próprios de uma campanha militar e em registro de suas memórias. CARVALHO Setembrino de. Memórias: dados para a história do Brasil. Rio de Janeiro. ____, 1950. 4 O prosseguimento da pesquisa permitirá, também, a análise de obras de outros militares contemporâneos à Guerra do Contestado e de períodos posteriores, bem como a perscrutação de documentos tipicamente militares produzidos durante a campanha militar e da revista A Defesa Nacional, criada em 1913 e que, existindo até os dias atuais, também abordou questões sobre o conflito. 3

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movimento, contribuindo para a construção de uma memória a partir da produção de documentos próprios da campanha militar e de obras literárias. Tendo feito a leitura, parcial, destas obras e destes documentos militares, observei algumas narrativas que declaram entender que o descaso com que o Estado tratou os sertanejos foi a principal causa que determinou o conflito. Quais seriam os sentidos dessas narrativas que construíram memórias? Em conformidade com esta análise, podemos observar na apresentação da obra Nem fanáticos nem jagunços: reflexões sobre o Contestado (1912-2012), escrita por seus organizadores Delmir José Valentini, Márcia Janete Espig e Paulo Pinheiro Machado, referindo-se à forma como foi construída a imagem dos agentes sociais que participaram do movimento, podemos identificar a afirmação de que: Poucas e fracas foram as vozes que se levantaram a favor destes agentes, em um sentido mais humanitário. Mesmo estas, em geral, viam-nos como vítimas de sua própria ignorância e de uma cultura vista como inapropriada, supersticiosa e superficial. Esse foi o caso de alguns (raros) militares, jornalistas, religiosos ou políticos. Prevaleceu, contudo, o discurso que associava os participantes do Movimento ao crime, à violência e a uma religiosidade “desviante” ou “doentia”. 5

Identifico um destes “raros” como sendo, o já citado, Demerval Peixoto, um jovem oficial do Exército brasileiro que participou de combates no Contestado. Na sua obra A Campanha do Contestado - Episódios e impressões, o autor nos conta que: Apesar do rigorismo do Paraná, a região contestada esteve sempre e se eternizará entregue ao despotismo dos chefetes locais, ao desvario de uma sorte inumerável de crimes mal apurados eao desmando de caudilhos temíveis, homiziados, fora da alçada da justiça das cidades; e tais têm sido os propulsores morais das causas que levaram à rebeldia, como recurso de defesa, os sertanejos ignorantes e espoliados pelos prepotentes.6

A análise do trecho da obra, escrita por alguém que viveu o fato histórico de perto, no “calor do momento”, nos transmite a primeira impressão de que naquela região era possível perceber a “ausência” do Estado, que deveria atuar como legitimador da ordem social e controlador dos conflitos de classe. Esclarece, ainda, que esta desordem social foi “causa moral” que levou ao movimento, e que esta seria uma reação de defesa dos sertanejos. Mas 5

VALENTINI, Delmir José; ESPIG, Márcia Janete; MACHADO, Paulo Pinheiro (org). Nem fanáticos nem jagunços: reflexões sobre o Contestado (1912-2012). Pelotas: Editora da Universidade Federal de Pelotas, 2012, p.7. 6 PEIXOTO, Demerval. Campanha do Contestado - I: raízes da rebeldia. Curitiba: Fundação Cultural, 1995, p. 18, grifo meu.

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em que outras muitas cidades do interior do Brasil, no início do século XX, não seria encontrado o mesmo quadro social e político? Podemos observar, também, que o autor divide, a grosso modo, duas categorias de participantes do movimento, quais sejam os “caudilhos temíveis” e “sertanejos ignorantes e espoliados pelos prepotentes”. Qual seria o peso maior deste discurso? Um reconhecimento das reivindicações sociais do movimento organizado pelos sertanejos espoliados, em decorrência da luta de classes ali estabelecida? Ou uma tentativa de sufocar a legitimação das reivindicações do movimento, atribuindo-lhe um caráter ligado à bandidagem trilhada fora dos caminhos da lei e, se assim for, conspirando com os espoliadores, contra os espoliados? Outros militares também tiveram esta visão “humanitária”, tais como o General Carlos de Mesquita e o Capitão Mattos da Costa7, cujas declarações já foram, pelo menos minimamente, citadas e exploradas por outros pesquisadores, em pesquisas e documentários sobre este assunto. Mas pouco se falou dos registros de Demerval Peixoto, que deixou uma obra repleta de suas impressões sobre o movimento, seus sujeitos e a guerra. Entendo que, no Contestado, o Estado atuou de forma a privilegiar os ricos em detrimento dos pobres, não conseguindo “controlar” o conflito de classes, conforme dito por Eric Hobsbawm:

O conflito de classes pode ser controlado mediante uma espécie de válvula de segurança, como em tantos tumultos plebeus urbanos nas cidades pré- industriais, ou institucionalizado como rituais de rebelião [...] ou por outras maneiras; mas às vezes não pode ser controlado. O Estado normalmente legitimará a ordem social mediante o controle do conflito de classes no âmbito de um quadro estável de instituições e valores, pairando ostensivamente acima e fora delas; e ao assim fazer, perpetua uma sociedade que de outro modo seria esfacelada por suas tensões internas. Esta é a teoria clássica de Marx para a origem e função do Estado. Existem momentos em que o Estado perde esta função e essa capacidade de legitimar a ordem, manifestando-se meramente como uma conspiração dos ricos em seu próprio benefício, causando a desgraça dos pobres.8

7

Carlos Frederico de Mesquita foi o primeiro general designado para comandar a repressão, com a experiência de ter participado da Guerra de Canudos (1896-1897). Após invadir a região de Caraguatá entre abril e maio de 1914, deu por encerrada a expedição federal no Contestado, alegando que o que ali se verificava era uma disputa política, sintoma da crise de poder entre os “coronéis”, responsabilizando os governadores do Paraná e de Santa Catarina pelo estado em que se encontrava a região. Terminada a primeira missão, o governo manteve pequeno efetivo militar no Contestado, comandado pelo capitão Matos da Costa (1875-1914), outro veterano de Canudos. Ele também reconheceu a crise política ali estabelecida, em especial a usurpação das terras dos sertanejos por parte dos coronéis. Matos da Costa denunciava os desmandos e as ilegalidades cometidos pelos “coronéis”, sobretudo a grilagem de terras e as violências praticadas contra os sertanejos. Sua morte numa emboscada, em agosto de 1914, foi o estopim para que o governo federal organizasse, em concordância com os dois governadores, uma grande expedição militar para reprimir de vez a “rebeldia” dos sertanejos do Contestado. 8 HOBSBAWM, Eric J. Sobre História. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013, p. 217.

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ANAIS DO EVENTO

Segundo Paulo Machado, podemos observar um campo aberto para pesquisa em fontes primárias constituídas por documentos militares produzidos durante a campanha do Contestado: Dispersa por um grande número de Instituições, as fontes escritas guardam, principalmente, os registros dos militares e governantes sobre o conflito. As principais fontes militares encontram-se no Arquivo Histórico do Exército, onde há 32 caixas com toda a campanha do Gen Setembrino (telegramas, relatórios, ofícios, autos de perguntas a prisioneiros, inquéritos policiais e militares, etc.) e no Arquivo do Comando da Polícia Militar de Santa Catarina, em Florianópolis (onde estão à disposição para pesquisa os Boletins diários do antigo Regimento de Segurança do Estado de Santa Catarina). Acompanhando estas fontes há a bibliografia inicial sobre a Guerra do Contestado, elaborada pelos militares que participaram da campanha. Nestes relatos, que podemos considerar como fontes primárias, devido ao envolvimento (embora alguns tenham permanecido apenas alguns meses na região) de seus autores, apresenta-se um Brasil rural atrasado, supersticioso, bruto e ignorante, tendo que ser reprimido pelas forças militares, representantes da ordem, da civilização, do progresso e da ciência. Além disso, em vários momentos, os militares estão preocupados em desmentir notícias divulgadas pela imprensa nacional sobre atrocidades praticadas pelo exército contra a população sertaneja, bem como em comprovar o “heroísmo” de determinadas colunas e batalhões, dirigidos por quem almejava carreira militar e política dignificada. De alguma maneira, os relatos militares são semelhantes a relatos de viajantes europeus por regiões “atrasadas”. Como analisa Edward Said, a literatura produzida pelos militares também possui características semelhantes a literatura colonial e imperial, onde “as regiões distantes do mundo não possuem vida, história ou cultura dignas de menção, nenhuma identidade digna de representação ... [o que é descrito] é indizivelmente corrupto, degenerado, irremediável”.9

A análise mais aprofundada das fontes do Arquivo Histórico do Exército (AHE), apontadas por Paulo Machado, podem esclarecer com mais detalhes qual foi a contribuição dos militares para a formação da memória do movimento. Quais seriam seus interesses ao contribuírem para a criação de uma memória a respeito daquela gente e daquele movimento? Teriam os militares qualificados todos, indistintamente, como “bandidos” e “criminosos”, ou havia o entendimento de que, ao menos, parte dos participantes do movimento estaria, realmente, lutando por melhores e mais dignas condições de vida? No caso da identificação deste discurso de existência de alguma legitimidade da luta do movimento, seria esta uma opinião sincera, baseada na observação de alguém que, de perto, observou as condições de vida daquela gente, ou faria parte de um discurso tendencioso que poderia ajudar no atingimento de interesses pessoais e/ou da corporação? 9

MACHADO Paulo Pinheiro. Um estudo sobre as origens sociais e a formação política das lideranças sertanejas do Contestado, 1912-1916. 2001. 514 f. Tese (Doutorado em História) – UNICAMP, Campinas, 2001, p. 31-33, grifos meus.

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Desta forma, de acordo com o já exposto, este texto (e minha pesquisa) se propõe a analisar a Guerra do Contestado como uma repressão ao movimento social surgido no início do século XX, na fronteira entre Paraná e Santa Catarina, percebendo as disputas pela memória e os interesses na construção de uma imagem, muitas vezes, criminalizada destes sertanejos; investigando a contribuição dos documentos militares confeccionados durante e após a campanha do Contestado e das obras escritas por militares que dela participaram (e de épocas posteriores) para a formação da memória daquele movimento social e dos seus sujeitos. A análise das impressões dos militares nos transmite a noção de que aquela região encontrava-se carente da presença do Estado, o qual deveria atuar como legitimador da ordem social e controlador dos conflitos de classe. A narrativa destes documentos apresenta alguns integrantes do movimento como bandidos e outros como trabalhadores rurais que, além de terem sido espoliados de suas terras, seriam pessoas ignorantes e incapazes de aceitar o mundo “civilizado" como seu modo de vida. Alguns pesquisadores consultaram os documentos do Arquivo Histórico do Exército, citados por Paulo Machado, porém sem que se tenha feito uma pesquisa mais profunda. Entre eles destacamos: o próprio Paulo Machado, Walter F. Piazza e Claudio Passos Calaza (coronel aviador). Márcia Janete Espig, no seu artigo Breve estudo sobre o Movimento do Contestado: A historiografia militar e o caso dos operários da EFSPRG (2007), apesar de tratar sobre obras de militares, não faz referência aos documentos do AHE. Neste aspecto de pesquisa nas fontes do AHE, destaque especial deve ser dado a Rogério Rosa Rodrigues10, que na sua tese de doutoramento, apresentada ao Programa de Pósgraduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em 2008, demonstrou ter realizado uma análise mais profunda daqueles documentos primários, porém voltando sua atenção para os procedimentos e práticas dos agentes militares durante o conflito do Contestado. Por muito tempo o estudo do movimento do Contestado refletiu o sentimento preconceituoso sobre a população rural do Brasil de uma forma geral. Muitas denominações pejorativas como “fanático”, “jagunços”, “ignorantes” e outras, indicavam a existência de um preconceito étnico contra negros, indígenas e mestiços; como também um preconceito urbano

10

RODRIGUES, Rogério Rosa. Veredas de um grande sertão: a Guerra do Contestadoe a modernização do Exército Brasileiro. 2008. 430 f. Tese (Doutorado em História Social) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.

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e de classe contra a população rural como um todo. O distanciamento crítico do movimento invertia o entendimento da situação social apresentada, deslocando a pressão pela ocorrência do movimento para o poder público e para as questões de limites, justificando ser aquela uma região cujos moradores eram vítimas da falta de escolas, ou da instrução religiosa regular, e até mesmo da falta de infraestrutura mínima que lhes proporcionasse uma vida mais digna. Ainda assim, suas ações de luta eram vistas como criminosas e baseadas em uma religiosidade doentia e supersticiosa11. A partir da análise parcial das obras de Demerval Peixoto e de Setembrino de Carvalho, bem como de documentos militares confeccionados durante a repressão do movimento, entendo que os militares que participaram da guerra contribuíram para a construção de uma memória criminalizante. A imprensa também contribuiu para a construção de uma memória, que pode ser interessante para o Estado, na medida em que justificaria as ações de violência estatal contra um grupo de “ignorantes” e “fanáticos”. Nos dizeres de RicardVinyes 12, a memória construída pelo Estado seria a “boa memória”. A revista A Defesa Nacional, fundada em 1913, é um periódico de assuntos militares e de estudo de problemas brasileiros, administrada pela Biblioteca do Exército, existente até os dias de hoje. Na sua edição de número 13, em 1914, ao noticiar pela primeira vez as questões ligadas ao Contestado, assim publicava: [...] os surtos sangrentos dos fanáticos vão se assemelhando à luta inglória de Canudos, onde uma grande parte do nosso Exército sucumbiu aos tiros certeiros dos jagunços. Desde o primeiro levante dos sertanejos do Sul, chefiados pelo misterioso monge José Maria, que se tem procurado investigar as origens desses movimentos, atribuídos por uns ao fanatismo religioso, por outros, ao banditismo bandoleiro e repasse de populações incultas e, até mesmo, a uma vindicta dos pequenos proprietários de terras das antigas colônias militares, espoliados por concessão de seus territórios, feitas a mandões políticos pelos governantes dos dois Estados. 13

Percebo que a comparação estabelecida entre Contestado e Canudos, citando os reveses sofridos pelo Exército na repressão ao movimento social nordestino, se reveste de uma intenção de se justificar uma ação mais violenta, evitando a morte de parte do “nosso 11

A análise completa dos documentos militares produzidos durante a guerra mostrará que muitas destas visões preconceituosas e deslegitimadoras partiram dos juízos de valores feitos pelos militares que se opuseram ao movimento. 12 VINYES, Ricard. El Estado y la memoria: Gobiernos y ciudadanos frente a los traumas de lahistoria. RBA Livros, Espanha, 2009, p. 25. 13 A DEFESA NACIONAL. Rio de Janeiro: s.n., n.13, p. 1, Out. 1914.

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Exército”. Pode inferir-se que a revista identifica, ainda que minimamente, pressões de origem política e econômica para o surgimento do movimento; mas não descarta a possibilidade de ter sido originado por questões de “fanatismo religioso” e de “banditismo bandoleiro”. Faz-se necessária uma análise mais profunda nesta e em outras edições, a fim de investigar até que ponto a revista entende a importância do “fanatismo” como uma das causas do movimento e quem seriam os “bandidos bandoleiros”14. Nesta mesma edição (aliás, na página seguinte), podemos observar um discurso mais contundente e preconceituoso: Uma vez iniciada a luta, não haverá mais lugar para paliativos nem para concessões, que só servirão para enfraquecer a ação da tropa e desprestigiar o Exército. Enquanto os fanáticos não pedirem a paz e lealmente depuserem as armas, a ação da tropa só pode ser a consecução de seu objetivo militar: destruir o inimigo.15

A

revista

declara,

de

forma

objetiva,

que

os

sertanejos,

pejorativa

e

preconceituosamente chamados de “fanáticos”, serão encarados como inimigos; e como tal devendo ser destruídos; colocando o prestígio do Exército acima das questões sociais, timidamente levantadas nas linhas anteriores do periódico. Entendo que este discurso pretende somar argumentações para uma justificativa da ação violenta do Estado. De tudo isso, podemos perceber que, embora alguns militares tenham acusado os políticos locais de contribuir para que os sertanejos se rebelassem contra a ordem estabelecida, faltava-lhes a capacidade de enxergar racionalidade por trás da rebeldia. Não compreendiam a lógica da organização sertaneja nem reconheciam suas reivindicações firmadas na crença compartilhada nos monges e santos. Ainda hoje permanece o uso de um vocabulário depreciativo para se referir aos sertanejos: “fanáticos”, “facínoras”, “bárbaros”, “ignorantes”, etc. A análise dos documentos do AHEx também pode nos dar pistas sobre como a componente religiosa pressionou a eclosão do movimento, esclarecendo a significação e a importância da crença religiosa no modo de vida daqueles sujeitos e como os militares entendiam aquela prática religiosa.

14

Os exemplares da revista A Defesa Nacional podem ser encontrados no Arquivo Histórico do Exército (AHE), na cidade do Rio de Janeiro. No prosseguimento da minha pesquisa pretendo ampliar as análises a respeito de suas publicações referentes à Guerra do Contestado, procurando entender seus significados e sua contribuição para a construção da memória do movimento e de seus sujeitos. 15 A DEFESA NACIONAL. Rio de Janeiro: s.n., n.13, p. 1, Out. 1914.

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A coexistência, aparentemente “pacífica” entre o “catolicismo rústico” do interior brasileiro16 e ortodoxo pode ser percebida no depoimento de Manoel Libório, um português de 38 anos de idade, prestado às autoridades policiais militares, no dia 24 de outubro de 1914, na Vila de Canoinhas, por ter sido preso por suspeita de participação no movimento. Ao descrever um dos locais onde poderiam ser encontrados os “fanáticos”, ele faz uma observação a respeito da existência de duas igrejas: Perguntado sobre o que sabia a respeito desses lugares, Respondeu que: julga ser de duas léguas igualmente a distância de Pinhares a Campina Vieira, que do lado direito da estrada seguida existem cerca de cem habitações ocupadas pelos fanáticos e suas famílias, que do lado esquerdo a cerca de cem metros da estrada fica a casa do aludido Aleixo, que igualmente deste lado tem duas igrejas sendo que uma propriamente dentro do Povoado, e a outra menor e dedicada a José Maria ‘monge’.17

A presença do “sagrado” no movimento social do Contestado e a associação feita pelos caboclos de melhores condições de vida com a época da Monarquia brasileira, explica o fato daqueles sujeitos acreditarem estar participando de uma “guerra santa”. Ao se tomar os inquéritos militares como fontes, faz-se necessário refletir sobre a elaboração de sua escrita, por constituir-se numa linguagem específica, sendo sua problematização fundamental para identificação de seus significados. Pretendo realizar esta tarefa tendo como referências metodológicas a pesquisa e a obra de Vagner José Moreira.18 Marilena Chaui chama a atenção para a dicotomia entre a “religião oficial” e a “religião popular”, dizendo que Em decorrência do verde-amarelismo, dos populismos, do autoritarismo paternalista, frequentemente encontramos no Brasil uma atitude ambivalente e dicotômica diante do popular. Este é encarado ora como ignorância, ora como saber autêntico; ora como atraso, ora como fonte de emancipação. Talvez seja mais interessante considera-lo ambíguo, tecido de ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambiguidade que o determina radicalmente como lógica e prática que se desenvolve sob a dominação. 19

Observo que, no caso do messianismo do Contestado, pelo menos nas interpretações

16

Nos dizeres de Ivone Cecília D´Ávila Gallo (GALLO, 1992, p. 9). Inquérito Policial Militar. Manoel Libório, sem número, de 24 de outubro de 1914, Classificação: guerra do Contestado, caixa 01, pasta 02, Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro – RJ, grifo meu. 18 MOREIRA, Vagner José. O levante comunista de 1949: memórias e histórias da luta pela terra e da criminalização dos movimentos sociais de trabalhadores no nordeste paulista. Cascavel: EDUNIOESTE, 2012. 19 CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência. In Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 123-124. 17

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iniciais, feitas, principalmente, pelos militares participantes das batalhas, esta ambivalência pendeu mais para o lado da ignorância e do atraso, do que para o lado do saber e do desejo de emancipação; iniciando aí a visão preconceituosa do movimento. A questão religiosa deve ser entendida como componente da cultura daquele povo do Contestado e, como tal, não deve ser separada das questões políticas e econômicas ou serem colocadas em uma relação de segunda ordem ou de dependência em relação às outras questões.20 Mesmo antes de terminar a pesquisa, já é possível perceber que os primeiros documentos e obras escritos sobre o movimento estão repletos de uma visão preconceituosa e discriminante, evidenciada pelos militares que primeiro escreveram sobre o tema. Mesmo aquelas opiniões que se levantaram a favor daqueles sujeitos, percebiam-nos como vítimas do seu distanciamento da “civilização” e de uma cultura vista como “atrasada” e supersticiosa. O Contestado foi um movimento em que a população rural pobre do Brasil tentou romper com uma tradição de dominação e exploração no país. Ao anuncia-los como “fanáticos”, além de ser uma forma muito simples de se apresentar o problema, assume-se uma postura preconceituosa, pois aqueles sujeitos aliaram uma cultura local a um desejo de mudança no país. Eles não perderam a guerra. Tanto é verdade que estamos falando neles até hoje

20

WILLIAMS, Raymond. Notas sobre o marxismo na Grâ-Bretanha desde 1945. in Cultura e Materialismo. São Paulo: UNESP, 2011, p. 331-336.

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RELIGIOSIDADE E RESISTÊNCIA DOS ÍNDIOS AVÁ- GUARANI NO OESTE DO PARANÁ Vanessa Bueno Arruda1 Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir sobre os conflitos dos indígenas Avá- Guarani no município de Guaíra- PR. Tendo como embasamento a pesquisa de iniciação científica. A história dos indígenas Guaranis do oeste do Paraná é marcada por genocídios. Desde a colonização espanhola os indígenas vêm sofrendo com expulsões de suas próprias terras, mortes e perseguições, sendo que estes fatos ocorrem até o tempo presente. Uma característica forte da cultura e da religiosidade indígena é sua relação com a natureza, através de seus costumes e rituais, tornando o território onde vive em um lugar sagrado (Rosendahl, 2008). “Para os povos indígenas, a terra é mãe. As árvores são os cabelos, os rios são o sangue que corre em suas veias.” (CIMI, 2012). Durante a pesquisa de iniciação científica foi possível visitar algumas aldeias, como a Tekohá Y´hovy, Tekohá Porã e Tekohá Mirim. Em todas as aldeias a situação é precária, há falta de luz elétrica, falta de saneamento básico, as escolas indígenas não possuem uma estrutura adequada. Outro problema que vêm sendo enfrentado pelos guaranis é o preconceito. Muitos indígenas foram demitidos de seus empregos por conta do boato dos grandes fazendeiros de que “os índios iriam tomar as terras de Guaíra até Foz do Iguaçu”, como se o índio fosse uma ameaça para a sociedade. Outro fato ocorrido foi as perseguições, atropelamentos de indígenas, e até mesmo o assassinato de Bernadino Coládio Ortega da aldeia Tekohá Mirim, caso que não foi investigado e parece ter sido esquecido. Portanto percebe-se o descaso com os povos indígenas, além da falta de compreensão sobre o real objetivo dos guaranis, que é a demarcação de terras, para que possam manter sua cultura. Palavras- chave: Religião, conflito, demarcação. A história dos índios Avá- Guarani é marcada por perseguições, mortes, expulsão de suas próprias terras, e preconceito diante de sua cultura. Os mesmos acontecimentos podem ser percebidos nos dias atuais, em que os indígenas do oeste do Paraná, mais precisamente no município de Guaíra- PR estão sendo alvo da discriminação e do preconceito, por conta de estarem reivindicando a demarcação de terras na região. Mesmo com todos esses acontecimentos ao longo de sua história, o Guarani mantém a esperança até o tempo presente, mostrando que ainda são fortes, buscando “a terra sem males” para dar continuidade a sua cultura. Na colonização espanhola, os índios foram expulsos de suas terras. O território Guarani se transformou em um território de interesses. Na colônia espanhola destaca-se conforme Shallemberger (2006) a encomienda, ou seja, os indígenas trabalhavam de força

1

Acadêmica do terceiro ano de Geografia – Universidade Estadual do Oeste do Paraná- UNIOESTE

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forçada, como conseqüência os indígenas teriam que abandonar seus costumes, para obedecer às ordens dos espanhóis. As missões jesuíticas iniciaram segundo Gregory (2008) com o objetivo de acalmar os conflitos entre espanhóis e indígenas. No espaço missioneiro os índios eram ensinados nas atividades para o desenvolvimento das reduções. Entretanto, teriam que deixar de lado a sua própria religião e costumes tendo adotar o cristianismo, porém houve resistências de alguns dos povos indígenas com o intuito de preservar sua cultura. A cultura Guarani é marcada por ter uma relação entre o homem e a natureza. Nos seus rituais o Xamã, conforme Gregory (2008) é um sábio que interpreta os enigmas da natureza e tem o poder da cura e da adivinhação. Portanto, os índios consideram seu local de sobrevivência como um lugar sagrado, repleto de símbolos e “hierofanias”, que Eliade (2011) discute em sua obra como a manifestação do sagrado num objeto qualquer, como em uma pedra, uma árvore, entre outros. Eliade (2011) destaca o conceito de “cosmogonia”, sendo a criação de seu próprio universo. Podendo ser comparado com a cultura Guarani, que constrói seu próprio universo, seu próprio mundo através de seus costumes, símbolos e rituais. Eliade (2011) destaca ainda que É importante enfatizar que, nesses encantamentos mágicos de cura, os mitos acerca da origem dos medicamentos estão sempre interrelacionados com o mito cosmogônico. [...], nas práticas de cura dos povos primitivos, como aqueles que se baseiam na tradição, o medicamento só alcança eficácia quando se invoca ritualmente [...]. (ELIADE, 2011, p. 75, grifo do autor). Para os guaranis, o mundo significado vai se constituindo na medida em que acontece a comunicação entre o indivíduo e a divindade. “No universo da vida social, as forças da natureza interagem com os homens” (SHALLENBERGER, 2006, p.25). Suas superstições e o poder da cura nos rituais guarani interagem com a força da natureza pela manifestação de seus deuses. “[...] no recinto do sagrado, torna-se possível a comunicação com os deuses [...] deve existir uma ‘porta’ para o alto, por onde os deuses podem descer à Terra e o homem pode subir simbolicamente ao céu” (ELIADE, 2011, p. 29). Percebe-se que os guaranis constroem sua própria identidade em um determinado espaço de convivência através do modo de viver, pelos seus símbolos, seus cantos e rezas, tornando-se um lugar sagrado. “Os lugares sagrados são também fornecedores de regras e significados com que os grupos envolvidos encontram sentido para as suas práticas religiosas” (ROSENDAHL, 2008, p. 68).

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Esta ligação entre indígenas e natureza é chamada por Yi-Fu Tuan de “topofilia” que significa “(...) todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material (...) sentimentos que temos para um lugar, por ser, o lócus de reminiscência e o meio de ganhar a vida” (TUAN, 1980, p. 107). Deste modo compreendemos que há uma reciprocidade entre o homem e a natureza. “Lugares e símbolos adquirem profundo significado, através dos laços emocionais tecidos ao longo dos anos.” (MELLO 2008, p. 167). Atualmente indígenas do oeste do Paraná lutam pela demarcação de terras. Há um sentimento pelo local de tal modo que lhes trazem lembranças e esperanças de retornar ao ambiente que foi de seus antepassados. Evaldo Mendes da Silva (2008) ao relatar sobre a história dos Guarani que pertencem ao subgrupo Mbya e Nhandéva, verifica que desde seus antepassados, os indígenas são alvo de preconceito e exploração. O mesmo ocorre com os Avá Guarani do município de Guaíra e em várias regiões do Brasil. Silva (2008) questiona por que, apesar de todas as dificuldades, os Guarani continuam caminhando? Na cosmologia Guarani tudo o que é vivo tem movimento: Brancos, índios e animais caminham sobre a Terra, os deuses andam sobre estradas divinas no céu, as almas dos mortos e dos recém- nascidos vão e vêm constantemente entre os caminhos que ligam os céus e a Terra e os fantasmas dos que morreram (e que na Terra viveram uma “vida má”) andam pelos mesmos caminhos que caminharam em vida e assustam os vivos. Tudo que se move tem vida. É por isso que os Guarani continuam caminhando.” (SILVA 2008, p. 40). Sem a terra, não há vida, pois “a terra é um repositório de lembranças e mantém esperança.” (TUAN 1980, p.111). Portanto os Guarani caminham e têm a esperança de retornar ao seu local mítico. “Entre o grupo e a Terra, os laços são renovados a cada dia pela circulação da vida que vai do homem para as terras, as plantas e os animais, e que vem da comunidade.” (DARDEL 2011, p. 56). O objetivo geral na pesquisa de Iniciação Científica foi analisar a relação espiritual que a tradição guarani estabelece entre o homem e o ambiente onde vive. Um dos objetivos específicos foi discutir a presença da relação mítica que se estabelece entre o homem e a terra em civilizações ancestrais, pois os Guaranis buscam a terra que eram de seus antepassados, considerando uma “terra sem males”, ou seja, a busca da terra livre e sagrada, que seus parentes do passado acabaram sendo expulsos deste local. Outra discussão que foi feita foi a territorialização jesuítica imposta aos Guaranis, avaliando as consequências dessa ação, ou seja, analisar se a cultura guarani foi modificada com as missões jesuíticas. Outro ponto foi identificar as formas de religiosidades ainda 325

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presentes e praticadas no âmbito da cultura guarani e perceber a religiosidade como uma forma de resistência para garantir a demarcação de terras e a sua sobrevivência. Durante a pesquisa de iniciação científica foi necessária fazer algumas leituras, análise e discussões do material bibliográfico, participação de eventos que abordavam sobre o tema da pesquisa, sendo possível entender o processo histórico dos guaranis, até o tempo presente. As visitas às aldeias foram importantes para se verificar em loco a situação vivida pelos indígenas. Além da aldeia Tekohá Y´hovy, visitou-se as aldeias Tekohá Porã e Tekohá Mirim, todas localizadas no município de Guaíra- PR. Em todas as aldeias que foram visitadas a situação é precária. Nas escolas não há uma estrutura adequada. Na aldeia Tekohá Porã, as pessoas estão passando fome. Na Tekohá Mirim não há luz, a caixa de água está vazia e por isso utilizam a água sem tratamento diretamente do Rio Paraná. As várias perseguições e conflitos culminaram com o assassinato do indígena Bernardino Coládio Ortega da aldeia Tekohá Mirim. Houve também caso do estupro de uma indígena, atropelamentos e o suicídio de três indígenas adolescentes por conta do preconceito gerado na região oeste. Um deles foi chamado de “invasor” por um colega de escola, outro caso foi de uma assistente social em que falou para o indígena que “ele não conseguiria emprego mesmo então era melhor que morresse de uma vez”, outro adolescente se enforcou em uma cerca de arame farpado.2 Percebemos, portanto o descaso com os povos indígenas através desse preconceito que gerou na região. Percebe-se que o índio reivindica por um pedaço de terra que está sendo utilizado para a produção do agronegócio, um dos motivos que leva a ter um conflito violento, já que os indígenas não têm por objetivo produzir para o agronegócio e sim para sua sobrevivência. Estes conflitos são mais perceptíveis a partir de 2012, quando os indígenas começam a se organizar e a se manifestar publicamente a luta pelo direito a terra. Na cultura capitalista, todo trabalho que não gera lucro não é valorizado, perceptível no discurso do desenvolvimento e do progresso. “De fato, a fronteira capitalista é um fenômeno não somente espacial e histórico, mas de confrontação cultural e ideológica e de expansão econômica.” (SILVA, 2011, p. 285). Com esses conflitos gerados no município de Guaíra, foi criada a ONGDIP (Organização Nacional de Garantia do Direito de Propriedade), sendo esta uma ONG anti-

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Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/07/guaranis-do-parana-resistem-apreconceito-enquanto-exigem-demarcacoes-na-fronteira-com-paraguai6739.html?fb_action_ids=658405550914957&fb_action_types=og.likes. Acesso em setembro de 2014.

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indígena organizada pelos ruralistas de Guaíra (PR) em defesa da propriedade privada. Esta entidade possuí um grupo no facebook em que postam fotos e informações sobre “os indígenas que estão invadindo as propriedades”. Destaca assim quem faz parte do conflito, de um lado o índio que vê a terra enquanto algo sagrado e de uso comum. E de outro lado, a terra vista enquanto mercadoria. A reivindicação tem gerado e ainda gera diferentes discursos na mídia, no meio político e na sociedade de modo geral. Diante dessa problemática os discursos são associados à identidade e a cultura, muitos deles permeados de velhos preconceitos no sentido de afirmar quem teria ou não teria direito a terra, como se a reivindicação indígena fosse um ato criminoso. Na participação de um dos eventos durante em março de 2013, durante a pesquisa ocorreu uma mesa com o tema “Conflitos territoriais entre indígenas e proprietários de terra no oeste do Paraná”. Estiveram presentes na mesa o antropólogo da FUNAI Diogo oliveira, o cacique Ilson Soares e a vice líder Paulina Martines da aldeia Tekohá Y´hovy. Nas falas o antropólogo Diogo Oliveira ressaltou que desde a colonização na região oeste do Paraná, as áreas indígenas nunca foram regularizadas, porém os índios estariam resistindo até hoje. O cacique Ilson Soares contou que só em sua aldeia são 20 famílias que estão lutando pelo direito a terra. Mesmo sofrendo discriminações o guarani quer preservar sua cultura. Paulina complementa que se houvesse mais aceitação dos índios na sociedade a disputa não seria tão grande. Fala-se tanto em diversidade no país, entretanto a cultura indígena parece não ser devidamente valorizada. Na participação do ritual Guarani na aldeia Tekohá Y´hovy, foi importante ver de perto seus rituais e aprender um pouco mais sobre a cultura Guarani. Percebemos que há uma influência jesuítica, pois em frente a sua casa de reza há um pé de Cedro em forma de cruz, símbolo do cristianismo. Contudo, há uma forte presença da cultura guarani através de seus cantos, suas rezas e seus rituais de cura. O Xamã e a líder de reza Paulina praticam o ritual Guarani diariamente, com a participação de todos os indígenas da aldeia. Todos pedem a “Nhanderu” forças para que continuem lutando para a demarcação de terras. Dia após dia os povos indígenas são ameaçados de expulsão e vivendo de forma precária. Percebeu-se, portanto que os indígenas Avá-Guarani necessitam de ajuda para que se resolva a demarcação de terras, além de necessitarem de apoio para que se desconstrua o preconceito gerado na região, que como já se afirmou, tem gerado diversos conflitos culminando com a morte de Bernadino, caso que parece que já foi esquecido. 327

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Entendeu-se que os índios guaranis não querem ser entraves aos projetos agrícolas da região, apenas desejam um lugar para que possam prosseguir com o pouco que resta de sua cultura. Através de seus rituais percebeu-se a importância da casa de reza no contexto da preservação da cultura guarani. É o lugar onde se pode rir, chorar, cantar e pedir forças a “Nhanderu” para continuar lutando pelos objetivos sem perder a esperança. Pois, “sem tekohá não há teko”, ou seja, “sem terra não há vida”. A tekohá na língua indígena significa o local onde se reproduz o modo de ser guarani, não é qualquer terra é a terra em que eles têm uma relação de pertencimento, onde viveu seus antepassados. Tekohá também é a terra. Pertencimento, local de vivência. Teko- modo de ser guarani, modo de vida e cultura guarani.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DARDEL, Eric. História da Geografia. In: DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da

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realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: WMFMartins Fontes, 2011. GREGORY, Valdir; SCHALLENBERGER, Erneldo. Guaíra: um mundo de águas e águas e histórias. Marechal Cândido rondon, Germânica, 2008. MELLO, João Baptista ferreira de. Simbolos dos lugares, dos espaços e dos “deslugares”. Espaço e Cultura. Revista da NEPEC/Depto. Geografia Humana/Instituto Geografia da UERJ. Rio de janeiro, edição comemorativa, 2008. ROSENDAHL, Zeni Os Caminhos da construção teórica: ratificando e exemplificando as relações entre espaço e religião. In: ROSENDAHL, Zeny; CORREA, Roberto Lobato (orgs.). Espaço e cultura: pluralidade temática. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2008. SCHALLENBERGER, Erneldo. A integração Prata no sistema colonial. Toledo: Editora Toledo, 1997. SHALLENBERGER, Erneldo - O Guairá e o espaço missioneiro: índios e jesuítas no tempo das missões rio-platenses / Cascavel- Pr: Coluna do saber, 2006

SILVA, Evaldo Mendes da. Andando no tempo dos Guarani. In: COLOGNESE, Antonio (org.) Transformações: Ensaios sobre culturas e sociabilidades. Porto Alegre: Escritos Editora, 2008. SILVA, Carlos Alberto Franco da. Fronteira agrícola capitalista e ordenamento territorial. In: SANTOS, Milton... [et al]. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro. Ed. Lamparina, 2011.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.

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