Carta d\'Amor - efêmero feminino

October 7, 2017 | Autor: Clarisse Fukelman | Categoria: Fernando Pessoa, Literatura Portuguesa, Eça de Queirós, Figuras De Amor
Share Embed


Descrição do Produto

Carta d'Amor - O efêmero feminino FRADIQUE Mendes - Editora Garamond Por Clarisse Fukelman - professora de literatura e roteirista Pela cartilha de Fernando Pessoa, "toda carta de amor é ridícula". Claro que uma afirmação tão categórica merece um desconto - talvez seja um blefe, uma vez que ser fingidor faz parte do jogo do poeta. Ou tem a ver com a própria história de Pessoa, que não viveu grandes paixões (conforme se apurou até hoje) para ter tantas certezas nesta seara. Mesmo assim há que reconhecer uma ponta de verdade - o estado de enamoramento e a tolerância dos amantes com o abuso do lugar comum beiram o ridículo e a pieguice, tudo sob o álibi do mito do amor romântico. O que dizer, então, de cartas de amor de alguém que nunca existiu? Pois Carlos Fradique Mendes, poeta da modernidade e autor destas Cartas d'amor, nasce homem feito, graças à pena e imaginação de artistas portugueses, em meio a acaloradas discussões políticas. Isso se dá em 1868, com a participação do jovem escritor Eça de Queirós. A diferença é que para Eça virou uma idéia fixa e um projeto particular na década de 1880. Ao dar longevidade ao personagem e transformá-lo no suposto autor de A capital, O mistério da Rua das Flores, entre outros, acontece o esperado: a criatura vence o criador, ganha vida própria e sua real existência passa a ser um detalhe. Vinte anos depois, morando em Paris, Eça publica em jornais a Correspondência deste ser criteriosamente modelado por ele. Em 1900 (ano da morte do escritor) um livro reúne a biografia de Fradique e suas cartas, ambas com o inconfundível tom queirosiano no texto rico em reflexões, humor e senso crítico. A atual edição das Cartas d'amor traz boas novidades. O material havia sido publicado na imprensa lisboeta e fluminense (Gazeta de Notícias, 1892). Mas, pela primeira vez, o romance entre ele e Clara aparece em seqüência, sem omissão da terceira carta e antecedido da correspondência com Madame de Jouarre, espécie de cupido do casal. O enredo do mini romance ganha forma, mais de um século depois da morte do escritor. Além disso, a publicação vem acompanhada de um minucioso ensaio de Décio Luís, que comenta com muita propriedade algumas facetas da correspondência, reproduz trechos de sua biografia , especialmente a que trata de um lado marcante de Fradique, e que Eça chama de efêmero feminino. E agrega outros trechos pertinentes à compreensão da trama amorosa. Alguns vêem na riqueza de Fradique (como nos personagens Carlos Maia e Jacinto) uma catarse de Eça, que a vida inteira navegou em mares turbulentos no que toca à estabilidade financeira. No todo, identificam-se traços físicos, psicológicos e sociais de Eça e seus amigos. Mas, desvencilhada a condição primeira de alter ego do grupo, e, depois, do próprio Eça, Fradique Mendes se emancipa para integrar a galeria dos grandes personagens criados pelo escritor. Além de dinheiro, talento, boa formação intelectual, herói de guerra (The Portuguese Lion) com Garibaldi, exímio conhecedor de grego, Fradique transita entre políticos e gente famosa. As Cartas deixam entrever seu especial deleite em olhar decotes e arrebatar corações, mentes e corpos de mulheres da sociedade, repetindo o forte componente erótico da literatura de Eça de Queirós. Mas herda mais do pai - o incansável olhar inquiridor do sentido da existência, traduzida, à moda de D. Juan, na eterna e frustrada busca da plenitude através da paixão. Como em outras buscas do autor de O primo Basilio, paira sempre o fantasma do fracasso. A primeira carta relata as circunstâncias em que avista a futura amante, numa atmosfera fútil e rica dos salões franceses. Nas linhas iniciais, a descrição feita pelo dândi

apaixonado pode sugerir o temerário terreno do ridículo, algo da verborragia acaciana: a mulher, de "uma graça altiva e ligeira de deusa e de ave", parece sair de um "velho castelo de Anjou". Mas a maturidade de um dos maiores literatos portugueses não permitiria tal escorregão. Cada escritor (Dante, Goethe, Garcia Marquez, Shakespeare, Sheridan, Laclos, etc.) encontrou seu jeito de sobrepujar o campo minado da representação do amor. O jeito de Eça foi da contenção peculiar ao moralista. Se o termo assusta, se traz a sombra de uma gramática burguesa do amor - é vil e ledo engano. Moralista, sim, no sentido de adotar a ironia como instrumento de radiografia social e expressão das contradições do ser humano. Não há fatalidade, mas negatividade. Não há lição de vida prêt-à-porter, mas humor refinado. Assim é quando resolve discorrer sobre Jesus e Buda, contrapondo com brilhantismo as duas personalidades religiosas. Ou quando reserva algum cinismo e uma pitada de surpresa no desenlace da história epistolar. Se algum leitor anda em busca da perfeição idealizada do amor, mereceria refletir antes de se lançar às páginas do livro de pequeno formato. Mas o Fradique-Eça mostrará logo que vale a pena. Quem não gostaria, diante da queixa da amada por se distrair com estrelas e colinas ao lado dela, ouvir a resposta: "não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando, nas coisas, a beleza inesperada que tu sobre elas derramas". Parafraseando Pessoa: ridículo mesmo é quem nunca escreveu carta de amor.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.