Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira de 7 de abril de 1928

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Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira de 7 de abril de 1928 ANDRADE, Mário. S. Paulo, 7-IV-28. Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, 07/04/1928. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. Transcrição e notas: Jorge Vergara.

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S. Paulo, 7-IV-28i Manú, recebi a carta. Está tudo certo. Ou por outra, tem certos argumentos nela irretorquiveis. Apenas não vejo em quê a minha chamada por você de “delicadeza moral”ii possa prejudicar uma integridade absoluta de amizade entre nós dois. Aliás nem você fala isso propriamente porêm pela carta de você se percebe que você ainda tem um conceito de amizade que é deveras uma ideologia, no sentido mais depreciativo desta palavra. Uma, nem sonho não é, uma sonanbulancia. Pra não estar repetindo com outras palavras que possam vir menos felizes, me deixe citar pra você um pedacinho do “Turista Aprendiz” no dia em que passo[u] por Pernambuco: “A faculdade que mais enobrece o homem, [que] o divinisa é a constancia no perdão de que deve ser feita a amizade. Constancia no perdão que carece não confundir com indiferença pela falta. Toda camaradagem é feita de traições pequenas, a mais frequente e quotidiana das tais sendo a observação do companheiro e a recreação crítica em nós dos movimentos psicológicos que o fazem imaginar e agir. Só quando nós criticamos pro outro esses movimentos e os perdoamos em nós, não é companheiragem, é amizadeiii”. Meu Deus como eu vivo palmatoria-do-mundo! Ora censuro você. ora censuro o Ascenso, ora o Osvaldoiv, si você imaginase tudo o que já tenho falado pro Osvaldo em nossa vida! E com que asperezas!... E o mais bonito, Manú, é que o Osvaldo não é meu amigo, fique sabendo. Eu é que sou amigo dele. Não venha me falar tudo o que você já me tem falado sobre êle, já sei de tudo e aceito muito. Porêm conhecendo quotidianamente o Osvaldo, posso muito, mas muito particularmente afirmar pra você que êle não tem nobreza moral. E o que é mais triste é que êle mesmo já pôs reparo nisso e está se utilisando disso pra viver. Me desculpe falar estas coisas pra você e creio que você me conhece de suficiente amizade pra saber que eu era incapaz de estar criando uma intriga ou apenas uma prevenção de você contra êle. Não sou capaz disso por causa principalmente do meu orgulho. E pra mostrar bem que não estou obscurecido por qualquer irritação do momento, conto ainda que até nunca não estivemos em tão boas relações de amizade como agora. Não tenho no momento nenhum ressentimento, mas absolutamente nenhum contra êlev. (Si você quiser guardar esta carta risque mas de maneira ilegível o nome que vai 1

nelavi) Mas ao que eu queria chegar era nisto: Estou atualmente numa impossibilidade absoluta de explicar a razão dũa mizadevii [p. 1]. Não me é possível mais. Escarafuncho bem e por mais que conheça ou bote na linha de conta as tendencias os sequestros e as anormalidades as atrações fisiológicas, palavra que encontro amizades inexplicaveis. Como a que eu tenho pelo Osvaldo. Aliás será mesmo mizade isto? Não será talvez um deprêzo? É medonho a gente principiar escarafunchando assim, chega a resultados de que queria fugir... O certo pra encurtar conversa é que tenho sido dũa mizade impecável pra com o Osvaldo. Tem outras amizades que a gente se explica milhor. Como a que tenho por você desde o dia em que li o Carnaval. Fiquei amigo de você, e pronto. Agora o importante em mim, repare, é esta especie de platonismo, a que reduzi a prática das amizades em mim. Pouco me importa que alguém corresponda ou não á amizade que tenho. Tenho eu e isto me basta. Não é mesmo engraçado? Isso é dum egoismo e sobretudo simultaneamente duma humildade sublime. Quando eu principio me estudando bem fundo, Manú, palavra, não posso descobrir si sou bom mesmo, si sou bom só por orgulho, ou si sou rúim duma vez, só sei que sou maravilhoso. A minha vida... Mas que maravilha de obra-prima é a minha vida. Manú! Que riqueza de manifestações, que chama sem se apagar! um fulano danado de sceptico, que tinha chegado a um negativismo absoluto, que num momento da vida só achou, como tantos! que a solução unica possivel era mesmo acabar com esta merda de vida, que nem se lembra bem mesmo como foi possivel reagir, que dum momento pro outro recobrou uma felicidade deslumbrante, felicidade de que foi rechassada toda e qualquer conformidade, toda, mas completamente feita de aceitação e acomodação... Você me vem com a confissão do que você acha que é a “personalidade tradicional” em você, a tal que gosta de perfídias que não infamam quem as faz etc. Não sei si foi de caso pensado que você empregou com tanta felicidade a palavra “tradicional”. Como “tradicional” sou obrigado a aceitar que seja essa a personalidade de você. Como personalidade natural, era facil mostrar que não. Basta ver que ela foi em arranco intermitentissimo nas obras de você. E si fosse natural, mesmo que você tivesse por mim uma admiração enorme, seria impossivel pra você sustentar sem vergonha ou sem ódio a pureza de coração com que eu me entreguei nesta nossa já longa correspondência e que você sustentou e sustenta com exatamente igual pureza até agora. Ponha reparo um bocado no que passou e está passando entre nós, meu Deus! Que infantilidade fatigante [p. 2] e ridicula pra qualquer perverso, toda mas toda a nossa correspondencia! Carta de deveras

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carta, é documento maior, Manú e matute bem nos que não conseguem escrever carta e muito menos sustentar uma correspondencia. Agora: você me contar qual é a personalidade “tradicional”, a personalidade que você tradicionalisou em você, eu li e aceito, Manú. Posso combater ás vezes e na certa que combaterei porquê toda tradição a gente pode cortar quando quer; e deve mesmo quando ela não enriquece a gente. Essa personalidade tradicional positivamente não enriquece você porquê o divertimento que ela dá é passageiro e tenho certeza que exacerba o estado de fadiga em que você está (repare que você só a tem nos períodos mais dolorosos, será que ela vem como reação pra êsses momentos ou é ela que define e aumenta êsses períodos?). Reaja contra a fadiga porquê ela não adianta mesmo nada, viva vida de água e linho que com a ajuda da janela de Santa Tereza, vendo o mundo bonito e lá embaixo, é impossivel que você não abra periodo de maior calma si não for possivel de maior felicidade. Desculpe estas banalidades todas que vão por aí. Você inda fala meio irritado em nós vivermos sempre sequestrados um diante do outro, por delicadeza de ferir o companheiro. Pode ser. Não é bem sequestro porquê jamais nós deixamos de nos falar o que era essencial. De que vale o resto desprezível? Quê que adianta êle a não ser que a gente alimente um conceito tão sentimental de mizade a ponto de a definir como conhecimento integral? Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto. Masviii em que poderia ajuntar em grandeza ou milhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e eu elucidar você sobre a minha tão falada (pelos outros) homosexualidadeix? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar o muito de exagêro que ha nessas contínuas conversas sociaisx? Não adiantava nada pra você que não é individuo de intrigas sociais. Pra você me defender dos outros? Não adiantava nada pra mim porquê em toda vida tem duas vidas, a social e a particular, na particular isso só me interessa a mim e na social você não conseguia evitar a socialisão absolutamente desprezivel duma verdade inicial. Quanto a mim pessoalmente, num caso tão decisivo pra minha vida particular como isso é, creio que você está seguro que um individuo estudioso e observador como eu, ha-de estar bem inteirado do assunto, ha-de te-lo bem catalogado e especificado, ha-de ter tudo normalisado [p.3] em si, si é que posso me servir de “normalisar” neste caso. Tanto mais Manú, que o ridiculo dos socialisadores da minha vida particular é enorme. Note as incongruencias e contradições em que caem: o caso da “Mariaxi” não é típico? Me dão todos os vicios que por ignorancia ou por interesse de intriga, são por êles considerados ridiculos e no entanto assim que fiz duma realidade penosa a “Maria”, não teve nenhum

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que nãoxii caçoasse falando que aquilo era idealisação pra desencaminhar os que me acreditavam nem sei o quê, mas todos, falaram que era fulana de tal. Masxiii si agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discreção social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui, a sair sozinho comigo na ruaxiv (veja com eu tenho a minha vida mais regulada que maquina de precisão) e si saio com alguem é porquê esse alguem me convida, si toco no assunto é porquê se poderia tirar dele um argumento pra explicar minhas amizades platonicas, só minhas. Ah, Manú, disso só eu mesmo posso falar, e me deixe que ao menos pra você, com quem apesar das delicadezas da nossa amizade, sou duma sinceridade absoluta, me deixe afirmar que não tenho nenhum sequestro nãoxv. Os sequestros num caso como êste onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis. Eis aí uns pensamentos jogados no papel sem conclusão nem sequencia. Faça deles o que quiserxvi. A carta de você inda tinha muito que comentar e responder porêm agora é impossivel nem adianta nada. Só que no caso de eu ter sentido a maneira com que você tratou minhas duvidas e perplexidades diante da minha obra, você não tem que pedir desculpas e nem isso serve do argumento que você fez contra a possibilidade de amizade legítima entre nós. Você mostra pelo meu ressentimento, que “que não pode me falar como sente, nem me dizer o pensamento inteiro”xvii. Que bobagem Manú! Fale. Que importa agora que eu sinta e mesmo sofra? Discutirei, não aceitarei, aceitarei, etc. mas o sofrimento por acaso será uma razão que destrua a minha felicidade? Ou que me rebaixe? Ou que me destrua? Conhecer, é possivel que você me conheça, porêm me compreender... Quanto ao caso do artigo sobre o Ascensoxviii é certo que eu tinha percebido nele uma ponta de ironia porêm que era o que você diz que é não percebi nem ninguem percebe que não esteja com a pulga atrás da orelha. Achei o artigo ruim porêm [p. 4] isso não bastava pra descobrir que era de pandega. Não tem ninguem deste mundo que não escreve artigos rúins. Julguei que naquele dia você tinha escrito um. Agora: você releia a frase que está escrita sobre o Nestor Victorxix, como não aceitar uma frase absolutamente simples e afirmativa assim, assinada por um nome? Pelo que você me tinha falado antes? Não bastava porque foi en passant que preguntei e você respondeu com displicencia de fatigado sem afirmar coisa nenhuma, quasi um encolher de ombros só. Não culpo você pelo que eu fiz. O Augusto Schmidtxx tinha insistido muito comigo pra que mandasse o Clan pro Nestor de quem não lera absolutamente nada. Agora estou prêso porquê si não mandar Macunaíma êle falará que é despeito pelo que escreveu. Mando e pronto, não tem a minima 4

importancia. E depois, só o gôso de ver que essa gente, êle Guastinixxi etc, fizeram questão de contar no artigo que si falaram sobre mim é porquê mandei o livro para êles... Deixe estar que eu também tenho minhas perfidinhas... Ou pelo menos ironias. Ciao. Lembrança pro pessoal d’aí e um abraço do Mário [assinatura].

i A carta foi publicada incompleta: Marcos Antonio de Moraes (org.) Correspondência. Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000; Manuel Bandeira (ed.) Mário de Andrade: cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967. ii

Mário está se referindo ao seguinte fragmento da carta de Manuel Bandeira de 28 de março de 1928: “É preciso que você saiba que desconhece a minha ‘personalidade tradicional’. Estivemos juntos poucas vezes, raras vezes, sempre vexados pelo pudor das confidências e pelas diferenças de sensibilidade. Nos carteamos muito. Entretanto desde o começo das nossas relações senti a sua delicadeza moral e receei magoá-la. Daí um mal-entendido de sua parte para comigo, o que entrou a me produzir mal-estar cada vez mais crescente. Essa minha ironia, disposição sarcástica, que você imagina de última hora para bancar o perverso é fundamental no meu caráter. De certo é preciso entender em termos a palavra ‘perfídia’. A perfídia, deslealdade com fito malévolo, é de certo coisa horrorosa. Mas a troça, a esculhambação, a mistificação com finalidade corretiva me parece aceitável, a até a maneira mais despretensiosa de ensinar, mais delicada e mais heróica porque dá a aparência de mau em vez de superior e pedante” (ANDRADE-BANDEIRA, 2000, p. 381.). iii

Quando analisa a correspondência de Mário com mulheres escritoras, Marilda Ionta propõe: “Vale sublinhar que nos discursos de amizade de Mário, as mulheres são dessexualizadas, os esforços dirigem-se no sentido de elidir os elementos eróticos da relação, todas [Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa] são irmãs” (IONTA, 2007, p. 128). Diferentemente nas cartas com Manuel Bandeira ou com outros homens, Mário usa palavrões, faz críticas ao interlocutor ou a terceiros de forma mais agressiva, dá o nome a suas doenças, conta que foi no meretrício, etc. iv

O nome “Osvaldo” é rasurado todas às vezes e o sinal “X.” grafado geralmente na parte superior. No decorrer da carta Mário explica o motivo. A tinta da rasura no nome “Osvaldo” é preta, a tinta com a qual uma cruz marca certo parágrafo é vermelha, provavelmente de outra pessoa (Manuel Bandeira?). Osvaldo é a referência para Oswald de Andrade. Na versão Moraes (2000) e na de Bandeira (1967) o nome de “Osvaldo” vem substituído pelo “X”. v

O rompimento definitivo entre Mário e Oswald de Andrade se deu após a segunda dentição da Revista de Antropofagia. Sob a direção de Oswald e Osvaldo Costa, Mário foi severamente criticado com termos como “Miss Macunaíma” ou “Miss São Paulo” entre outros (Diário de São Paulo, 14 abr. 1929, p. 6; 26 jun.1929, p. 12). Na Revista de Antropofagia (1928-1929) não há críticas a outros autores nas quais os aspectos misóginos e homofóbicos se coagulem no mesmo indivíduo: excesso afetivo entre homens, ausência de discípulos masculinos, amizade incômoda entre o mestre e seus alunos, e principalmente a atribuição pejorativa do feminino à figura de Mário (VERGARA, 2015). Em carta de 4 de julho de 1929, Mário conta a Tarsila do Amaral que já não consegue perdoar Oswald: “Espero que esta carta seja lida confidencialmente apenas por você e Osvaldo pois só a você é dirigida. [...] Por isso mesmo que a elevação da amizade sempre existida entre você, Osvaldo, Dulce e eu foi das mais nobres e tenho certeza que das mais limpas, tudo fica embaçado pra nunca mais. É coisa que não se endireita, desgraçadamente, pra mim. Mas devo confessar a você que sob o ponto-de-vista de amizade, único que me pode interessar como indivíduo, nada, absolutamente nada se acabou em mim. Se deu apenas uma como que transposição de planos, e aqueles que, faziam parte da minha objetividade cotidiana, continuaram amigos nessa espécie de ambiente de anjo em que o espírito da gente descansa mais, povoado de retratos bons. E então eu, que não fui feito pra esquecer, não será possível jamais que eu me esqueça nem de ninguém nem de nada. Nenhum sentimento desagradável permanece em mim e se acaso alguém confiar a você alguma queixa

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ou acusação feita por mim contra quem quer que seja de sua família, eu garanto que mente. Pedi aos meus companheiros de vida e até a amigos que nem Couto de Barros, que não me falassem em certos assuntos. [...] Asseguro a vocês – tenho todo o meu passado como prova e vocês me conhecem espero que bem – que as acusações, insultos, caçoadas feitos a mim não podem me interessar. Já os sofri todos mais vezes e sempre passando bem. E nem uma existência como a que eu levo pode se libertar deles.” (ANDRADE, M., 2001, p. 105, 106). Os poucos lugares onde Mário de Andrade utiliza a palavra ódio são referência ao rompimento com Oswald de Andrade. Embora não diga exatamente qual o motivo ou o conjunto de motivos específicos, se percebe a amargura de sentimentos em Mário. A seguir um trecho da carta de Mário a Murilo Miranda em 10 de julho de 1944: “Mas, olhe, Murilo, meu irmãozinho, eu achava ótimo que V. não perdesse nunca mais duas páginas de carta me falando no indivíduo com quem você jantou carneiro na Urca. Na verdade jantou porco. Mas eu não tenho nada com isso, nem jamais nunca exigi dos meus amigos a mais mínima espécie de solidariedade com o único ódio que me depaupera e suja. Ódio, nem é bem ódio: será ódio apenas pela obrigação moral de odiar um indivíduo que se chafurdou nas maiores baixezas do insulto e da infâmia pessoal. [...] É quase comodismo V. esquecer com tanta felicidadinha sua, que você mesmo veio me falar, e bem dolorido não esqueço, que certas coisas que ele escrevera sobre mim, “era demais”. Era demais, sim, eu nunca li, mas sei que era demais.” (ANDRADE, M.,1981, p. 167). Em carta a Manuel Bandeira de 18 de janeiro de 1933 Mário retoma o assunto: “Mesma coisa com o Osvaldo de Andrade, que no entanto eu odeio friamente, organizadamente, a quem certamente não ofereceria um pau à mão, pra que ele se salvasse de afogar. [...] Estou me fazendo bem feio, mas contra a verdade não posso nada. Sei que não consigo odiar o Osvaldo, mas que tenho contra ele um despeito irremovível.” (ANDRADE-BANDEIRA, 2000, p. 547, 548). Igualmente em carta datada de 20 de abril de 1939, Mário escreve a Paulo Duarte sobre Oswald: “meu ex-amigo, o conheço bem e sei até que ponto êle me adora, até que ponto eu sou prás pequenas aspirações dêsse velho-moço uma espécie de ideal!”, “O Oswaldo me ensinou essa coisa aviltante, rebaixante, infelicíssima que é odiar. Eu odeio infelizmente. Mas tudo me amarga porque não posso esquecer o passado.” (DUARTE, 1971, p. 317, 319). vi

Nenhuma palavra foi riscada de maneira ilegível. Paulo Duarte comenta: “Aliás todos os que conviveram com Mário sabem que êle escrevia cartas para serem publicadas.” (DUARTE, 1971, p. 8).

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“Dũa” no lugar de “duma”. A palavra amizade é grafada “mizade” e “amizade”. O artifício se chama aférese: o desaparecimento de uma sílaba ou vocal inicial da palavra.

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A partir desta frase há uma grande marca feita com tinta vermelha em forma de “X” sobre o parágrafo. Não faz sentido pensar que foi Mário quem a fez. A partir de esta frase até “faça deles o que quiser” foi recortado na versão publicada por Moraes (2000, p. 386): corresponde a parte onde aparece a palavra “homosexualidade” e a seção onde Mário elabora o assunto. Manuel Bandeira responde a carta em 5 de maio de 1928: “Mário. Fique tranqüilo: sua carta perigosa chegou. [...] Precisarei mais tarde voltar aquelas duas cartas substanciosas que recebi de você; não pode ser ainda hoje” (ANDRADE-BANDEIRA, 2000, p. 387). Qual a outra carta substanciosa à qual Bandeira faz referência? O recorte na edição de Moares corresponde ao recorte da edição de Bandeira (1967). ix Na obra de Mário de Andrade a palavra homossexualidade aparece poucas vezes. Seu uso se percebe pelo menos em três formas. Quando o sentido do termo se cristaliza, Mário pode usá-lo de forma pejorativa: “[...] as relações entre os dois rapazes, sem calor dramático, parecem se reduzir a mais um exemplo comum e corriqueiro de homossexualismo. E no mais, todas as relações íntimas, todas as ‘amizades’ entre adolescentes do Ateneu, se reduzem a casos grosseiros de homossexualidade [...]”; ou de forma neutra: “[...] Otávio de Faria. Também estudará no seu livro um caso de homossexualismo. O fará, porém, com uma intensidade, uma força do trágico bem rara na literatura nacional” (ANDRADE, M., 1972, p. 179). Aqueles usos correspondem a textos críticos.

Outro uso acontece na forma literária, como no conto Federico Paciência. Mário põe em relevo a teoria freudiana da sexualidade. Todos os seres humanos são atravessados pela bissexualidade, mas Mário mostra a bissexualidade através do desejo homossexual. No conto, o desejo homossexual tem valor positivo, mas esse desejo não constitui sentido claro e estável. Os rapazes não namoram de fato, não transam etc.: “Era um jogo de cabeças unidas quando sentávamos pra estudar juntos, de mãos unidas sempre, e alguma vez mais rara, corpos enlaçados nos passeios noturnos. E foi aquêle beijo que lhe dei no nariz depois, depois não, de repente no meio duma discussão rancorosa [...]” (ANDRADE, 1947, p. 110). O pensamento de Sigmund Freud é esclarecedor: “Em todos nós, a vida inteira, a libido normalmente oscila entre o objeto masculino e o

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feminino, o homem solteiro abandona suas amizades quando se casa, e retorna à mesa de bar quando o casamento se torna insosso” (FREUD, 2011, p. 130). Freud estabelece continuidade entre a escolha de objeto e também entre o bar e a casa. Em contraste com as ideias de Mário de Andrade e Freud, o médico criminalista brasileiro Leonídio Ribeiro (em texto dedicado à medicina legal e ao novo código penal brasileiro de 1940), define a homossexualidade da seguinte maneira: “As práticas de homossexualismo não poderiam continuar a ser consideradas, ao acaso, como pecado, vício ou crime, desde que se demonstrou tratar-se, em grande numero de casos de individuos doentes ou anormais, que não deviam ser castigados, porque careciam antes de tudo de tratamento e assistência” (RIBEIRO, L., 1942, p. 147). As demonstrações a que ele se refere são àquelas da endocrinologia (teoria endócrina), demonstrações com matizes de racismo e ligadas à escola positiva italiana (Cesare Lombroso). De maneira surpreendente, a teoria endócrina também propõe que não existe nem homem nem mulher ideal, pois as pessoas têm características dos dois pólos do gênero. Leonídio Ribeiro criou no Instituto de Identificação o Laboratório de Antropologia Criminal para investigar as causas da criminalidade. Utilizou as pessoas presas pela polícia para investigar as medidas físicas dos indivíduos, e os resultados foram publicados no seu livro Homosexualismo e endocrinologia. Prefacio do professor [Gregório] Marañon. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte: Francisco Alves, 1938. Nos textos de Ribeiro a arte e a literatura são campos associados à homossexuais e vários literatos têm sua fama de homossexuais exposta: Wilde, Proust, Gide, Verlaine (RIBEIRO, L. 1942, p. 174-183; 1938, p. 13, 53, 66-77). O nome de Oscar Wilde é significativo já que Mário de Andrade leu alguns dos seus poemas e fez alusões positivas à carta de Wilde ao seu antigo companheiro (De profundis) em Paulicea Desvairada (1922, p. 105-106), ainda o mesmo nome foi utilizado para associar a sodomia à cor na crítica que Mário recebeu no artigo anônimo de 2 de setembro de 1939 do jornal Dom Casmurro: “sub-Wilde mestiço” (p. 2). Os pedidos para a recriminalização da homossexualidade foram rejeitados na Primeira Semana Paulista de Medicina Legal em 1937, as vésperas da promulgação do novo código penal brasileiro em 1940 (FREIRE, 2012, p. 93). Mas em 1948 o “homossexualismo” passou a existir na Classificação Internacional de Doenças (ligada à OMS) na “Categoria 320 Personalidade Patológica, como um dos termos da subcategoria 320.6 Desvio Sexual”. Essa classificação esteve em vigor até 1965 (LAURENTI, 1984, p. 2). x

Todos os grifos são do autor. O itálico substitui o sublinhado do original.

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Qual o sentido?

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A palavra está bem rasurada com tinta negra.

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A partir desta frase há uma grande marca feita com tinta vermelha em forma de “X” sobre o parágrafo até a expressão “jogados no papel sem conclusão” (p. 4).

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Mais de um ano depois, em carta datada de 13 de julho de 1929, Mário conta a Manuel certo passeio noturno: “Manu/ três horas duma noite que além de ser noite de sábado, está de neblina formidável. Noite de sábado já é uma das coisas mais humanas de São Paulo, todos os húngaros, tchecos, búlgaros, sírios, austríacos, nordestinos saem passear, gente dura, no geral tipos horrorosos, mas me sinto bem no meio deles. E além disso: a neblina, um fog maravilhoso. No Anhangabaú não sei via nada. [...] Então voltei procurando caminhos mais misteriosos, cheguei a ter medo no meio do parque Pedro II, completamente sem iluminação e com alguns ruídos nas moitas. Depois atravessei o bairro turco e só quando esbarrei na estrada-de-ferro, vim me encostando nela até a rua Lopes Chaves. Muito apito de trem, várias propostas de aventuras, uma calma interior sem comparação, o espírito vivinho gozando em colher. Mas cheguei meio excitado, sem sono, e estou escrevendo.” (ANDRADE-BANDEIRA, 2000, p. 427). No texto do sociólogo Barbosa da Silva sobre os lugares de encontro em São Paulo, ele menciona a região frequentada por homossexuais trinta anos após a carta de Mário, região que abrange da Praça da República até a Praça da Sé aproximadamente, ou seja, inclui o Anhangabaú (SILVA, 1959). xv

Embora tenha escrito seu livro muito depois e tenha conhecido Mário após a escrita desta carta, Moacir Werneck de Castro oferece uma explicação convincente a respeito do uso da palavra “seqüestro”: “Conter o ‘vulcão’ – função repressora em tudo semelhante à que a psicanálise atribui ao Id para varrer idéias e pensamentos que seriam insuportáveis ao Ego consciente – fazia parte da atividade de Mário de Andrade como ser social. A isso ele dava um nome especial: seqüestro, tradução própria do francês refoulement (recalque). Adota a expressão para explicar o sentimento amoroso na literatura popular brasileira: o ‘seqüestro

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da dona ausente’, ou seja, ‘a ocultação da dor e da saudade e a insatisfação física. Sublimação disso na criação de imagens derivativas’” (CASTRO, 1989, p. 91). Castro está citando Mário através do estudo de Telê Lopez, pois Mário leu Freud no francês, Trois essais sur la théorie de la séxualite. A edição de Paris da Éditions de la nouvelle revve française de 1923 se encontra com anotações de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros da USP em São Paulo. Mário usa a expressão ao fazer análise literária, por exemplo, quando comenta o erotismo na poesia de Carlos Drummond: “Mas onde o sequestro [da vida da besta] explode com abundância provante é no livro estar cheio de coxas e especialmente de pernas” (ANDRADE, M., 1972, p. 35). xvi

“o que quiser” está rasurado com tinta vermelha.

xvii Em carta de 28 de março de 1928, Bandeira diz isso a respeito dele próprio: “eu não lhe posso falar como sinto, não poderei nunca dizer-lhe o meu pensamento inteiro, ainda quando você me peça franqueza até o fim como pediu na carta que, seja justo, autorizou a minha imprudente resposta” (ANDRADE-BANDEIRA, 2000, p. 382, grifo do editor). xviii A nota de Manuel Bandeira do livro de 1967 foi re-publicada por Moraes: “Refere-se a um artigo sobre Ascenso Ferreira publicado em O Jornal. Deveria sair com a assinatura de Esmeraldino Olímpio, literato meio grave, meio ridículo inventado por Gilberto Freire ao tempo em que Rodrigo M. F. de Andrade dirigia a Revista do Brasil. Então quando um de nós queria fazer ironia a se payer la tête de alguém escrevia em estilo de Esmeraldino Olímpio e assim se assinava. No caso do meu artigo, porém, Assis Chateubriand não esteve pelos autos e mandou pôr o meu nome. Fiquei encalistradíssimo quando me vi assinando as bobagens do artigo, que em São Paulo foi tomado ao pé da letra por Mário de Andrade e demais amigos meus, sem sombra de desconfiança que fosse uma brincadeira” (ANDRADE-BANDEIRA, 2000, p. 387). Bandeira já tinha falado do assunto com Mário na carta de 28 de março de 1928. xix

Nestor Vitor (1868- 1932) escritor e crítico literário.

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Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) escritor e criador de jornais literários.

xxi Provavelmente Mário A. Guastini (1884-1946), jornalista e escritor de ideias opostas àquelas dos modernistas da semana de 1922.

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