Carta precatória e exame cruzado: um problema não resolvido pelas reformas do CPP (Boletim do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal - 2014/2)

September 1, 2017 | Autor: Antonio Santoro | Categoria: Direito Processual Penal, Processo Penal
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critério subsidiário na definição da competência (art. 72, CPP). Obviamente que a partir da Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal, a discussão acerca do momento consumativo do crime tributário previsto no art. 1º, da Lei nº. 8.137/90 - considerado material - restou pacificada. No entanto, o tema da competência ainda não se mostra plenamente solucionado, porque soa desarrazoado o entendimento de que a competência dar-se-ia no local do domicílio fiscal ao tempo em que sobreveio o lançamento definitivo do crédito tributário, desconsiderando o local em que ocorreu a ação ou omissão. Com efeito, a competência possui, dentre outros objetivos, facilitar a produção probatória em razão da maior proximidade com os fatos, bem como restabelecer a harmonia social no local onde houve sua violação. Desse modo, a possibilidade de interferência na competência viola, inicialmente, os dois objetivos da própria legislação processual penal. Mesmo que se mencione a adoção da teoria do resultado pelo Código de Processo Penal, a situação retratada permite seu abrandamento como já ocorreu em outros casos pelas Cortes superiores,2 aplicando-se o critério de competência do Juízo onde se praticou a ação delituosa (OLIVEIRA, 2010, p. 284). Ou seja, caso se entenda pela existência de qualquer crime, a perturbação à tranquilidade social, o abalo à paz e ao sossego da comunidade e, finalmente, a maior facilidade na colheita de provas e esclarecimentos (NUCCI, 2008, p. 205) estão todos ligados ao local da ação ou omissão. É certo, no entanto, que esta relativização das regras definidoras da competência tampouco contribuiriam para a segurança jurídica que deve nortear a eleição do foro competente e do juiz natural do feito, reforçando a necessidade de revisão da indigitada Súmula Vinculante, a fim de promover uma adequada solução às questões processuais que circundam o tema ou ainda a definição de um critério legal próprio delimitador da competência para julgamento dos crimes tributários. www.ibraspp.com.br

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Portanto, um dos possíveis caminhos jurídicos para evitar a arbitrariedade na verificação do foro competente do processo penal seria considerar estes crimes como delitos plurilocais, em que tanto a ação como o resultado será considerado para fins da competência. No caso concreto, a fim de se evitar futuras e indevidas alterações, a ação ou omissão teria prevalência sobre o resultado, sempre condicionado à esfera administrativa.

Referências: MACHADO, Hugo de Brito. A propositura da ação penal no crime de supressão ou redução de tributo e a súmula vinculante 24. In: Doutrinas essenciais: Direito Penal Econômico e da Empresa. Org. PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel. v. V. São Paulo: RT, 2011, p. 329/340. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 13ª ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010. REALE JUNIOR, Miguel. Restrição ilegal. Boletim do IBCCRIM, nº. 245, abril de 2013, p. 2-3. Notas 1 Não houve a definição pelo Supremo Tribunal Federal quanto à definição do esgotamento da via administrativa como sendo elemento normativo do tipo ou condição objetiva de punibilidade.

“Recurso ordinário em habeas corpus. Processual Penal. Crime de homicídio culposo (CP, art. 121, §§ 3º e 4º). Competência. Consumação do delito em local distinto daquele onde foram praticados os atos executórios. Crime plurilocal. Possibilidade excepcional de deslocamento da competência para foro diverso do local onde se deu a consumação do delito (CPP, art. 70). Facilitação da instrução probatória, Precedente. Recurso não provido. 1. A recorrente foi denunciada pela prática do crime de homicídio culposo (art. 121, § 3º, c/c § 4º do Código Penal), porque “deixando de observar dever objetivo de cuidado que lhe competia em razão de sua profissão de médica e agindo de forma negligente durante o pós-operatório de sua paciente Fernanda de Alcântara de Araújo, ocasionou a morte desta, cinco dias após tê-la operado, decorrendo o óbito de uma embolia gordurosa não diagnosticada pela denunciada, a qual sequer chegou a examinar a vítima após a alta hospitalar, limitando-se a prescrever remédios pelo telefone, em total afronta ao Código de Ética Médica (artigo 62 do CEM)”. (...) 3. Recurso não provido.” (RHC 116200, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 13/08/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-176 DIVULG 06-09-2013 PUBLIC 09-09-2013). 2

Carta precatória e exame cruzado: um problema não resolvido pelas reformas do CPP Antonio Eduardo Ramires Santoro

As reformas parciais do CPP vêm promovendo importantes modificações nas regras processuais e procedimentais. Todavia, não é incomum observarmos que certas mudanças são desacompanhadas de interpretação e aplicação condizente com o espírito inspirador das alterações.

Inobstante a clareza ofuscante do dispositivo, há magistrados que continuam a formular suas perguntas antes de abrir a inquirição às partes, muito embora não seja mais tão comum encontrarmos juízes que impeçam a realização de perguntas diretamente pelas partes.

Caso conhecido é a grande dificuldade que os juízes encontram em se adaptarem à nova sistemática de inquirição de testemunha inaugurado pela Lei no 11.690/2008 que alterou a redação do art. 212 do CPP, por estarem acostumados ao sistema presidencialista de audiência.

Desse problema, entretanto, muitos autores e a própria jurisprudência vêm tratando. A questão que aqui se coloca é diversa e diz respeito à oitiva de testemunhas ou mesmo do ofendido por carta precatória.

Pelo formato anterior de inquirição, o juiz começava formulando perguntas, para só depois de exauridas suas questões, abrir a possibilidade das partes requererem perguntas, as quais seriam analisadas pelo magistrado que detinha o monopólio da comunicação direta com a testemunha. A alteração legal introduziu o sistema de direct examination ou exame direto e cross-examination ou exame cruzado, pelo qual a testemunha é inquirida diretamente pela parte que a arrolou, sem a interferência do juiz, e em seguida pela outra parte. Ao juiz cabe apenas indeferir as perguntas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de pergunta já respondida, bem como complementar a inquirição apenas com perguntas sobre pontos não esclarecidos.

O art. 222 do CPP dispõe que se a testemunha (aplicável também ao ofendido) “morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória”. O problema começa com o entendimento consolidado pela súmula 155 do STF de que a falta de intimação da expedição da precatória para inquirição de testemunha é nulidade relativa. Vale frisar que este verbete é de 1963, antes da nova ordem constitucional e antes da Convenção Americana de Direitos Humanos, mas os tribunais continuam aplicando e reproduzindo. Antonio Eduardo Ramires Santoro Professor Adjunto de Direito Processual Penal e Prática Penal da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ; Pós Doutor em Direito penal e garantias constitucionais pela Universidad Nacional de la Matanza na Argentina; Doutor e Mestre em Filosofia do Direito pela UFRJ; Mestre em direito penal pela Universidade de Granada/Espanha; advogado criminalista.

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Outro entendimento reproduzido sem olhar crítico é o consagrado na súmula 273 do STJ, este de 2002, que dispensa a intimação da defesa para realização da audiência no juízo deprecado, sendo necessário apenas a intimação de expedição da carta precatória (cuja falta, como visto, é nulidade relativa). Assim, não é incomum que a defesa fique alijada do direito ao confronto por simples desconhecimento da realização da audiência. A paridade de armas começa, assim, a ruir quando se compreende que a acusação, pelo Ministério Público, sempre estará presente por ter um membro atuante junto ao juízo deprecado. No entanto também não é deste problema que queremos tratar, porquanto a questão é ainda mais complexa. Ainda que se imagine que a defesa, diante das possibilidades atuais de realizar o acompanhamento processual da tramitação da carta precatória no juízo deprecado pela internet, sem muito custo, consiga tomar ciência da data de realização da audiência, o que temos hoje, e cada dia mais, é um “processo penal para ricos” instaurado no seio do Estado brasileiro. Isso porque, ciente da data da audiência, a defesa somente poderá comparecer ao ato no juízo deprecado se este estiver localizado em uma comarca não muito distante ou se o acusado tiver recursos financeiros para custear o deslocamento (e consectários) do seu advogado. Mesmo o acréscimo do parágrafo 3o que se fez ao art. 222 do CPP pela Lei no 11.900/2009, em que está prevista a possibilidade de se realizar a oitiva de testemunha por meio de vídeo conferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, não resolve a celeuma, já que poucos são os tribunais que dispõem de recursos confiáveis. Esse é um problema para o qual, por incrível que possa parecer, o procedimento de inquirição de testemunha antigo apresentava solução. Como o sistema era presidencialista, as defesas faziam chegar por fax ou sedex uma série de perguntas escritas em www.ibraspp.com.br

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Hoje, com a adoção do exame direto e do exame cruzado pelo artigo 212 do CPP, não cabe mais ao juiz deprecado formular perguntas.

petição dirigida ao juízo deprecado com o requerimento de que as mesmas fossem formuladas à testemunha. O juiz, que detinha o monopólio de comunicação direta com a testemunha, as formulava. Hoje, com a adoção do exame direto e do exame cruzado pelo artigo 212 do CPP, não cabe mais ao juiz deprecado formular perguntas. Caso emblemático foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em sede de habeas corpus. A defesa pleiteava a declaração de nulidade da oitiva de duas testemunhas arroladas pela acusação inquiridas pelo juízo deprecado de outra unidade da federação. A defesa enviou perguntas por petição, tendo o juízo deprecado se recusado a formulá-las por falta de amparo legal e nomeado defesa ad hoc que também não as formulou, tampouco justificou porque não faria. De outro lado, embora o Ministério Público não tenha feito perguntas em audiência, o juiz o fez por sua própria iniciativa. O Tribunal assim decidiu: “Pedido de declaração de nulidade dos depoimentos de duas testemunhas de acusação, ouvidas por carta precatória em outra unidade da federação. In casu, a Defesa, ao invés de comparecer à audiência instrutória, requereu que o Juízo deprecado reproduzisse perguntas formuladas por petição, pleito este indeferido. De fato, a medida pretendida não encontra amparo legal. Outrossim, não houve cerceamento ao direito de defesa, considerando que foi nomeada defensora ad hoc para o ato. De outro prisma, os termos de depoimentos que instruem o remédio heroico não revelam a alegada parcialidade do magistrado que presidiu o ato instrutório, o que não pode ser presumido pela simples ausência de manifestação do Ministério Público na formulação de perguntas às testemunhas...” (TJRJ – 1a Câmara Criminal – HC 0029197-15.2011.8.19.0000 – decisão por maioria) O voto vencido reconheceu que o “juiz não estava obrigado a formular as perguntas pela defesa técnica por petição”, mas ressaltou que a exigência do contraditório e am-

pla defesa não se satisfaz com “a presença de uma defesa formal. Exige-se efetiva defesa.” (Des. Marcus Basílio). Portanto, não teria havido defesa material. Acresça-se que a adoção do exame direto e do exame cruzado em substituição ao sistema presidencialista decorre de uma necessidade de adequação das regras infraconstitucionais de processo penal ao sistema acusatório forjado pela Constituição. Isso implica em que o juiz deve adotar uma posição passiva na produção de provas, deixando sua gestão às partes. No caso acima descrito, o magistrado adotou no mesmo ato duas posições principiologicamente díspares. Ao indeferir o requerimento da defesa para formular perguntas à testemunha, o magistrado adotou posição passiva, própria do sistema acusatório. Todavia, na ausência de perguntas por parte da acusação, o magistrado saiu de sua posição passiva e formulou perguntas de sua própria lavra às testemunhas, em atitude inquisitória. Para manter coerência com sua decisão inicial de não formular as perguntas requeridas pela defesa, deveria o magistrado encerrar a oitiva das testemunhas sem que as mesmas falassem nada, pois o juiz é passivo, não faz a gestão da prova, e a acusação não formulou perguntas. O grande problema aqui é o fato de se aplicar uma regra (exame direto e exame cruzado) concebida para adaptar a legislação ao sistema acusatório, ao mesmo tempo em que o sistema inquisitório já tomou o espírito deste magistrado. Enquanto a compreensão sobre as bases principiológicas em que deve assentar o processo penal brasileiro não invadir a consciência dos aplicadores do direito, mesmo as melhores alterações legislativas serão indevidamente interpretadas e aplicadas, sempre em detrimento dos mais pobres.

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