Cecília Meireles e as crônicas: \"Rumo: Sul\"

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JOÃO CRISTIANO FLECK

CECÍLIA MEIRELES E AS CRÔNICAS “RUMO: SUL”

CURITIBA 2010

JOÃO CRISTIANO FLECK

CECÍLIA MEIRELES E AS CRÔNICAS “RUMO: SUL”

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em cumprimento parcial às exigências do Curso de Letras da Universidade Federal do Paraná - UFPR, para obtenção do grau de Bacharel em Português, ênfase: Estudos Literários. Orientadora: Profª. Dra. Raquel Illescas Bueno

CURITIBA 2010

Aos professores que o destino me proveu, de brilhantes inspiradoras lições de Letras e de vida: Raquel, Marilene, Márcio, Benito, Patrícia, Gesualda, Guilherme, Venturelli, Ana Maria, Roosevelt, Tezza, Marcelo Sandmann, Paulo, Édison, Tânia, Ligia, Yara, Jorge, Terumi, Camilo, Antonio Sandmann, Reni, Elisa, Maurílio, Maria José K. S. e Zeila. Certo de que a presente peça não lhes alcança nem de longe a grandeza, mas com profunda admiração.

AGRADECIMENTOS – Ao meu pai e à minha mãe, que fizeram de tudo coração pra que eu me formasse. Exemplos de abnegação, perseverança e humildade. Deus, nem sei o que dizer... Obrigado, pai! Obrigado, mãe! – Lembro dos meus primeiros anos de Letras: os alunos se agitavam no Memorial de Curitiba enquanto a Adélia Prado dizia os poemas que a platéia pedia. E pediram “Para o Zé”. E o Zé estava até lá. E a Adélia, impostando as mãos que nos consagravam a todos: “esse eu só digo pro Zé”. Agradeço à minha pisciana Ju por coisas que eu também nem não digo aqui, pois estou só divagando... As mulheres é que entendem a vida e a gente. Obrigado, Ju! – A Raquel tem as pastas “1” e “234” na copiadora da Reitoria. E esse é só um pequenino exemplo de como, se você prestar atenção, ela faz tudo especial. Norte verdadeiro e magnético, sem a erudição, zelo, sensibilidade e paciência da Raquel, este trabalho estaria perdido, dificilmente teria chegado a uma existência. Fico imensamente feliz quando lembro das aulas e da pessoa da Raquel. Tive muita sorte em ser seu orientando! Obrigado, Raquel! – À professora Marilene, por aceitar o convite para integrar banca, pelas palavras, gentileza, bondade, e por todas as valorosas lições. Profunda gratidão. – Ao senhor Leonardo Bloomfield e ao senhor Ralph Giesbrecht, pelas preciosas peças de informação e pela atenção dispensada, além de, em suas pessoas, representarem parte significativa da memória ferroviária online no Brasil. – Aos meus colegas de primeiro ano de Letras (1996), que me deixaram com saudades dos que discutiam tão passionalmente, dos que acreditavam! Que deixavam a sala de aula indignados e sem um pingo de razão. Que me deixaram com profundas saudades...ah! Saudades! – Obrigado, George, obrigado! – Raul, obrigado, Raul! – Ao nosso bom Deus, por tudo e tanto.

Um cavaleiro das cruzadas que regressasse para junto de nós perguntaria imediatamente por que motivo se não utiliza a bomba atômica contra os Infiéis. De sentimentos firmes e inteligência aberta, no fim de contas sentir-se-ia menos assombrado com as nossas técnicas do que pelo fato de os Infiéis ainda possuírem metade do Santo Sepulcro, estando a outra, aliás, nas mãos dos Judeus. O que ele teria maior dificuldade em compreender seria uma civilização rica e poderosa, cuja riqueza e poderio não são explicitamente consagrados ao serviço e à glória de Jesus. Que lhe diriam os nossos sociólogos? Que estes imensos esforços, batalhas, descobertas, têm como objetivo único elevar o “nível de vida” de todos os homens? Isso parecer-lhe-ia absurdo, pois a vida apresentava-se sem objetivo. Eles falar-lhe-iam ainda de Justiça, de Liberdade, de Pessoa Humana, recitar-lhe-iam o evangelho humanista-materialista do século XIX. E o cavaleiro sem dúvida responderia: mas Liberdade para quê? Justiça para quê? A pessoa humana para dela fazer o quê? Para que o cavaleiro encarasse a nossa civilização como uma coisa digna de ser vivida por uma alma seria necessário não utilizar a linguagem retrospectiva dos sociólogos. Seria necessário utilizar uma linguagem prospectiva. Haveria que mostrar-lhe o mundo em marcha, a inteligência em marcha, como a formidável vibração de uma cruzada. Trata-se, uma vez mais, de libertar o Santo Sepulcro: o espírito [...] Então talvez se sentisse aqui como em sua casa, apenas colocado noutro nível. Talvez se lançasse a caminho do futuro, como outrora se lançava a caminho do Oriente... (O despertar dos mágicos)

RESUMO Reapresentadas ao público pela recente compilação das Crônicas de viagem de Cecília Meireles, as narrativas da série Rumo: Sul relatam a visita da célebre autora à Argentina e ao Uruguai em junho de 1944. Este estudo efetua análise do texto literário no seu enquadramento às características formais da crônica, enquanto reconstitui o contexto histórico e geográfico com base em pesquisas a periódicos de época e analisa a sua influência nas narrativas. Também são apresentados resultados de pesquisa do veículo de publicação original, o jornal “Folha Carioca”, e estudadas eventuais correlações com a série de crônicas. São ainda compiladas informações de viés biográfico referentes ao período.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................6 1.

BREVE ESTUDO DA CRÔNICA ......................................................................10

2.

HISTÓRIA, GEOGRAFIA E POLÍTICA ............................................................14

3.

NOTA SOBRE A “FOLHA CARIOCA” ............................................................26

4.

RUMO: SUL ......................................................................................................31

4.1 Resumo.............................................................................................................31 4.2 Preâmbulo.........................................................................................................36 4.3 “Escritora”..........................................................................................................38 4.4 Guerra ...............................................................................................................43 4.5 Anedotas ...........................................................................................................45 4.6 Reflexões Filosóficas ........................................................................................46 4.7 Panorama..........................................................................................................48 4.8 Associações ......................................................................................................55 4.9 Paisagem Humana............................................................................................57 5.

AUSÊNCIA........................................................................................................63

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................66 REFERÊNCIAS.........................................................................................................72 ANEXO A ANEXO B APÊNDICE

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 – Ampulheta a correr ...............................................................................9 Ilustração 2 – “O poema da hora presente”...............................................................15 Ilustração 3 – “Suicídio”.............................................................................................16 Ilustração 4 – Lista de Passageiros do Trem Internacional.......................................18 Ilustração 5 – Ferrovias no Paraná ...........................................................................19 Ilustração 6 – “Início da invasão da Europa” .............................................................20 Ilustração 7 – Ferrovias no Rio Grande do Sul..........................................................21 Ilustração 8 – Arpad, Cecília e Vieira da Silva em favela do Rio de Janeiro .............24 Ilustração 9 – Conferências de Cecília Meireles em Montevidéu ..............................28 Ilustração 10 - Cecília Meireles - desenho de Arpad Szénes ....................................37 Ilustração 11 - Rara foto do trem internacional em 1949...........................................48 Ilustração 12 - "Casa de la familia de León Sánchez", de Arzádum..........................63 Ilustração 13 - "Allegoria della vita umana", de Guido Cagnacci...............................65 Ilustração 14 - Ampulheta em repouso......................................................................71

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INTRODUÇÃO Apenas no final do século passado passou-se a ter uma disseminação maior da obra em prosa de Cecília Meireles. O plano de publicação do dr. Leodegário de Azevedo e da Editora Nova Fronteira1, ainda irrealizado em seu total de 22 volumes, menciona, segundo unidades temáticas: Crônicas em geral; Crônicas de viagem; Tipos humanos e personalidades; Crônicas de educação; Folclore; Conferências e ensaios; Entrevistas e curso de teoria literária; e Varia. A isto se pode acrescer a obra poética, que ultrapassa cinqüenta publicações, além de outras contribuições como prefácios, traduções, livros didáticos e infantis e, ainda, artes plásticas. Ainda é possível somar dados não escritos como amizade com personalidades de toda a América e eventualmente nos mais diversos cantos do mundo, seu trabalho em escolas e bibliotecas, seus palpites no belo jardim de inspiração oriental da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e sua presença neste mundo como neta, mãe, avó e mulher. Diante de tudo isso, e que ainda não é nem perto de tudo, sem muita dificuldade entende-se a complexidade de elaboração de um até agora inexistente estudo biográfico “completo”. Não mencionamos ainda os diversos estudos de tantos célebres intelectuais de muitas gerações e de muitas nacionalidades. Diante dessa magnitude, o ponto de partida deste trabalho é exatamente um pequeno ponto na biografia de Cecília Meireles. Com freqüência, o que se lê nas existentes notas biográficas sobre o tema é: “em 1944, visita Uruguai e Argentina”. Reduzindo ainda mais, será estudado apenas junho de 1944 ou, bem especificamente, as 25 crônicas intituladas “Rumo: Sul”, originalmente publicadas no jornal fluminense “Folha Carioca”, reeditadas no volume um de Crônicas de viagem, em 1998, e que versam sobre essa viagem empreendida aos dois países platinos. Cabe saber que, vinda à luz em 1901, Cecília Meireles, nessas tantas, era já autora consagrada e já tinha publicado próximo de uma dezena de livros de composição própria, além de traduções e trabalhos de organização, já havia se casado e se tornado viúva do artista português Fernando Correia Dias, casando-se

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Identificado no prefácio de: MEIRELES, Cecília. Melhores crônicas: Cecília Meireles. São Paulo: Global, 2003.

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novamente com o eminente agrônomo dr. Heitor Grillo, e já havia visitado Portugal, Estados Unidos e México. Em se tratando de um período tão curto, mas já tão distante dos tempos atuais, o estudo se esforça em trazer maior quantidade possível de informações daquela época. Animado pela epígrafe do trabalho, além da análise literária das crônicas, o texto visa a integrar, mesmo que muito modestamente, o esforço biográfico coletivo em relação a nossa autora em tese. Assim, em busca de documentos e informações, a pesquisa conta com o resultado de consultas aos acervos do Museu Paranaense, Museu Ferroviário da Rede Viária Paraná Santa Catarina, Biblioteca Pública do Paraná, onde consultamos “O Estado de São Paulo” (maio a julho de 1944), “A Manhã” (abril de 1944 a fevereiro de 1945) e o “Correio dos Ferroviários” (1944), Biblioteca Nacional do Uruguai, onde tivemos acesso ao jornal “El País” (junho de 1944), Biblioteca Nacional brasileira, onde tivemos acesso a exemplares da “Folha Carioca” (maio a setembro de 1944) e, de forma muito marcante, pesquisas e contatos pela internet, de que podemos destacar o acervo do “Jornal do Brasil”, já totalmente digitalizado. No entanto, a pesquisa esbarrou na falta de informações sobre um elemento muito peculiar das crônicas “Rumo: Sul”: o “trem internacional”. E por isto há especial destaque à internet. Por meio dela foi possível fazer contato com as mais preciosas fontes de conhecimento: pessoas. O sr. Ralph Giesbrecht (mantenedor do sítio virtual “Estações Ferroviárias”) e o sr. Leonardo Bloomfield (colaborador de diversos sítios e comunidades virtuais) proveram este estudo através de mensagens de correio eletrônico da maior parte das informações sobre a lendária composição ferroviária brasileira. E é nesse sentido que as crônicas “Rumo: Sul” ganham também grande valor. Elas e o texto de um viajante alemão, Carl Heinz Hahmann, são os únicos escritos impressos que foi possível localizar sobre viagem efetuada no que muitos mencionam como o “famoso trem internacional”. Os resultados desta pesquisa inicial dão também o tom do estudo. Opta-se por priorizar da mesma maneira a composição das seções. A reconstituição do contexto histórico e as informações trazidas buscam foco em testemunhos ou notícias sobre pessoas, textos literários, trabalhos científicos e, então, textos históricos propriamente ditos. Dentro do universo da época e das publicações pesquisadas, cabe ressaltar algumas das limitações do estudo, porque, satisfeitas, certamente acrescentariam

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informações valiosas, visando a uma maior completude no estudo das crônicas “Rumo: Sul”. Não se obteve acesso a uma entrevista dada por Cecília Meireles ao periódico “Correio Paulistano” logo após o seu retorno ao Brasil, depois da viagem que foi objeto das crônicas em tese, devido a restrições de permanência para pesquisa na capital fluminense e ao fato de a “Folha Carioca” estar em processo de microfilmagem, não pudemos ter acesso a todos os exemplares que foram veículo de publicação original das crônicas em análise; não foi possível ter acesso a periódicos argentinos; não houve consulta às crônicas de educação; não foi possível consultar os relatórios ferroviários da Rede Viária Paraná Santa Catarina, por estarem em organização para posterior disponibilização ao público; e não houve também consulta ao volume Crônicas em geral. Neste mesmo sentido, ressalta-se um estudo acadêmico intitulado Vozes femininas da poesia latino-americana: Cecília e as poetisas uruguaias, de autoria de Jacicarla Souza da Silva que, tratando das crônicas “Rumo:Sul”, foi publicado online2 apenas em meados deste ano e não pode ser incorporado ao atual trabalho. Com o objeto bem delimitado, optou-se também por permanecer quase que exclusivamente no texto das crônicas em tese e de outra que igualmente versa sobre o mesmo trajeto da viagem (“Terceiro Instantâneo de Buenos Aires”), com apenas menções ilustrativas de outros textos em prosa da autora, crônicas e trechos de entrevistas, sem abordagem de sua obra poética. Antes de adentrar o trabalho em si, a fim de auxiliar no rumo da análise, propõe-se ainda duas provocações a serem solucionadas ao longo do estudo. Oriunda de carta de Cecília Meireles a Mário de Andrade em 19.08.1944: Além disso, Mário, o que nós escrevemos passa a ser outra coisa, a cada pessoa que nos lê... E eles gostam não é do que nós dissemos, mas do q. eles supõem encontrar, mesmo quando não exista... Você ainda não se ouviu interpretado pelos seus leitores, e, mais do que isso, adorado na interpretação que lhe ofereciam? E não se sentiu compungido? As criaturas sentem as “nossas” experiências através das “suas” experiências. Isso sempre diminui muito a intensidade da criação. Quando nós sentimos a experiência alheia através da nossa – como somos hiperlatísticos, doentes, loucos, “luas”, poetas – transformamos aquilo em música, poesia, delírio, uma coisa maior que nós, arrebatadora e durável. Só os da nossa espécie, a quem falta, porém, esse dom de realizar, são capazes de receber o que realizamos, com força equivalente. Os outros, tornam a retirar – parece-me – da forma engrandecida que lhes oferecemos o rudimento interior que chegam a perceber. O mais é como uma auréola em redor – percebem-na, deslumbram-se com ela, mas não transitam no

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Disponível em: http://www.culturaacademica.com.br/titulo_view.asp?ID=45 – acesso em 17.11.2010.

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que ela possa conter de beleza também essencial, porque é o núcleo elementar da criação (sem correspondência com as possibilidades de ser e de entender) que logo os absorve e põe em contato com a obra. 3 Isso me vai fluindo da pena, sem grande exatidão. [...]

Ilustração 1 – Ampulheta a correr

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MEIRELES, Cecília; ANDRADE, Mário. Cecília e Mário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. pp. 300-1.

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1. BREVE ESTUDO DA CRÔNICA Pois não devíamos estar sossegados ao rés-daterra, com modestos rumos, e não vem cordas que nos enlaçam, que nos suspendem, que nos deixam numa altura de onde a terra, que é nosso destino, torna-se o nosso abismo? (Cecília Meireles, “Jogos Circenses”)

Traçando o passado da crônica como gênero na Literatura Brasileira, Afrânio Coutinho4 tenta localizar a origem do termo e onde tal se teria criado ou de que outro teria derivado. Em se tratando das outras literaturas latinas, em consonância ainda com a inglesa, menciona que até hoje se mantém o seu sentido primitivo medieval de relato histórico. Em certa concordância com isso, Davi Arrigucci, define: “trata-se de um relato em permanente relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido – uma definição que se poderia aplicar igualmente ao discurso da História, a que um dia ela deu lugar.” 5 Sem entrar no mérito de gênese hereditária, via “deterioração do Essay”6, evolução natural de narrativas de cunho histórico, ou da fecundidade do solo pátrio, pois se cogita também a Carta do Descobrimento como primeiro exemplar de crônica brasileira7, o fato é que há certa unanimidade em afirmar a idiossincrasia da produção nacional desse gênero. E, embora carregue em seu código genético, ou em suas raízes, essa lembrança histórica, tornou-se, nas mãos dos nossos autores, veículo muito versátil, multifacetado, e eficaz na transmissão da mensagem literária, pois que caríssimo da população. Essa estreita relação com o leitor deriva, ou se deve, ao seu florescimento, pois, e nisso também há afinidade entre os teóricos lidos, se configurou o popular folhetim como manifestação do passado em botão da crônica nacional, e o jornal como seu campo de suporte por excelência. E foi nessa folha periódica – curioso verificar algum parentesco em ascendência comum, como vê José Marques de Melo: “foi com esse sentido de relato histórico que a crônica chegou ao jornalismo,

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COUTINHO, Afrânio. “Ensaio e crônica” In: A literatura no Brasil. Rio de Janeiro:José Olympio Editora, 1986. 5 ARRIGUCCI, Davi Jr. “Fragmento sobre a crônica” In: Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 51. 6 COUTINHO, Op. Cit., p. 108. 7 SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 2008, p. 5.

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tratando-se do embrião da reportagem” 8 – que ela vai se aclimatar, prosperar e se destacar dos seus irmãos de página, como Afrânio Coutinho nos fala de José de Alencar: “a sua coluna jornalística de comentários semanais tinha um aspecto de bazar asiático, onde a imaginação poética dava imprevistas transfigurações às coisas mais vulgares ou prosaicas”9. Aqui se insere outro elo da evolução da crônica neste estudo, não tivéssemos já cogitado tal ao recordarmo-nos do texto de Caminha: a imaginação, o potencial ficcional, o poder criativo. Já no estudo de Massaud Moises vemos a ênfase ainda maior naquele contraste, divorciando os companheiros e iniciando a identidade, então, da “crônica”: Difere, porém, da matéria substancialmente jornalística naquilo em que, [...], não visa à mera informação: o seu objetivo, [...], reside em transcender o dia-a-dia pela universalização de suas virtudes latentes. Objetivo esse via de regra minimizado pelo jornalista de ofício. O cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano, desentranhar do acontecimento sua porção imanente de 10 poesia.

Se um dos focos para disseminação da matéria jornalística é a informatividade, a crônica começa a esboçar uma fecundidade própria. E é de Machado de Assis a metáfora do folhetinista “colibri”11, que esvoaça entre os vários assuntos, “todo o mundo lhe pertence”, legando à crônica essa liberdade, que só se magnífica, de penetrar, sem neles ter de permanecer ou se fixar, os espaços, todos os espaços, “o que é para o repórter um fim, para o cronista é um pretexto”12 ou, como destacará também Antonio Candido, falando já de Fernando Sabino: “tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da imaginação.” 13 Embora estabelecida essa noção de diferenciação da reportagem e afins por meio da iniciativa imaginativa, existe o debate do reconhecimento entre os gêneros (novela e romance, por exemplo), que inclusive compartilharam o mesmo espaço na 8

MELO, José Marques. “Caracterização dos gêneros opinativos – Crônica” In: A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 147. 9 p. 112. 10 MOISÉS, Massuad. “A crônica” In: A criação literária prosa – II. São Paulo: Cultrix, 1983. 11 ASSIS, Machado. “Crônicas” Apud: COUTINHO, Op. Cit., p. 104. 12 COUTINHO,Op. Cit., p. 121. 13 CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão” In: ANDRADE, Carlos Drummond et al. Para gostar de ler: crônicas. São Paulo: Ática, 1982, p. 12.

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coluna do folhetim. Afrânio Coutinho nos fala de um “elo poético espiritual”14 entre todos e Massaud Moisés evoca o “elemento literário”15 que, este, diferenciando-a da reportagem, vincula-a aos outros produtos. Aqui optamos por usar ainda os termos, reiterando, de iniciativa imaginativa, ou espírito criador. Deixando de lado a discussão sobre estabelecimento ou fixação de gênero maior, menor ou igual, dedicamo-nos exclusivamente à análise dos textos assumidos ou nomeados como “crônica” e suas características compartilhadas, identificadas, recapitulando, até agora: sua literariedade, sua natureza primitiva ligada à história e sua confabulação com o real. Outros debates se estabelecem ainda quanto ao lugar da crônica, oriunda do jornal e eventualmente transplantada ao livro. Isso se reflete na discussão do caráter efêmero da publicação periódica, pois, em uma reflexão de Massaud Moises, ela “logo é posta de lado, outras se lhe seguem no fio dos dias; nenhuma nutre veleidades de perdurar, o que seria contradizer o seu destino de fênix a renascer continuamente das próprias cinzas”16. Além dessa perecibilidade material, sua análise alerta para a intrusão desse ambiente externo no texto da crônica: novamente retornando à diferenciação do conteúdo do jornal, a crônica somente ganha a permanência por meio de vinculação com a “poesia”, com uma “fortuita afinidade entre o acontecimento e o mundo íntimo do escritor.”17 O que talvez nos permitisse inferir que, tanto mais literária, poética, criativa, mais diferenciando-se da reportagem, mais facilmente transcende, e mais naturalmente caberia no eterno livro. Ou, como diz Eduardo Portela, “o fundamental da crônica é a superação da sua base jornalística e urbana em busca da transcendência, ... construindo ‘uma vida além da notícia’, [...]”18, ao que Afrânio Coutinho complementa: “a integração da crônica se dá quando ela atinge a transcendência literária. Então ela se torna um gênero literário autônomo, [...]”19. O que nos poderia levar a um dilema cíclico: quanto mais Crônica, menos crônica – quanto mais literária, livre e poética, mais perene, mas menos histórica,

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p. 111. p. 105. 16 p. 107. 17 p. 107. 18 Apud: COUTINHO, Op. Cit., p.123. 19 p. 123. 15

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menos mundana, menos próxima dos mortais. O fato é que, entre o excelso e o terrestre, voa o colibri e sobrevive a flor, a despeito do uivo dos ventos. Antes, porém, de passarmos às crônicas de Cecília Meireles veremos como estava o mundo naquela época.

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2. HISTÓRIA, GEOGRAFIA E POLÍTICA E como eu estou lhe dizendo que o ano é de 1944, [...], o suave fantasma secular, carregado de frutas e flores, me fita com a melancolia dos que vêm para edificar, e encontram o mundo repleto de destruição. Nesse ponto, enxuga uma lágrima. Logo, porém, torna a fitar-me com esse olhar seguro dos que, apesar de todas as destruições, estão presentes, para edificar. E continuamos... (Cecília Meireles, “Sub Tegmeni Fagi...”)

Parece haver um apreço muito controverso pelo período que compreende a primeira metade da década de 1940. E, até hoje, revistas que estampam a figura do impiedoso ditador ou a insígnia alemã tendem sempre a ter um sucesso maior nas bancas. Esse estranho fascínio pela época nos leva, entretanto, cidadãos médios, a reduzir, muitas vezes, esses anos às peripécias estratégicas de comandantes, ao rugido de tanques, retumbantes bombardeios, sofrimento da população do mundo em geral, e da Europa, norte da África e leste da Ásia em especial. A América do Sul não escapa à efetiva ação bélica, bastando nos recordar de que até mesmo no estuário do Prata houve, nos primeiros anos, uma derrota da frota britânica frente ao encouraçado alemão Graf Spee, e ainda dos constantes afundamentos de embarcações brasileiras, a partir de 1942, ocasião em que o Brasil efetua sua declaração de guerra ao Eixo. Uma primeira mirada dos jornais pesquisados não muda essa visão contemporânea. “Folha Carioca”, “A Manhã”, “Jornal do Brasil” e “Estado de São Paulo” de forma quase unânime dedicavam sua capa e verso integralmente às notícias do front. Havia ainda constantes inserções em quase todo o jornal, inclusive mapas das áreas de conflito, fotos dos diversos líderes aliados, como Chiang Kai Shek, generais e principalmente do Marechal Tito. A exceção é da última folha, dedicada ao futebol e aos esportes em geral – especialmente, no período pesquisado, meados de 1944, a grande notícia, além da guerra, era a expectativa do amistoso Brasil e Uruguai. Encontramos instantâneos adequados à reconstituição do espírito da época no Correio dos Ferroviários, e numa notícia de jornal:

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Ilustração 2 – “O poema da hora presente”

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Fonte: “Correio dos Ferroviários”. Curitiba: junho/julho de 1944, p. 24. Embora não seja objeto deste estudo, para registro e talvez para constatação da transposição das publicações efêmeras às “eternas”, cabe ressaltar que este poema foi modificado pela autora quando preparou o livro Música submersa (1945) (In: KOLODY, Helena. Viagem no espelho. Curitiba: Criar Edições, 1988, p. 172): A Ampulheta da Hora Presente Torva, a ampulheta goteja sangue. A hora terrível passa, Esmagando o coração da humanidade. Pesada, a angústia escorre na ampulheta... Injusta agonia dos olhos das crianças, Trágicos e surpresos. Inquietação crescente Dos que ficaram sem destino. Contínua, Enervante, Avassaladora angústia Dos que desejariam suster a derrocada E nada podem fazer... E nada podem fazer.

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Ilustração 3 – “Suicídio”

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Abalava-se tanto a humanidade, mas não seria só espiritualmente. Cecília Meireles – que em 1937 traduzira François Perroux22, o qual, ainda em 1935 (portanto antes da re-militarização e de Chamberlain e Daladier chancelarem as ambições territoriais alemãs), alertava sobre os perigos do pensamento teutônico –, na crônica “A Longa Viagem de Volta”, posterior cronologicamente à série “Rumo: Sul”, nos dá também uma idéia dos efeitos da ação bélica: Todos os meios eram piores: de avião, provavelmente cairíamos; de ônibus, ficaríamos todos desarticulados; de trem, morreríamos de fome e tédio; e automóvel era impossível conseguir-se – pois, embora muitos não o vejam, nós somos um país em guerra. O saudoso trenzinho internacional, lotado já para dois meses. Prioridades aéreas. Navegação ameaçada. (MEIRELES, Cecília. Crônicas de Viagem. (v. 1) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 221.)

Com a navegação de cabotagem interrompida após os afundamentos e a declaração de guerra, o Brasil precisava encontrar outra forma de manter a comunicação com os países do sul, principalmente para a porção da população habituada a regalias; a possibilidade de viagem terrestre até existia, mas não oferecia o conforto requerido. Optou-se então por retomar o que seria o “trem

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“A Manhã” – Rio de Janeiro: 11.06.1944. A obra traduzida foi PERROUX, François. Os mitos hitleristas: problemas da Alemanha contemporânea. São Paulo: Nacional, 1937. Perroux foi um economista francês cujas teorias removiam as nações e as indústrias do papel principal da economia, fixando o foco nas pessoas. Alguns anos mais tarde, teria dito: "Si un seul homme n'est pas explicitement pris en compte, c'est un manque à gagner pour l'humanité". Esta obra específica, traduzida por Cecília Meireles, apontava para os perigos da fundamentação do pensamento alemão, com especial atenção para o universo mitológico que estava a compor a “alma germânica”.

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internacional”23. Ativo no início do século, em 1910, inaugurado pelo primeiro presidente a viajar de trem de São Paulo a Porto Alegre, Nilo Peçanha24, e interrompido pela Guerra do Contestado, passou a funcionar novamente em 1943, por linha similar. Sobre essa composição, no entanto, mesmo sendo única e curiosa, há profunda dificuldade em se localizar informações, conforme relatado na Introdução. Assim, mesmo sabendo que alguns dados terão valor exclusivamente anedótico, sem grande relação com a análise literária, incorporamo-los para tornar este estudo mais completo. Desta forma, legando a algum interessado a nossa contribuição (até porque não há ainda estudo biográfico completo da autora). Igualmente, já que estamos falando de crônicas, por que não adotarmos um pouco de suas boas características? Tratava-se de um comboio que saía de São Paulo (cidade conectada ao Rio de Janeiro também por outro expresso “lendário”, o “Cruzeiro do Sul”25, entre outros). E uma preciosa fonte de informação foi um sítio na Internet; uma leitora, corrigindo o jornalista que escrevera algum artigo equivocado (não se estranha, pela pouca informação disponível), enviava a ele cópia do “Guia de Viagem do Trem Internacional”: O trem Internacional que parte de São Paulo – Brasil, aos domingos às 11,45h termina sua viagem em Sant’Ana do Livramento, fronteira com o Uruguai – às 9,45h às 4ªs feiras. O trem para Montevidéu parte de Rivera – Uruguai às 17,40h., [...] que chega nas 5ªs feiras às 9h em Montevidéu. Dessa cidade a Buenos Aires podem utilizar-se dos vapores de carreira, luxuoso e confortável que 26 saem diariamente às 22h empregando 10h na viagem.

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À ameaça na navegação, fator mencionado pelo sr. Ralph Giesbrecht, o sr. Leonardo Bloomfield nos acrescentou outro: o mar agitado do Atlântico Sul inviabilizava a viagem também para pessoas suscetíveis a enjôos. 24 HAHMANN, Carl Heinz. O trem internacional. Texto traduzido e gentilmente enviado, acompanhado das fotos, pelo sr. Leonardo Bloomfield. Original em: HAHMANN, Carlheinz; e SMALL, Charles S. Brazilian steam album. (v.4) Canton: Railhead Publications, 1990. Também disponível em: http://fabioibrahim.blogspot.com/2009/05/o-trem-internacional.html - Acesso em 01.11.2010. 25 MACHADO, Ruy Affonso. “Cecília Meireles, amiga” In: GOUVÊA, Leila V. B. Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, 2007, p. 282. – O qual Cecília teria usado numa viagem a São Paulo, em 1942. 26 DIAS, Francisco Basso. Trem internacional. Sítio: http://www.clicerechim.com.br/articulistasopiniao-francisco-basso-dias-13-12-2008.htm - acesso em 28.10.2010.

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Ilustração 4 – Lista de Passageiros do Trem Internacional

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“Estação de Sorocabana, aguardando o trem internacional. Os guardas aduaneiros, senhores, são os guardas aduaneiros. Desnecessário explicar” (MEIRELES, Op. Cit., p. 81.). “Rumo: Sul (III)”, é onde se inicia a viagem ferroviária (a série de crônicas inicia no Rio de Janeiro, mas disso trataremos mais adiante), seguindo pelo interior do estado até Itararé onde, atravessando a divisa, “amanhecemos no Paraná, sob um sol de suave glória. Taças de pinheiros oferecem altos vinhos.” (Id., p. 85) E se seguia pela RVPSC (Rede de Viação Paraná Santa Catarina) pelo interior do estado do Paraná. Como nos aproximamos de alguma estação, aumenta o número de casas, aparecem mais crianças louras, mais irmãozinhos, mais flores, e agora brilha a madeira clara, desnuda, pacientemente amontoada em largas camadas de tábuas finas. Mais adiante, madeira mais nova está secando ao sol, cruzada em X. E aqui estão as serrarias. E ali estão os pinheiros.Todas as casas têm cortinas. Todas as crianças, agora, têm calcinhas de lã, casaquinhos azuis... E um leve sol dourado galopa com os cavalos soltos nesse tranqüilo mundo vegetal. (Id. p.85)

O cenário avistado pela cronista em sucessivas imagens que resultam em novos parágrafos, lembrando até uma estrutura de versos, é marcado pelo ritmo da

27

“O Estado de São Paulo” – São Paulo: 04.06.1944. (grifo nosso)

19

locomotiva, cuja velocidade costumava variar de 30 a 40 km/h28. E é decorrente do modelo de “Companhias de Colonização”, adotado pelo governo brasileiro: o capital privado recebia como doação, ou adquiria a baixo custo, as terras dessas regiões, muitas vezes intocadas, derrubava as florestas (e a Southern Brazil Lumber & Colonization Company de Percival Farquar teve a maior serraria em atividade na América do Sul, sendo responsável em parte por esta estrada de ferro), aproveitando a madeira na construção das ferrovias e na alimentação dos trens para escoamento da produção, e em seguida vendia os terrenos para imigrantes europeus, que construiriam suas casas utilizando novamente a madeira vendida por eles, obtendo assim fabulosos lucros. Desta forma, numa leitura mais aprofundada da crônica, acabamos por conhecer um pouco mais da história das “crianças louras”, das “casas” e do que um dia teria sido a vasta floresta de araucárias do interior do Paraná. Afinal, se nossa análise literária preza tanto o entendimento do texto e eventualmente de suas metáforas, por que deixaríamos de lado outros elementos da realidade objetiva igualmente reveladores?

Ilustração 5 – Ferrovias no Paraná

29

Porto União. União da Vitória. [...]

28 29

HAHMANN, Op. Cit., n. p. Fonte: "Estações Ferroviárias” - Ralph Giesbrecht - http://www.estacoesferroviarias.com.br/

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Mas os que já conhecem o caminho sabem que, entrando agora em Santa Catarina, um grande frio nos espera, pela altura de São João. [...] Mas o tem precisava partir. O trem ganhava forças para atingir mil e tantos metros. Apitou com bravura, soprou fagulhas para cima e para os lados, como um prodigioso fogo de artifício. Avançou pela noite próxima como um touro negro com bandarilhas de fogo. Escalou a montanha, intrépido. Intrépido, não: trepidava muito. (Idem, p. 87)

Ao prosseguir relatando ao leitor o trajeto, a informação de passagem do tempo, “noite próxima”, integra a construção imagética do cenário. Prosseguindo na nossa descrição geográfica, o trem sobe a serra catarinense para atingir o ponto mais alto da linha, 1.183m. Após cruzar o rio Uruguai para a cidade gaúcha de Marcelino Ramos, pouco mais adiante, “agora já é madrugada no Rio Grande do Sul. Grandes névoas envolvem os campos imensos” (p. 89). O comboio passa a trafegar pela VFRGS (Viação Férrea Rio Grande do Sul), sendo ainda por Cecília Meireles nomeadas diversas estações gaúchas e descritas as paisagens do planalto médio gaúcho, até que há um reencontro da geografia com a história: “vamos chegar daqui a pouco em Passo Fundo. E pelo trem circula a grande notícia, recebida durante a noite [anterior]: começou a invasão da Europa. É feriado em Passo Fundo, por esse motivo” (p. 91)30.

Ilustração 6 – “Início da invasão da Europa”

30

31

Embora não se trate efetivamente da “invasão da Europa”, pois desde 1943 os aliados já estavam no sul da Itália, todos os jornais da época noticiaram desta mesma maneira. 31 “Jornal do Brasil” – Rio de Janeiro: 06.06.1944.

21

Esta é, na ordem cronológica de publicação das crônicas, a primeira menção ao acontecimento mundial e, na nossa situação de leitores não contemporâneos à publicação primitiva, seria o momento em que identificaríamos a primeira referência temporal intratexto, se o organizador tivesse extraído a data de veiculação no periódico ao texto, como foi feito na publicação da crônica de “Rumo: Sul” contida na coleção Melhores Crônicas32, mas a isso retornaremos na conclusão desta seção. Novamente como informação anedótica à velocidade de proliferação de notícias, hoje tida como grande avanço tecnológico, o “Jornal do Brasil” foi o primeiro dos jornais pesquisados a estampar a manchete já na sua edição de 6 de junho de 1944 (a invasão ocorrera à 0h30 de 06.06.1944, portanto ainda noite de 05.06.1944 no Brasil).

Ilustração 7 – Ferrovias no Rio Grande do Sul

33

“Rumo: Sul (VI)” (p. 93) descreve toda a transposição do cenário do planalto médio gaúcho até chegar à vastidão dos pampas, e seus campos cultivados, onde,

32

MEIRELES, Op. Cit., 2003. Não se trata de crítica à seleção do dr. Leodegário, pois a crônica selecionada não faz efetivamente menção a “eventos contemporâneos”, como a de que neste momento tratamos. 33 "Estações Ferroviárias” - Ralph Giesbrecht - http://www.estacoesferroviarias.com.br/

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porém, escassamente se avistam pessoas ou casas, até que anoitece. E a crônica subseqüente inicia já na cidade de fronteira: Santana do Livramento. Os Agentes de viagem folheiam os papéis de seus fregueses, separam as malas, chamam seus empregados, apontam para os automóveis. [...] Deste lado é o Uruguai. Do lado de lá é o Brasil. A rua passa no meio. (Id., p. 97)

Ironicamente, o “trem internacional” brasileiro nunca deixa o Brasil. A viagem prossegue numa composição uruguaia, da FCCU (Ferro Carril Central del Uruguay), de Rivera a Montevidéu. Tido como a “Suíça das Américas”, tanto pelo destaque do seu setor bancário, quanto pelo desenvolvimento humano e estabilidade política (o declínio somente viria na segunda metade do século XX), o Uruguai vivia um período de efusão cultural34. Tinham o seu 27º presidente, enquanto o Brasil, em seu 14º, amargava os últimos anos da ditadura de um contraditório e declinante Estado Novo, de Getúlio Vargas, e todas as conseqüências dele, como a censura. Segundo testemunho de Ruy Affonso: Passando uns dias em São Paulo, em julho de 1944, de volta da Argentina e do Uruguai, Cecília aqui chegou encantada pela maneira como foi recebida naqueles países, e entusiasmada com o movimento cultural que neles pode constatar. Israel Dias Novaes entrevistou-a então para o Correio Paulistano, tendo obtido dela 35 declarações cheias de interesse e de vida.

Já, conforme interessa ao restante deste trabalho, a outra nação platina visitada pela autora, a Argentina, atravessava período de repressão até mais acentuada que a praticada no Brasil. Recém saía da “década infame”, onde eram usuais as fraudes eleitorais, para o golpe militar, e breves governos de diferentes generais; faltavam dois anos para a ascensão de Perón.

34

Embora não seja foco deste estudo (integração literária sul-americana), contribui para o entendimento conhecer que, ainda em agosto de 1932, muito antes de Cecília Meireles ser premiada pela ABL (Viagem, 1939), com 3 livros publicados em Portugal e colaborações em revistas, Ildefonso Pereira Valdez fazia na Universidad de la República uma conferência intitulada “La Poesia de Cecília Meireles”. Além disso, em Montevidéu havia se exilado Jorge Amado, e visitavam a cidade assiduamente Newton Freitas e Cândido Portinari, houve visitas de Gilberto Freire, conferência de Guilherme de Almeida e, dos modernistas, mantinham correspondência com intelectuais uruguaios Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Carlos Drummond, entre outros. In: ANDRADE, Gênese (ed.); ROCCA, Pablo Hugo (ed.). Un diálogo Americano: modernismo brasileño y vanguardia uruguaya (1924-1932). “Cuadernos América sin nombre”. Montevidéu: Compobell, 2006, e ROCCA, Pablo Hugo. Angel Rama, Emir Rodríguez Monegal y el Brasil: dos caras de um proyecto Latinoamericano. 2006. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,USP, São Paulo. 35 MACHADO, Op. Cit., p. 288.

23

Para a conclusão desta seção de “história, geografia e política”, evocando o dilema que deixamos para trás, quanto à importância da data de veiculação no periódico na publicação dos textos das crônicas, e a fim de deixar claro o raciocínio a que se filia esse estudo, primeiramente, lembramos João do Rio, citado por Afrânio Coutinho: “tinha ele a impressão de que a crônica podia ser ‘o espelho capaz de guardar imagens para o historiador do futuro’”36. Complementarmente, para trazer um pouco do humanismo oriental tão caro à autora em estudo, um intelectual chinês, Lin Yutang37, na sua obra Minha Terra, Meu Povo: Em todo estudo de um período literário, ou de uma época histórica, o esforço final e mais importante tende sempre para atingir uma vista precisa do homem desse tempo; com efeito, por trás das ficções literárias e dos acontecimentos históricos, 38 o interesse primordial concentra-se para nós no indivíduo.

Assim, retomando o “breve estudo da crônica”, ocasião em que frisamos os pontos caros a este estudo39, além da menção que fizemos a crônica publicada em livro sem inclusão de referência à sua veiculação primitiva, entendemos que extrair tal data ao texto, no ímpeto de lhe dar ares de eternidade, arrebatando-o do rés-dochão, é eventualmente negar a herança de relato histórico em nome de uma temerária “evolução natural”, um upgrade no ranking literário. O resultado acaba por privar o leitor de vivenciar, e a literatura, de certa forma, de uma função que só ela pode desempenhar singularmente: o registro legitimamente humano da época – paradoxalmente, a eternização de um instante vivido; síntese das ciências humanas da história, geografia, sociologia, antropologia etc. Mas sem termos a informação de qual instante, como sabê-lo? Na mesma linha do dilema cíclico da seção anterior, sobre as crônicas que a autora em estudo escreveu sobre sua cidade natal: o Rio de Janeiro de Cecília Meireles é o mesmo Rio? Qual Rio? Quando? Em “Rumo: Sul”, era a capital do

36

p. 116. Diversas vezes nomeado ao Nobel de Literatura, professor de Literatura Inglesa na Universidade de Pequim (1923 – 1926), tradutor, entre outros pensadores, de Confúcio, foi autor de uma vasta obra própria que, desde a década de 1930, divulgou o pensamento, cultura, hábitos e história da China. É citado por Cecília Meireles na crônica “[Lin Yutang e o turismo]” e um de seus tradutores mais conhecidos foi Mário Quintana. Fontes: Wikipedia - http://en.wikipedia.org/wiki/Lin_Yutang acesso em 01.11.2010; e MEIRELES, Cecília. Crônicas de educação (v. 5). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 7. 38 LIN, Yutang. Minha terra e meu povo. Rio de Janeiro: Pongetti, 1939, p. 33. 39 Relação com o relato histórico; natureza literária; parceria com o real; efemeridade. 37

24

Estado Novo, Distrito Federal onde circulavam nas ruas os pedestres40 e os gasogênios41, pouco depois, palco dos chamados governos populistas, após, “cidade-estado”, sede do governo da Guanabara. Guardam todos relações com o “nosso” Rio contemporâneo, metonimicamente lembrado pelas tragédias e crimes, mas quando foi que se transformou em “Esta triste cidade”? Tínhamos orgulho da boa gente simples. Simples mas honrada. Pobre mas limpa de coração. Era no tempo dos pretos de alma branca e dos anjos de cara suja! (Então aumentaram as lambretas, os automóveis, prosperou a indústria da maconha, [...] (MEIRELES, Op. Cit., (v. 2) p. 1.)

Ilustração 8 – Arpad, Cecília e Vieira da Silva em favela do Rio de Janeiro

42

Embora seja um questionamento ingênuo (sobre ser o mesmo Rio), até porque eventualmente o autor quer constituir seu texto de forma a trabalhar, flexionar ou mesmo confundir o fator temporal, sem contar ainda a hipótese de a

40

Veremos na análise, em Anedotas. Automóvel adaptado para funcionamento híbrido. Motor movido a combustível de origem fóssil auxiliado por um mecanismo de caldeira similar ao dos trens a vapor. Bastante presente no Brasil narrado em “Rumo: Sul”. 42 Arpad Szenes e Vieira da Silva estiveram no Brasil de 1941 a 1947, não pudemos, no entanto, fixar a data da foto. Ela aparece em LEMOS, Fernando. “Vieira da Silva no Brasil” Apud: PEREIRA, Amanda Reis Tavares. Viagens e souvenirs: uma conversa entre Cecília Meireles e Viera da Silva. 2007. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária), Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, p. 10. 41

25

crônica ser escrita em data muito distinta da sua publicação43, nos afinamos com o pensamento de que esse é um questionamento válido à natureza da crônica clássica efêmera, publicada em periódico datado, como é o caso das “Rumo: Sul”.

43

“As crônicas do Jornal do Brasil não me preocupam porque tenho um punhado delas, é só escolher uma e pronto.” – Clarice Lispector em carta ao seu filho Paulo. In: GOTLIB, Nádia. Clarice: Uma vida que se conta. Apud: SOUZA, Thaís Torres. As crônicas de Clarice Lispector. Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/c00012.htm - acesso em 01.11.2010.

26

3. NOTA SOBRE A “FOLHA CARIOCA” O tema da peça de Lorca não foi uma invenção arbitrária do poeta: baseia-se como conta Angel Del Rio, numa notícia de jornal. Isso não lhe diminui o valor – ao contrário: e serve para reafirmar aquela capacidade que ele tão bem possuía de combinar a realidade com a imaginação, o que aconteceu com o que seria possível acontecer, se o Fado pedisse a colaboração das mãos dos poetas. (Cecília Meireles, “Bodas de sangre”)

Um dos pontos de partida para esta seção, que trata do periódico divulgador da série “Rumo: Sul”, além dos esboços biográficos citados na Introdução, foi o texto de Karla Mendes: Exemplo disso é a seqüência de vinte e cinco crônicas intituladas “Rumo: Sul”, que descrevem a viagem de Cecília pela recém inaugurada linha de trem que ligava São Paulo a Montevidéu e que esteve ativa de 1940 a 1964. O periódico Folha Carioca incumbira Cecília Meireles de escrever as impressões do trajeto aos 44 leitores curiosos com a nova rota de viagem.

Na verdade, os 66 anos que nos separam das publicações originais tornaram bastante complicada a obtenção de dados. Especificamente sobre o periódico em si, somente foi possível encontrar algumas poucas informações na Internet e quase nada em livros45, enciclopédias ou catálogos jornalísticos, mesmo na Biblioteca Nacional (RJ). Novamente, compilamos aqui todas as informações obtidas. A “Folha Carioca” muito provavelmente passou a circular em janeiro de 1944, sendo interrompida em dezembro de 195346. Era um vespertino47 dirigido, à época consultada para o estudo (maio a setembro de 1944), por Adherbal Novaes,

44

MENDES, Karla Renata. Cecília Meireles viajante: visões do presente e do passado nas crônicas sobre Portugal. 2010. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários), Faculdade de Ciências Humanas e Letras, UFPR, Curitiba. 45 A mesma dificuldade é inclusive relatada por um dos estudos consultados: STEFFENS, Marcelo Hornos. Getúlio Vargas biografado: análise de biografias publicadas entre 1939 e 1988. 2008. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte, p. 37. 46 Segundo o catálogo da Biblioteca Nacional, a primeira “coleção” de “Folha Carioca” preservada vai do exemplar número 5 ao 79 e compreende edições de janeiro a março de 1944, indicando uma possível entrada em circulação no primeiro mês deste ano (1944). A última coleção da circulação ininterrupta, pois em 1998 parece haver um ressurgimento, é de dezembro de 1953. 47 LOBATO, Manoel. “Eu era redator de um vespertino chamado ‘Folha Carioca’” In: Jornal “O tempo” - http://www.otempoonline.com.br/otempo/colunas/?IdEdicao=1305&IdColunaEdicao=8619 – acesso em 01.11.2010.

27

secretariado por Waldemar Lopes, gerido por Wilson Ferreira48 e tinha a direção de arte de Andrés Guevara49, designer e cartunista paraguaio que viveu 13 anos na Argentina antes de retornar para trabalhar na “Folha”50. Tratava-se de publicação standard com oito páginas51 e ia às bancas de segunda a sábado. Entre os autores que assinaram “colaborações” (página cinco), estão: Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Costa Neves, Benedict Silva, Arthur Ramos, José Mariano Filho, Dias da Costa, Oswaldo Alvez, Adhemar Vidal, Graciliano Ramos, Sérgio Milliet e Gabriela Mistral. O “Boletim Literário”, quase colado à “colaboração”, era editado por Valdemar Cavalcanti e versava sobre notícias do universo literário52, crítica, resenhas de livros e resumos de suplementos literários de jornais brasileiros e argentinos. Entre os exemplares analisados chamaram-nos a atenção algumas reportagens cujos temas se voltavam aos países visitados pela autora (4 em menos de 15 dias53), apontando senão uma tendência, pelo menos um interesse em informar sobre acontecimentos e fatos vinculados à Argentina e ao Uruguai, incluindo ainda o Chile. Em se tratando da confirmação da hipótese que inicia esta seção, efetuamos ainda pesquisa na Biblioteca Nacional do Uruguai, consultando o periódico “El País”, onde localizamos notas que anunciavam duas conferências realizadas por Cecília Meireles naquela capital: a primeira na Universidad de La República, no salón de actos, convidada por “Arte y Cultura Popular”, com o tema “Lirismo Popular Brasileño”, às 18h30 do dia 20.06.194454; e a segunda, na sede do “Club Brasileño”, sob os auspícios do “Instituto Cultural Uruguayo – Brasileño”, com o tema “Poetas

48

A fonte desses dados é o box “serviço”, logo abaixo do “título” do jornal. Não foi, no entanto, possível encontrar nenhuma informação sobre essas pessoas. 49 SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 50 AZEDO, Maurício (resp.). “Guevara, um paraguaio brasileiro”. Rio de Janeiro, Jornal da Associação Brasileira de Imprensa, outubro, 2007, p. 11. 51 Os assuntos de cada página, conforme descrição que permanece relativamente mantida ao longo dos exemplares consultados são: capa; telegramas, policiais e informações; editorial, pulso da guerra e reportagens; sociedade, teatro, cinema e rádio; colaboração, boletim literário e nota estatística; problemas da cidade, trabalho, previdência e notícias; futebol, turfe e outros desportos; e esportes. 52 A título de ilustração, coerente com o estudo, citamos que em 02.08.1944, o “Boletim Literário” intitulou-se “cronistas à espera dos nossos editores”: “na literatura brasileira há um gênero que parece mesmo ter o destino infeliz de patinho feio: é a crônica”, passando então a lamentar não estarem compiladas e publicadas crônicas de grandes autores como Drummond e Rachel de Queiroz, além de Rubem Braga possuir apenas um único volume disponível. 53 Compilamos alguns resumos de textos da “Folha Carioca” no apêndice ao estudo. 54 “Cecília Meireles hablara el proximo martes 20” – “El País” – Montevidéu: 17.06.1944.

28

brasileños contemporáneos”, às 18h30 do dia 23.06.194455 e cujo resumo, publicado a seguir no mesmo jornal, integra os anexos deste estudo.

Ilustração 9 – Conferências de Cecília Meireles em Montevidéu

A realização de conferências por Cecília Meireles nas viagens que efetua é quase uma constante56 e isso, por si só, não invalida globalmente a hipótese de Karla Mendes de que as crônicas tenham resultado de encomenda prévia por parte do periódico. A pesquisa à “Folha Carioca” não resultou em qualquer elemento que a confirmasse (não houve qualquer anúncio ou menção no jornal à natureza da série de crônicas, tampouco qualquer referência ao trem internacional), também não encontramos informações suficientes e convincentes para uma associação da equipe integrante do jornal a algum interesse no trajeto ou na viagem da cronista. Destarte, não temos condições nem de confirmar nem de negar a hipótese, deixando o esclarecimento completo a um eventual futuro biógrafo da autora em estudo. Antes de passarmos à segunda parte desta seção, cabe ainda ressaltar uma particularidade das crônicas “Rumo: Sul” entre todos os volumes pesquisados e relacionados na bibliografia: elas são as únicas (com exceção da “XII”, que é um

55

“Cecilia Meireles dara hoy otra conferencia” – “El País” – Montevidéu: 23.06.1944. As visitas a Portugal, Estados Unidos e México, efetuadas aquela quase 10 anos antes e, esta, próximo de 4, também assim foram. 56

29

texto ininterrupto) a serem subdivididas em capítulos57. Outras crônicas até possuem separadores, mas nunca capítulos numerados. Além disso, recordamos que só mais uma crônica (“Precursoras brasileiras”) é referenciada nos volumes das Crônicas de viagem como publicada neste periódico. Nós, igualmente, não localizamos nenhuma outra contribuição de Cecília Meireles. A primeira “Rumo: Sul” estreou na “Folha Carioca” no dia 12.06.1944, segunda-feira, no centro da página cinco, ladeada de uma “colaboração” (crônica) de Carlos Drummond de Andrade58. Juntas, ocupavam um espaço de tamanho inédito dado à literatura nas edições pesquisadas do jornal. A partir da “Rumo: Sul (II)” (na semana seguinte), como era de uso da publicação na diagramação dos textos dos “colaboradores”, foi incorporado um retrato59 de Cecília Meireles bem no centro da coluna. Mais tarde, os textos passariam para a terça-feira e ocupariam o lugar do “colaborador”, ao qual se somava o “Boletim Literário”, apenas, como publicações de cunho literário. Quanto às datas de publicação originais, passamos a compilar, abaixo, resultado da pesquisa ao acervo da Biblioteca Nacional (RJ), que apontou alguns dados complementares aos oferecidos pelo dr. Leodegário de Azevedo na organização e publicação do volume 1 das Crônicas de viagem de Cecília Meireles: as datas exatas de publicação dos textos na “Folha Carioca”, até setembro de 194460. Título da Crônica

Data no rodapé do texto

Data na “Folha Carioca”

“Rumo: Sul (I)”

“Junho de 1944”

12.06.1944

“Rumo: Sul (II)”

“Junho de 1944”

19.06.1944

“Rumo: Sul (III)”

“Junho de 1944”

26.06.1944

“Rumo: Sul (IV)”

“Junho de 1944”

03.07.1944

“Rumo: Sul (V)”

“Junho de 1944”

11.07.1944

“Rumo: Sul (VI)”

“Junho de 1944”

18.07.1944

57

Chamar de capítulo é iniciativa da própria cronista: “depois chega Policarpo Melo. Mas esse merece um capítulo especial.” (MEIRELES, Op. Cit., p. 98). 58 A crônica de Drummond versava sobre a madrugada do dia 6 de junho (“Dia D”) no Brasil. 59 Na verdade o conhecido desenho de Arpad Szénes. 60 Além disso, compilamos também informações obtidas ao longo do estudo, referentes às datas que pudemos verificar ou que pudemos especular com fundamentação para a ocorrência dos eventos narrados nos textos, tais constam nos anexos.

30

Título da Crônica

Data no rodapé do texto

Data na “Folha Carioca”

“Rumo: Sul (VII)”

“Junho de 1944”

25.07.1944

“Rumo: Sul (VIII)”

“1º.08.1944”

1º.08.1944

“Rumo: Sul (IX)”

“Junho de 1944”

09.08.1944

“Rumo: Sul (X)”

“Junho de 1944”

15.08.1944

“Rumo: Sul (XI)”

“Junho de 1944”

23.08.1944

“Rumo: Sul (XII)”

“Junho de 1944”

29.08.1944

“Rumo: Sul (XIII)”

“Junho de 1944”

06.09.1944

“Rumo: Sul (XIV)”

“Junho de 1944”

13.09.1944

“Rumo: Sul (XV)”

“Junho de 1944”

20.09.1944

“Rumo: Sul (XVI)”

“Junho de 1944”

26.09.1944

“Rumo: Sul (XVII)”

“05.10.1944”

(03.10.1944)61?

“Rumo: Sul (XVIII)”

“10.10.1944”

(10.10.1944)?

“Rumo: Sul (XIX)”

“Junho de 1944”

(17.10.1944)?

“Rumo: Sul (XX)”

“Junho de 1944”

(24.10.1944)?

“Rumo: Sul (XXI)”

“Junho de 1944”

(31.10.1944)?

“Rumo: Sul (XXII)”

“Junho de 1944”

(07.11.1944)?

“Rumo: Sul (XXIII)”

“Junho de 1944”

(14.11.1944)?

“Rumo: Sul (XXIV)”

“Junho de 1944”

(21.11.1944)?

“Rumo: Sul (XXV)”

“Junho de 1944”

(28.11.1944)?

Tabela 1 – Quadro das datas de publicação na “Folha Carioca”

Bem assentados no contexto de composição, publicação e na linha do tempo, estreitamento da simbólica ampulheta da Introdução, passamos às crônicas em si.

61

A partir deste ponto, as datas de publicação na “Folha Carioca”, conforme dificuldade relatada na Introdução, passam a ser apenas sugeridas. Quanto a esta contradição específica, certamente a data do livro estará correta (como estava em “Rumo: Sul” VIII). Colocamos a dúvida apenas porque as crônicas, a partir do dia 11.07.1944, passaram a ser publicadas nas terças e eventualmente nas quartas. No entanto, podem ter ocorrido eventos similares ao que ocorreu com a crônica “Rumo: Sul” IX, que foi publicada na quarta porque, no dia anterior, o espaço foi ocupado por um anúncio imobiliário de página inteira. Fato é que a data seguinte é novamente uma terça-feira.

31

4. RUMO: SUL A própria natureza se faz presente e colabora: águas, areias, árvores, flores, luar, sol, estrelas, pássaros, tudo intervém, isoladamente ou em conjunto, imprimindo sua cor e sua música às cenas que se desenvolvem, prolongando para mais longe o sentido de cada episódio. (Cecília Meireles, apresentação a “Çaturanga”)

Nesta seção trataremos da análise do texto literário em si, via excertos. Optamos por organizá-la em subseções segundo agrupamentos temáticos (Guerra, Anedotas, Reflexões Filosóficas e Associações), características que julgamos encontrar reiteradamente ao longo da série de crônicas, ou segundo títulos vinculados aos elementos da narrativa (“Escritora”, narrador; Panorama, espaço; e Paisagem humana, personagens), e ainda duas seções iniciais de esclarecimento e organização (Resumo e Preâmbulo). Ao longo de todas as subseções serão abordados detalhes de estilo e eventualmente do tempo da narrativa. A análise segue, na medida do possível e sempre que suficientes, utilizando como título e instrumentos de análise e compreensão, palavras e “lições” da própria série “Rumo: Sul”. Trata-se de uma série bem longa (cerca de 100 páginas do volume Crônicas de viagem). Assim, a fim de aproveitarmos ao máximo o texto das próprias crônicas, apenas ilustrativamente abordamos outros textos, e apenas em Associações, pela própria natureza da subseção,

buscamos

fora

da

narrativa

instrumento

complementar

à

sua

compreensão. 4.1 Resumo E, sendo os heróis de Tagore e seus problemas e seu ambiente nitidamente indianos, é importante observar como alcançam de repente dimensões maiores, perdendo seus horizontes particulares e projetando-se na vida universal. (Cecília Meireles, apresentação a “Çaturanga”)

Considerando que se trata de um universo de vinte e cinco crônicas, optamos, nesta nossa leitura, por efetuar um resumo da narrativa e um quadro sintético que

32

agregasse suas informações em ordem cronológica, para referência em relação à localização dos excertos. Ou, explicando metaforicamente: aqui abaixo está o nosso mapa e, depois, alguns dos tesouros que julgamos ter avistado. Título

Nº de

“Rumo: capítulos

Localização

geográfica

/ Tempo

cronológico

da

cenário enfocado

narrativa

Rio de Janeiro / Estrada Rio-

Durante o dia até o anoitecer

Sul...” (I)

5

São Paulo (II)

4

Bananal / São Paulo

Dia / Amanhecer

(III)

5

São Paulo / Estação

Desde a manhã até o

Sorocabana / Trem / Itararé

anoitecer

Paraná / Mal. Mallet / Porto

Desde a manhã até o

União / “São João”62

entardecer

(IV) (V)

5 5

Rio Grande do Sul / Erechim / Madrugada até o final da Passo Fundo

manhã

(VI)

4

Passo Fundo / Interior do RS

Depois do almoço até a noite

(VII)

5

Santana do Livramento /

Pela manhã até final da tarde

Rivera (VIII) (IX)

5 5

Rivera / interior do Uruguai /

Final da tarde / noite /

trem / Montevidéu

amanhecer

Montevidéu / hotel / Instituto

Manhã / Tarde / Noite

Cultural Brasil-Uruguai / Hotel (X)

5

(Montevidéu) Instituto Cultural ? / noite Brasil-Uruguai / automóvel

(XI)

5

(Montevidéu) Universidad de

?

la Republica / salão “Amigos del Arte” (XII)

-

(Montevidéu) Casa de chá / a “Mesquita” (boate)

62

Vila de São João dos Pobres / SC – Estação Matos Costa

? / noite

33

Título

Nº de

“Rumo: capítulos

Localização

geográfica

/ Tempo

cenário enfocado

narrativa

cronológico

Sul...” (XIII)

5

(Montevidéu) Recordações?

?

(XIV)

5

(Montevidéu) Dieceocho de

Manhã / almoço / tarde

Julio / casa de Carlos Rodriguez Pintos / jardins de Montevidéu (XV)

5

(Montevidéu) Conferência

?

sobre o Brasil / Café Sorocabana (XVI)

5

(Montevidéu) recordações /

? / ? / tarde

ônibus / sobrado de uma senhora não identificada (XVII)

5

(Montevidéu) casa-museu

? / ? / cinco da tarde

Lavalleja / outro museu / casa de chá (XVIII)

5

(Montevidéu) ateliê de

? / ? / noite

Arzadum / ruas de Montevidéu / restaurante Cassones (XIX)

5

(Montevidéu)

?

recordações? (XX)

4

Recordações / cabine do

Noite

vapor que vai a Buenos Aires (XXI) (XXII)

5 5

Vapor / alfândega / hotel /

Madrugada / manhã /

ruas de Buenos Aires

amanhecer / ?

(Buenos Aires) Hotel / casa

Amanhecer / ? / noite

de modas / ateliê de pintura (XXIII)

5

(Buenos Aires) ? / bairro da

? / meio-dia

Boca (XXIV)

5

(Buenos Aires) ? / clube popular em Flores

? / noite

da

34

Título

Nº de

“Rumo: capítulos

Localização

geográfica

/ Tempo

cenário enfocado

narrativa

(Buenos Aires) hotel

Manhã

cronológico

da

Sul...” (XXV)

5

Tabela 2 – Quadro Sintético

Deixando o Rio de Janeiro de carro rumo a São Paulo, a cronista narra algumas conversas com o motorista e algumas cenas que visualiza. Após uma parada em Bananal, no meio do caminho, já estamos na capital paulista. Ao longo do dia que se passa lá, observa-se a cidade, o hotel e há uma breve passagem pela farmácia. Pela manhã, conversa-se com o garçom, durante o desjejum, e logo se segue para a estação, onde se observa a rotina de embarque e os companheiros de viagem. O trem parte e chega à divisa em Itararé. A narrativa intercala cenas avistadas pela janela do comboio com outras passadas no seu interior, incluindo alguns diálogos entre os passageiros. É quase noite quando se cruza Santa Catarina, e a narrativa se interrompe para ser retomada na madrugada e ao longo da manhã, povoada de paisagens, no Rio Grande do Sul. Assim se continua, revelando algumas reflexões que se teve, até nova parada em Santana do Livramento, divisa com o Uruguai. Nova rotina de alfândega, diálogos dos passageiros com funcionários, pequena parada num hotel e, antes do embarque e partida, ficamos conhecendo Policarpo Melo. A noite logo cai, reflete-se sobre a paisagem invisível, e a atenção volta-se do exterior para o que agora ocorre dentro do trem, seu ritmo e as conversas entre os viajantes; chega-se a Montevidéu. Há o encontro com amigos, com o hotel e algumas reflexões sobre tudo isso. Visita-se o Instituto Cultural Uruguaio-Brasileiro, conhecemos seu interior e algumas de suas rotinas, assiste-se a um concerto e, pouco antes de dormir, recorda-se de algumas paisagens avistadas. Da capital da República Oriental do Uruguai, ao longo de alguns dias, ficamos conhecendo um pouco sobre suas ruas, paisagens pitorescas, vida cultural como cinema, teatro, galerias e a sua Universidade. Ocorrem diversos jantares e reuniões, conhece-se alguns intelectuais (Gastón Figueira, Pedro Varela, Carlos Rodríguez Pintos e Juana de Irbarbourou e sua poesia, entre outros – menciona-se, de forma especial, os artistas plásticos TorresGarcía e Figari), visita-se ateliers, museus, casas de amigos, e passa-se uma noite

35

na “Mesquita” – casa noturna onde se assiste a alguns shows. Lemos ainda referências a pratos locais e lugares para comer. Comparece-se a uma escola de declamação, freqüenta-se diversos cafés (o café brasileiro, grande produto de exportação e identificação do país) e observa-se sobre livros e livrarias. Pela capital, circulam os percherões, enormes cavalos, os quais são celebrados por uma cronista que tenta despedir-se deles e da cidade. Finalmente, parte-se, narra-se saudades e recordações de noites em casa de Vaz Ferreira, reitor da Universidade em Montevidéu, reflexões, concluindo com a rotina do vapor, rumo a Buenos Aires. Na chegada, novo encontro com a burocracia, os eventos e passageiros no desembarque. Do hotel, pela janela, pelo rádio, para as ruas e as pessoas, começa-se a tomar conhecimento da Argentina e do argentino. O clima, os vendedores, uma reunião num atelier, e a aprendizagem do lunfardo e do vesre (quando se fala as sílabas ao contrário) nos são contados. Almoça-se e circula-se pelo bairro da Boca. Assiste-se com interesse a um espetáculo folclórico num bairro popular. E uma velhota, cujos ponchos enfeitavam o clube, visita a cronista no hotel. Aquela senhora é a última personagem que conhecemos, é dela a voz na última frase das crônicas: “eu sou aquela que teceu o seu [de Vargas] poncho de vicunha, de beiradinha verde e amarela!” Encerrando essa subseção, para começarmos a análise, o primeiro parágrafo da primeira crônica: Não é que, como a querida Katherine Mansfield, eu tenha um fraco pelos penteados: o que eu tenho é uma constante simpatia pelo meu cabeleireiro, que, além de profissional honesto, é admirador das belas-letras, filósofo, moralista e devoto de Gandhi. Que terei feito de tão bom, meu Deus!, na última encarnação, 63 para merecer um cabeleireiro assim? (R:S, I, 1, p. 73)

O primeiro encontro é com o cabeleireiro. Uma parada antes de se iniciar a viagem.

63

Como recurso formal, passamos a abreviar “Rumo: Sul” por R:S, seguidos do número da crônica em algarismos romanos – no original, entre parênteses –, do capítulo numerado, em numeração indoarábica, e da página em MEIRELES, 1998, v. 1.

36

4.2 Preâmbulo A morada do homem, o extraordinário. (Heráclito de Éfeso)

Já não mais é possível viajar pelo mesmo trem internacional tomado pela autora, sequer é possível chegar às estações em ruínas, muitos dos pinheiros ao lado da ferrovia já foram derrubados, a guerra já acabou, o jornal já vendeu sua última edição há décadas, Tito tornou-se ditador, não se usa a mão inglesa em Montevidéu há 50 anos, e os “marqueses de Botas Largas” já se decompuseram em seus dignos mausoléus, então, que legado é este que nos deixou Cecília Meireles? Entendemos as crônicas R:S como documento da viagem de um ser humano atento por aquela América, uma corda que nos conecta, leitores contemporâneos, àqueles momentos vividos e que, pela tensão e vibração na leitura, nos traz alguns de seus acordes. Veremos agora o que diz ou contradiz, se confirma ou nega uma visão de mundo em guerra e se nos revela aspectos verdadeiros da existência, ou seu perecimento. Isso tudo como uma simples ida ao cabeleireiro se torna terapia, lição de filosofia, ou, na crônica, de crítica literária: Mlle. Solange, sempre que vai a algum lugar, escreve um livro, e pede aos amigos que distribuam uns tantos volumes pelos conhecidos. [...] E ele, brandindo a escova, me diz com a mais séria inocência que pode ter uma criatura humana: “A senhora devia fazer como Mlle. Solange.” Vamos ver. (R:S, I, 1, p. 73)

O fato é que antes das R:S, que estão logo no primeiro volume da compilação Crônicas de Viagem, encontramos apenas 13 textos, que nos contam fragmentos de viagens a Portugal (uma crônica escrita bem posteriormente, com recordações e divulgação de textos de cantigas populares), Estados Unidos (em que o foco foi o movimento Spirituals64) e México (textos muito líricos e plásticos, esses sim narrando até alguns deslocamentos, guardando semelhanças com as R:S, mas, também, como recordações). E, embora saibamos que “A Nação” e “A Gazeta”

64

Movimento musical afro-americano vinculado à religiosidade e associado ao Father Divine, um guia espiritual cristão cercado de muitas especulações e controvérsias, à época.

37

ainda teriam recebido textos daquela mesma viagem a Portugal65, aos quais não tivemos acesso, eles bem poderiam se tratar de textos de divulgação ou de crítica literária, ou mesmo de encontro com personalidades. Isto ocorre inclusive com alguns textos publicados no jornal “A Manhã”, versando sobre encontros ocorridos nessa mesma viagem narrada em R:S e ainda não editados em livro. Como dissemos, não pudemos identificar a natureza de um contrato com a “Folha Carioca”. No entanto, podemos ver nesse trecho inicial eventualmente uma proposta de narrativa, até como um elemento precursor, elo, entre as colaborações fragmentárias anteriores e a grande produção cujo moto é a viagem e que se segue a R:S. Em tempo, o sábio cabeleireiro que sugere tal empreita literária, até “suspeita que eu escrevo, mas não sabe ao certo quem sou.”66. Vamos ver.

Ilustração 10 - Cecília Meireles - desenho de Arpad Szénes

65 66

MENDES, Op. Cit., p. 32. Idem Ibidem.

38

4.3 “Escritora” Quando encontrei Satish pela primeira vez, pareceu-me que ele todo brilhava como uma constelação, com seus olhos luminosos, seus dedos afilados em chamas, seu rosto radioso de ardente juventude. Fiquei estupefato ao descobrir que, na sua maioria, os estudantes, seus colegas, o detestavam, pela única razão de ele se assemelhar, antes de tudo, a si mesmo. A melhor proteção para o homem, como para o inseto, é ainda tomar a cor daquilo que o rodeia. (Rabindranath Tagore, “Çaturanga”)

Esta subseção é dedicada aos excertos que elencam caracteres de viés, de certa forma, biográfico, que identificam e particularizam a visão e a atitude adotada pela cronista. Não os vemos como elementos da personalidade da autora, a princípio, embora “Escritora” possa confundir, mas de postura da narradora. E ocorre em R:S algo que, ao longo de nossas leituras, nos pareceu especialmente raro, e de cujo excerto emprestamos o termo título desta subseção: Um tenor de brilhante na camisa e casaca até o calcanhar – o número mais formal do programa – vem cantar “em homenagem à escritora que honra esta casa [a “Mesquita”]... etc.” (Tudo traição dos amigos.) (R:S, XII, p. 119)

Na verdade, trata-se do único momento nas R:S em que há uma reação direta à presença passiva da “escritora” no plano de ação, por assim dizer. Complementando, é até desnecessário dizer que não há arroubos de celebridade por parte de Cecília Meireles. O que ocorre aqui é exatamente o contrário: ao excerto se segue uma real celebração, mas do “tenor”, de sua “voz enorme”, que preenche o parágrafo inteiro. Aliás, a citação é voz dele, também, à qual a narradora cede espaço. Exatamente o contrário acontece quando se revela que “apesar da greve, não falta público para esta conferência sobre o Brasil. O anfiteatro da universidade está cheio.” (R:S, XV, 2, p. 129). Tendo conhecimento de que a princípio seria ela própria uma das conferencistas, é digno de nota que não haja sequer menção sutil a isso. Ou melhor, no final desse mesmo capítulo, há um trecho dúbio: “e como o livro do Brasil não chega a nenhum lugar no mundo, conferências como essa trazem muita gente, interessada sinceramente em conhecer-nos.” (R:S, XV, 2, p. 130)

39

E começa a esboçar-se um pouco um dos enfoques da narrativa. Havia algumas páginas, o assunto já era abordado: O Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro está instalado no Palácio Brasil, em plena avenida Dieceocho de Julio. [...] Há muitas salas de aula, e uma biblioteca com milhares de livros. Os lugares vazios são os dos livros brasileiros prometidos pelos escritores que passam por aqui e não cumprem as promessas que fazem. (Vastos lugares.) (R:S, IX, 4, pp. 106-7)

A preocupação com os livros brasileiros torna a surgir, pouco depois: Aqui se recorda o Brasil com melancolia. Tanta gente estudando português. E nenhum livro pelas livrarias. [...] Mas falta alguma coisa, para unir-nos mais. Como nos comunicaremos, tanto quanto pede uma vida humana, assim de um lado e de outro da fronteira? Bebemos café, pensando nisso. E o café é o nosso consolo. Raminhos verde e amarelos... “Puro Del Brasil...” Não, os nossos livros são para a idade das letras... Por enquanto, o Brasil, visto daqui é 67 o país do café e das meias de seda... (R:S, XVIII, 4, pp. 142-3)

O café chega a parecer mesmo onipresente, voltamos a vê-lo em Buenos Aires: “e o aroma do café brasileiro, desprendido destas portas giratórias, é um convite irresistível ao balcão de mármore por onde deslizam xícaras muito quentes, enfeitadas de verde e amarelo.” (R:S, XXII, 1, p. 157). Não acreditamos, porém, que o rótulo da nossa ”república do café” seja exatamente o foco principal de preocupação ou concentração. Um outro excerto nos revela um pouco mais sobre uma matéria de especial atenção da narradora: Vêm agora uns peruanos folclóricos. (Serão peruanos?) Voltam as espanholas. (Serão espanholas?) E volta o brasileiro. Ah, o brasileiro, de chapéu de palhinha, entortando as pernas para cantar a “Aurora”! (Chamar a polícia, não se pode; fazer um discurso explicativo, também não; não há nenhum indício de que a “Mesquita” desabe esta noite... E já que estamos num ambiente muçulmano, o remédio é ter paciência, e jantar, assim mesmo... Aliás, janta-se muito bem.) (R:S, XII, p. 119)

Vemos o reflexo de uma narradora atuante no folclore: O governo argentino, interessado pela argentinidad, tem dado certo estímulo aos assuntos folclóricos. Não creio que as iniciativas dessa espécie, embora muito louváveis, sejam suficientes para fazer estimável um governo. [...] Eu, porém, tenho o meu jeito de amar as coisas. E se me convidam para um espetáculo folclórico, que me garantam autêntico, não quero pensar, no momento,

67

Inicialmente interpretamos como uma referência metafórica à exposição do corpo feminino, como as “pernas” de Drummond. Mas além do café, o Brasil contava efetivamente com malharias que manufaturavam tal produto. F.A.M.A. e Sedan S/A são exemplos de empresas de São Paulo voltadas a esse tipo de produção. Fonte: Diário Oficial (seção III), 17.06.1944, p. 1190.

40

senão em ser espectadora, deixando para discutir os outros assuntos depois da função. E foi assim que, apesar de muita gente se rir à minha custa, de me ameaçar com indigestão e talvez morte, [...] – que me deixei levar a um lugar muito longe, que se chama Flores, e há um clube absolutamente popular, com danças gaúchas típicas. (R:S, XXIV, 1, p. 165)

Como é a única vez que a narrativa menciona o folclore em si, lembramos já aqui algo dito por um colega de coluna da autora em “A Manhã”, bastante elucidador, nesse nosso caso: - Neste trabalho, Seu Pedro, é preciso em primeiro lugar honestidade na colheita do material. Dois estados valorizam o seu folclore: o Rio G. do Sul, com aquelas danças, e o Rio G. do Norte. Sabe por quê? Porque não é pra mostrar pra turista. O povo dançava pra si mesmo. Guardava dinheiro pro Auto no tempo do Natal. [...] A verdade é uma só: onde aparece turista, acaba o folclore. A não ser que esteja 68 tão estratificado que não se deixa conspurcar: “se não gostar, não venha!”

Mas não são só ausências de livros, ou de identidade popular. A estada é oportunidade para outras buscas: “Continuamos a pensar em Juana Irbarbarou, a poetisa que um dia coroaram ‘Juana de América’. Hoje mesmo encontrei, na bela revista Alfar69, um de seus últimos poemas – [...]”. (R:S, X, 4, p. 111). A busca é mais visceral, focada na função e instrumentos da “escritora”: “aproveito o ambiente para aprender lunfardo, que vem a ser o calão dos tangos – uma língua extremamente viva, que se renova sem cessar, e que dos tangos passa para o uso comum, tal qual a gíria de qualquer parte do mundo.” (R:S, XXII, 5, p. 159). Havendo verdadeira empolgação de Cecília Meireles pelo tema, tal é retomado na crônica seguinte: Diante do meu apreço pelo lunfardo, resolveram também iniciar-me no “vesre”. O “vesre” (transposição de “revés”) é, como a palavra indica, uma linguagem “ao contrário”, [...] E uma vez que quase sempre todos entendem o contrário do que se fala, acho que seria vantajoso falar de vez em quando em “vesre”, pela esperança de não se ficar tão perpetuamente desentendido. “Que ramoespe rapa meçarco?” (Além do mais, pode-se fazer uma certa figura de poliglota...) (R:S, XXIII, 2, pp. 161-2)

Esta pesquisa pelo instrumento de trabalho não é em vão. Da literatura à língua em si, ao longo das crônicas já havíamos passado por uma assertiva da 68

BLOCH, Pedro. Vida pensamento e obra de grandes vultos da cultura brasileira: entrevistas. Rio de Janeiro: Bloch, 1989, p. 45. 69 Periódico literário de integração hispano-americana no qual atuava Julio Casal, cônsul do Uruguai na Espanha.

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narradora, recorrendo ao verdadeiramente poético: “faz um frio cortante. O que consola um pouco é ler no cartaz do cinema, por baixo do hotel: ‘Sahara’. A palavra escrita é mesmo poderosa. ‘Sahara’. Às oito horas desta noite de inverno, estamos vendo brilhar um ardente sol.” (R:S, IX, 5, p. 112). Cabe, no entanto, notar ainda um novo traço surgido no penúltimo excerto citado: um certo caráter pedagógico. Bem afeito à crônica, o tom de conversa e familiaridade com o leitor também é adotado, retomando o mote do café: Inaugurou-se mais um “Café Sorocabana”. Este é o terceiro que visito, em Montevidéu.[...] Há muitos cafés aqui. Mas há um, chamado “Chaná”, que não sei como se pode beber, a não ser por força do hábito. [...] É uma invenção tão amarga que à força de ser amarga parece doce. E duvido que possa ser mais bem descrito. Por isso, meu irmão, se vieres a Montevidéu, prova de todos os cafés, para não dizeres que escolheste pelo meu gosto...” (R:S, XV, 5, p. 131)

Não temos ao longo do texto discursos engajados propriamente ditos, ou mordazes, o que não vale dizer que há falta de crítica, bastando nos recordar do recado aos pares escritores que não mantêm postura coerente. Ocorre que tal se manifesta em ironias sutis, sem tentar manipular ou convencer. O leitor tem não apenas opiniões sobre os fatos, a ele são oferecidas descrição dos espetáculos, leves iniciações em línguas desconhecidas e a cor local. E é nesse sentido que o narrador passa também a personagem, até por isso a opção inicialmente por “escritora”, em vez de narrador ou narrador-personagem (que é o que de fato ocorre), uma “escritora” levemente (tudo é leve e sutil) neurótica, profundamente humanizada: Minha opinião é que as ruas pavimentadas com placas de cimento são muito escorregadias, quando,chove. Juro que derraparemos, se continuarmos a andar por aqui! [...] Zzzz... – juro que derraparemos! O chão é puro líquido! Meus sapatos são líquidos! Eu sou toda líquida: onda deslizante, sem noção de contactos, fio de seda correndo numa aérea bobina... Zzzz... – juro que derraparemos! (Todos os pães da vitrina estão espiando o que vai acontecer.) (R:S, XVIII, 2, pp. 141-2)

O leitor contemporâneo do jornal e da crônica, familiarizado com a personalidade que escreve o texto, tinha conhecimento de suas atividades como

42

integrante do meio literário, poeta, folclorista e educadora. Para reforçar esta associação à pessoa da autora, dispunha ainda de um retrato70 publicado anexo, e da assinatura dela ao final do texto. Como vimos, é possível reconstituir essas informações a partir do próprio texto. E fica nossa nota quanto ao tempo vencido, a luta contra a efemeridade contextual, frente ao leitor atual não estudioso da biografia da autora. Ao mesmo tempo em que tentamos reconhecer isso, formamos também as lentes para mais atenta leitura da narrativa. Verificamos que a narradora reúne diversos enfoques. Há preocupação com o universo das letras, com a imagem do seu país e com a forma de exposição do seu texto. Há uma incipiente especialização disso tudo, das letras e livros para a literatura em si, chegando a uma preocupação e consciência do poder da “palavra escrita”. Igualmente, a identidade nacional se condensa no olhar da folclorista, que busca compreensão e apreensão das identidades humanas: a sua, vista pelo olhar estrangeiro71, e a do povo que é seu anfitrião. E o que chamamos de uma preocupação pedagógica, vinculada à “educadora”, verificamos na adequação a uma das características da crônica: o discurso humanizado e próximo do leitor; o tom de conversa despretensiosa, fraternidade. Metonimicamente, utilizando expressão do trecho que trata do folclore argentino, uma forma de resumirmos essas características é a “função” que a narradora entende como sua, e que norteia seus enfoques narrativos e o seu estilo de redação; escolhas que faz para compor o seu texto e os meios que utiliza para expô-lo. Agora, frente a um elemento que está à disposição, podendo ser fartamente recolhido no universo que a cerca, veremos como ela lida com o assunto da próxima subseção, ou como sua personagem (“ela mesma”) eventualmente com ele interage.

70

Desenho de Arpad Szénes, já inserto no estudo. Essa constatação da alteridade tem seu início ainda no Brasil. Em Bananal: “a igreja está sendo ativamente lavada por umas mulatinhas que me olham como se eu fosse turista americana, – o que me causa alguma tristeza.” (R:S, II, 1, p. 77)

71

43

4.4 Guerra Os antigos eram tão maus como nós, mas sabiamno. Essa sabedoria levava-os a criar obstáculos.[...] Mais recentemente, em 1775, um engenheiro francês, Du Perron, apresentou ao jovem Luís XVI um “órgão militar” que, acionado por uma manivela, lançava simultaneamente vinte e quatro balas. [...] A máquina pareceu tão mortífera ao rei e aos ministros Malesherbes e Turgot que foi recusada e o seu inventor considerado um inimigo da humanidade. (“O despertar dos mágicos”)

Não são muitas as menções à guerra, e as trouxemos todas. Diríamos até que, na realidade, o café é um elemento mais presente. No segundo momento em que o assunto é mencionado diretamente (o primeiro é em Passo Fundo, e já o abordamos em “História, geografia e política”), o que vemos está mais para uma constatação do universo e do imaginário da época, algo incidental, que para uma focalização em si: Dia de Camões em Montevidéu. Meus amigos portugueses ficarão contentes, ao saber que a data se comemora aqui. [...] Fala-se da nossa boa vizinhança, fala-se do fim da guerra (aproveita-se a oportunidade para dizer palavras fortes: barbaridade, selvageria, carnificina, etc.) [...] (R:S, X, 1, p. 109)

Munidos das lentes de que falamos, enquanto nos recordamos do cuidado e da atenção dadas às palavras, refletimos sobre sua utilização, mais do que sobre o tema que elas ilustram. Mas isto não significa esquecimento do assunto, pois que ele retorna, desta vez, sem provocações diretas do ambiente externo: É neste almoço em que o aroma do curry hindu nos relembra o Oriente – um Oriente tão longe, por detrás de tantos navios de guerra, de tantos tanques, de tantos aviões, de tantas baionetas! – que encontro pela primeira vez o poeta Carlos Rodriguez Pintos. Talvez o seu nome não seja muito conhecido no Brasil: mas é um dos grandes poetas uruguaios. (R:S, XIV, 3, p. 126)

E começamos a inferir que o tema, além de presente no ambiente externo à mente da “escritora”72 (e ao externo do leitor também, no jornal73), é uma de suas

72

Narradora-personagem. A partir de R:S, V, uma coluna de nome “Pulso da Guerra”, com informações e opiniões sobre o andamento do conflito, passou a ser publicada na mesma página da crônica, logo ao lado. Até R:S,

73

44

inquietações, como o Oriente é um tema sempre presente em suas narrativas, além da série R:S. Há consciência da guerra, falar ou não sobre ela é uma opção: A declamação, tal como por aí se entende, já é uma coisa bastante abominável. O jovem alimentava um grande furor dramático, e os versos eram um diálogo em que o pai aconselhava o filho a não perdoar o inimigo, a não deixar o invasor pisar o solo sagrado da pátria, a reagir – enfim, um programa de defesa nacional, que eu, enquanto ele se desenrolava, ia perguntando a mim mesma: “que tenho eu com estas pavorosas coisas bélicas? Por que cargas d’água se oferece ao meu pacifismo inflexível esta catadupa de argumentos marciais? Mas achei melhor aplaudir, admitindo comigo mesma que ninguém sabe, neste mundo, o que está fazendo. Verdade essa muito profunda, tão aplicável ao declamador como, provavelmente, às minhas palmas... (R:S, XXIV, 2, p. 165-6)

Começamos, assim a entender um pouco mais sobre as opções. Na verdade, há essa relativa imparcialidade de julgamento – não quanto à declamação de poemas, esta parece mesmo condenada às profundezas dos infernos. Mas se se elenca e descreve tal situação do discurso belicista, que vai de encontro a características da índole da narradora, se é relatada sua postura contrária, o resultado final não é um juízo de valor, muito menos com pretensões a definitivo. E talvez saibamos o porquê, ainda dentro das R:S. Pouco antes, na ordem dos textos, já ouvíamos, no museu Lavalleja74: “este grito, que o tempo vai reduzindo a pó: ‘Viva la Confederación Argentina, mueran los salvajes, asquerosos, imundos unitários. Muera el loco traidor salvaje unitário Urquiza.’” (R:S, XVIII, 1, p. 137) (grifos conforme original). Finalizando tudo que encontramos a respeito da guerra na série R:S, vemos um esboço que nos remete novamente, porém sob outro enfoque, ao elemento conhecido dos que analisam os poemas de Cecília Meireles: a efemeridade. Não temos sempre condições de traçar um panorama completo das situações. Como vimos ao longo do estudo, o tempo eventualmente nos ensina sobre a transitoriedade mesmo dos evidentes heróis; o correr dos anos faz desaparecer eventos que à hora pareciam destinados à glória eterna. Cogitamos inclusive sobre

IV, a página exibia ainda outra crônica (algumas de Drummond). “Pulso da Guerra” substituiu esta última. 74 Um dos heróis da libertação uruguaia da dominação brasileira (líder dos 33 orientais), logo depois, Lavalleja lutava pela confederação Argentina (Uruguai incorporado), contra, desta vez uruguaios partidários da independência (Urquiza) sublevados e apoiados pelo Brasil; o resultado disso incluiu até mesmo uma desconhecida marcha do exército brasileiro sobre Buenos Aires (fevereiro de 1852) e a independência do Uruguai.

45

a relatividade da história em si. E não podemos deixar de reconhecer alguma razão à postura da narradora sobre aqueles dias. Vejamos agora assuntos menos graves. 4.5 Anedotas O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança. (Heráclito de Éfeso)

Relembrando-nos de Antonio Candido, ele efetivamente cita a crônica como afeita ao humor. Da mesma forma, é ele quem nos fala também da falsa idéia de que as coisas sérias devem ser graves e pesadas, de que “a leveza é superficial”75. Cogitando o que tratamos na subseção anterior, passamos a ler alguns trechos das R:S que não se constituem apenas da gravidade da guerra, averiguando assim como se aproximam das outras crônicas, ou da crônica como os brasileiros mais estão acostumados a ler. Estes momentos surgem principalmente no começo, numa conversa típica do motorista enquanto manobra para tentar deixar a capital federal rumo a São Paulo, verificando que os pedestres insistem em caminhar distraidamente pela rua. Aparentemente já era conversa típica dos motoristas no tempo em que o Rio ainda era nossa capital: A respeito desta originalidade de andar que parece característica dos meus conterrâneos, ouço do sábio motorista a seguinte explicação: “Na verdade, não é o automóvel que atropela o povo; é o povo que atropela o automóvel. Como, porém, o automóvel costuma ser um pouco mais resistente do que a pessoa, acontece que a pessoa quase sempre fica um pouco amassada.” (R:S, I, 2, p.74)

Mas não são apenas amostras de sabedoria popular que aparecem, e nas vozes de outros, aspectos de uma turista em viagem também são objeto de observações irônicas, leves e poéticas, ao estilo da narradora: Mas o que nunca se esquece, desse lugar, são os feijões cozidos. Ficam no estômago oito horas absolutamente inatacáveis por oceanos de suco gástrico. Os feijões de Bananal são incorruptíveis, intransformáveis – e, embora sem forças para os celebrar, dessas provadas qualidades deixo aqui minha humilde constância. (R:S, II, 1, p. 77)

75

p. 11.

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No entanto, embora o texto todo seja sempre leve, entendemos que obviamente essas menções não são totalmente gratuitas, mera distração. Vemos que há nessa humanização e nessa ironia aquele quê pedagógico que informa e faz sorrir, mas também refletir. Mais marcadamente neste capítulo, que também empresta o nome à subseção: – Quero contar a você uma anedota, – disseram-me. (Naturalmente, não é minha especialidade, – mas vá lá! Ninguém morre de ouvir uma anedota, – ou o mundo seria há séculos um vasto cemitério...) – Que espécie de anedota você quer me contar? – pergunto ainda, como última precaução. – Uma anedota política. Você vai rir muito. – Conte lá. – Mas aqui não pode ser. – Onde, então? – Deixe ver... – Naquela esquina? Detrás daquela estátua? Naquele subterrâneo? No alto daquele edifício? Na mesa daquele restaurante? Lá naquela casa de chá? Num barco? Num bosque? No fundo do rio? Como o barbeiro do rei Midas, a criatura estava sufocada. Mais prudente, porém, do que ele, nem num buraco da terra seria capaz de confiar. Por isso, leitor, não te posso contar a anedota... (R:S, XXIII, 1, p. 161)

Esse olhar associativo faz também parte do estilo das R:S. Acabamos de ler uma menção ao conto de Midas, mas teremos diversas pessoas e situações que despertam lembrança de outras histórias. Desta forma, a narrativa se expande além do texto, como aqui, onde a fábula complementa de certa forma a anedota inconclusa, revelando um aspecto da opressão dos regimes autoritários, mas sem o peso e a gravidade de uma abordagem direta. A ponto que nos perguntamos: a prudência foi da criatura ou da criadora? 4.6 Reflexões filosóficas “Houve um tempo – explicou-me ele – em que eu só me apoiava na razão; mas depois descobri que a razão não podia suportar todo o peso da vida. Houve um tempo em que eu me apoiava na emoção; mas descobri que era um abismo sem fundo. A razão e a emoção, como vês, eram minhas. O homem não se pode apoiar apenas em si mesmo. Não me atrevo a entrar na cidade sem ter encontrado o meu apoio.” (Rabindranath Tagore, “Çaturanga”)

Vinculado à subseção anterior, este título não diz do texto, mas do leitor. Visando, então, à coerência, desta vez, não emprestamos o título ao texto de R:S:

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são nossas as reflexões. Se não as podemos ampliar e trabalhar com profundidade, no entanto, optamos por selecionar apenas algumas, pois consideramos que esse potencial de leitura do texto não poderia ficar sem representação. O primeiro fragmento, abaixo, apresenta ainda outra característica que podemos inferir e que se aplica também a outros do título anterior. Quando a narrativa trata de lugares familiares, vizinhanças, paisagens conhecidas, tipos comuns, o narrador desvia seu foco. Às vezes passa a buscar algo curioso, mas, em algumas outras, passa a olhar um tanto para o seu mundo interior mais que para o ambiente externo, ou então baseando-se neste: Os caminhões são como a divindade – mal comparando – cegos, surdos, mudos. E poderosos. O automóvel soluça: “Eu tenho pressa, eu sou ágil, inclina-te uma coisinha de nada, - e já estarei longe, e a estrada toda será tua, outra vez, de lado a lado...” Mas o caminhão, que nem responde, no seu silêncio, diz assim: “Eu sou a Força. A Força é que deve dominar o mundo. As minhas toneladas dão-me direito a todo este caminho. A todos os caminhos.” Por um golpe decisivo de audácia elegante e certeira, consegue-se passar a frente ao monstro. E a indignação converte-se em pena; porque, naquela pirâmide de fardos, as toneladas que mais pesam são as da ignorância, do sofrimento obscuro, da dor da vida pesadamente vivida, da inépcia, da brutalidade, – o peso imenso do destino dos que não sabem nada nem de si mesmos nem deste mundo. Buzinai, automóveis, pelo dia afora! E acendei vossos faróis, pela noite adentro! Vós sois a graça da velocidade, o dom do tempo facilmente vencido. Mas perdoai os caminhões que vos estorvam: eles são a carga inerte da matéria. E, na verdade, a eles é que pertence este mundo. (R:S, I, IV, p. 75)

Seguindo uma expectativa prévia de conhecimento da personalidade pública da autora do texto (que vale para ambos os leitores, contemporâneo ao texto e atual), e sua iminente vinculação à cultura oriental, seria possível discorrer sobre filosofias de desapego, críticas ao materialismo, e efetuar paralelos, indo ainda mais longe do que foi a narradora – assim reforçando outra característica associada à crônica, como vimos no início deste estudo (“transporte ao mundo da imaginação”76). Mas desenvolver esse raciocínio ou aceitar a conclamação são opções ofertadas ao leitor, que bem pode escolher permanecer apenas no registro visual da ultrapassagem. Já quanto à narradora, a respeito do que acaba por deixar de ver em outro momento, reflete:

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CANDIDO, Op. Cit., p. 12.

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Sabemos que estão passando campos e campos. Sabemos que é noite, cada vez mais tarde da noite. Sabemos que há estrelas, – sabemos, sobretudo, que há uma lua enorme, redonda, amarela, como um disco atirado por esses campos, atrás do trem. Sabemos que um frio perfume se levanta lá fora, à passagem da lua. E, sabendo tudo isso, permitimos que o sono venha, e nos leve por outros campos, de outro perfume, com outras luas. (R:S, VIII, 4, pp. 102-3)

Mas, essa ausência, ainda iremos rever na próxima seção.

4.7 Panorama Acreditamos que a poesia, além de outras virtudes, possui a de tornar as criaturas compreensíveis umas às outras, na sua íntima verdade, que é a verdade do espírito. Compreender é de certo modo amar. (Cecília Meireles, prefácio a “Poesia de Israel”)

Ilustração 11 - Rara foto do trem internacional em 1949

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Tendo tratado da narradora, de sua personagem, foco, alguns detalhes de estilo e sua adequação, mesmo que incidental, às características da crônica, faltam ainda questões relevantes como tempo e espaço da narrativa. Continuamos do

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Segundo o senhor Leonardo Bloomfield, que nos enviou a foto e reconheceu o número da locomotiva e a região, trata-se de trecho entre Marcelino Ramos e Erechim (próximo de onde foi avistada pela narradora Chapeuzinho Vermelho). A foto original está certamente em HAHMANN e SMALL, Op. Cit., s. p.

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mesmo trajeto, interrompido na constituição do panorama histórico, geográfico e político. Agora, porém, sob o viés literário: Longe estão os pinheiros. Perto, as pereiras avermelhadas rodeiam as casas, com elegantes, aladas atitudes. Estão segurando a tarde que desce do céu azul. De um céu azul que não formou nuvem nenhuma até agora. Para a frente, o clarão final do sol derrama no campo uma onda de fogo. E viajamos dentro da cor. E as casas brandamente se assentam, entre as pereiras que empalidecem. E o clarão do sol é agora um campo de violetas. E a lua corre como um balão dourado atrás do trem: passa pelos pinheiros, flutua, desaparece por detrás de uma colina, por detrás do trem – e de novo bóia nos ares azuis, tão leve, tão transparente, tão sem astronomia, - flor, floco de seda, madeixa de ouro e de prata que o vento leva por cima do mundo... (R:S, IV, 4, pp. 86-7)

É certo que há páginas já usamos instrumentos de análise mais afeitos a gêneros de ficção distintos, mas, agora, deparando-nos com a própria estrutura do texto, com sua disposição que, retomando, mais lembra a forma de versos, visualizamos também proximidade com o poético. O que se sobressai, no entanto, é o fato de que a visualização de paisagens que se sucedem, enquadradas da janela do trem, resulta nessa renovação de períodos e quebras de linha. Mas isso não se limita ao aspecto formal. Num outro trecho, por exemplo, um campo que “ondula em tons aveludados” (R:S, V, 5, p. 91) é um reflexo de um avistamento a partir do interior de um veículo em movimento, reconstituição da velocidade do trem. Vemos o desenrolar do entardecer, e o efeito do sol, que está a se recolher, nas árvores e no céu, em quadros que vão se renovando formando pequeno filme, que se conclui com o início da noite e ascensão da lua.

Uma percepção lírica da paisagem, e que se reconhece lírica, livre de

compromissos, sem nem “astronomia”, uma entrega da narradora, e bem caberia “eu-lírico”, à pureza da paisagem, sobre a qual devaneia. E o resultado é uma construção tão adequada em transferir ao leitor a mensagem que pode ser comparada à poesia em si. Nem o tempo que passa é marcado diretamente, contemplamos apenas os efeitos de sua passagem: dos 30-40 quilômetros por hora do trem, a quadros pintados por parágrafo. Mas o sol é protagonista em outra cena, ainda em São Paulo: E sol faiscando nas vitrinas, lustrando as palmeiras do Anhangabaú. Ontem à noite, um infeliz se atirou do viaduto do Chá. Foi pena: não viu este sol, que talvez o tivesse reanimado. Este sol que às coisas mais miseráveis – vejam estes escombros, vejam esta velhinha que passa! – empresta um sentimento de beleza e alegria.

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Pois é o sol que me está mostrando em todas as tabuletas negras das avenidas: “Hoje, feijoada completa”; “Amanhã, feijoada completa”; “Segunda-feira, feijoada completa”. É melhor atravessarmos a rua. Vamos comprar um colírio. (R:S, II, 2, p. 78)

No mesmo sentido de consciência da transitoriedade que já mencionamos, poderíamos ver nas tabuletas, soando até inverossímil essa manutenção do cardápio, evocando nossas Reflexões filosóficas (4.6), um recado de que a existência é essa continuidade, esse consolo de um dia após o outro, de tentar iluminar a vida. Apontamos, ainda, uma conexão que, embora improvável, nos mostra um poema relevante ao entendimento do excerto. Impresso em março, o livro em que esse poema aparece foi a única publicação da autora (organizadora) em 1944: Sol nulo dos dias vãos, Cheios de lida e de calma, Aquece, ao menos, as mãos, A quem não entras na alma! Que ao menos a mão, roçando A mão que por ela passe, Com extremo calor brando O frio d’alma disfarce! Senhor, já que a dor é nossa E a fraqueza que ela tem, Dá-nos, ao menos a força De não a mostrar a ninguém! Fernando Pessoa

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Na verdade, as aproximações com o poeta português acompanharão Cecília Meireles por muito tempo, e não será possível estender-se sobre isso neste estudo. Aos cautelosos, porém, parece-nos também possível uma associação mais real: o trecho sobre o sol em São Paulo está no verso da página do que citamos na subseção Anedotas, ocorrido em Bananal, e que versava sobre igual assunto. Podendo-se até interpretar o atravessar a rua como uma forma de se livrar de tal pensamento de fastio alimentar.

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PESSOA, Fernando et al. Poetas novos de Portugal – seleção e prefácio de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Dois Mundos, 1944, p. 96. É bem verdade que há outros poemas desse mesmo autor que poderiam até caber melhor. No entanto, essa publicação que citamos, organizada por Cecília Meireles, até onde sabemos, foi tudo o que se publicou (tudo que ela conseguiu reunir, depois de sua viagem a Portugal e pedidos a amigos em Portugal) de Fernando Pessoa no Brasil até aquele momento. O mais vinha diretamente de Portugal.

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Retornássemos ao entendimento que primeiro firmamos, antes do improvável, acharíamos ainda outro trecho em que à paisagem misturam-se eventos humanos, inquietações; estamos de volta ao trem: [...] É preciso celebrar também as grades, os portões, as engenhosas coisas de madeira cruzada, de madeira sobreposta, que nestas pequenas cidades do Paraná são gestos de poesia desdobrando-se, enfeite da vida, sorriso da criatura humana, na amargura da sua breve condição.” (R:S, IV, 3, p. 86)

Embora a análise da Paisagem humana (4.9) ainda esteja por vir, o que podemos notar é o surgimento deste padrão de narração que, da observação da realidade, eventualmente se volta ao seu próprio interior e ao reflexo do que há de humano nela. Se não há o mesmo tom poético na realidade vista em si, através dela o reencontramos. E isso aparece de forma lírica, já bem mais adiante, no anoitecer nas coxilhas gaúchas: Não veremos ninguém? Como é vasto o campo, para assim se perderem as palavras humanas! Escuta-se, escuta-se: nada se ouve. Tudo está separado de nós. Casas, famílias, música, onde é que isso se encontra? [...] Ó paisagens sem ninguém! Tristeza, solidão, enigma. O azul escureceu como as campânulas das trepadeiras. Daqui a pouco, não veremos mais nada. Vamos, de ausência em ausência, para o sono da noite. A última coisa que se vê, sobre o céu encostado à terra, são os cercados de arame, em desenho minucioso, em traços finíssimos. (R:S, VI, 4, p.95)

Em vez da presença de um acontecimento da natureza, da vida que o campo ou a cidade ganhavam com o sol, em vez da presença humana verificável na paisagem, agora o que se canta é a ausência. A narradora passa por uma sensação de apartamento, separação, que se agrava na última imagem narrada: o céu arroxeado como as flores em formato de sino das trepadeiras, como uma redoma sobre os vastos campos, deles separado pela tênue divisa de arame. É iminente o anoitecer, fundindo tudo numa só escuridão e determinando assim uma ausência absoluta, sem nem fronteiras, irreconciliável, o “sono da noite”. Dormem as pessoas e as paisagens, sem o ânimo que lhes dava o sol, a lua ou o “sorriso da criatura humana”. Cabe ainda ressaltar que o sentimento, ou raciocínio, da narradora, se reflete no real avistado com auxílio do imaginário, pensamento. Não se trata evidentemente de subjugar a paisagem, mas de usar o recurso ficcional para compor uma cena

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com elementos do real. Vejamos como a cronista lida com esta ausência em outra noite, transcorrida já no Uruguai: O trem vai parando por muitas estações. Este trem que circula entre Rivera e Montevidéu é um comboio de pesados vagões amarelos, com uma iluminação mortiça, um grande ar fatigado e envelhecido. [...] O trem de Rivera traz uma profunda saudade do trem Internacional. Saudade dos vagões de aço, aconchegados e claros. Saudade das toalhas, da louça, dos talheres, das flores, da comida, dos copeiros. Uma saudade inconsolável. [...] É o único conforto dessa viagem, ouvir a conversinha rural, esperançosa e lenta. Vê-se, sem se ver, o ranchinho alegre, o gado crescendo, a vida próspera. E como é noite, e uma doce preguiça nos envolve, tem-se vontade de dormir e acordar amanhã com forma de pastor. (R:S, VIII, 2-3, pp. 101-2)

Enquanto mantém o seu compromisso de cronista em viagem, no aspecto descritivo do primeiro parágrafo, logo em seguida vemos novamente aflorar o lirismo, ainda com o intuito inicial de descrever mantido. Contudo, no terceiro parágrafo citado verificamos que prevalece o imaginário, que a ausência de paisagens – a narradora parece ter essa necessidade de estar sempre a ver (seria viver?) algo – tão lamentada na noite “anterior”, se amansa pela ascensão de uma narrativa ouvida, e o sono se torna mais doce e até desejado. Nem sempre se tem esse convite à divagação, a adentrar a sala de projeções do seu mundo interior, mas para sublimação do real há outros recursos: Somos quatro, em redor da mesa. Agora somos mais de quatro. E somos outros. Professores e diplomatas brasileiros e uruguaios. E estamos na “Mesquita”. A “Mesquita” foi imaginada como os ocidentais imaginam o Oriente. É uma boate onde dizem que se janta bem. (R:S, XII, p. 118)

Embora a estrutura se assemelhe à da observação pela janela do trem, aqui o espaço é diferente. Se já visualizamos alterações na descrição da paisagem pelo efeito da velocidade, aqui a narrativa se flexiona ao contrário, em vez do filme: fotos. Ausentes focos de interesse, a narrativa se acelera. Nesse ponto, o compromisso da cronista em viagem: tanto quanto possível, de sol a sol e eventualmente ainda mais, ouvimos da narradora sobre o dia a dia no trem e fora dele. Chegando na cidade, porém, muda-se este ritmo e, se é perdido o princípio de levar o máximo possível ao texto, ganha-se a liberdade, pois o rol de opções aumenta muito fora daquele espaço circunscrito. E veremos se há alguma coerência nessa mudança de espectro. Iniciou-se a estada em Montevidéu:

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Apesar de Montevidéu não ser uma cidade muito extensa, a falta de ônibus e automóveis sempre se faz sentir. Há, porém, uma coisa que ainda se faz sentir mais a quem chega do Brasil: é ser aqui a mão ao contrário. (R:S, XV, 1, p. 129)

Tornamos a vislumbrar a sombra da efemeridade do texto. Como dissemos no nosso Preâmbulo, essa menção nos fica como recordação amarelecida no tempo. Pitoresco, pois já no ano seguinte os carros deixavam de usar a mão inglesa. A natureza híbrida, versátil, de um texto que suporta análises mais comuns a contos (por exemplo), que flui no sonho poético, novamente, desperta para si, para sua eventual caduquice, frente ao efeito da passagem do tempo na realidade descrita. Se

é

assim

tão

grave

ou

meramente

curioso,

anedótico,

veremos

no

prosseguimento: Aqui no Uruguai a pintura parece interessar vivamente a um grande público. Há exposições constantes e não apenas em “Amigos Del Arte”. Todos entram, observam, opinam. A arte não é um luxo: é uma forma de comunicação. Parece que todos sabem disso. Que todos querem saber disso. É uma felicidade caminhar-se por um lugar assim. (R:S, XI, 5, p. 115)

Aos focos da narrativa que enunciamos, poderíamos acrescentar “arte” em si, mas agora voltamos à captação do momento vivido pela narradora em particular e pelo país como um todo. Mesmo não sendo nosso objeto de estudo, caberia, porém, indagação da referência de R:S como guia de viagem. Abordaremos esse tópico ao final da análise, mas, no nosso último trecho citado, o que vemos é um registro do Uruguai de quarenta: a efusão cultural que mencionamos (extratextual – real) e o reflexo disso, no caminhar da narradora, no seu contentamento (intratextual – real recomposto). E seus passos levarão a crônica a uma viagem mais aprofundada nesse universo artístico: Grande tempestade. Trovões e relâmpagos ferindo o dia. As janelas do ateliê de Arzádum estremecem com o vento, com o ruído. Vê-se o fogo azul do céu riscar os ares, lá fora. Cai uma cortina d’água, por cima dos plátanos ruivos, cujas folhas rolam pelo chão como mãos murchas. [...] Aqui estão uns lugares serenos, com uma casa, um céu, uma água – o pintor descansou por aqui: seu descanso está nestes azuis horizontais, nesta areia tranqüila, nesta ausência de outras coisas, nesta solidão à margem do mundo. A chuva ferve na clarabóia do ateliê. Seu ruído é mais forte que a nossa conversa. Estamos mergulhados em perspectivas, e bebemos café. (R:S, XVIII, 1, p. 141)

Nesse ambiente avançamos para uma fusão ainda maior que a vislumbrada do trem, afora o fato de que adentramos o ateliê de um dos grandes pintores

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uruguaios, Carmelo de Arzadun79. O poético transcende o real e acompanhamos o olhar da narradora que vai da tempestade para a serenidade da pintura do artista e de volta, mesclando paisagens exteriores e interiores num passe ficcional: falso? Imaginário, e real. O texto se torna reflexo da paisagem no olhar da narradora, câmera voltada para a menina nos seus olhos80, o tempo está sob seu controle para nos apresentar slides ou filmes. Lemos e somos assistidos para compartilhar as mesmas visões. À mínima provocação, começam as transfigurações: Os ponchos alastravam-se por cima das camas, por cima das poltronas, por cima das mesas... Eram como tapetes, eram como bandeiras, enchiam o quarto de chamas, com suas cores de incêndio; enchiam o quarto de primavera, com suas cores de campo. (R:S, XXV, 3, p. 170)

Se a notícia é um pretexto para o cronista81, a realidade é motivo de divagação poética: do mundo externo para o imaginário, e o sonho. Os ponchos não são vistos e descritos pelos nomes simples das suas cores, por seus detalhes, sua textura, tornam-se maiores, extrapolam o simples real. Nos olhos da narradora, ampliam-se, realizam todo o seu potencial literário: O poncho é uma peça de vestuário que dá enorme dignidade à figura. A roupa do homem atual, segundo um amigo meu, consta apenas de um conjunto de canudos de pano. O poncho ressuscita a elegância das pregas, dos drapeados, das túnicas, das clâmides, das togas. Um ginete vestido à ocidental é apenas um ginete. Mas, com um poncho pelos ombros, passa a criatura sobrenatural: o vento, que é amigo do poncho, abraça-o e leva-o pelos ares – e o ginete passa pelas coxilhas como um veleiro num verde mar coalhado; como um arcanjo vigiando a solidão. De mais longe, o homem desaparece; apenas o poncho palpita sobre o cavalo. O animal fantástico vai-se desprendendo da terra, com asas longas e cascos breves. Os olhos mitológicos recordam: Pégaso. (R:S, XXV, 4, p. 170-1)

Distante da poesia hermética e de um diálogo extratextual não explícito, assunto que abordaremos a seguir, com uma narrativa povoada de recursos poéticos, mas didática, sem sacrifício da clareza, vemos distanciar-se no campo um legítimo gaúcho e testemunhamos sua ascensão ao céu: do rés-da-terra ao excelso, com suaves asas mitológicas.

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Cujas obras estão espalhadas por museus nas Américas e na Europa. Expressão do professor dr. Milton Hermes Rodrigues no comentário à defesa da dissertação de Karla Mendes. 81 COUTINHO. Op. Cit., p. 121. 80

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4.8 Associações - Você sabe que eu tenho muito medo da literatura que é só literatura e que não tenta comunicar? (Cecília Meireles, entrevista a Pedro Bloch)

R:S conta com diversos apelos extratextuais. Este tipo de construção associativa com o “pégaso” não é única. Em Anedotas, passamos por outra menção produzida também por este tipo de “diálogo”: o “barbeiro do rei Midas”. Vejamos ainda mais um breve exemplo: – Na cabine do barco que me leva a Buenos Aires. [...] E a cabine é tão linda! Tudo branco, lustroso, cheirando a mar. Por isso é que desde criança até agora, penso que os navios, por dentro, são pintados com Emulsão de Scott. (R:S, XX, 4, p. 151)

A Emulsão de Scott (com base em óleo de fígado de bacalhau, o popular homem do peixe) era um líquido alvo e viscoso que à época exalava um forte odor de peixe (hoje em dia foram acrescentados aromatizantes) e que costumeiramente era dado às crianças como uma espécie de fortificante, principalmente durante os meses de inverno. O procedimento narrativo aqui descrito, na verdade, dialoga com o leitor que compartilha da mesma recordação de infância, desta colherada cruel que muitas crianças engoliam tapando o nariz. Para o leitor que tem bem frisados em sua memória estes momentos de “mansa renúncia” (R:S, XX, 3, p. 150), a descrição da cor da cabine não fica só no branco, ganha extremos até sinestésicos, ganha textura e ganha espessura, ganha até o cheiro da maresia. Umberto Eco nos fala sobre “níveis de leitura”82. Certamente haveria entre os leitores contemporâneos ao texto alguns felizardos (ou temerosos e com precoce capacidade argumentativa), que não tinham passado pela experiência de ter de engolir o amargo remédio, nem dele tinham conhecimento (e isso se agrava ainda mais quando pensamos no leitor atual). Mas o que entendemos é que, ao longo de R:S, há essa constante “remissão” a conhecimentos que se supõem compartilhados.

82

ECO, Umberto. “Ironia textual e níveis de leitura” In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 206. – “O leitor informado, ..., ‘pega’ a piscadela culta que lhe dirige o autor, mas também os efeitos de enfraquecimento ou de mutação de significado, [...]”.

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Não se trata de uma “piscadela culta”, mais seria uma piscadinha comum mesmo, popular. Tampouco há uma construção alegórica ou metafórica; aqui, a referência é direta. A Emulsão Scott é um convite ao leitor para que complemente, adjetive imageticamente, sensorialmente, a cabine do barco. E entendemos que a preocupação ou princípio “pedagógico” também estão presentes neste recurso. Embora haja leveza no convite a despertar essa memória (nauseante para alguns), nesse excerto, como no do pégaso, não há a ironia. A nós nos parece clara uma tentativa de comunicação direta, um diálogo do imaginário da narradora com o do leitor do outro lado das linhas. Como, naturalmente, falasse coisas da sua vida que buscam eco na nossa. Já passamos por um trecho do texto em que algo similar acontece, “vê-se, sem se ver, o ranchinho alegre”, mas R:S tem ainda outro mais apropriado à compreensão deste recurso que julgamos encontrar: “um senhor começa a explicar ao seu vizinho, com esses vagares da conversa depois do almoço, a devoção de um mexicano por Nossa Senhora de Guadalupe. Fica-se outra vez criança, escutando aquela voz, muito tranqüila, ... “(R:S, III, 4, p. 83). Os convites de R:S nos parecem justo apontar para essas recordações da vovó (ou mamãe, ou titia) que bondosamente contava as histórias de cavalos voadores, das orelhas de burro de um rei e que subitamente se transformava numa bruxa maldosa (madrasta cruel, parenta insensível), que fazia engolir aquele nauseante fel branco. É nesse mesmo tom que teremos o convite a evocar, no Rio Grande do Sul, outra fábula: “correm garotos pelo campo. E entre a verdura aparece uma menina com uma cestinha no braço, caminhando tão só, que é impossível não seja Chapeuzinho Vermelho levando bolos para sua avó.” (R:S, V, 2, p. 90). E outra: “não o posso ver [Gastón Figueira] – magrinho, moreno, sorridente, ... – sem me lembrar de Aladim e dos gênios benfazejos que se desprendem com a forma de um fio de fumaça de dentro das garrafas árabes de Xerazade” (R:S, X, 2, p. 110). Sobre tudo isso, é certo que bem poderíamos relacionar “chapeuzinho” e “Xerazade” com a memória de uma autora que traduziu o clássico árabe, que trabalhava com educação infantil e que foi criada por uma vovó que contava histórias, mas não vemos necessidade de chegar a esse nível de leitura. Acreditamos que o texto funciona por si, aos que de bom grado aceitam seus convites.

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Também é certo que nem todas as referências que chamamos associativas aqui, nem todas as “remissões”83, pertencem exclusivamente ao universo infantil, período de fértil imaginação. Há também construções associativas que rememoram elementos e personalidades do universo “erudito”. Veremos mais na próxima subseção, mas, ainda aqui, um exemplo: ao descrever Vaz Ferreira, reitor da Universidad e poeta, a narradora vai dizer que, “(penso em Joaquim Nabuco)” (R:S, XI, p. 115), evocando na memória coletiva um dos intelectuais fundadores da Academia Brasileira de Letras. Lembrássemos da tradução de Perroux, que abordamos na nossa segunda seção, e daquela preocupação com o mitológico, valeria encerrar cogitando sobre este elemento que, em si só, constitui a essência de um imaginário compartilhado. E de que a autora parece ter consciência disso e de algo mais84 que, com perplexidade afirmamos, não alcançaremos no texto deste estudo. Mas nos falta abordar um elemento cuja simples menção nos traz associações com o outro mito, outro bruxo que também residiu no Cosme Velho. Falta aquele componente que ele tão bem retratou e que, frente a todas as efemeridades, tudo o que fenece, suaviza, muda de sabor e cheiro, acontece de teimar ser sempre o mesmo em suas contradições... 4.9 Paisagem humana - Em pequena (...) tive tremenda emoção quando descobri as cores em estado de pureza, sentada num tapete persa. [...] Depois, ao olhar o chão, a madeira, analisava os veios e via florestas e lendas. Do mesmo jeito que via cores e florestas, depois olhei gente.” (Cecília Meireles, entrevista a Pedro Bloch)

Se o panorama ganha dinamismo e até real vida na narrativa de Cecília Meireles por meio do trabalho da ficcionista – prestidigitações com tempo e espaço, recursos poéticos e apelos extratextuais –, falta ainda analisarmos como o homem, essa figura tão variável, de natureza tão misteriosa, é abordada e incorporada à 83

ECO, Op. Cit., p. 203. “Creio, porém, pelo que disse de ‘mitológico’ existente em minha vida, que não era o momento de falar tudo: quando esse momento vier, se vier, mesmo que eu não queira ou não saiba, estarei dizendo o que for preciso. É necessário confiar no sentido secreto da vida.” Carta a Ruy Affonso, datada de 10.09.1942, in: MACHADO, Op. Cit., p. 287. 84

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narrativa. É certo que logo de pronto conhecemos o cabeleireiro, o motorista, o caminhão (R:S, I) e logo depois um farmacêutico e um garçom (R:S, II), encontros que por si só já vão apontando o contexto: preparações, viagem, hotéis. Uma breve parada, porém, antes de partir no trem e conhecer os companheiros de percurso: De manhãzinha, à espera do primeiro almoço, é agradável ouvir falar o garçom. O garçom sempre sabe muitas coisas, e sua grande alegria é ser ouvido. Por que lha negaremos? Quanto ao chá, ele não sabe se é da Índia, porque chá é coisa que nunca lhe interessou.[...] Quanto ao tempo, ele sabe que agora é lua cheia. Mora longe dali. Num lugar sem iluminação. Onde o luar brilha mais. Oh! Como brilha o luar! Fica tão clarinho que até se vê faiscar o pedregulho... Vê-se mesmo faiscar o pedregulho nos seus olhos, neste momento. (R:S, III, 1, p. 81)

Há pouco analisamos uma descrição lírica da paisagem natural, sentimentos da narradora refletidos no real. Inicialmente, este contato com o garçom já nos aponta um choque: mal o ouvimos, mas não há eco para o interesse da narradora na especiaria oriental. E em se tratando da busca de reflexos, se víamos sempre a partir dos olhos da narradora, agora nos são ofertados outros legítimos espelhos. A narradora identifica-se ao encontrar um semelhante na reflexão poética da realidade, e os dois discursos fundem-se com a opção pela forma indireta: dois indivíduos distintos, na mesma voz literária, com uma pincelada que parece buscar a maior fidelidade possível, comprometida em transmitir a mensagem do garçom, dos olhos dele. Já falamos também sobre folclore. Através dele teríamos a oportunidade de ver o ser humano em essência, síntese cultural de si próprio e dos que vieram antes dele, e o que observamos nesse excerto é uma amostra de que essa busca não se limita à assistência de eventos específicos (espetáculos folclóricos). A oportunidade de interação direta com um semelhante é aproveitada: a mesma entrega que outrora era à pureza da paisagem, agora é ao brilho da fala do garçom. Mas nem sempre é assim, de se conseguir captar e narrar essa sutil essência poética humana, pois há o próprio contexto da viagem, e as constantes mudanças de endereço tendem a fundir as pessoas ao panorama no fundo. Veremos: Estação de Sorocabana, aguardando o trem internacional. Os guardas aduaneiros, senhores, são os guardas aduaneiros. Desnecessário explicar. Ali vem o garotinho de perninhas ainda moles, todo janota em suas malhas de lã, [...] Entram duas dançarinas gitaníssimas como um poema de García Lorca.

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E entram estas veneráveis matronas, que viajam com pérolas, e, quando se lhes pede o passaporte, dizem, com cara de papa antigo: “Nós somos descendentes de João Francisco das Botas Largas, um dos primeiros bandeirantes do Brasil. Nunca ouviu falar?” E foi para isto que os Botas Largas andaram varando o sertão, coitadinhos! (R:S, III, 2, p. 81-2)

É a apresentação dos personagens que vão empreender o mesmo percurso. Relembrando a ponta que deixamos aberta, vale citar a associação das dançarinas com o poeta autor de “Romancero Gitano”, e que era assunto do momento85. Elas reaparecem ainda uma vez, na parada em Itararé, dançando “gitaníssimas” ao som de uma sanfona “ritmos ágeis de cavalinhos árabes graciosamente malucos.” (R:S, III, 5, p. 83). Mas, são os “marqueses” que vão nos acompanhar por mais tempo na narrativa: Nessa mesma ocasião, e pelas mesmas pessoas, foram abertos todos os testamentos dos defuntos ricos mais recentes, foram avaliadas todas as jóias das famílias mais conhecidas, e minuciosamente narradas todas as enfermidades dos conhecidos: gangrena, lepra, sarna, tifo. Isso, misturado com peixe cozido e escalopes de vitela. E são os grã-finos falando. Por essas e outras, senhores marqueses de Botas Largas, eu prefiro a conversa do garçom. (R:S, III, 3, p. 82)

Lembrando de longe o colunismo social, ou os menos célebres folhetins escritos sob apelidos e pseudônimos, começamos a verificar que talvez a brevidade da crônica, considerando a série, não seja empecilho para um pequeno desenvolvimento: Porto União. União da Vitória. Os descendentes dos marqueses de Botas Largas perguntam com sua naturalidade: “Depois do Paraná vem o Rio Grande, não é?” Não se pode ter boa memória, séculos seguidos... Mas os que já conhecem o caminho sabem que, entrando agora em Santa Catarina, um grande frio nos espera, pela altura de São João. E nós perguntamos ao guarda pela temperatura. Ele diz calmamente, falando de São João: “Ah! lá já gia.” Não sei que expressão teria a minha cara, porque me explicou melhor: “Lá já gêa.” Era tão bom ouvi-lo! (R:S, IV, 5, p. 87)

E a caracterização negativa começa a se firmar. Vale, contudo, ressaltar o surgimento de um padrão, uma seqüência de exposição e rápido corte na narrativa. Às cenas não é dada longa seqüência, não há teorização. À revelação de ignorância geográfica dos “marqueses” ou da morbidez da conversa deles no fragmento 85

A própria Cecília Meireles traduzira a peça em versos “Bodas de sangre”. A estréia se deu nesse mesmo ano de 1944, no Rio de Janeiro, pela Companhia Dulcina-Odilon, ficando em cartaz até 1947. Fonte: http://www.revista.agulha.nom.br/ag55lorca.htm - acesso em 01.11.2010.

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anterior, segue-se algum consolo, compensações: a lembrança agradável do garçom (“prefiro a conversa do garçom”), ou a simplicidade de expressão do guarda. Não se trata de ignorar, mas de substituir rapidamente a cena negativa no fio da narrativa, do raciocínio. Notamos que não há uma absoluta ingenuidade por parte da narradora, que a “entrega” já mencionada (à paisagem, à fala do garçom ou do guarda), não resulta num olhar de deslumbramento constante e ausência de senso crítico, que não se deixa de ver o que não é espelho. A aparição final dos marqueses nos soa até como uma anedota pronta: E a alfândega. – Para qué quiere ud., señorita, siete pares de zapatos? – Ud. Es un sinvergüenza. Qué le importan mis zapatos? Lo que ud. Quiere es uma propina! Vaya! – Los Marqueses de Botas Largas? No los hemos conocido, no. A ver, los baúles! Deste lado é o Uruguai. Do lado de lá é o Brasil. A rua passa no meio. E para ser uma fraternidade completa, o tenentezinho brasileiro namora com muito carinho a muchacha uruguaia que o escuta atentamente. (R:S, VII, 2, p. 97) (grifos e abreviações conforme original)

Os guardas alfandegários aparecerão ainda em Buenos Aires e, embora protagonistas do diálogo, inclinam-se mais a integrarem o pano de fundo natural de uma viagem, ganham esse apelido e vão se confirmando, com poucas alterações em suas características, até a conclusão da narrativa. Já os marqueses de Botas Largas86 apresentam algum desenvolvimento, remetendo até à caricatura, não fossem, como dissemos, quase um ready-made, que não escapa à ironia da narradora. E a apresentação em oposição (alfandegários e marqueses versus fraternidade) ocorreu novamente neste trecho. Já um outro rapaz, sem glorioso passado, ou portentosa fortuna, “merece um capítulo especial” (R:S, VI, 4, p. 98): Policarpo Melo tem dez anos e é engraxate. Tem uma cara bonitinha, e uns modos bem-educados. Chega-se para mim, e pergunta com a maior doçura: “Quiere que le cepille la gamuza?” E começa a escovar-me a camurça, cuidadosamente, com tanta habilidade no manejar da escova como se estivesse bem instruído acerca do preço das meias de senhora. O meu vizinho quer graxa nos sapatos. Outras senhoras e senhores apelam para os serviços profissionais de Policarpo. E como é evidentemente um bom menino, que estuda na escola, que trabalha para a sua mãe, e que com uma extrema simpatia se dedica cheio de boa vontade ao seu modesto trabalho, todos espontaneamente lhe querem oferecer pequenas gorjetas.

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É possível identificar, com a lista de passageiros e livros de linhagem da nobreza disponíveis na internet, as pessoas que inspiraram as personagens.

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À tardinha, antes do trem partir, confessou-me que aquele tinha sido um dia excepcional. Doze fregueses... A cinco centésimos... E sorria. (R:S, VII, 5 pp. 98-9)

As pessoas encontradas na narrativa são muitas, e trouxemos apenas alguns exemplos que inclusive demonstram uma certa ação e diálogos diretos e indiretos. O texto da crônica é “curto para os encontros e longo para as viagens” (MEIRELES, Op. Cit., v. 3, p. 210); ao leitor é dado conhecer mais sobre alguma convivência ou observação e pessoas que, de mais perto, se revelam verdadeiras almas. A grave oposição que vemos entre Policarpo Melo e os Marqueses de Botas Largas é sobretudo semântica, muito mais do que estética, o tratamento descritivo é muito similar, ambos recebem os cuidados e atenção da narradora, mas é até melhor esconder o pejo desses por trás de um título aristocrático e um apelido, enquanto do outro a revelação pode se estender até um “nome completo” e sua nobreza verdadeira. Não se nota uma disposição da narradora em esquivar-se nem de situações e cenas pouco exemplares, nem de emitir opiniões, mas também não há delonga ou tentativa de convencimento. A cronista parece ter esse compromisso de fidelidade, parceria com o real: descreve, registra e pode até ensinar, se encontrar eco no leitor. A cronista exerce sua “função” com muita ética: da figura humana à humanidade. Já sem a urgência em partir, próximo do final da série, de todos os retratos pintados durante a estada, damos destaque a duas personagens femininas: Na verdade, gostei dela. Não vinha com artifícios de vedete, embora se percebesse que procurara – sem resultado – esmerar-se no vestir. Era pobre, viase que era pobre, que sua riqueza era sua voz, era sua humanidade apaixonada e um pouco trágica. Cantava como se estivesse narrando coisas de sua vida. E era escura como canela, e com uns cabelos lisos de índia. Por isso a chamam “la negra”. E seus olhos brilhavam na noite como ameixas em caldas. Era tão bonito vê-la cantar! Parecia uma coisa de antigamente. Uma pessoa que não existisse hoje em dia. Sua voz escorria doce e triste, com uma espessura de óleo. Uma espécie de Marian Anderson, que tivesse saído de um rio, por entre árvores, e andasse fugida na noite. Era talvez a luz dos seus cabelos, lustrosos, dos seus olhos tão líquidos... – não sei: parecia um rio, no escuro, cantando. (R:S, XXIV, 4, p. 167)

Diante de um espetáculo, retorna a reunião de imaginário e real. A natureza da cantora, apresentando-se toda, no seu ser essencial, tem luz e sombra captadas pela narradora. Ocorre uma profusão poética que culmina na assombrada conclusão de que a construção metafórico-comparativa – que reverbera nas coisas e na natureza, que reluz nos elementos do corpo humano (nos olhos, nos cabelos) –, eventualmente não passaria de metonímia. Desta vez, a despeito do que chamamos

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de “entrega” por parte da narradora, não há a satisfação de a narrativa conseguir abraçar a imagem captada como um todo. E os resultados no texto são tanto o destaque, que colocou em primeiro plano e deu cores e quase voz à alma cujo caminho a narradora cruzou, no efêmero instante de sua inspirada exibição, como também a impressão de lacuna, de reticências, de “não sei”: retrato inconcluso eternizado no texto da crônica87; complexa fusão de almas, cuja completude envolve ainda uma tríade (o leitor). Ao fim o que temos é essa narradora que tem e utiliza recursos para a elaboração, ou reprodução, verossímil e fidedigna das suas personagens num amplo espectro. Da superfície a uma profundidade poética que surpreende, em se tratando da brevidade da crônica: Por fim, agarrou a mala, que era pesadíssima, pegou o guarda-chuva, não quis que ninguém a ajudasse, e pediu-me que desse muitas lembranças suas ao presidente Vargas. Para identificar-se, acrescentou: “Eu sou aquela que teceu o seu poncho de vicunha, de beiradinha verde e amarela!” (R:S, XXV, 5, p. 171)

Nesse instantâneo da última personagem da série, que, apesar de ser sumário, não a priva de seu caráter, força e independência, encerra-se R:S e, diabos, não conseguimos escapar de uma “associação”, pois retornamos a Machado de Assis e às suas franjas! Porém, com uma mesma humanidade vista a partir de diferentes femininos olhos, com distintas reflexões e resultados. E amarramos as duas pontas da subseção.

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Como associação complementar, citamos um trecho de Ruy Affonso (Op. Cit., p. 290): “quando Péricles Eugênio da Silva Ramos – já Lívio Xavier se queixava de que era ‘muito nome pra um poeta tão elíptico’ – recebeu de Cecília o exemplar de Mar Absoluto, leu nele a seguinte dedicatória: “Á espera da Fonte Negra / da poesia luminosa”. De fato, Fonte negra era o título que Péricles havia escolhido para o seu primeiro livro de poemas. Mas depois, em virtude de uma sugestão minha – que se concretizou num poema e num título -, o livro passou a chamar-se ‘Lamentação Floral’, e com esse nome foi publicado em dezembro de 1946. Ao enviá-lo a Cecília, Péricles assim o ofereceu: “Dona Cecília Meireles: / Noturna, fria e noturna, / a fonte negra secou; / foi-se a noite, veio o dia, / canta a luz sobre a campina / onde há flores que se queixam / por efêmeras e belas”. Agradecendo-lhe, escreveu Cecília: ‘A fonte negra não seca. / Não pelo inútil cuidado / da lamentação das flores. / (Que a fonte negra não rega.) / Apenas pelo destino, / mais sereno e mais ingrato / de ouvir seus próprios rumores”. (...)” (grifos e maiúsculas conforme original).

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5. AUSÊNCIA “Pensais que estamos falando de versos? Não: estamos falando de feitiçaria.” (Cecília Meireles, “Alguns Poetas Uruguaios”)

Ilustração 12 - "Casa de la familia de León Sánchez", de Arzádum

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Ao longo do estudo, fomos deixando diversas coisas por explicar. Também não fizemos comparações com outros textos, mas efetivamente muitos nortearam nossa análise. Esta seção versa sobre um esclarecimento e um fragmento que igualmente nos fala sobre Buenos Aires e a mesma viagem, mas não integra a série “Rumo:Sul”. Ao tratarmos das paisagens avistadas (4.7 Panorama), por exemplo, não especificamos o nome daquela subseção: “-orama” é o sufixo que significa “vista, aquilo que se vê, espetáculo”89. Deixamos também lá um assunto não suficientemente bem explicado, e que já não tínhamos explicado em Reflexões Filosóficas: a ausência. Reiterando: “ó paisagens sem ninguém! Tristeza, solidão, enigma. [...] Daqui a pouco, não veremos mais nada. Vamos, de ausência em ausência, para o sono da noite. (R:S, VI, 4, p. 95); e “sabemos que estão passando campos e campos. Sabemos que é noite, [...]. Sabemos que há estrelas, – [...]. E, sabendo tudo isso, permitimos que o sono venha, e nos leve por outros campos, de outro perfume, com outras luas.” (R:S, VIII, 4, pp. 102-3).

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Não podemos afirmar que o quadro descrito por Cecília Meireles no ateliê do artista foi este. Fonte da imagem: http://clubmaestraandrea.blogspot.com/2009/11/artistas-uruguayos-mas-reconocidos.html - acesso em 01.11.2010. 89 CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon Ed. Digital, 2007, p. 563.

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Da mesma forma, a subseção mais recente igualmente ficou sem explicação. Ele vem da crônica “Terceiro instantâneo de Buenos Aires”: Deseja-se paisagem humana. Mas, em algumas horas, pelos elevadores, pelos bondes, pelos automóveis, a pé, desfilam os tipos mais característicos. Talvez a objetiva não estivesse muito límpida: [...], todos são terrivelmente idênticos – [...]. (MEIRELES, Op. Cit., (v.1) p. 198)

Este trecho nos proveu, além do título, a tão grata metáfora da “objetiva” e ainda um pouco mais sobre o que busca o olhar da narradora. Como mencionamos em 4.6 Reflexões filosóficas, eventualmente não há o que se ver. A paisagem é muda, idêntica, ausente; o que narrar, então? Não, não é isto: quer-se paisagem humana que está do outro lado dos sobretudos, dos chapéus e das luvas – essa coisa problemática e evidente a que alguns ainda insistem em dar o nome de alma. Tarefa difícil, sem dúvida, ambição desmedida, chegar-se de turista a um lugar, e ir-se à procura, justamente, dessa coisa tão frágil e misteriosa, que ora se acende e logo se esconde, como um inapreensível fogo-fátuo! Anda-se, anda-se, anda-se à procura de almas. E os homens são contraditórios, em toda parte. Desdizem-se a cada instante. Contrapõem-se. Mudam como as nuvens. Pensam de tantas maneiras! Opinam com tamanha volubilidade! Com uma superficialidade tão culpável e tão inocente! (Ibid., p. 198)

E não é uma questão de ausência de potenciais focos de interesse, como havíamos dito. Na verdade, parece que a narrativa não quer buscar os discursos e as coisas transitórias. As contradições do homem são mesmo eternas. Mas esta narradora tem um olhar diferente. Na nossa análise da Paisagem humana (4.9), orientados pelo folclore, cogitamos sobre o humano essencial. Talvez a busca por esse instável fogo-fátuo, essa faísca fugidia, seja ainda mais especializada. Mas o que é essa “alma” que a narradora busca neste texto? Ela prossegue: Livrarias de Buenos Aires: dizei-me, a quem devo ler? E as vitrinas levantam os braços: lede os argentinos, apenas, os argentinos da verdadeira argentinidad. (...) Respondo às vitrinas: “Compadecei-vos de mim, que venho de longe, com pouco tempo, e necessito de almas, nada menos que almas...! Quero entender, compreendeis? Mostrai-me por onde devo ir!” (Ibid., p. 198)

A buscadora de almas vê seu reflexo nas vitrinas, ecoam nelas os seus apelos líricos, como outrora ecoaram nas paisagens avistadas. A alma aflita se pergunta em quais livros encontraria semelhantes90 (não escritores, almas).

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A

“Amo profundamente os meus livros (isto é, os livros dos outros) e só de olhar para eles me sinto feliz. De certos autores, posso nem me lembrar do que escreveram, não saberia citar uma linha: mas só de pensar em seus nomes fico emocionada. Sei que valem, que foram. Não digo poetas ou escritores... não: foram criaturas humanas. Não é coisa fácil.” – MEIRELES, Cecília. “A Véspera do

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ausência que há pouco mencionamos nos parece muito similar a esta. Apenas que aqui, fora do espaço circunscrito do trem, é possível ir atrás de almas, criaturas verdadeiramente humanas, ou suas criações legitimamente humanas, guardiãs mais perenes dos seus reflexos e reflexões. Em se tratando do texto de R:S e deste “Terceiro instantâneo de Buenos Aires”, após a breve análise desta última subseção, chegamos a uma conclusão que reconhecemos verdade parcial. Afinal, seria no mínimo muito temerário de nossa parte crer que almas podem ser definidas em trabalhos científicos. E no entanto, este é, de toda forma e com toda a ingenuidade, o ânimo do estudo: como a serpente de oroboro, a busca pela essência humana nos textos com que convivemos é esse ciclo mimético da narradora. Das almas no seu caminho, que refletem em seu texto, para outras almas que lêem, e refletem. Antes de se encontrar afinal com seus livros, aquele excerto que acompanhávamos diz: “quero ir sozinha, ao acaso, entregue à sorte, conduzida pelo faro, pelo instinto, pela sensibilidade, pela fatalidade – mas por qualquer coisa que não dependa senão de mim. Sempre há um caminho para os que partem com o coração isento.”

Ilustração 13 - "Allegoria della vita umana", de Guido Cagnacci

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Livro”. Rio de Janeiro, RJ, 30.11.1958. Jornal do Brasil, Suplemento Dominical,entrevista concedida a Walmyr Ayala. 91 Fonte da imagem: Wikipedia: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Cagnacci_Allegoria.jpg – acesso em 01.11.2010. Convém saber que este quadro não está mais em exibição, pertence a uma coleção privada.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS - Na Índia foi onde me senti mais dentro de meu mundo interior. As canções de Tagore, que tanta gente canta como folclore, [...]. É espírito, compreende? - Viagens, folclore e idiomas são uma espécie de constante em minha vida. Comprei livros e discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito. [...] Não estudo idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos. (Cecília Meireles, entrevista a Pedro Bloch)

Recapitulando, inicialmente, havíamos tomado quatro pontos significativos relativos à série “Rumo: Sul”: natureza histórica, ligação com o real, inserção do imaginário (literariedade) e mencionamos a questão da efemeridade. Logo após, iniciamos nosso estudo sobre as condições históricas, geográficas e políticas em que os textos foram escritos, utilizando trechos das crônicas para ajudar a recompor esse contexto. Propusemo-nos discorrer sobre a vinculação do texto com seu tempo e apontamos a literatura como hábil para fazer um registro efetivamente humano desses elementos de outras áreas de especialização da ciência. Seguiu-se um estudo do meio original em que os textos foram veiculados, os jornais, onde procuramos localizar com exatidão as datas e contexto de publicação dos periódicos, e estabelecer alguns dados biográficos. Nossa análise do texto literário partiu de um preâmbulo, preparações e cogitações; passamos à identificação da narradora, buscas e escolhas que determinariam enfoques da narrativa; verificamos elementos componentes e decorrentes do texto, como reflexões e anedotas; passamos a visualizar as paisagens da narrativa enquanto verificávamos a utilização de recursos ficcionais e a flexibilização do tempo, além de estratégias para enriquecimento do texto; partimos para a apreensão de figuras humanas e sua complexidade – da superfície à profundidade. Em relação à natureza histórica, acreditamos ter elencado ao longo da análise vínculos com o contexto contemporâneo. E fomos ressaltando características e fatores que influenciaram materialmente e espiritualmente os eventos da narrativa (meios de transporte e discursos belicistas, por exemplo). Em especial, quando

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tratamos da guerra, verificamos que a consciência da efemeridade justificaria a ausência de maiores menções a esse evento. Neste ponto, acreditamos que a presença da data de publicação original possa ser complementar à compreensão do texto e apreensão do seu intuito como um todo. Dissemos que não falar da guerra era uma opção. Relembrando o contexto do jornal – vale lembrar que “Rumo: Sul” dividiu a página com o editorial “O Pulso da Guerra” –, vimos que tal acontecimento rodeava as publicações literárias; a ausência de referência ao evento bélico, àquela época, era certamente mais significativa do que o é para o leitor atual. Mais do que mera reflexão filosófica, não falar da guerra era uma postura ativa, consciente, e que tinha certamente suas causas e seus efeitos. Sobra-nos rever o assunto, porém, com menos impacto: vemos e analisamos a atuação da narrativa inserida na nossa realidade. Falta-nos a imersão no contexto eventualmente passional daquele momento, onde não falar da guerra seria potencialmente uma atitude subversiva. Já nos é difícil recriar um contexto hipotético sabendo e pesquisando sobre a data de publicação do texto. Sem ela ficamos privados mesmo da sombra do que norteava as decisões e posturas da narradora. Tantos outros eventos rodeavam autora e leitores, que já temos dificuldade em reconstruir o ser humano que nos conta a história. Entendemos que a possibilidade de apreensão da narrativa se enriquece mais quanto mais podemos ampliar nossa compreensão, praticar o espelhamento e aprender com a experiência alheia, de forma a construirmos ou avaliarmos nossas próprias posturas frente a eventos, aí sim, contemporâneos a nós. A narrativa de “Rumo: Sul” não se baseia em conceitos absolutamente abstratos, tem os pés bem fincados e perfeita consciência do real. Sendo assim, cabe-nos indagar sobre os tantos recursos poéticos e o texto que não se limita a uma mera descrição informativa da realidade cercando a autora. Que espécie de “guia de viagem” seria esse, de ponchos voadores, de cantoras aquosas? Novamente, retornamos à projeção. Como outrora buscamos o reflexo na postura da narradora quanto à atitude frente ao real, o ficcional nos torna possível reproduzir o avistado através da experiência da narradora. É aqui que começamos a tentar resolver a provocação da nossa introdução. A mera descrição informativa do real nos traz conhecimento, sobre ele podemos tirar nossas próprias conclusões e usar para nosso melhor proveito. Igualmente, com todos os detalhes que obtivemos das rotinas dos trens, da presença do nosso café, da ausência dos nossos livros. O

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papel informativo da crônica, no que tange a quase um simples relatório, é também cumprido, não há menosprezo, nem privação de registros mais diretos na narrativa. É assim que os Marqueses de Botas Largas e Policarpo Melo nos valem. Entendemos que essa função descritiva também é exercida com zelo, e por isso, mais aquela consciência ativa da narradora que citamos há pouco, afirmamos que o texto tem uma responsabilidade, que, aliás, também é espelho da narradora e também nos vale. Retomando a provocação que deixamos no início deste estudo (carta a Mário de Andrade), Cecília nos fala, em “Rumo: Sul” ainda, em cena numa casa de chá em Montevidéu: Toda essa trepidação exótica, e o tinir dos talheres e da louça, me arrebata pelo ar e me abandona no grande viveiro de pássaros de St. Louis de Missouri. “Lá era muito mais belo...” – penso. Depois, dentre os pássaros verdadeiros, com sua plumagem luminosa, seu vôo feliz, seus sussurros e seus mistérios, olho esta humanidade quase transformada em pássaro – seus súbitos silêncios, seus olhos lustrosos, seu sonambulismo – e volto de longe... Para refletir, é muito mais belo, aqui. (R:S, XII, p. 117)

Entendemos “um grande viveiro de pássaros” como uma daquelas conclamações associativas, e naquele mesmo título (4.8 Associações) falamos que a menção de fábulas, de termos e memórias em comum, populares, convidavam o leitor a compartilhar do pensamento que inspirou a construção do texto. Utilizar, pois, o ficcional é exatamente o elaborar deste despertar do imaginário, o avivar a faísca do que seria estar a exercer ter alma92, despertando do sono para o sonho, quebrando o eventual “sonambulismo”. De vivenciar, nem que seja através da simples compreensão, raciocínio e análise, as frações de memórias, pensamentos e sentimentos ativados na narradora e que potencialmente estão presentes também no leitor. Assim é quando ela própria nos narra sua experiência de “ouvir a conversinha rural”, em que “vê-se sem se ver, o ranchinho alegre, o gado crescendo, a vida próspera”. Embora o conteúdo seja abstrato, pois não há o que se ver de fato, o registro nos soa como emulação da experiência do despertar do imaginário da narradora. E desta forma, em 4.7 Panorama, tentamos reconstruir através da análise

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Falando sobre o “Grito poético”: “Somos uma única tentativa, que se procura afirmar, proclamar... E ora desfalecemos, às vezes sucumbimos, de vez em quando triunfamos. Isto é a luta pela conquista do direito de ter alma. Seria muito longo explicar-lhe o que isto quer dizer.” – Entrevista ao Jornal do Brasil, Op. Cit.

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justo esta experiência do avistamento da paisagem a partir do trem em movimento, e a vista a partir da janela da narradora, quadro a quadro, da sua “conversinha” em que agora são os leitores os convidados a “ver sem ver”. A despeito da consecução do nosso objetivo, o tom de proximidade e conversa, de identificação por semelhança, de participação na mesma humanidade, também é reforçado pela narradora. Vimos no exemplo citado ao final de 4.3 “Escritora”, afligida pelos seus sapatos que escorregam, e em 4.5 Anedotas o seu resignado sofrimento com os feijões de Bananal, essa tentativa de aproximação, de igualdade e participação nessa mesma humanidade. Poderíamos ver como estratégia de composição, mas, dentro do contexto que ora utilizamos nestas considerações finais, preferimos ver o reflexo numa entrega que também é esperada do seu leitor. Um convite para se identificar, participar na mesma humanidade em que se inserem leitor e narradora, fusão que proporcionaria assimilação dos potenciais oníricos de apreender as experiências no texto. Dissemos tudo isso, mas, no fundo, até aqui, bastaria recitar o excerto de Antonio Candido, do nosso estudo da crônica: Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da imaginação. Para voltarmos mais 93 maduros à vida, conforme o sábio.

Há os que bem analisam por outro viés, utilizando a metáfora da “viagem interior”. Não cabe agora trazermos mais elementos à conclusão, mas encontramos dentro do nosso trajeto uma citação que Cecília igualmente usou em sua conferência sobre “Poetas Brasileños Contemporâneos”, tratando dos parnasianos: “de tanto viajar, en pensamiento o en geografía, por tierras de Europa, el paisaje extranjero acabó por insinuarse y hacerse más real que el paisaje presente”94. Por outro lado, ao receber a artesã de ponchos, ela também nos dizia: Começou a estender pelo quarto os seus ponchos de muitas cores, enquanto me contava sua vida, suas viagens, seus casamentos. Não sei se seria tudo verdade ou imaginação, porque as naturezas criadoras facilmente misturam o sonho com a realidade. (R:S, XXV, 2, p. 169)

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Op. Cit., p. 12. “Sobre ‘Poetas Brasileños Contemporaneos’ dio uma conferencia Cecília Meireles” – “El País” – Montevidéu: 26.06.1944. 94

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Novamente, atamos o que nos parece ser as duas pontas da criação, origem da composição e a potencial reconstrução na leitura, em que inferimos que a natureza da crônica, histórica, ligada ao real e com inserção do imaginário, converge para essa reinstituição do real ainda mais real, um real que a leitura desperta e cujo convite aceito de participar o torna aquisição também de quem o lê. Nesse ponto, no entanto, cabe também um alerta ao leitor, para não cair em pecado. Pois, como outros poetas já disseram, não se deve contentar com pouco ou com o bastante. Em “Rumo:Sul”, a nossa cronista nos traz dois avisos, que, também, no fundo, já conhecemos: “por isso, meu irmão, se vieres a Montevidéu, prova de todos os cafés, para não dizeres que escolheste pelo meu gosto...” (R:S, XV, 5, p. 131); e “nada disto, porém, serve como documento: os tipos humanos são vários, móveis, inconstantes, e apenas anoto impressões, muito pessoais, sem pretensões a definitivas” (R:S, XXII, 3, p. 158). Se já abordamos aqueles três pontos do nosso estudo da crônica, falta-nos a efemeridade. Retomamos agora a nossa ampulheta da Introdução, símbolo da efemeridade, pois é através dela que podemos explicar nosso particular entendimento das crônicas “Rumo: Sul”. Antes do estreitamento medial, o bojo superior é composto por todos os elementos contextuais (históricos, geográficos, biográficos, e elementos associados à publicação), o texto seria resultado da transposição desses elementos. Nossa expectativa era verificar a possibilidade de virar essa ampulheta e, do texto, com a mesma areia, reconstituir o elemento original. Há alguns parágrafos, verificamos que não se trata do mesmo real. Paradoxalmente, a cada leitor que virar a ampulheta, o resultado será diferente e particular. Cada um tem a sua chapeuzinho vermelho. Igualmente, qual garrafa de Xerazade, tentamos sem sucesso capturar a alma que compôs o texto, mas Cecília não se deixa prender. Seus alertas não só nos conclamam a tecer nossas próprias experiências, mas nos revelam que, eventualmente, estão registradas impressões apenas daqueles instantes, que passaram assim que foram escritos. Aproveitando que nossa provocação introdutória, termina, também, “sem grande exatidão”, sem desprezar nossas conclusões parciais ao longo do caminho, poderíamos dizer que “Rumo: Sul” é um retrato do caminhar contente sobre aquela terra, naquele tempo e da vida (alma) daqueles instantes.

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E com a devida vênia ao criador de “Fita Verde no Cabelo”, paramos nossa ampulheta.

Ilustração 14 - Ampulheta em repouso

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ANEXO A “Confesso-lhe, porém, que me assustou um pouco a página do poema, porque, se algum grafólogo pensar que aquilo é caligrafia minha, ah, Ruy... Nem parece que você é meu amigo!” Aqui fica, portanto, uma advertência aos futuros biógrafos de Cecília, e a seus eventuais grafólogos. (Ruy Affonso, “Cecília Meireles, amiga”)

Pequeno estudo sobre as datas de publicação originais e dos eventos narrados nas crônicas “Rumo: Sul”. No trecho ferroviário, os dias se sucedem com poucas e identificáveis interrupções. No entanto, a partir do momento em que a cronista se estabelece em Montevidéu, o tempo já não é tão marcado, e a ausência de eventos externos à narrativa, e verificáveis hoje em dia, torna muito difícil precisar uma data, na maioria dos casos. Cabe dizer que as crônicas seguem uma ordem cronológica e que há uma seqüência nos acontecimentos detectável na própria narrativa. Rumo: Sul (I) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 12.06.1944 Data sugerida para os eventos narrados: (01-02.06.1944) Comentário: a data para os eventos narrados está baseada na contagem regressiva de dias quanto às “Rumo: Sul” II e III, que têm datas exatas. Rumo: Sul (II) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 19.06.1944 Data sugerida para os eventos narrados: 02-03.06.1944 Comentário: a crônica narra dois dias distintos em duas cidades diferentes e relativamente próximas, a primeira é Bananal. “São Paulo despertou sábado...” (p. 78) refere-se ao sábado anterior ao embarque no trem internacional. Rumo: Sul (III) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 26.06.1944 Data sugerida para os eventos narrados: 04.06.1944 Comentário: data dos eventos fixada conforme pesquisa ao jornal “O Estado de São Paulo” (Ilustração 3). O dia se conclui na narrativa com “é noite quando se chega a Itararé.” (p. 83). Rumo: Sul (IV) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 03.07.1944 Data sugerida para os eventos narrados: 05.06.1944 Comentário: cruzada a fronteira estadual a partir de Itararé, “amanhecemos no Paraná...” (p. 85).

Rumo: Sul (V) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 11.07.1944 Data sugerida para os eventos narrados: 06.06.1944 Comentário: a crônica anterior descreve o final da tarde já no território catarinense, esta se inicia já no dia seguinte. “E agora já é madrugada sobre o Rio Grande do Sul.” (p. 89). Primeiras horas do dia 6, narrando até o meio-dia do mesmo dia. Rumo: Sul (VI) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 18.07.1944 Data sugerida para os eventos narrados: 06.06.1944 Comentário: “Depois do almoço...” (p. 93), com a narração prosseguindo até o anoitecer. Rumo: Sul (VII) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 25.07.1944 Data sugerida para os eventos narrados: 07.06.1944 Comentário: “Santana do Livramento.” (p. 97). Conforme informação do Guia do Trem Internacional, o trem chegava a essa cidade de fronteira às quartas-feiras, às 9h45 e saía às 17h40 rumo a Montevidéu: “À tardinha, antes do trem partir...” (p. 99). Rumo: Sul (VIII) Data no rodapé do texto: “01.08.1944” Data na “Folha Carioca”: 01.08.1944 Data sugerida para os eventos narrados: 07-08.06.1944 Comentário: “Adeus Rivera!” (p. 101). Partindo da cidade geminada a Santana do Livramento, a narrativa prossegue até a noite e recomeça no dia seguinte. “Amanhecemos vagarosamente. [...] E estamos em Montevidéu...” (p. 103). Novamente, conforme o Guia, chega-se a Montevidéu às quintas, 9h. Rumo: Sul (IX) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 09.08.1944 Data sugerida para os eventos narrados: (08-09.06.1944) Comentário: É retomada a chegada, “aqui está Montevidéu, [...] tudo é ainda cinzento, nessa primeira hora do dia” (p. 105). Era inverno, o sol nascia mais tarde, e é possível que o trem tivesse adiantado sua chegada (normalmente seria às 9h, como vimos). Em seguida, são narrados eventos que ocorrem numa tarde que poderia ser do dia 8 ou do dia 9. Rumo: Sul (X) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 15.08.1944 Data sugerida para os eventos narrados: (10.06.1944) Comentário: o início da crônica é “Dia de Camões, em Montevidéu.” (p. 109). O “dia de Portugal”, àquela época chamado no Brasil de “dia da raça”, é comemorado no dia 10 de junho (data do desaparecimento de Camões). No entanto, Cecília Meireles relata na mesma crônica que “agora penso em Gastón Figueira, que encontrei

ontem pela manhã na estação” (Idem), o que obnubila a especificação da data, pois não confere com a data de chegada dela à estação de Montevidéu segundo os cálculos até aqui (08.06.1944).

"O Estado de São Paulo" - 04.06.1944

Rumo: Sul (XI) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 23.08.1944 Data sugerida para os eventos narrados: (?) Comentário: torna-se impossível especificar datas para os eventos, pois, embora haja menção a períodos do dia, não é possível saber se houve dias não narrados, por exemplo, para encadear a seqüência. Rumo: Sul (XII) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 29.08.1944 Data sugerida para os eventos narrados: (?) Rumo: Sul (XIII) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 06.09.1944 Data sugerida para os eventos narrados: (?) Rumo: Sul (XIV) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 13.09.1944 Data sugerida para os eventos narrados: (?) Rumo: Sul (XV) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 20.09.1944 Data sugerida para os eventos narrados: (20.06.1944)

Comentário: “apesar da greve, não falta público a esta conferência sobre o Brasil. [...]. A sra. Maria V. de Muller, diretora do curso ‘Arte e Cultura Popular’,...” (p. 129). Embora especulativo, pois a narradora poderia estar simplesmente assistindo a outra conferência sobre o Brasil organizada pelo mesmo curso na mesma época, entendemos que a cronista foi uma das conferencistas e que a data é verossímil. Rumo: Sul (XVI) Data no rodapé do texto: “Junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: 26.09.1944 Data sugerida para os eventos narrados: (21.06.1944) Comentário: a data dos eventos aqui está não porque podemos ter certeza dela, mas apenas para auxiliar a fixar uma data de chegada da cronista a Buenos Aires. A cronista diz: “em que penso? Penso que daqui a dois ou três dias deixarei estes lugares:...” (p. 133). Assumindo que esta crônica refira-se a um dia seguinte (a mesma noite, talvez?) ao da conferência, ela estará na capital Argentina três ou quatro dias após o dia 21.06.1944. Notável que a outra conferência sequer é mencionada, nem nesta nem nas crônicas seguintes. Rumo: Sul (XVII) Data no rodapé do texto: “05.10.1944” Data na “Folha Carioca”: (03.10.1944) Data sugerida para os eventos narrados: (?) Comentário: a partir deste ponto, as datas de publicação na “Folha Carioca”, conforme dificuldade relatada na Introdução, passam a ser apenas sugeridas. Quanto a esta contradição específica, certamente a data do livro estará correta (como estava na “Rumo: Sul” VIII). Colocamos a dúvida apenas porque as crônicas, a partir do dia 11.07.1944, passaram a ser publicadas nas terças-feiras. No entanto, podem ter ocorrido eventos similares ao que ocorreu com a crônica “Rumo: Sul” IX, que foi publicada na quarta porque, no dia anterior, o espaço foi ocupado por um anúncio imobiliário de página inteira. Fato é que a data seguinte é novamente uma terça-feira. Rumo: Sul (XVIII) Data no rodapé do texto: “10.10.1944” Data na “Folha Carioca”: (10.10.1944) Data sugerida para os eventos narrados: (?) Comentário: são renovados os sentimentos de despedidas. Rumo: Sul (XIX) Data no rodapé do texto: “junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: (17.10.1944) Data sugerida para os eventos narrados: (?) Comentário: despedidas de Montevidéu. Rumo: Sul (XX) Data no rodapé do texto: “junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: (24.10.1944) Data sugerida para os eventos narrados: (24.06.1944) Comentário: na crônica “Primeiro instantâneo de Buenos Aires”, que não foi publicada na “Folha Carioca”, mas em ”A Manhã”, 18.10.1944, verificamos: “pisei em

Buenos Aires num domingo de sol” (p. 185). O primeiro domingo, após as despedidas antecipadas que mencionamos quando datamos aproximadamente “Rumo: Sul” XVI, é o dia 25.06.1944. O Guia do Trem Internacional, como vimos, menciona que diariamente saíam vapores de Montevidéu às 22h00 e chegavam a Buenos Aires às 8h00 do dia seguinte. Desta crônica (“Rumo: Sul” XX): “onde pensas, amigo, que recordo tudo isto? – Na cabine do barco que me leva a Buenos Aires.” (p. 151). Logo, na noite do dia 24.06.1944. Poderia eventualmente se tratar de 1º.07.1944, mas o encadeamento de eventos parece sustentar nossa data, ou teríamos mais de uma semana passada sem nenhuma narrativa em Montevidéu. A julgar pela rotina de sucessão nas crônicas anteriores, não parece provável. Rumo: Sul (XXI) Data no rodapé do texto: “junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: (31.10.1944) Data sugerida para os eventos narrados: (25-26.06.1944) Comentário: “rumor das madrugadas nos barcos que chegam ao porto:...” (p. 153). Continuando a narração da crônica anterior, vemos o amanhecer no navio que chega a Buenos Aires e um novo amanhecer já no hotel. A narração do primeiro dia está efetivamente em “Primeiro instantâneo de Buenos Aires” (p. 185). É quase certo, lendo-se os textos, que o “segundo” e o “terceiro” “instantâneos” de Buenos Aires tratem igualmente deste mesmo dia, revelando uma estratégia diferente de composição das crônicas, para este outro periódico (“A Manhã”). Rumo: Sul (XXII) Data no rodapé do texto: “junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: (07.11.1944) Data sugerida para os eventos narrados: (?) Rumo: Sul (XXIII) Data no rodapé do texto: “junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: (14.11.1944) Data sugerida para os eventos narrados: (02.07.1944) Comentário: esta crônica se passa num outro domingo (diferente do da chegada) e, aparentemente, revela um espaçamento maior entre a passagem do tempo cronológico e o número de crônicas (uma semana e apenas duas crônicas). Na verdade, não há como se ter certeza de que é 02.07.1944, bem poderia ser 09.07.1944. Rumo: Sul (XXIV) Data no rodapé do texto: “junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: (21.11.1944) Data sugerida para os eventos narrados: (?) Rumo: Sul (XXV) Data no rodapé do texto: “junho de 1944” Data na “Folha Carioca”: (28.11.1944) Data sugerida para os eventos narrados: (?) Comentário: esta última crônica não tem qualquer indicação temporal. A que narra “A longa viagem de volta” nos fala de três dias de viagem no trem até São Paulo. A entrevista dada ao “Correio Paulistano”, publicada em 25.07.1944, foi feita em São

Paulo, quando Cecília Meireles passava lá alguns dias, concluindo o retorno depois ao Rio de Janeiro. Assim, poderíamos arbitrar uma saída de Buenos Aires para até próximo de 15 de julho de 1944. Abaixo, elaboramos uma tabela sintética para referência. Ressaltamos que datas não acompanhadas de “?” apontam para maior certeza. Datas com “-“ indicam transposição de dia no decorrer da crônica e, se acompanhadas de “?”, indicam duvida entre os dias escritos. Título da Crônica “Rumo: Sul (I)”

Data no rodapé do Data na “Folha Data sugerida dos texto Carioca” eventos narrados “Junho de 1944” 12.06.1944 (01-02.06.1944)?

“Rumo: Sul (II)”

“Junho de 1944”

19.06.1944

02-03.06.1944

“Rumo: Sul (III)”

“Junho de 1944”

26.06.1944

04.06.1944

“Rumo: Sul (IV)”

“Junho de 1944”

03.07.1944

05.06.1944

“Rumo: Sul (V)”

“Junho de 1944”

11.07.1944

06.06.1944

“Rumo: Sul (VI)”

“Junho de 1944”

18.07.1944

06.06.1944

“Rumo: Sul (VII)”

“Junho de 1944”

25.07.1944

07.06.1944

“Rumo: Sul (VIII)”

“1º.08.1944”

1º.08.1944

07-08.06.1944

“Rumo: Sul (IX)”

“Junho de 1944”

09.08.1944

(08-09.06.1944)?

“Rumo: Sul (X)”

“Junho de 1944”

15.08.1944

(09-10.06.1944)?

“Rumo: Sul (XI)”

“Junho de 1944”

23.08.1944

?

“Rumo: Sul (XII)”

“Junho de 1944”

29.08.1944

?

“Rumo: Sul (XIII)”

“Junho de 1944”

06.09.1944

?

“Rumo: Sul (XIV)”

“Junho de 1944”

13.09.1944

?

“Rumo: Sul (XV)”

“Junho de 1944”

20.09.1944

(20.06.1944)?

“Rumo: Sul (XVI)”

“Junho de 1944”

26.09.1944

(21.06.1944)?

“Rumo: Sul (XVII)”

“05.10.1944”

(03.10.1944)?

?

“Rumo: Sul (XVIII)”

“10.10.1944”

(10.10.1944)?

?

“Rumo: Sul (XIX)”

“Junho de 1944”

(17.10.1944)?

?

“Rumo: Sul (XX)”

“Junho de 1944”

(24.10.1944)?

(24.06.1944)?

“Rumo: Sul (XXI)”

“Junho de 1944”

(31.10.1944)?

(25-26.06.1944)?

“Rumo: Sul (XXII)”

“Junho de 1944”

(07.11.1944)?

?

“Rumo: Sul (XXIII)”

“Junho de 1944”

(14.11.1944)?

(02.07.1944)?

“Rumo: Sul (XXIV)”

“Junho de 1944”

(21.11.1944)?

?

“Rumo: Sul (XXV)”

“Junho de 1944”

(28.11.1944)?

?

Quadro de datas de publicação originais e datas dos eventos narrados

Resumindo algumas informações especialmente relevantes: a cronista teria chegado a Montevidéu em 08.06.1944 e permanecido até 24.06.1944. Teria desembarcado em Buenos Aires no dia 25.06.1944 e deixado esta cidade entre 03.07.1944 e 15.07.1944. Embora este trabalho investigativo forneça alguma ajuda mínima na interpretação literária, por exemplo, quanto ao ritmo da narrativa, a função da tentativa em estabelecer as datas das crônicas, neste estudo, não é para ampla e irrestrita utilização intratextual. Elas aqui estão como referência para pesquisas de brasileiros, uruguaios ou argentinos que queiram estabelecer conexões, verificar eventuais coincidências nas biografias dos intelectuais que transitam nos textos ou talvez complementar a compreensão de correspondências etc. Enfim, temos ciência do apreço que a cronista tinha pela privacidade, mas esperamos que tais informações possam ser de alguma forma úteis.

ANEXO B Meus olhos não têm ilusão nenhuma. E, no entanto, possuo uma fé inexplicável na perfeição secreta da vida. (Cecília Meireles, “Aos estudantes”)

Reprodução de resumo publicado no jornal “El País” - Montevidéu: 26.06.1944. Pesquisa ao acervo da Biblioteca Nacional (Montevidéu – Uruguai), em 06.08.2010.

“El País” – Montevidéu: 26.06.1944

CONFERENCIAS – Sobre “Poetas Brasileños Contemporaneos” dio una conferencia Cecilia Meireles En la sede del Club Brasileño, y ante un público muy numeroso, la poetisa Cecilia Meireles dió una conferencia sobre el tema: “Poetas brasileños contemporáneos”. Auspició esta disertación, el Instituto Cultural Uruguayo – Brasileño, y, em nombre de éste, presentó a la oradora, su presidente el Dr. Eduardo J. Couture, quien, aludiendo a la calidad poética de Cecilia Meireles, puso en evidencia su sentimiento y la gracia estética. Luego, una alumna del mismo instituto, la señorita Elvira Maria, leyó dos poemas de “Vaga Música”, el último libro de la poetisa brasileña. Cecilia Meireles inició, entonces, su conferencia, evocando, con gracia lírica, el sentido poético brasileño desde los orígenes de su país: “Las indias también eran poetas; hablaban con el dios del amor y conversaban con la luna. Los indios también eran poetas, pero poetas satíricos, y comparaban a sus compañeras con las lindas serpientes que se dibujan por el suelo jade y coral”; y agregó, a su vez, que, llegados los negros esclavos, “la poesia aumentó, cantada, danzada, rezada: todo

poesia”. Se refirió, después, a los grandes tiempos de la poesia brasileña, y, a ese respecto, estudió, primero, la poesia colonial – época en que se multiplicaron temas y técnicas poéticas -; indicó, luego, que la naturaleza, sorprendida, fué transformándose en odas clásicas, con toda su grandeza; dijo, asimismo, que los pensamientos y los sentimientos navegaron entre Portugal y Brasil, y que de este lado del Atlántico se repitieron las réplicas de las academias formadas en la otra orilla; añadió, aún, que los poetas y sus musas tuvieron, entonces, nombres de pastores, y que “el amor, con sus glorias, se adelgazó en sonetos”; y reveló, por último, que entre otros númenes el nombre de Góngora entró en esa zona de influencia que se determjnara en el “encaracolado cristal” de las fucntes de la poesia brasileña. Pasando, así, a analizar la reacción romántica, y el período parnasianista, Cecilia Meireles hizo, en primer término, una definición de aquélla – “Una gente de amor, bárbara, triste e irreverente”, que conocía a los grandes románticos de Francia, y que encontró el soneto como una forma demasiado tranquila para su espiritu convulso -; caracterizó, luego, los temas los dramas, y el suspirado amor del romanticismo; y apuntó, más adelante, que esos temas, esos dramas y ese suspirado amor dejaron un gran ambiente de redención moral y social, importante, y, junto con él, una materia destrozada, un lenguaje y un alma individual resquebrajada: “escombros de palabras, de estrofas, de pensamientos”, y, también, una infinidad de preguntas, de “interrogantes frente al destino, Dios, el amor, la muerte y la vida”. Declaró, después, que, de ahí a la reconstrucción, no medió sino poco tiempo; y, en cuanto al parnasianismo, dijo, a su turno, que, con los mismos escombros lógicos y místicos, se creó una tercera etapa brasileña, paralela a lo universal literario; señaló, igualmente, que el parnasianismo retórico, de menor transcendencia social que aquel anterior movimiento, pasó dejando en “los ojos de misteriosas mujeres suspenso el universo con todos sus problemas”; y, finalmente, precisó, todavía más, el tono de esa etapa: “De tanto viajar, en pensamiento o en geografía, por tierras de Europa, el paisaje extranjero acabó por insinuarse y hacerse más real que el paisaje presente”, “fué la grande época de Samain, Verlaine, Baudelaire, de jardines con surtidores, de balaustradas de mármol; todo se hizo leve, ideal, aéreo: no hubo más mujeres, hubo damas de castillos y colombinas; no más hombres, hubo príncipes, pajes, arlequines y pierrots; no hubo más aire, hubo voluntas de cigarro o de perfume oriental; no hubo más nada de las cosas positivas de la tierra: hubo sombras, cenizas, neblina, el mundo se apagó, vivió de ojos cerrados, abstractamente”. Cecilia Meireles entró, entonces, a presentar la gran poesia, un tanto desesperada, de su propria generación. A tal respecto, recordó que vino, al fin, otra raza de poetas rebeldes y menos angélicos que los románticos, y agregó, de inmediato, que, muy instruídos en poesía, ellos se dispusieron a reformarla definitivamente. Manifestó, después, que esos poetas renunciaron a todas las influencias extranjeras, y que despreciaron todas las conquistas del verso culto – y, más que eso, del lenguaje culto -; y estableció, por otra parte, que la perfección no tuvo ninguna posibilidad de éxito, para esa horda renovadora, que pidió escandalosamente a la vida, la vida, con todas sus imperfecciones, muy imperfectas. Descubrió, luego, ante el público, la interioridad destructora de la forma poética que el movimiento modernista asumió en Brasil; hizo ver, además, que, entonces, se desdeñaron las normas del verso, el ritmo, la rima; mostró, también, cómo una

profunda aura de libertad de expresión entró por las estrofas; y sostuvo, a la vez, que se deseó “llegar al punto central, íntimo, de la obra de arte sin tránsito por lo que es invención estética y delicia formal”. Todavía, afirmó que, en relación con el Brasil, la geografia, la etnografía y la historia entraron a fecundar la creación poética, el alma de ese tiempo; comentó, por lo tanto, esos tres aspectos fundamentales de época tan poderosa en la literatura y la poética brasileñas; aludió, asimismo, a la revolución modernista, allá por 1920; y, en ese sentido, aseguró, a continuación, que ella fué la primera floración total de un sentido nacional de Brasil, la conciencia de un pueblo con sus heroísmos, sus tres razas, y sus economías, y que, de ella, participaron los mayores nombres de las letras de entonces. Por fin, insistió sobre el carácter particularísimo del modernismo poético brasileño – “El programa revolucionario llegó a ser estabelecido con minucia: en el dominio sentimental, permitióse el lirismo a la manera de los trovadores populares: un amor inmediato, sin perplejidades metafísicas; en el plano verbal, se consintió el lujo de las palabras africanas o amerindias, que eran música y secreto: ingonos, banzos, ganzás, atabaques, tiépirangas, pussangas…” -; justificó esse movimiento, en relación con el decadentismo anterior, y como reacción frente a éste, y en auspicio del serio y decantado laborar presente, al qual aportó los valores superiores que sobrevivieron y se probaron en aquella lucha; y expresó que él tuvo, también, el mérito de dejar que perduraran los valores auténticos reunidos en ese agitado bando, y, cuando la agitación pasó, se vió que su rastro perduraba – y perdura – en poetas que, aparecidos más tarde, fueron, sin embargo, alimentados por esa brillante herencia. Terminando su conferencia, y ya caracterizada la moderna lírica brasileña, Cecilia Meireles se referió, escuetamente a los valores más representativos de la misma, informando sobre el período de decantación en que algunos quedaron rezagados y otros fueron dejando asomar, por dentro de sus actitudes de relación, la mejor obra actual, y leyendo numerosos y escogidos trozos poéticos. Entre esos valores más representativos, citó, entonces, a Manuel Bandeira – de poderosa personalidad y desgarbado lirismo -; a Mario de Andrade – musicólogo, crítico, creador de vocabularios, multánime, fuerte, y, aún, hoy, con una posición directriz muy apreciable – poeta cuyos versos estaban impregnados de leyenda popular y gracia folklórica, y, otros, “con musica propria”; a Ribeiro Couto, “penumbrista”; y a Jorge de Lima, el autor de la conocida “Essa nega Fulo”. Y, para concluir, estudió a Carlos Drummond de Andrade – exponente de un escepticismo que llegaba a una desnudez árida -, y a los jóvenes Oswaldino Marques – creador verdadero -, y Cabral de Melo Neto, espiritualísimo y de difícil sentido irreal.

APÊNDICE Resumo de algumas notícias publicadas no jornal “Folha Carioca” em pesquisa ao acervo da Biblioteca Nacional (RJ), no dia 11.08.2010: ∗ Em 29.04.1944, na primeira página, a “Folha Carioca” se solidariza com la prensa Argentina, que se manifestava contra as tendências e os regimes fascistas, sofrendo pressões do governo contra tal posicionamento. ∗ Em 03.05.1944, noticia sobre o ensino de português na Argentina, que atraia já mais de 400 alunos. ∗ Em 04.05.1944, todo o verso da primeira página é ocupado por notícias da visita de um ministro uruguaio ao Brasil. ∗ Em 06.05.1944, publicação de matéria sobre o retorno de Oreste Plath do Brasil, onde havia permanecido um ano convivendo com os intelectuais brasileiros, para o Chile. Lá efetuou divulgação da “literatura social” que aqui se fazia, reproduzindo conteúdo de um artigo publicado por ele no “La Union”, de Santiago, em que mencionava Jorge Amado, Graciliano Ramos e Jorge de Lima. Sobre Cecília Meireles dizia: “cada vez mais delicada, delicadeza simbolista que se transforma em modernismo.” ∗ Em 11.05.1944, o “Boletim Literário” informa sobre uma caravana de intelectuais argentinos que vai a La Paz, para propósitos de integração cultural. ∗ Em 24.05.1944, comunicação sobre prêmio literário na Argentina. Sem contar que, todas as sextas deste mesmo mês, o “Boletim Literário” resenhava o suplemento do “La Nación” argentino, como já dissemos.

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