CEGUEIRA FILOSÓFICA: A NATUREZA «INATURAL» DO «ESTADO DE NATUREZA»

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CEGUEIRA FILOSÓFICA: A NATUREZA «INATURAL» DO «ESTADO DE NATUREZA»


Atahualpa Fernandez(

"No sólo los productos químicos tienen
efectos secundarios: también las ideas y las
palabras." P. Malo




Apesar de que há uma explosão de estudos acerca da fundamentação de
estudos éticos e morais através da teoria da evolução, os juristas e a
maioria dos filósofos ainda não se deram conta das enormes implicações da
evolução para compreender a psicologia e a conduta humana, para saber de
onde viemos, quem somos, aonde vamos e como devemos viver. Em palavras de
Francisco Ayala, se "queremos entender lo que somos y adónde vamos, debemos
entender de dónde venimos, puesto que ello define nuestra realidad y
delimita nuestras posibilidades. Nuestra historia biológica define y
delimita lo que somos y lo que podemos ser."
É curioso como as consequências do evolucionismo aplicado ao ser
humano são rechaçadas ativamente pelos estamentos mais tradicionalmente
relacionados com o poder acadêmico das ciências sociais normativas. O fato
é que nossa espécie (Homo sapiens) não chegou à existência desde «nada»,
senão que evoluiu gradualmente a partir de uma espécie anterior, que a sua
vez evoluiu, também gradualmente, a partir de outra espécie ainda mais
anterior, e assim sucessivamente ao longo de um tempo evolutivo imensamente
largo. Descendemos de animais que viveram em comunidade durante milhões de
anos: o mítico "contrato social" já estava inventado muito antes que a
espécie humana aparecesse sobre o planeta. E nenhuma referência à moral ou
ao direito pode silenciar estas raízes da natureza humana, a neurobiologia
interpessoal respeito aos cérebros dos humanos que as constituem e as
implicações (sociais, éticas, jurídicas e políticas) que tem este fato.
Trata-se de algo tão evidente, que somente a prova do contrário resultaria
relevante.
Pois bem, em um mundo racional, a evidência, as provas e os melhores
argumentos são os que convencem e os que servem de fundamento para qualquer
discurso ou teoria que pretenda ser digna de algum crédito, isto é, que há
umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica
se queremos preservar a superioridade moral de nossas razões, discursos,
argumentos e/ou teorias. Mas não vivemos neste tipo de mundo. Nem sequer a
"comunidade" jurídica ou filosófica é uma exceção, tendo em conta a
frequência com que rechaça as evidências, as provas e os melhores
argumentos quando desafiam "paradigmas" e interesses estabelecidos.
Por que fugimos dos fatos? Por que insistimos na ideia
convenientemente paranóica de que tem que existir um "estado de natureza",
uma "posição original", uma "situação hipotética" ou uma "situação ideal de
fala", isto é, em hipóteses filosóficas ou ideias-limites vazias, desviadas
e/ou equivocadas?
O que quero dizer é que se era inevitável que Hobbes, Locke e Rousseau
carecessem de uma perspectiva evolucionista, é menos perdoável que alguns
dos seus descendentes intelectuais também careçam. John Rawls, por exemplo
– ainda que para o problema da estabilidade dos princípios de justiça parta
do suposto de que certos princípios psicológicos e evolucionistas são
verdadeiros, ou que o são de forma aproximada –, nos pede que imaginemos
seres racionais se juntando para criar uma sociedade a partir do nada, tal
e como Rousseau imaginou um "proto-humano" solitário e autossuficiente
(igual que Hobbes e Locke, um "estado de natureza").
Decerto que se trata de experimentos intelectuais ou ficções teóricas
a partir das quais, uma vez admitidas, nos levam a umas determinadas
consequências e não a outras. Mas, não exige alguma forma de algo tão
transcendental como a suspensão da incredulidade? Não é uma atitude
moralmente irresponsável pensar e excluir a moralidade e a sociedade do
processo evolutivo, da origem e da evolução do ser humano? Quero dizer, se
baseiam em evidências ou dados razoáveis? Já não parece que seja assim.
Imaginar ou falar de um ponto de partida umbrático e prévio à sociedade que
conhecemos é, na atualidade, uma absurda incongruência com os fatos, pois
servem para lembrar-nos de que nunca houve uma comunidade ou sociedade
anterior. Como há gente que ainda se convence com esta insensatez de
argumento é um mistério para mim.
Ninguém duvida que um "elemento clave del equipamiento para subir al
monte del conocimiento es la formulación de buenas hipótesis" (J. L.
Ferreira) e que, segundo o tipo de explicação, uma hipótese não tem porque
ser tremendamente realista; basta com que o seja em aspectos relevantes
para o que se pretende explicar (a literatura de "Eleição Social" está
cheia deste tipo de modelos). Mas há hipóteses que não oferecem nenhuma
linha de investigação empírica séria e não ajudam a encontrar a verdade
(ainda que probabilística).
Por exemplo, a existência de uma "posição original" (ou "situação
ideal de fala"), de um ou vários seres imaginários como ponto de partida,
não explica a existência da moral ou da justiça humana. A este tipo de
hipótese haverá que acrescentar sempre aquilo que queremos explicar:
especular ou fantasiar sobre as condições da suposta posição, contrato ou
situação inicial, que se esses seres são bons, egoístas, racionais ou
razoáveis, que se estão em posição de igualdade, que se possuem livre-
arbítrio, emoções, etc.…etc.; nunca se deduz nada de sua existência. Todos
os argumentos metafísicos para conectar uma coisa com a outra caem na mesma
falácia: as verdades morais e jurídicas são imposições razoadas, se criam a
um nível de abstração mental e não escapam às categorizações delimitadas às
que a filosofia é tão aficionada.
Ainda que não invoquem nenhuma divindade, são hipóteses que seguem
propondo um enfoque ou processo descendente em que formulamos os princípios
e valores e logo os impomos à conduta humana. O único inconveniente é que,
como já dito, os grupos humanos atuais surgiram de antepassados comuns aos
humanos e chimpanzés que, não obstante serem animais com certa vida social,
nasceram da sociedade de um elo perdido entre símios e macacos, e assim por
diante, até chegar ao ponto em que nos encontramos em nossa trajetória
evolutiva, como uma espécie de animal essencialmente social,
prioritariamente moral, particularmente cultural e decididamente diferente.
O que significa que o seres humanos "deben haberse preocupado por el
funcionamiento de sus comunidades mucho antes de que surgieran las
religiones y filosofías actuales, que sólo tienen un par de milenios de
antigüedad. Una escala temporal que no impresiona a los biólogos".(F. de
Waal)
Isto implica que um bom e realista ponto de partida, distante dos
supostos incorretos, das relações causais ou correlações defeituosas e dos
fatores humanos inesperados que são mais ruído que dados, é reconhecer
nossa bagagem como animais sociais e nossa humanidade como algo que levamos
incorporado, que para uma compreensão mais adequada do comportamento humano
moral e normativo parece necessário ver a vida ética, jurídica e social
humana como um produto da história evolutiva que nos precede, com
antecedentes em outras espécies.
Por quê? Pois porque sabemos, entre outras coisas, que descendemos
daqueles primeiros símios que começaram a andar sobre duas patas e que
somos essencialmente animais com qualidades físicas e uma série de
predisposições genéticas e psicológicas para desenvolver-nos adequadamente
em nosso entorno. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são
inatas – no terreno da linguagem, por exemplo -, que todos os seres humanos
possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e
que esses traços exclusivos de nossa espécie constituem parte essencial da
condição humana. Sabemos que a matéria prima da cultura são representações
mentais, pessoais e compartidas e que toda representação é, em última
instância, obra de nosso cérebro, quer dizer, que nada ocorre, nem nada
existe no mundo humano que não tenha sido percebido, filtrado, elaborado e
construído pelo cérebro (o que inclui como percebemos, pensamos,
interpretamos, sentimos, criamos e modificamos nossas representações ético-
jurídicas).
Também sabemos que todos os seres vivos usam o mesmo código, e que
estamos baseados no DNA. Sabemos que na savana, aberta e com pouca
proteção, era muito desvantajoso não poder controlar, à vontade, a
emissão de sons de alerta (sons que poderiam dar sinais localizadores para
os predadores ou, ao contrário, constituir até mesmo sinais de alerta para
as possíveis presas), que saber manter o «silêncio», poder avaliar o perigo
e arrancar a expressão gutural do reino emocional regido pelo sistema
límbico converteu-se em uma prioridade evolucionária – quer dizer: "No
princípio «não» era o verbo", mas o «silêncio». Sabemos, enfim, que somos
essencialmente animais: animais falantes, animais éticos, mas animais ao
fim e ao cabo.
Se acabou a era das cosmovisões totalitárias e da moralidade
descendente. A versão bíblica da criação especial do homem à imagem e
semelhança de Deus, tão apreciada pelo humanismo moderno, cedeu passagem ao
"Símio ancestral" do qual todos nós descendemos. E nada disso vem da
transcendência, ainda que aponte em sua direção. Esta é uma visão que em
certo modo tranquiliza, uma modéstia ontológica que nos imuniza contra
ancestrais ansiedades. Agora que algumas de nossas "convicciones más
profundas sobre la condición humana se han visto sacudidas, los viejos
mitos acerca de la excepcionalidad humana resultan menos necesarios" (S.
Pinker). Podemos viver sem verdades, pressuposições ou presunções absolutas
e entender que a natureza humana provê um fundamento moral muito mais
sensato que o improvável desenho de hipóteses que somente contam com um
respaldo empírico direto anedótico.
Certamente que esse caprichoso e arbitrário conjunto de teorias,
hipóteses ou conjecturas escritas na areia segue aí, mas isso é, depois de
tudo, um indício da arrogante ignorância de alguns membros de nossa espécie
ou quiçá um simples sintoma da complexidade do trânsito. Uma ignorância ou
um sintoma que, se há sorte e sabedoria, está destinado a desaparecer. O
verdadeiro "véu da ignorância" é a evolução pela mão cega da seleção
natural ("con la doble e interactiva influencia de los factores biológicos
y ambientales"), pelo simples fato de que o que ignoramos realmente (e por
completo) é o «que» nos tocará na «loteria da vida».
Resumindo o que quero dizer: ocultar em ensolaradas hipóteses
filosóficas que a moralidade e a sociedade são resultado de um processo
evolutivo que, para bem ou para mal, forjou uma espécie (a nossa) que as
geraram, não somente é bastante feio e presuntuoso; também é ineficaz e um
risco que não podemos permitir-nos, para não dizer um disparate. Não há,
não teve nunca lugar e nem pode ter realidade alguma, um "estado de
natureza", "posição original", "situação ideal de fala", "condições ideais
de diálogo" ou grupo humano disposto a pensar deliberadamente sobre a
"melhor" sociedade: unicamente seres humanos construídos deficientemente
pela evolução e adaptados a nichos ecológicos, sociais e culturais
complexos e variantes.
Não somos uma espécie que graças à capacidade de reflexão sobre a
situação ponderou e decidiu sobre as vantagens de associar-se. Não somos
seres exclusivamente morais ou portadores de uma racionalidade absoluta que
se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim
predeterminado. Não! Somos apenas uma espécie que descobriu que
determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários para
resolver problemas adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito
reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los
e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta. Nossos
valores, normas e imperativos morais/jurídicos são uma parte da história
natural da espécie humana e fruto de nossas interações sociais diárias.
Portanto, ante tanto intelecto humano desperdiçado, há que ser
cauteloso, estar atento e alerta à "in ación palabraria" (E. Galeno), às
meras abstrações ou especulações mentais metafísicas e a toda uma série
picassiana de fabulações criada por uma mente desenhada para explicar ou
justificar qualquer coisa, porque não somente os produtos químicos têm
efeitos secundários, senão também as ideias e as palavras.


( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor(Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
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