Celebridade intelectual e pensamento crítico

September 18, 2017 | Autor: Andre Rangel Rios | Categoria: Filosofía, Teoría Literaria
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ANDRÉ RANGEL RIOS

Celebridade Intelectual & Pensamento Crítico

Marcelo Cattanio ascetae diligentissimo otii cum dignitate ac sine celebritate

EDIÇÃO ONLINE Rio de Janeiro Setembro, 2006

Copyright © 2005 by André Rios Publicação original como coletânea: Celebridade Pensamento Crítico (ensaios). Booklink, 2005

Intelectual

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Sendo vedado qualquer lucro comercial, autorizo que, até dezembro de 2007, esta edição online seja copiada eletronicamente ou em papel, seguindo-se as diretrizes do creative commons, explicitadas no site abaixo.

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/ ______________________________________________________ Rios, André Rangel, 1958 Celebridade Intelectual e Pensamento Crítico / André Rangel Rios – Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2006. 96 p. Edição do Autor – Online, setembro, 2006 1.Teoria Literária. 2. Crítica e interpretação. 3. Literatura. I. André Rios. _______________________________________________________ DO MESMO AUTOR A Ilha dos Prazeres (romance). Uapê, 1997 Nada ou Isto não é um Livro (romance). Garamond, 2001 Mediocridade e Ironia (ensaios). Caetés, 2002. Celebridade Intelectual e Pensamento Crítico (ensaios). Booklink, 2005 Ensaios sobre Suárez e Descartes (ensaios). Booklink, 2005 Kant em Coma (romance). 7 Letras, 2006

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Sumário

Prefácio

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Soberania e Cooptação A Liberdade de Teimar em Machado de Assis

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A Construção de Derrida como Celebrity

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Celebridade e Medicalização da Crueldade na Autobiografia de Jacques Derrida

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Inventado e Planejado

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O Prazer do Autor

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Nada é sem razão Impessoalidade e Eurocentrismo na História do Ser

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Prefácio

Os textos reunidos neste livro resultam do diálogo com pessoas de diversas áreas. Quase todos foram lidos em eventos acadêmicos ou discutidos em meus cursos no Departamento de Ciências Humanas e Saúde do Instituto de Medicina Social da UERJ. Quatro deles já foram publicados, ainda que nem sempre na versão final aqui incluída. Agradeço à amizade, ao diálogo e à colaboração prática de Rafael Viegas, Marilena Villela Corrêa, Paula Glenadel, Luiz Fernando Medeiros de Carvalho, Gulnar Azevedo e Silva, Maria Andréa Loyola, Eduardo Guerreiro e Paulo César Duque Estrada. Cada um a seu modo tornou esse livro possível.

Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2005

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Soberania e Cooptação A Liberdade de Teimar em Machado de Assis ∗ ______________________________

Ah! Brejeiro! Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas

I Brás Cubas tem sido universalmente considerado como um filhinho de papai, desrespeitoso, desambicioso e sem firmeza de caráter até para empreender as maldades que ele, porém, não deixa de perpetrar. Seria, enfim, um parasita da sociedade, um inútil, tanto perdulário quanto avaro, conivente com o patriarcalismo escravocrata, convictamente fútil e frívolo. As rabugens de pessimismo pouco disfarçariam sua total falta de solidariedade social. De certo modo, seu máximo de preocupação e generosidade com o próximo seria para com o filho que ele não teve, a saber, por não lhe ter – visto que ele nunca existiu – legado a miséria da nossa (sic) existência. O que me surpreende nesse consenso é que ninguém tenha notado, ou destacado, que Brás Cubas tinha uma profissão, que a praticava e chegou a ter nela relativo sucesso. Brás Cubas era escritor. Lobo Neves, por exemplo, o cumprimenta e o elogia por seus escritos políticos, sendo que, se não comenta os literários, é por “não entender deles” (cap. 50). Porém, nós, que conhecemos suas Memórias, podemos constatar que se trata de um escritor com excelente estilo, extremamente erudito e perspicassíssimo, que nunca se cansa de questionar a própria escrita, sempre atento ao formato dos capítulos e às reações dos leitores. Um dos índices de seu sucesso como escritor é ter conseguido fundar um jornal de oposição que durou, o que a rigor é um tempo bem longo, pouco mais de seis meses. Parece-me lamentavelmente ingênuo não se valorizar as habilidades literárias de Brás Cubas por atribuí-las a Machado de Assis. Também não é aceitável que se negligencie a repetida preocupação com a escrita do livro por ∗

Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Colóquio «Estetização da Miséria», realizado na UFF, em 2001.

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ser ela alegadamente uma imitação de Sterne1. É tempo de a crítica cessar com esta injustiça secular e reconhecer o talento e brilhantismo de Brás Cubas2. Inegável é, porém, que ele, embora bem-sucedido, não se imortalizou, ao menos como literato. Prova disso é que tão poucos – “Onze amigos!” (cap. 1) – tenham ido a seu enterro. Fato que Brás nos narra, como Schwartz repara, com certo amargor. Mas até que esses onze nem são tão poucos, pois ele alega não esperar que suas Memórias tenham mais que cinco leitores. Que ele será pouco lido é, aliás, o primeiro assunto que ele despacha, talvez seja o assunto que mais o incomode, não lhe restando, assim, senão esconder mais esse insucesso, quer ostentando-o galhofeiramente, quer buscando soterrá-lo com mais uma zombaria, a saber, ao ridicularizar suas pretensões de chegar finalmente ao sucesso justo com o emplasto Brás Cubas (uma cabotinice, algo bem abaixo dos consideráveis méritos literários dele). Contudo, ele empenha-se – mesmo decepcionado, pois seu sucesso pregresso é afinal diminuto frente a sua gargantuesca vaidade – em escrever ainda mais um livro, suas Memórias, que Há perícia mesmo em uma imitação, sobretudo quando a imitação é consciente; além do quê, se Brás morreu em 1869 (ver cap. 27) e Sterne em 1868, seu recurso a esse mestre inglês não deixa de ser uma contribuição para o cenário literário da sua época. 2 Mas, se Brás Cubas é competente, isso não vai sem uma bem dosada porção de incompetência. Refiro-me sobretudo ao seu servilismo em imitar Sterne (por vezes beirando o plágio como no uso de sinais gráficos, o que é freqüente em Sterne, no capítulo LV), ao mesmo tempo em que ostenta orgulhosamente esse servilismo como quem tem certeza de que o público aceitará bem tal procedimento. Trata-se claramente de uma paródia a como os escritores de língua portuguesa submetem-se – sem qualquer criatividade, questionamento ou elaboração – aos modelos literários europeus. Contudo, a crítica aceita tão naturalmente esse procedimento servil que nunca cessou de louvá-lo em Machado de Assis. A crítica tem, com isso, se exposto ao ridículo. Veja-se, p. ex., Roberto Schwartz; ele sabe que há em Brás Cubas, digamos, influência de Baudelaire, mas acaba por preferir destacar o que o próprio Brás Cubas diz, apresentando Sterne como sendo a influência predominante, sem nunca se dar conta de que o que está em questão é uma paródia da servilidade artística e intelectual aos europeus (quer franceses, quer ingleses – dos quais a influência, segundo alguns críticos, seria a novidade em Machado –, quer alemães – através dos quais Tobias Barreto esperava renovar a cultura brasileira –). Desse modo, o que deveria ser discutido pela crítica é como Machado de Assis assimila Baudelaire, se ele o faz sem o servilismo de Brás Cubas para com Sterne, ou seja, como Machado de Assis também põe a ironia para funcionar como princípio estrutural de sua escrita, assimilando a ironia, ao ironizar o próprio processo de assimilação da ironia, como que problematizando a ironia por meio de complexas contorções citacionais. Enfim, até que ponto devemos levar a sério os críticos que levam a sério uma genealogia literária dada por Brás Cubas, que, logo abaixo, no capítulo 3, vai debochadamente dizer que a genealogia de seu próprio nome é uma fabricação cínica? No capítulo 27, Brás deixa de novo bem claro que genealogias são para ele basicamente manipulações ou mentiras visando um tipo de autolegitimação: “Mas é isso mesmo que nos faz senhores da Terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos”.

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provavelmente também não faria grande sucesso, legando-o à posteridade que se recusa a imortalizá-lo3. É, portanto, além das qualidades já mencionadas, um escritor insistente. Derrotado mas insistente. Retornando, já calejado na esquivança do público, vem destilar o seu despeito pela tepidez dos leitores e leitoras. Quer uma forra contra esse público, contumaz em não lê-lo ou em não aclamá-lo. Desse modo, ele cuida de destratar os leitores e leitoras, ainda que previsivelmente sejam tão poucos. Seu modo de despeitá-los é traindo-lhes, é expondo-lhes as mesquinharias de seu grupo social. Brás Cubas foi aparentemente um cidadão dos mais respeitáveis e conformistas, nunca causou escândalos, mas que – tal como Santo Agostinho – enfatiza os arroubos de sua sexualidade (sobretudo o episódio juvenil com a cortesã Marcela), embora afinal – tal como o referido santo – não tenha tido uma vida tão desregrada assim, primando até mesmo pela fidelidade4. Brás Cubas busca amplificar seus pecados, não para demonstrar a magnitude da misericórdia divina, mas para desnudar a baixeza e o interesseirismo cruel e cínico de seus leitores. Não é a Deus que Brás Cubas quer alcançar, não é a misericórdia divina que ele almeja, mas é ofender e culpabilizar seu infidelíssimo público o que ele ambiciona. Até aqui estive apenas comentando o nível diegético, isto é, estive me restringindo ao nível da narrativa desenvolvida por Brás Cubas. Mas há um nível prévio, extradiegético, ou mesmo pré-diegético, que é também o momento fundante da possibilidade do nível diegético, isto é, da narrativa. Sendo mais claro: do ponto de vista da narrativa, Brás Cubas é incontestavelmente o escritor, mas nós sabemos que é Machado de Assis o verdadeiro escritor. Poderíamos ainda especular postulando que haveria um Machado de Assis cidadão e um Machado de Assis escritor, que um não necessariamente coincidiria com o outro. Poderíamos lembrar que nos seus romances anteriores havia um narrador e que, a princípio, não deveríamos confundir o narrador com o Machado de Assis cidadão. Também os narradores de cada um dos romances não deveriam ser colabados em um só. E os Machado de Assis escritores, signatários de cada romance e de outros textos, também podem ser heterogêneos, diferentes a cada vez, o que também não necessariamente nos impediria de descobrirmos neles traços comuns e delinearmos um Machado de Assis escritor supostamente único, ao menos em alguns aspectos. São questões As Memórias podem ser entendidas como uma explicação de Brás Cubas para o seu insucesso; insucesso que, afinal, se deveria a essa sociedade ser medíocre e corrupta, não estando à altura de reconhecê-lo como um grande escritor. 4 Agostinho, apesar de sua retórica exaltada, a crer por sua autobiografia, teve uma vida com poucas mulheres e com alianças estáveis com elas – nem de longe, quer pelos padrões da época quer pelos de hoje, seria tido como um devasso. 3

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sem dúvida importantes, mas por ora basta nos determos no nível pré-narrativo das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Machado de Assis, seja lá que Machado de Assis seja, vem a abdicar a autoria do livro para Brás Cubas. No ato de abdicação, ele estabelece alguns pressupostos de quem seja Brás Cubas e de como ele se põe a escrever. Trata-se de condições bem singulares. Brás Cubas está escrevendo no além. Na verdade, Brás Cubas entra em cena exercendo um privilégio único: escrever após ter morrido. E não é o único privilégio. Há o privilégio da impunidade. Apesar de seus desmandos (exagerados ou não na narrativa), ele está impune; tampouco se fala de redenção para os injustiçados. Tudo se passa como se não houvesse nem prêmio nem punições – como se tudo continuasse na mesma. O privilegiado Brás Cubas seguiria privilegiado. Uma situação repugnante. Uma situação tão repugnante quanto aceitável pelos leitores e críticos, pois não há quem se detenha nesse pormenor. Uns nem reparam, outros até percebem o estranho privilégio, mas nunca ouvi dizer que qualquer pessoa tenha se incomodado marcantemente com isso. Contudo, agora estamos nos defrontando com um gesto, aliás, com o gesto esteticamente fundador do livro, que se dá entre Machado de Assis e os leitores e leitoras. Não é Brás Cubas pecando para comprometer os seus leitores, é Machado de Assis pecando para comprometer-nos. A inocência que nos leva a embarcamos alegremente na leitura das Memórias trai o quanto estamos intimamente predispostos a aceitar com naturalidade que os mesmos privilégios da injusta ordem social sejam eternizados. É só porque para nós, leitores e leitoras, é facílimo aceitarmos a monstruosa impunidade da elite brasileira, que lemos, sem nenhum abalo inicial, as supostamente lúdicras peripécias do simpático Brás. Os que se incomodam com o cinismo e o pessimismo dele, incomodam-se apenas em discussões posteriores à leitura, o que nunca vi é quem se incomodasse, já durante a leitura, com a gritantemente injusta revalidação eterna (quem sabe, divina) dos privilégios e da impunidade já neste mundo tão opressivamente injustos. Com a renomada volubilidade de Brás Cubas, Machado de Assis nos leva a assumirmos a mesma atitude do pai de Brás Cubas, que, ao invés de incomodar-se e repreender o peralvilho, ri e diz: “Ah! Brejeiro!” Até teríamos como nos justificar alegando que a narrativa é envolvente. Mas Machado de Assis nos põe a seco, de início, com a opção de empatizarmos ou não com o pressuposto do romance: os privilégios da classe dominante escravocrata serem eternos – nós alegremente o aceitamos. Poderíamos argumentar que temos a lucidez de que se trata de uma ficção. Mas temos, de fato, a lucidez de quanto estamos predispostos a não só conceder, mas a

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tacitamente abrigarmos o pressuposto de que os privilegiados serão eternamente privilegiados? Seja como for, o livro estruturalmente se funda na aceitação da eternização da impunidade. Nossa sensibilidade artística se mostra intimamente comprometida com as injustiças fundadoras da sociedade. Não se trata só de discutir se o escritor deve escrever desta ou daquela maneira, com esta ou aquela temática, mas de reconhecer que a conivência com os dispositivos de dominação, com as crenças mantenedoras das desigualdades, pode ser a própria condição de abertura do espaço romanesco. De certo modo, mesmo que consideremos que Brás Cubas é um traidor de sua classe, já será tarde pois ao termos amado as suas Memórias, na nossa suposta inocência, já teremos sido coniventes – ainda que, por assim dizer, apenas esteticamente coniventes – com a impunidade da elite: é como rir sem qualquer constrangimento de piada de preto, de coxo ou de pobre5. As Memórias pressupõem a conivência dos leitores e expõem a facilidade histórica da literatura em cooptá-los. Mas, se o leitor é conivente, muito mais o é o escritor das Memórias, o nosso querido Brás Cubas. Nesse sentido, o livro está pondo em questão o papel do escritor e da erudição (no caso, de um escritor excelente e esmerado erudito, talvez um exímio latinista), bem como o quão pouco o autoconhecimento e mesmo a autocrítica podem redimir – vindo mesmo a empedernir o cinismo e a insensibilidade social. É o papel da arte que está radicalmente em questão. A arte ou a crítica, por mais lúcida e aguda que sejam, parecem inanes. Até mesmo o Brás Cubas chegou a se perfilar em oposição, sugerindo o quão interesseira também pode ser uma posição de contestação ou denúncia. Que certeza se pode ter de que quem ostenta uma posição contestatária não o está fazendo com o intuito, consciente ou não, de se promover? Um romancista contestador pode estar incorrendo na mesma malícia. Num outro texto6, ao comentar O alienista, mostrei como nesse conto o leitor é levado a assumir que a posição de Machado de Assis é a de criticar o despotismo psiquiátrico. Ou seja, o leitor (mesmo um leitor arguto como Luiz Costa Lima) é levado a tomar para si a posição que é a do barbeiro Porfírio, uma posição, aliás, ridicularizada no texto, esquecendo também que quem conduz a narração não é Machado de Assis mas um historiador, ou antes, um cronista. Antes, o que se passa é que aqui também a narrativa é fundada por uma posição E, aliás, as Memórias são um conglomerado de piadas e anedotas do que chamam hoje de politicamente incorreto. 6 ‘Itaguaí é Aqui. Sobre O alienista de Machado de Assis’ in: Rios, A. R. Mediocridade e Ironia. Rio de Janeiro, Caetés/ COC, 2001, p.11-28.

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de conivência do narrador, ou seja, do escritor, com a ordem patriarcal, conivência que o leitor renova e corrobora. Enquanto isso, Machado de Assis estaria rindo de todos: de quem defende a ordem social, de quem a contesta, de quem a narra e também dos leitores que inocentemente (coniventemente?) entram no jogo ao escolherem um desses três posicionamentos. A posição do narrador e o papel da literatura são problemas agudos nos romances de Machado de Assis. Como escrever e como ter público, sem ser conivente com as injustiças sociais vigentes? Como não ser parte de uma oposição meramente carreirista ou oportunista? Como manter-se soberano, sem ser assimilado pelo interesseirismo onipresente? Perguntas, de fato, nunca formuladas, mas cujas respostas estão indicadas nas Memórias. Roberto Schwarz, numa análise que se quer materialista, busca discutir principalmente o que seriam os interesses de classe de Machado de Assis. Numa primeira fase romântico-liberal, ele estaria em ascensão social, mantendo-se bem comportado, buscando não muito mais que explorar “os dilemas do homem livre e pobre numa sociedade escravista”7 e a questão da “dignidade dos dependentes”8 numa sociedade eivada por arbitrariedades, onde relações de favores são indispensáveis. Numa segunda fase, completada a ascensão social, “o arbitrário seria encarado com a intimidade humorística de quem se confessa praticante, e já não tem o que temer. O ponto de vista passa a ser o de cima”9. E mais particularmente sobre as Memórias ele conclui: ...Machado se apropriava da figura do adversário de classe, para deixá-lo mal, documentando com exemplos na primeira pessoa do singular as mais graves acusações que os dependentes lhe pudessem fazer, seja do ângulo tradicional da obrigação paternalista, seja do ângulo moderno da norma burguesa....10 Schwartz vê em Machado de Assis tanto crítica quanto cooptação. Talvez mais cooptação que crítica. Em todo caso, uma crítica coerente com seu arrivismo. A trajetória de Machado teria, assim, dois momentos principais: um carreirismo ascensional bem-sucedido e um colaboracionismo arrivista. Não vejo necessidade de negar tais conclusões, são coerentes com o ponto de vista

Shwartz. Um mestre na Periferia do Capitalismo. Machado de Assis. São Paulo, Duas Cidades, 1990, p. 210. 8 Idem, p. 211. 9 Schwartz. Ao vencedor as Batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 161. 10 Schwartz. Um mestre..., p. 213. 7

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adotado. Sua análise marxista, sem dúvida, trouxe à tona vários aspectos e articulações dos romances machadianos. Mas vejo com desconfiança uma análise que valora os interesses de classe a ponto de desconsiderar totalmente, quer os interesses relativos ao campo literário, quer a heterogeneidade dos papéis sociais de Machado de Assis. No esquema de Schwartz praticamente só quatro papéis são possíveis a Machado: ser pobre, estar ascendendo socialmente, estar em cima, estar em decadência. Considerando que o escritor Machado de Assis nunca decaiu e que quando era pobre não era reconhecido como escritor, só lhe restam dois papéis. Porém, a atitude de escritor e a prática da escrita são lances feitos no exercício de vários papéis e com repercussões em vários jogos sociais. Que as pessoas em sociedade ajam movidas por interesses e que o desinteresse seja um modo de impor interesses denegados, que os interesses pecuniários ou de poder se mesclem até em discretos atos do convívio cotidiano, que atos sociais sinceros e altruístas, gestos caridosos e de reconhecida abnegação, possam contribuir para reforçar as relações de desigualdade, que mesmo atrozes injustiças sociais e humilhações diversas podem ser vividas – por vítimas e por opressores – com tranqüilidade e naturalidade, são aspectos bem conhecidos e explorados em romances do século XIX. Assim, em romances que focam o amor e o casamento a grande questão é a de como se pode amar sinceramente sem estar sendo movido por interesses mesquinhos e pecuniários. Na verdade, a onipresença dos jogos de interesse pervadindo todos os laços sociais é, em geral, a premissa básica em muitos dos romances dessa época. O centro das preocupações é dar resposta a como é possível o amor, ou antes, o casamento por amor, se o que move os homens é o interesse. Como pode uma moça rica ser ou ter a certeza de ser verdadeiramente amada por seu eleito pretendente? Em José de Alencar, curiosamente, é exatamente o processo de enamoramento e casamento, em especial em Senhora, que tende a ser visto como a terapia para essa insidiosa doença social que é o interesseirismo. Contrariamente, Machado de Assis, em seu primeiro romance, Ressurreição, posiciona-se nesse debate expondo um retumbante fracasso terapêutico do casamento. Em A Mão e a Luva, o que vemos em uma leitura mais imediata é o triunfo do interesseirismo enquanto aliança harmônica entre dois calculistas interesseiros, Guiomar e Luís Alves. É certo que outras leituras desse romance são possíveis, por exemplo, a de que o livro estaria ironizando essa degenerescência do casamento; contudo, não havendo sinalização no texto da ironia da narrativa, corremos o risco de estar retroprojetando um Machado mais tardio, assumidamente irônico, numa narrativa bem menos rocambolesca. Em

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todo caso, há que se valorizar que os personagens atuantes na trama são tais que a única alternativa ao triunfo do interesseirismo seria, ou o romantismo inconstante de Estêvão, ou o interesseirismo débil e não menos inconstante de Jorge; do que resultaria termos de admitir que, sendo irônica ou não, a narrativa não assinalaria nenhuma alternativa satisfatória. Porém, temos de considerar ainda que há mais um personagem no livro: o narrador, que, aliás, várias vezes se dirige aos leitores (quer dizer, ora ao leitor, ora à leitora), sendo assim, poderíamos pensar que entre todos os personagens do livro, o único apto a ser tomado como exemplo seria o narrador, que não só indica, isto é, narra o interesseirismo como paixão última propulsionadora da sociedade, mas que também se mantém distante e ironicamente crítico; seu objetivo podendo ser o de expor o quão empobrecida moralmente é uma tal sociedade, levando os leitores a questionar se não é possível que uma pessoa opte por ser ao mesmo tempo constante e clara em seus desejos assim como verdadeiramente apaixonada, isto é, apaixonada para além dos cálculos interesseiros. Porém, não há como decidir pela narrativa qual seria a posição do narrador: se a de cínico, se a de ultra-romântico, se a de um debochado amoral, se a de um sóbrio crente na possibilidade do altruísmo amoroso ou outra. Na verdade, cabe ao leitor ou leitora atribuir qual seja essa posição, onde uma tal atribuição talvez nunca seja inocente, pois terá de ser uma tomada de posição: o leitor ou leitora entenderá a atitude do narrador, a intentio narratoris, de acordo com seu próprio caráter. Nesse sentido, A Mão e a Luva seria uma obra aberta, caberia ao leitor completá-la. (Reparar que também a baronesa é uma conseqüente interesseirista; ela sabe unir produtivamente o interesse e o afeto. Já a governanta inglesa cai mais para o predomínio do interesseirismo sobre o afeto, embora seja alegado que ela conjugue o interesseirismo a uma afeto “sincero” pela baronesa, ainda que nunca se possa saber se o predomínio do interesseirismo nesta personagem não se deve a sua situação financeira desfavorável, pois, quem sabe, se ela fosse mais rica, não lhe seria até facultado ser tão equânime quanto a baronesa.) Em Helena, há o tema do interesseirismo, mas não há o papel terapêutico do casamento (antes, o casal Salvador e Ângela entram em decadência por terem se casado). Nesse livro, toda a desgraça se deve ao interesseirismo e ao amasiamento. Porém, pode-se pensar também que a desgraça se deve ao interesseirismo não ter sido levado até o extremo por Helena e seu pai. Se eles tivessem sabido se manter afastados um do outro até que Helena tivesse tomado posse de sua parte da herança, se ela tivesse internalizado o interesseirismo de modo a não ter se apaixonado por Estácio, então não haveria desgraça, ao

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menos a desgraça não seria mais do que Estácio engajar-se em um casamento insosso. Ou seja, reconhecendo-se que os jogos de interesse dominam e constituem toda a vida social, a questão é a de como é melhor ser interesseiro, isto é, qual é o modo mais honesto – e sincero – de ser interesseiro. Tudo parece indicar como favorável um interesseirismo decidido mas moderado. Em Iaiá Garcia, Valéria, tal como a baronesa em A Mão e a Luva, é uma mistura de interesseirismo e afeto maternal. O filho, Jorge, porém, é um frouxo. Estela também é frouxa, ainda que ocultando-se em altiva; na verdade, ceder incontidamente ao orgulho é uma fraqueza. Depois há o casamento morno entre Estela e Luiz Garcia; a questão é a de em quê tal casamento, enquanto ele é o produto do interesseirismo – ainda que de um interesseirismo morno – irá resultar. Em todo caso, não resulta em desgraça para Luiz Garcia, que consegue levar uma vida plácida, praticando um interesseirismo moderado na sociedade, sem se dobrar em extrema servilidade aos poderosos, e tendo, no amor, uma mulher equivalentemente, isto é, moderadamente interesseira. A moderação de Luiz Garcia seria um bom exemplo de quem sabe fazer e desejar o que lhe é possível, é uma sabedoria que lhe confere uma soberania na condução da vida. Mas é uma soberania precária que depende das instituições sociais às quais ela resiste, mas as quais também reforça, ou seja, é menos uma soberania e mais um conformismo colaboracionista, seja como for, é uma forma ilusória de viver bem. A sorte de Luiz Garcia é ter morrido sem que (ou antes que) suas ilusões tivessem desmoronado. Enfim, Luiz Garcia vive em uma sociedade na qual prima facie não há outra opção frente ao interesseirismo que se submeter a ele moderadamente. Mas aqui também, tal como em A Mão e a Luva (onde Guiomar e Luís Alves também atingem uma posição de soberania na vida por terem bem dosado seus interesses amorosos e pecuniários), há a opção do narrador. Aquele que escreve o romance (embora em Iaiá Garcia ele seja quase invisível e nunca se dirija aos leitores) é o único que tem a lucidez da profundidade do interesseirismo e da dificuldade, ou impossibilidade, de eludilo. Daí resultando a questão de se não seria a prática da escrita, e talvez somente ela, que possibilita uma posição soberana frente ao interesseirismo que ele mostra como incontornável na sociedade. A escrita liberta? Haveria uma literatura redentora? Estaria o escritor acima, ou além, dos interesses sociais e, diga-se, dos cruéis interesses sociais do patriarcalismo escravagista? O que estou buscando mostrar é que nos seus primeiros romances Machado lida com vários personagens que, de uma maneira ou de outra, conduzem suas vidas de um modo soberano, isto é, conseguem mover-se na sociedade apresentando uma conduta equilibradamente interesseira que é em

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geral reconhecida como virtuosa e que é por vezes premiada. Ricos e “pobres” parecem ter acesso a esse estado de soberania social. Dois exemplos que estive privilegiando foram Guiomar e Luiz Garcia. Embora a posição final de Guiomar seja apresentada como sólida, lhe estando francamente assegurada uma vida de felicidades, embora no sentido moral mais comum nada lhe possa ser repreendido – antes até devendo ser elogiada por ser a pessoa mais lúcida, determinada e sincera naquela sociedade –, ela não é apresentada pelo narrador como um modelo a ser seguido, mas como um problema. A soberania de Guiomar é inegável; ela é uma pessoa que, apesar de suas adversidades sociais, pode-se dizer, controla seu destino, porém, também pode-se dizer, ela só ilusoriamente conduz seu destino porque ela não está mais do que submetendose, ainda que astutamente, ao que a sociedade interesseirista exige, de modo que ela, ao invés de estar tendo uma vida dela à parte de tais exigências sociais, não está mais que cedendo a elas no ritmo certo11. É da ilusoriedade dessa lucidez calculista da soberania de Guiomar que o narrador parece desconfiar, mas ele não tem nenhuma alternativa a propor – e o provável é que ele, o narrador, na mesma sociedade não soubesse se portar melhor; daí só lhe restar pôr-se à parte, excluído da trama. Luiz Garcia, embora sem a mesma riqueza e origem social do Conselheiro Aires e até mesmo casando após a viuvez, é em vários aspectos seu precursor; tem a mesma serenidade estóica e lúcida (embora a lucidez de Aires seja infinitamente mais conivente e, assim, cega para com os privilégios de classe que asseguram a sua vida serena), ou seja, ele se conduz com soberania – apesar de suas desvantagens sociais ele seria basicamente dono do seu destino –, mas sua vida é um teatro de ilusões: nem sua mulher o ama, nem Jorge é seu amigo. Ainda que o interesseirismo de Luiz Garcia seja menos vigoroso que o de Guiomar, e de fato ele é tão morno quanto lhe são parcos os recursos, sua soberania, quão sensato e comedido ele seja, não é menos ilusória. Tampouco a soberania precária de Estela, que ao final se consolidará em uma soberania desiludida, é menos ilusória – afinal Estela seguirá buscando iludir-se para manter seu orgulho ferido (por que mais, senão num esforço de autoilusão, ela mandaria flores para o túmulo de seu marido mal-amado?). Assim, também em Iaiá Garcia a única esperança de uma soberania não iludida (nem desiludida, o que de certo modo dá no mesmo), está no narrador.

Em Quincas Borba, Palha, que seria supostamente um interesseiro lúcido e calculista, vem a se mostrar, na verdade, não menos delirante que Rubião ao desejar pompas e título de nobreza. O que temos é que Palha sonha com o baronato e o prestígio num ritmo mais contido. Digamos, ele tem mais método em seu delírio.

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Todos os personagens sociais – assim nos ensinam-nos esses romances iniciais de Machado de Assis – são marionetes atuando segundo as regras dos jogos sociais. Todos são interesseiros de acordo com suas possibilidades de classe; e, se não forem, serão punidos por serem frouxos. Só ilusoriamente alguém se sente dono de seu destino; na verdade, toda soberania acaba cooptada. Mas, e o escritor, é ele cooptável?12 As Memórias responde essa nossa questão de um modo afirmativo: o escritor é cooptável. O que não quer dizer, é claro, que a escrita, em todas as suas dimensões, o seja. Do mesmo modo, todo o leitor é cooptado, mas não todas as leituras. Com efeito, se considerarmos os romances de 1878 em diante, vemos que Machado de Assis articulou sua estratégia de soberania como escritor subtraindo-se de ser o autor. Das Memórias em diante, pode-se dizer, Machado de Assis nunca mais escreveu um livro; ele sempre abdicou a autoria a algum escritor cooptado, isto é, a um escritor movido em sua narrativa por interesses, velados ou explícitos, de soberania meramente social. Dom Casmurro é escrito por Bento Santiago, homem rancoroso e ciumento, de boa, isto é, de rica estirpe patriarcal. Esaú e Jacó e Memorial de Aires saíram da pena do diplomata Aires, simpática figura oriundo de família bem situada, com longos anos de serviço à boa imagem da última nação escravagista das Américas. E Quincas Borba, assim entendo, foi escrito por este habilidoso escritor, Brás Cubas13. Ainda que se diga que as remissões do autor de Quincas Borba às Memórias tenham o tempero da ambigüidade e ainda que se tenha um sentimento de estranheza quando o prefácio de Esaú e Jacó atribui a autoria do livro ao Conselheiro Aires sem que haja, na narrativa do livro, qualquer rastro de que Aires seja o autor; num caso e no outro, o que temos é que Machado de Assis se subtraiu, seja em que grau for, de ser o autor inconteste do livro. Ou Em Iaiá Garcia, Jorge tem pretensões a escritor, no caso, põe-se a escrever um livro sobre a história da guerra do Paraguai. Mas nunca se consuma como escritor, nunca acaba qualquer livro, de modo que não pode ser tomado como uma metáfora para o escritor literário; antes, a incapacidade de levar o livro até o fim é mais um marco da sua característica fraqueza e falta de soberania. 13 Evidentemente, essa abdicação ficcional da autoria não nos impede de lê-los como sendo de Machado de Assis, personagem do fim do Império e da jovem República. Várias leituras da questão autoral podem ser produtivas. A leitura que estou desenvolvendo busca problematizar a prática da escrita sobretudo nesse gesto em que a escrita busca desestabilizar seu próprio gesto social, isto é, gesto social que tanto a possibilita como a expõe a um processo de cooptação, ou seja, busco problematizar cruzadamente tanto a questão do posicionamento narrativo quanto a do posicionamento social, de modo a deixar surgir a questão desse lugar tanto libertário quanto inexistente do que mais abaixo darei o nome de soberania quenótica. 12

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seja, Machado não tem interesse de ser o autor do livro, ou ao menos, só aceita sê-lo na medida em que renuncia a sê-lo. Machado de Assis escreve na medida em que não escreve, em que resiste a escrever. E se não há como escrever sem ser cooptado pelos jogos de interesse, então – se ele se subtrai de escrever – ele também está resistindo à cooptação. É, portanto, no gesto mesmo da escrita que dramaticamente se trava o confronto entre cooptação e soberania. Mas retornemos à macroproblemática dos personagens machadianos. Para maior clareza, focarei a discussão na figura do Conselheiro Aires, que tradicionalmente tem sido visto como marco final da cooptação de Machado, de esmaecimento de seu suposto pessimismo, enfim de um relaxamento crítico que seria próprio à velhice. Nem me dá gosto resumir um século de lengalenga sobre o bom velhinho que Machado de Assis teria se tornado. Só quem destoa do consenso, ainda que se desculpando, é John Gledson. Ele expõe uma proposta interpretativa que lhe parece arrojada. Ele mostra que é possível entender que Fidélia e Tristão já tivessem se encontrado em Portugal, que a fidelidade de Fidélia pelo seu falecido marido poderia ser um disfarce virtuoso para afastar os pretendentes até a volta de seu grande amado. Gledson admite que essa sua interpretação não pode ser corroborada em todos os pontos pelo texto, mas argumenta que não há nada que a infirme. Um outro aspecto que Gledson indica é que a doação da fazenda aos ex-escravos não seria um ato tão generoso assim (com efeito, muitas fazendas no Vale do Paraíba ficaram arruinadas com a Abolição), que os escravos sem capital pouco poderiam fazer com a fazenda e que Tristão tinha interesse em criar a aparência, com essa doação, de que ele não estivesse casando movido por ambições (embora, é claro, mesmo sem a fazenda Fidélia continuasse imensamente rica). Além do quê, Gledson mostra que Aires bem sabe que tal doação resultará em muito pouco benefício para os ex-escravos, mas não se dá ao trabalho de se preocupar com isso. Gledson é muito hábil em mostrar como o texto do Memorial é mais dúbio, ou antes, mais crítico do que muitos querem crer14. Se tenho algo a criticar em Gledson, é em muito sua timidez. Primeiramente, lembraria que, se não há nada no texto que contradiga a interpretação proposta, então ela é válida; válida ainda que não seja totalmente convincente, ou melhor, válida como mais uma interpretação possível e que mostra a riqueza palimpsêstica do texto. Depois, lembraria também que a imagem de lucidez bem intencionada de Aires, embora seja uma interpretação válida do texto, pode, porém, ser considerada errônea se for tomada de um modo não palimpsêstico. Em terceiro lugar, reprovaria o acanhamento dele em só desmascarar a possibilidade de manobras interesseiras por parte de alguns personagens, pois todos poderiam ter suas boas intenções sob suspeita. Por que o casal Aguiar só pode ser visto como dois generosos velhinhos traídos e não como dois velhos egoístas que querem prender, para diversão particular, a juventude de um casal que 14

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Assim, há que se reconhecer a validade da leitura segundo a qual Aires — e nem tanto o bom velhinho Machado de Assis — é um cooptado, ou seja, ainda que aparentemente lúcido e mesmo sábio, é um escritor cooptado. A simpatia secular que tem sido atribuída a ele se deve a que os críticos e o público em geral têm profundamente arraigada em si a predisposição a ser coniventes com a altiva impunidade da classe dominante. O escritor, ao menos no tempo de Machado de Assis, só conseguia o reconhecimento como escritor alinhando-se aos padrões estéticos e aos pressupostos temáticos cultivados pela classe dominante, de modo que a única saída encontrada por Machado para manter a sua posição contestatária e soberana era manter-se em constante renúncia à posição de escritor, rindo-se do público que é aprioristicamente conivente não com a sua retumbante sátira ao escritor cooptado, mas com as peripécias e artimanhas, enfim, com a inocente desfaçatez da classe dominante. É como se na sociedade toda a soberania acabasse cooptada, de modo que se haveria de buscar constituir uma posição soberana à parte, no caso, por meio da escrita, mas com uma escrita que esteja à parte, o que, em Machado, torna-se possível ao entregar a narrativa a um narrador que será cooptado (funcionando como um boi de piranha), para que o narrador, em seu silêncio e aparente exclusão, se constitua como soberano, ou seja, para que se constitua como soberano para o leitor ou leitora soberana.

II Digamos que minha tese principal neste texto seja a de que Machado se preocupa com a questão da soberania, isto é, de como conduzir a vida tendo o controle, o mínimo que seja, das opções de sua própria vida. Mas, nos romances até Iaiá Garcia, o que é mostrado é que todos os personagens que, no contexto

tem tanto de vida pela frente? Por que eles não ficam felizes com a vitalidade migratória deles e não tomam com gosto o pretexto de irem visitá-los na Europa? Por que não valorizar negativamente o quão pouco, isto é, o nada, que eles se importaram com a abolição da escravidão, mantendo-se unicamente voltados para a satisfação privada de verem os dois protegidos casarem? Por que considerar que o Aguiar seria de fato um exemplo de honorabilidade e honestidade, sendo ele um banqueiro? Toda essa sociedade descrita como virtuosa pode bem ser lida como egoísta e interesseira. Mas esse cenário róseo é apresentado por Aires que é tido quase consensualmente como um narrador confiável. E é nisso que eu, em quarto lugar, discordo de Gledson: ele de certo modo recua no momento de pôr em questão de um modo radical a perversa confiabilidade e lucidez de Aires; enfim, ele não expõe o quanto a placidez de Aires é a outra face da crueldade que sustenta os privilégios escravocratas.

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da trama, teriam alcançado uma posição de soberania não teriam mais que uma soberania ilusória, ou seja, o que é mostrado é que uma soberania social até é possível, desde que se morra antes de se desiludir (como é o caso de Luiz Garcia, que nem é amado por Estela, nem tem em Jorge um verdadeiro amigo etc.). Porém, o próprio narrador, nesses livros, se mantém lúcido e à parte, deixando em aberto a questão (que, contudo, não aparece indicada em lugar nenhum) de se não seria apenas através do escritor (ou, mais agudamente formulado, através da escrita) que a soberania pode ser alcançada. Resumindo: seria o escritor o único personagem que não é cooptado pelos pervasivos jogos de interesse? Machado responde a essa questão com o Brás Cubas. Embora nunca ninguém tenha reparado, como indiquei no início, Brás Cubas é escritor e, aliás, um escritor razoavelmente bem-sucedido. Ou seja, nas Memórias, o último possível baluarte de uma soberania social – o escritor – está sendo esvaziado de seu possível papel redentor. Para entender a minha argumentação seria necessário lembrar dois artigos meus. No meu artigo, já referido acima, sobre O alienista indico que “Machado de Assis” está subtraído da narrativa, que é conduzida por um cronista, criando um espaço de opções de identificações para o leitor que asseguram que o leitor ou o crítico acabem sendo cooptados ao defenderem alguma interpretação ridicularizada no texto do conto, enquanto “Machado de Assis” resta à parte rindo-se da mediocridade generalizada. No meu entender, a mesma coisa ocorre nas Memórias (também citarei abaixo um parágrafo de Gledson que indica que o mesmo acontece em Dom Casmurro e Memorial de Aires). No meu ensaio sobre a Laus Stultitiae15, indico que nesse livro de Erasmo todas as instâncias sociais de poder e de saber são expostas em seu pertencimento aos jogos sociais de interesse. Erasmo aparece no próprio texto, isto é, no discurso da Stultitia, sendo ridicularizado, mas, o que é mais radical, os atributos sociais de Erasmo: monge, literato, teólogo, exegeta etc., também são, nesse texto, esvaziados de sua grandeza e suposto papel redentor frente às mazelas e injustiças sociais, de modo que entendo a Laus Stultitiae como um processo de esvaziamento ou quenose que leva o leitor (não qualquer leitor, é claro) a esvaziar-se de todas essas funestas vaidades e interesses, conduzindo-o não a uma posição de êxtase (Erasmo parece também desconfiar do desinteresse no cultivo dos êxtases místicos), mas a uma serenidade jocosa, que, pelo visto, só é alcançada pelo subtrair-se dos papéis sociais. O importante é notar que a posição de Erasmo como escritor da Laus só se dá exatamente na 15

‘A Stultitia de Erasmo’ in: Medicridade e Ironia, p. 81-98.

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medida em que ele também se subtrai de ser o escritor, abdicando a autoria para a Stultitia. Sendo assim, a soberania só é alcançada por subtração, por renúncia ao papel de escritor, pela ridicularização dos atributos sociais, enfim, das insígnias do escritor. Erasmo só escreve na medida em que ele foi dessignificado − enquanto escritor – de seus papeis sociais. A soberania é ao final soberania do insignificante. Se for atribuído a Erasmo algum papel social, que seja como teólogo, como gramático, ou como quem fala através da eloqüente Stultitia, então – nesse mesmo processo de dar-lhe um significado – ele estará cooptado em algum interesse e, assim, realimentando as injustiças sociais. Ou seja, se o texto da Laus é quenótico, ele não é só esvaziante para o leitor, mas o é mais radicalmente ainda para Erasmo no que ele se esvaziou — para que a Laus pudesse ter sido escrita — de ser Erasmo. Permitam-me o uso de aspas: “Erasmo” se esvaziou tanto de seus papeis sociais, quanto de ser Erasmo, isto é, de sua individualidade. Do mesmo modo, nas Memórias, “Machado de Assis” esvaziou-se tanto de ser um escritor de sucesso (no que pôs Brás Cubas como um autor que sofre com seu fracasso) quanto se esvaziou de ser o cidadão Machado de Assis (na medida em que não subiu com sua voz e sua vida ao púlpito, tendo abdicado de sua pena em favor do privilegiado Brás Cubas). Esta soberania por (dupla) subtração é o que chamo de soberania quenótica. Mas há ainda um outro ponto importante em minha interpretação, que é a questão da conivência do leitor com os jogos de interesse da sociedade, sobretudo da sociedade de então, isto é, do patriarcalismo escravocrata; cooptação pelo poder que, em muitos aspectos, subsiste ou mesmo persiste até hoje, em especial, a conivência com a impunidade dos poderosos. Na minha análise de O alienista, mostrei a conivência da crítica com o patriarcalismo. Em Memorial de Aires, há a mesma conivência e simpatia para com Aires, que tanto tem de lúcido e sereno (a consciência dele é olimpicamente tranqüila) quanto tem de descomprometido com as injustiças sociais (ele, sendo diplomata, certamente passou a vida – com bom ou má vontade? – defendendo, no exterior, a imagem do Brasil escravista; seja como for, ele pouco liga para a Abolição) e engajado com a situação (até Conselheiro ele é), de modo que pode ser considerado como pior que Brás Cubas, já que é tão comprometido com o interesseirismo da sociedade que nem precisa ser cínico, antes, ele tem a petulância de ser crédulo. Contudo, quanto mais é iludido e beneficiário das injustiças tanto mais os leitores e críticos o têm amado. A aceitação quase consensual de que Aires seria não só um virtuoso conformista, mas que seria também a imagem do Machado de Assis idoso e cooptado, não é mais do que o desejo ou a predisposição atávica do público para a cooptação e o logro da

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valorização da impunidade como solidez moral. A mesma predisposição à cooptação benevolente (como repetisse o gesto do pai de Brás dizendo: Ah! Brejeiro!) vejo na crítica que nunca indicou que o privilégio e a impunidade de Brás Cubas em ser não só o único que retorna do além, mas o que retorna impune, corresponde ao pressuposto ideológico da classe dominante de que ela restará eternamente (divinamente?) privilegiada e impune. Só o leitor que aceita tal pressuposto pode ler com humor as Memórias. É claro que muitas, ou ao menos, algumas pessoas se deram conta desse privilégio, mas nunca nenhuma crítica se deteve em ver nesse privilégio uma armadilha que indica, pela facilidade em captar a benevolência dos leitores, o quanto o público sempre já esteve predisposto a simpatizar com a desfaçatez dos privilegiados. No caso do Memorial de Aires e do Dom Casmurro, posso chamar em meu auxílio John Gledson: É principalmente em Dom Casmurro (embora com considerável preparação, especialmente em Quincas Borba) que outro ingênuo entra na história — o leitor16. Porque, permitindo ao tolo contar sua própria história, Machado faz com que ele pareça sábio. Ou, para colocar isso de outra maneira, o romance se torna um experimento que mostra como, através de que complicadas maneiras e com que sofisticação, as pessoas podem convencer a si mesmas de que estão certas, quando estão erradas17. Porque Bento — e Aires — não são simplórios; sua credulidade está disfarçada de senso comum, sabedoria

Como tenho argumentado o leitor entra de tolo já bem antes, pelo menos desde as Memórias. 17 Aqui há um problema que merece atenção não só por ser um problema na análise de Gledson, mas porque também assombra a análise de outros críticos – eu também não posso garantir tê-lo superado. Refiro-me a o crítico de algum modo pressupor que é possível, quer para ele (o crítico), quer para o personagem, saber o que é o certo e o que é errado. A lucidez quanto ao que é o certo e o errado é para Machado – veja-se o Aires – uma forma de violência ou de ocultação da violência, quando nós, críticos, ainda que, tirando vantagem do privilégio de uma visão retrospectiva de mais de um século de história, nos arvoramos em estabelecer o que deveria e o que não deveria ter sido contestado, corremos o risco de agirmos como um Aires repristinado. Assim, mesmo quando o que está em questão é o meu horror à escravidão, tenho de, como crítico, ter claro que, embora meu horror seja politicamente justificável e louvável, ele pode ser um dano para a análise crítica: posso estar de alguma maneira, com a melhor das minhas intenções, ocultando alguma outra violência; enfim, posso estar praticando esta forma brasileira, detectada por Machado de Assis, de farisaísmo – o airesianismo. Em outras palavras: talvez nunca se possa ser quenótico o suficiente.

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convencional e ceticismo18. É impossível não concluir que Machado pretendia fazer esse truque com seus leitores. Memorial de Aires é, simplesmente, um caso mais extremo do que Dom Casmurro de romance com uma mensagem codificada, que Machado sabia que sua platéia não entenderia. A armadilha está lá, no livro, para a pessoa cair nela e, na verdade, a crítica, num espantoso número de lugares comuns em torno do livro, simplesmente cita ou parafraseia a narração e o estilo de Aires, aceitando seus pressupostos. John Gledson. Machado de Assis. Ficção e História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 254 [o negrito é meu] Essa armadilha é constituída no que o gesto estético que, digamos, em primeira instância constitui os laços escritor-texto-leitor é reconduzido a um “novo” gesto (na verdade, um gesto sobreposto ao “primeiro”) no que a ironia do texto recai agora tanto sobre o leitor quanto sobre o escritor e o texto, ou seja, sobre o circuito interativo escritor-texto-leitor. Assim, Machado de Assis estetiza a miséria, por exemplo, nas Memórias, mas ele também estetiza a própria estetização. Para ele, a arte, no caso, a escrita literária (e sobretudo o escritor – até ele mesmo enquanto indivíduo social) é sempre cooptada, ao menos enquanto não houver uma estetização da própria estetização por meio da (dupla) subtração (isto é, da insignificação) do gesto artístico de primeira ordem. Um outro argumento – que proponho para fundamentar isto que estou chamando de soberania, insignificância, renúncia, esvaziamento e quenose, termos aos quais poderia acrescentar ainda: resistência, ascese e outros19 – é a Não só a lucidez, mas até o ceticismo não são mais do que uma das máscaras da ilusão em que todos — até o escritor? — estão imersos. 19 Evidentemente, estou neste meu texto, ao usar a palavra soberania, fazendo uma alusão a Bataille, ao conceito dele de opération souveraine ou de souverainité. Estou, portanto, assumindo uma genealogia para essa série conceitual que acabei de recapitular. Porém, em vista de que um dos textos que estou comentando, as Memórias, ridiculariza as genealogias, eu deveria esclarecer se faço ou não um uso paródico de Bataille na genealogia que assumo para minhas categorias analíticas. Brás Cubas reivindica Sterne, mas não deixa de plagiar Sterne, ou seja, não deixa de usar Sterne (ainda que, assim, o ridicularize), de modo que a falsa genealogia alegada por Brás Cubas não deixa também de, afinal, ser verdadeira. Assim, ainda que eu esteja usando Bataille (e provavelmente o Bataille lido por Derrida – ver o quanto a passagem no corpo do meu texto onde pendurei esta nota se assemelha à passagem de Bataille que Derrida cita na página 403 de L’Écriture et la Différence. Paris, Seuil, 1967) para 18

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ridicularizar esse tipo de análise desconstrutiva, eu não necessariamente estaria deixando de seguir a desconstrução e o Bataille lido por Derrida. Como fazer a quenose de um autor que propõe a quenose? Contudo, sempre é possível também que eu esteja citando Bataille para enganar o leitor ou a leitora, pois eu estaria era seguindo o conceito de leitor implícito de Iser. O que eu estaria dizendo é que as Memórias criam um leitor implícito, enfim, criam um lugar que atrai os leitores ou, pelo menos, atrai uma das leituras dos leitores, só para depois ridicularizá-los. Meu problema seria, assim, o do leitor implícito e a minha genealogia verdadeira seria o Iser. Conseqüentemente, eu não estaria filiado aos franceses, mas aos alemães. Mas quem a essas alturas acreditaria em mais uma genealogia? Na verdade, também é possível que eu só esteja citando Bataille, ou Iser, para seduzir os leitores, de modo a impor-lhes uma teoria de minha própria lavra: o que estaria em questão seria então um conceito meu de “escritor implícito”. A quenose seria uma pomposa presepada para eu introduzir um conceito meu aparentemente correspondente ao de leitor implícito; de modo que agora o meu conceito de escritor implícito teria Iser no máximo como uma falsa genealogia. Se um livro é escrito para um leitor implícito, então ele também seria escrito por um escritor implícito, ou seja, no que o escritor enquanto ser social se poria numa posição de escritor literário mais ou menos desligado de suas funções sociais; porém, meu escritor implícito não é limitado por “mais ou menos”, mas é um processo quenótico: meu escritor implícito seria uma evanescência geradora de escrita; portanto, um astuto subterfúgio (ainda que, quem sabe, implacavelmente vão ou inevitavelmente sob o risco de ser contraprodutivo) para escapar à cooptação social. Esta seria, então, a minha teoria: pode haver nos textos escritores implícitos cujo posicionamento como um dos focos estruturantes da narrativa romanesca (ou cuja aposicionalidade abismal enquanto tensão constituinte da narrativa) seriam desencadeamentos de – usando agora linguagem deleuziana – linhas de fuga quenotizantes, ou de – usando agora uma linguagem de sabor derridiano – traços de evanescência, enfim, o escritor implícito seria, segundo proponho, um fio condutor interpretativo válido e eficaz na medida em que “ele” (ou “ela”, ou mais quenoticamente ainda: “um não sei quê”) surja no processo de leitura e interpretação como uma miragem tão saborosa quanto fugidia , tão apta a dar sentidos quanto a suspendê-los (assim, exemplos de escritores implícitos seriam o “Machado de Assis” entre aspas ou o “Erasmo” entre aspas – embora as aspas irremediavelmente façam sempre parte da miragem –, isto é, enquanto “eles” seriam resultados de processos quenóticos entranhados no processo de escrita, os quais processos quenóticos, porém, podem, paradoxalmente, catalisar o processo de tornar a eles – eles, agora sem aspas – escritores célebres). Ora, uma teoria não é essencialmente diferente de uma genealogia. Uma teoria é também uma invenção; ela reivindica um tipo de antecedente, um antecedente mais abstrato, a saber, um antecedente conceitual que se quer independente dos conceitos já propostos pelos autores consagrados. Mas é ainda assim uma genealogia, uma manipulação narrativa que visa legitimar uma argumentação. Mas isso, evidentemente, não é tudo. Pois Bataille é francês. Enquanto as Memórias foram escritas na sombra da ridicularização de uma genealogia inglesa, o Quincas Borba se desenvolve ridicularizando a genealogia francesa: tanto é ridicularizado o Brasil cultuar a grandeza da França quanto é ridicularizada a grandeza da França no que ela aparece na figura de Napoleão III, que é um imperador com uma genealogia fajuta; ou ao menos muito mais fajuta que a genealogia de Dom Pedro II, imperador com uma linhagem muito mais nobre (o que também não deixa de ser uma tolice que nem a nobreza dos Cubas). O Quincas Borba é o escracho da nossa dependência cultural e social da França. Daí a minha reivindicação rubiônica de uma descendência conceitual de Bataille e Derrida (mas quem sabe não dependo mesmo é de Iser? Ou será que, no conceito de escritor implícito, é de Wayne Booth que afinal dependo?). Neste texto, de fato, não sou mais do que um Rubião

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análise de uma peculiar passagem, a qual análise, aliás, nos dará uma palavra derivada do próprio texto machadiano. Neste texto, Machado fala na “liberdade de teimar” que o burro tem. Essa posição de resistência seria, portanto, a liberdade de teimar, a teimosia em não ceder inteiramente ao onipresente interesseirismo. CASO DO BURRO Se Aires obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele continuaria a andar, nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro, sem nunca mais acabá-lo. Mas não há na memória que dure, se outro negócio mais forte puxa pela atenção, e um simples burro fez desaparecer Cármen e a sua trova. Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferia a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando. Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito invencível. Depois leu neles este monólogo; “Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não te chamo nada. Ficas sendo sempre o meu patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando conceitual (ou talvez seja um Quincas Borba; o filósofo, não o cachorro): minha análise é um delírio de grandeza (mas que Teoria Literária não o é?). Tal como Rubião pôs sobre sua cabeça a coroa imaginária de Napoleão III, eu usurpei conceitos de Bataille e os impus ao texto de Machado. Com o Quincas Borba, Machado de Assis está rindo postumamente de mim: sou um Rubião, não com barba e bigode de Napoleão III, mas com vocabulário de Bataille. Assim, só me resta aqui deixar a promessa de que em breve terminarei de escrever a minha análise de Quincas Borba; uma análise tanto do delírio do Rubião imperador quanto do meu de crítico e teórico literário.

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que o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar...” — Vê-se, quase que se lhe ouve a reflexão, notou Aires consigo. Depois riu de si para si, e foi andando. Inventara tanta cousa no serviço diplomático que talvez inventasse o monólogo do burro. Assim foi; não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciência, mas não se pôde ter que lhes não desse uma forma de palavra, com as usas regras de sintaxe. A própria ironia estava acaso na retina dele. O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memória a esquecer Caracas e Cármen, os seus beijos e experiência política. (Machado de Assis. Esaú e Jacó. Capítulo XLI/ CASO DO BURRO, p. 998) O capítulo começa trazendo à tona a subtração (ou duplicação, ou duplicidadização, ou diferenciação) entre o escritor “Aires” e o Aires cidadão, diplomata e, aliás, também escritor. Sendo que o tema que introduz o capítulo é o “andar”. No caso, a questão é entre andar e empacar. Como já disse, esse capítulo é aparentemente estranho à narrativa de Esaú e Jacó; entretanto, ele trata exatamente da questão da interrupção da narrativa; e tais interrupções não só não são raras, mas são um elemento característico das narrativas machadianas. Trata-se, portanto, de algo que estaria, num certo sentido, fora, mas que está, num outro sentido, dentro da narrativa. O que temos é que a narrativa do livro empaca nesse capítulo, sendo que o que vemos é que Aires também está empacado, pois ele parou de andar para observar o burro, e o burro está empacado (também o leitor fica sem outra alternativa senão empacar e ficar observando esse engavetamento de empacamentos). Não vou fazer a detida e aprofundada análise que o tema do “andar” em Machado de Assis merece, mas levantarei alguns aspectos que nos levam de volta às Memórias. Refiro-me, primeiramente, ao célebre capítulo LXVI As pernas, que narra as pernas tendo levado Brás Cubas pelas ruas do Rio de Janeiro, sem que ele se desse conta, até o Hotel Pharoux, de modo que, quando ele sentiu que estava com fome, já estava diante do restaurante no qual ele costumava almoçar. Notese que não se trata apenas de saciar uma necessidade física, pois ele chegou a um lugar da moda; assim também “as pernas” não dizem respeito apenas ao movimento de deslocamento dos membros inferiores, pois “as pernas” fazem

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com que Brás Cubas “tire o chapéu aos conhecidos”. Ou seja, “as pernas” e o seu andar são a metáfora para o desempenho automatizado dos jogos sociais, isto é, da capacidade de atuar socialmente sem a necessidade de realizar constantemente cálculos conscientes. O que vemos é que Brás Cubas tem a prática dos jogos sociais tão bem interiorizada que, mesmo sem dar grande atenção, chega aos lugares da moda e de prestígio sem gafes e sem mesquinhos cálculos conscientes. É uma imagem da soberania social de Brás Cubas: ele tem “amáveis pernas”, ou seja, o jugo social lhe é doce. Diametralmente oposta lhe é Eugênia, coxa de nascença; ela é a resistência ao engajamento social dócil e conivente. Schwartz é certeiro ao notar que Eugênia é a única personagem que resiste até o fim, até cair na miséria, aos favores cooptativos da sociedade e de Brás Cubas. Eugênia é uma desprovida que busca constituir-se em uma posição de soberania; em conseqüência, ela sofrerá com seu extremo rebaixamento social. O que não podemos decidir pela narrativa é se ela atingiu ou não uma situação de soberania quenótica. Seja como for, ser manca é resistir à conivência e à subserviência. Casar-se com ela seria um modo de Brás Cubas tornar-se manco, isto é, passar a resistir à conivência a qual ele busca justificar sugerindo lhe ter sido imposta pela educação, isto é, pelo seu meio social degenerado (o que é uma paródia ao naturalismo). Mas Brás Cubas não assume essa situação de modo definitivo, apenas, digamos, brinca de manco, ou seja, tal qual um bom filhinho de papai diverte-se em brincar de rebelde. Na verdade, todo o episódio com a Eugênia, ou seja, a demora em retornar para atender à vontade do pai, é uma “mancada”, é uma parada no “andar” em seu trajeto social, embora ele acabe evitando este faux pas. Se Eu-gênia foi bem nascida e manca por resistir a qualquer cooptação social, Brás Cubas só circunstancialmente – como um prazer auto-indulgente de caprichoso riquinho – é que se põe a mancar; não lhe é congênito mancar, é algo que somente lhe acontece quando inadvertidamente usa um par de botas apertado. Se lermos o capítulo XXXVI, A propósito das botas, vemos que voltar à casa do pai é como tirar o par de botas apertado que o faziam mancar. Ele até achou prazeroso o alívio, e regozijou-se de não ser como a Eugênia que “não descalçaste nunca” as botas apertadas. O que vemos também aqui é como aquilo que manca, que resiste à cooptação – como, digamos, a prática literária – pode ser assimilada pela classe dominante com a leviandade de quem usa um sapato apertado, como mera diversãozinha barata a ser descartada a seguir. Em todo caso, o que fica claro é que, depois de haver empacado brevemente com a Eugênia, Brás se põe a andar, sem sapatos apertados, para freqüentar a casa de Virgília; e é também a narrativa que então parece voltar a seu passo (embora, é claro, a narrativa não vá nunca cessar de

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manquejar, isto é, de deixar um rastro de resistência). Mas, como eu dizia, o burro empaca, e apanha. O andar da carroça é o romance fluindo, é Brás Cubas escrevendo suas Memórias, mas quando o texto empaca em suas digressões, interrupções, ou seja lá como for, enfim, quando vemos a “ironia e paciência” do burro, enfim, quando o burro – o escritor eclipsado – exerce a sua “liberdade de teimar”, surge o sintoma do silêncio da recusa à conivência. Resumindo, vejo no penúltimo parágrafo de Caso do burro uma metáfora da resistência do escritor, e no último a descrição do leitor ideal. O burro, isto é, “Machado de Assis” (entre aspas que assinalam a dupla subtração) é a teimosia em não ceder inteiramente a Brás Cubas (ou ao Aires diplomata). O romance de Brás Cubas, sua escrita ou tagarelice, é a carroça em movimento. Quando desconfiamos da narrativa de Brás, quando nos perguntamos o que “Machado de Assis” está, em seu silêncio (ou insignificância) de subtraído ou asceta, sinalizando por meio de sua ironia e paciência para os eventuais leitores que tenham a ironia “na retina”, é quando a carroça pára – e é quando o burro mais apanha. Batem em “Machado de Assis” para que ele ande na figura do pessimismo de Brás Cubas. Batem em “Machado de Assis” para que ele ande com a serenidade impune do Conselheiro Aires20, isto é, como um velhinho pacato e finalmente conformista. O legado de nossa miséria não são apenas a impunidade ou as injustiças devidas à escravidão e à dependência tanto econômica quanto cultural, mas a dificuldade extrema, ou a impossibilidade, de subtrairmo-nos dos mesquinhos jogos de interesse, ou mesmo, no caso de Machado de Assis, de ter a prática paciente de uma contínua e elusiva subtração quenótica deste onipresente interesseirismo claramente reconhecida, quer pelo público contemporâneo a ele, quer pelo do futuro. Assim, Machado de Assis – ou antes “Machado de Assis” – põe, com sua obra, a questão de se ele (quem?) afinal teria desairosamente tido, ou não, o triste destino airesiano de cooptado feliz. E podemos assim perguntar o quanto a sua escrita teria mais andado que empacado; ou o quanto, afinal, a sua escrita gloriosamente exerce a liberdade de teimar.

Não é o meu tema aqui, mas cabe lembrar que também batem em “Machado de Assis” para que ele ande como um parvenu, ou como “o maior escritor brasileiro”, ou como o fundador da Academia Brasileira de Letras etc. 20

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A Construção de Derrida como Celebrity ∗ ______________________________

There where several different reasons for my refusal to be photographed, which did last a long time [até 1979]. One of them, a profound one, unquestionably has to do with being ill at ease with my own image… Derrida

I Foi da leitura do texto de Galison, Trading Zone. Coordinating Action and Belief21, – onde ele comenta que seria através de um pidgin que, na pesquisa em física, os físicos teóricos, os físicos experimentais e os que desenvolvem os instrumentos para os experimentos se comunicariam – que surgiu a idéia tanto de discutir o pidgin acadêmico nas áreas humanas quanto de propor este tema como a questão de nosso simpósio. O pidgin é um conjunto de palavras e de algumas estruturas sintáticas derivado de uma língua dominante, ou por algum aspecto tida como mais forte, e que vai funcionar, como que parasitariamente, em uma outra língua. O pidgin não chega a se estabilizar como uma língua autônoma, quando isto ocorre, deixa de ser pidgin e passa a ser creole. Este processo de estabilização de um pidgin é chamado de creolização. No meio acadêmico, penso sobretudo na área de humanas, conversamos muito entre nós, filósofos com historiadores, teóricos da literatura com sociólogos, antropólogos com psicólogos, e para nossa surpresa não nos desentendemos mais do que quando falamos com nossos colegas de ∗

Uma primeira versão deste texto foi apresentada na abertura do simpósio “O Pidgin Acadêmico”, realizado no âmbito do Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, em Belo Horizonte, em julho de 2002e incluída nos anais desse mesmo congresso; esse simpósio foi coordenado por mim e pelo prof. Luiz Fernando Medeiro de Carvalho. 21 Ver BIAGIOLI (1999) p.137-160.

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especialidade, às vezes a receptividade é até maior. É verdade que, não raro, temos a impressão de que se está conversando at cross-purposes. Assim, por exemplo, quando eu conversava com colegas da área de Letras sobre Derrida ia constatando que tinham pouco trabalho de leitura em textos de Husserl e Heidegger, mas que, mesmo assim, falavam desembaraçadamente da différance (termo que traduzo por diferænça22), sentia-me na mesma medida desconfortável e espantado, pois não era capaz de entender como esses colegas construíam uma compreensão da diferænça sem referenciá-la fortemente a textos tidos como fundamentais na História da Filosofia de Platão a Heidegger. O desconforto que sentia se desenvolvia em duas direções: por um lado, a minha formação em filosofia me instilara a percepção e o sentimento, enfim a certeza, de que a História da Filosofia era a coluna vertebral do pensamento ocidental, de modo que naturalmente considerava que todos tinham de se instruir em filosofia se queriam falar algo que fosse de fato crítico (curiosamente, esses colegas de Letras eram os primeiros a inadvertidamente trabalharem para me aprisionar nesse preconceito ao afirmarem repetidamente que precisavam muito estudar Kant ou Heidegger), mas, por outro lado, tinha cotidianamente a experiência de que, apesar de ter pouca leitura, ou mesmo nenhuma leitura, de vários outros autores em filosofia, eu conseguia manter conversas relativamente produtivas com meus colegas neles especializados, ou seja, para mim era claro que sempre há vários graus de leitura possíveis e mesmo vários backgrounds possíveis, para se vir a fazer interpretações relevantes (particularmente me impressionava o quão pouco os especialistas em Filosofia Medieval, e eu tinha e tenho esta mesma falha, conheciam de história medieval, e mesmo assim escreviam sutis análises de Herveus, Durandus ou Burley). O meu espanto, por sua vez, se devia em parte ao quanto a palavra diferænça esgarçava os sentimentos incutidos em mim por minha formação em filosofia, tanto os reforçava quanto os solapava. Internamente eu tendia em duas direções. Por um lado, nutria uma concepção canônica do controle do pidgin, ou seja, queria que o uso dos termos derridianos nunca deixasse de estar regido por uma suposta origem deles em uma disciplina canônica, no caso, na História da Filosofia. Por outro, me rendia à sabedoria de meus colegas de Letras que faziam, apesar de seus fortes sentimentos de dívida para com Kant e Heidegger, um uso pidginiano do pidgin, isto é, agiam como se considerassem que o pidgin, sempre oriundo de diversas disciplinas, não deveria nunca aceitar um soberano único.

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Ver “A Diferænça” in: RIOS (2001).

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II A linguagem de Derrida substituiu em grande parte o pidgin fenomenológico, um pidgin referenciado a dois grandes nomes da História da Filosofia: Husserl e Heidegger. Os textos de Derrida e seu modo peculiar de analisar textos foram valorizados de um modo enfatico primeiramente pela teoria literária americana. Até hoje há resistências em reconhecer que Derrida seja um filósofo. O pidgin derridiano não está, assim, submetido a uma límpida lógica canônica. Não que não haja tentativas de recuperá-lo para a História da Filosofia. Um belo exemplo disso é o livro de Rudolphe Gashé, The Tain of the Mirror23, criticado por Bennington por ser uma desavergonhada reapropriação de Derrida pela filosofia tradicional “no mínimo nos condenando a Kant, Hegel e Heidegger se nós quisermos continuar a seguir o mestre”24. Bennington recusa que a obra de Derrida, ou que o seu pidgin, seja submetido ao discurso filosófico tradicional, ao modo da História da Filosofia, ele ressalta as ligações da obra derridiana com o “literário”, bem como seu caráter lúdico, além de ironizar esse desejo de ter um “mestre”; desejo que esse ímpeto refilosofante de Gashé parece implicar. Assim, o pidgin derridiano não seria filosófico, isto é, não seria regido pela lógica canônica própria à História da Filosofia, mas seria algo da ordem da ludicidade literária, enfim, seria um pidgin que, ao invés de ser cooptado por um centro rearticulador das hierarquias político-metafísicas, infiltraria aí sua lógica – ou ilógica – inventiva, descentralizante, marginal, desestabilizante, ou seja, diferænciante. E o desejo de Bennington seria o de que Derrida não fosse o mestre de uma leitura da obra dele, isto é, da obra de Derrida. O problema talvez seja exatamente o de que, na mesma medida em que algum Derrida vá deixando de ser senhor de sua obra, algum outro Derrida estará, na mesma medida, se tornado cada vez mais seu senhor. Entre as propostas da GASHÉ (1995) – edição americana em 1986. “The Tain of the Mirror established Rudolphe Gashé as the undisputed moral consciousness (or let’s say the super-ego) of all Derridians (and maybe even of Derrida himself). There was something inexorable and unavoidable about the book, probably because in almost every detail it was so clearly right. Any temptation we, or some of us, may have to get playful or, especially, ‘literary’ about Derrida, was sternly put in its place as irresponsible, because philosophically ill-informed, and this judgement could be felt, immediately and a little dispiritingly, stretching into all our Derridean futures, condemning us to at least Kant, Hegel and Heidegger if we wanted to earn the right to keep following the master. The book was essentially, explicitly and unashamedly a rephilosophising of Derrida, the beginning of a systematic and potentially exhaustive transcription of Derrida’s work back into something more ‘properly’ philosophical than Derrida’s work itself seemed always to be. Derrida did deconstruction, and Gashé was doing philosophy of deconstruction.” BENNINGTON (2000, p. 155).

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desconstrução está a de que um texto nunca é homogêneo, o que leva também a que se diga que um autor nunca é homogêneo, no caso, nunca é mestre absoluto de seu texto, mas quando o que o autor defende é que não se é mestre do próprio texto então perder a soberania sobre o próprio texto não deixa de ser o movimento de ganhar mais soberania ainda. Situação que se torna ainda mais dramática, na medida em que na sintaxe do pidgin derridiano a primeira pessoa do singular é um importante elemento articulador. O desenvolvimento do pidgin derridiano vai de par com interessantes desdobramentos do uso da primeira pessoa do singular. Ainda não realizei esta análise em toda a extensão que ela merece, vou me restringir, portanto, apenas a apresentar alguns aspectos desse controverso tema discutindo-o em relação a nossa questão do pidgin. Discussão, porém, que me conduzirá a um tema ainda mais complexo e que apenas incipientemente abordarei aqui, a saber, o tema da construção da persona acadêmica de Derrida e de sua reconstrução como celebridade internacional. Se, mesmo sem ter me preparado devidamente, ouso aqui comentar essa questão é apenas porque ela, embora salte aos nossos olhos, tem sido, o que também necessitaria ser explicado, largamente negligenciada.

III Minha questão é que a maior diferença entre o pidgin derridiano usado por Derrida e, por exemplo, o pidgin derridiano usado por Benninigton é como, num caso e no outro, é usada a primeira pessoa do singular. E como Derrida usa a primeira pessoa do singular? Antes de mais nada, precisaria analisar como é, em geral, usada a primeira pessoa do singular, ou ao menos, teria de focar em especial o seu uso em textos acadêmicos. Ora, a primeira pessoa do singular em textos acadêmicos pode ser impessoal, pode não ter nenhuma densidade autobiográfica. Há um uso acadêmico da primeira pessoa do singular que permite ela seja usada, por exemplo, num paper de química, onde ela não se reportaria ao signatário do texto (que pode inclusive ser uma pluralidade de autores), mas a escolhas metodológicas (algo como: “Decidi abordar primeiramente...”). Um autor pode usar a primeira pessoa do singular também para se referir a sua obra anterior (“Já discuti anteriormente...”) ou a si mesmo tomado como uma instituição – em ambos estes casos pode-se optar em usar a primeira pessoa do plural, escrever de modo impessoal ou referir a seus trabalhos anteriores em terceira pessoa (ou citando um trabalho seu tal como cita o de uma outra pessoa – seria como se eu dissesse: “segundo RIOS

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[1996]...”). Contudo, o contrário também é possível, uma narrativa impessoal pode estar – e sempre, ainda que discretamente, está – infiltrada por uma narrativa com densidade autobiográfica25. Porém, para um autor da área de humanas, passar a usar abertamente a primeira pessoa do singular, parece ser um marco significativo em sua obra, merecendo uma análise pormenorizada26. O primeiro livro de Derrida foi o seu prefácio ao texto de Husserl, L’Origine de la Géométrie, de 1962. Nele, não há uso explícito da primeira pessoa do singular. É o que é, aliás, de se esperar no livro de um autor acadêmico desconhecido, ou seja, embora não seja absolutamente impossível que um iniciante faça vasto uso de anedotas autobiográficas, não é o que se esperaria. Para ser mais claro, deixem-me recorrer, a título de exemplo, à trajetória de Tom Cruise27. Derrida tem muito de Tom Cruise. Foi por meio de vários filmes de ação, de seus seis primeiros filmes, com papéis destacando um perfil masculino jovem e atlético, que Tom Cruise ganhou fama. Era, digamos Por exemplo, no prefácio de Derrida ao texto de Husserl sobre a origem da geometria (HUSSERL/ DERRIDA), que me referirei logo abaixo, Derrida, sem nunca usar a primeira pessoa do singular, expressa vários dados autobiográficos. Se lemos: “C’est ainsi que Trán-Dùc-Tháo, après une remarquable interprétation...”, o “remarquable” é tanto um juízo acadêmico quanto pessoal, é mesmo uma mostra de um entusiasmo pessoal especial por esse comentador, enfim, é o equivalente a “eu acho Tán-Dùc-Tháo notável”. Além de detalhes como esses, podem valer como depoimento pessoal, ou de um momento na vida, a escolha do tema, o modo de abordagem, a escolha da bibliografia secundária, o uso da língua francesa, o estilo e, até mesmo, a opção pelo uso de uma linguagem impessoal. 26 É interessante observar sobretudo quando um autor que primeiramente se envergonhava de ter concedido entrevistas chega a um estágio de turvar os limites de sua experiência pessoal com o que seria uma experiência de porte social. Por isso, parece-me notável uma passagem de Spectres de Marx: “...eu reli o Manifesto do Partido Comunista. Eu confesso envergonhado: eu não o havia feito desde décadas – e isso bem que mostra alguma coisa (et cela doit bien trahir quelque chose)” (p. 22) Aqui Derrida está pondo em cena mais um espectro. Em que sentido não ter estado lendo há décadas o Manifesto Comunista é significativo de – ou trai – alguma coisa? Ora, Derrida está se tomando como exemplo, o que ele faz está sendo tomado por ele como sendo significativo de algo. É a atitude das celebridades que consideram que o que elas falam, sejam coisas tolas ou que traem total desconhecimento do assunto, é significativo para a sociedade. Caetano Veloso poderia dizer o mesmo: “há décadas que nem vejo esse Manifesto”, e considerar que é uma frase muito boa para sair no jornal. Por que ele, Derrida, não ter mais lido o Manifesto Comunista seria significativo? É porque Derrida não fala aqui como cidadão comum (até seria significativo que um cidadão comum não tenha lido o Manifesto, pois espelharia a maioria dos que, já o tendo lido alguma vez, provavelmente, não mais o estiveram lendo), mas quase como uma instituição, no caso, como uma persona pública, ou seja, é o espectro de celebrity, onde muitas vezes o público e o privado se turvam (ou mesmo onde o privado é canibalizado pelo público), que ronda os Espectros de Marx. 27 Na exposição que se segue, estou me baseando extensamente em: MARSHALL (1997, p. 94-105). 25

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assim, uma fama especializada, baseada em um “tipo”, no qual o foco era muito mais o seu desempenho e porte físico que uma sofisticada atuação dramática. Com The Color of Money, em 1986, onde ele desempenha um papel algo mais complexo, seu perfil começa a se alterar e, em função disso, sua performance começa a ser comentada na impressa especializada, sobretudo por ter aí contracenado com Paul Newman, um ator já com estabelecida autonomia de sua imagem, isto é, liberto de imagens artísticas por demais especializadas ou restritas; paralelamente a esta intensificação da autonomização de sua imagem, mais aspectos de sua vida extracinematográfica, que até então recebia relativamente pouca atenção, são postos em circulação. Nos filmes subseqüentes, esse processo de transgressão de sua imagem especializada continua; sem, porém, deixar de lado o capital acumulado como ator masculino bonitão. Mas, embora, por um lado, Rain Main, em 1988 – onde a atuação de Dustin Hoffman faz com que a performance de um Cruise algo vilão seja levada a sério – e, principalmente, Interview with the Vampire, em 1994 – onde Cruise representa o vampiro Lestat, um personagem dark, pondo em risco a sua, sempre ainda importante, imagem especializada – gerem, exatamente por esse contraste transgressivo com sua imagem inicial, numerosos comentários e polêmicas na mídia e ponham em evidência tanto a crescente autonomia de sua performance frente ao “tipo” inicial quanto a autonomização de sua imagem extracinematográfica, por outro lado, esse seu “tipo” inicial não só não é abandonado como é realimentado, por exemplo, em The Firm, (1992) e Mission Impossible I e II (1996 e 2000)28. É imprescindível que um ator transgrida sua persona especializada tanto para poder se tornar um ator sério e reconhecido quanto para se tornar um star, isto é, para se tornar uma persona com reconhecimento extracinematográfico até mesmo maior que o cinematográfico. Há toda uma parafernália de revistas e talk shows que funcionam como lugar e instrumento para elaboração de uma biografia pública – participação em projetos assistenciais ou ecológicos também são um meio de incrementar uma persona pública autônoma. Na primeira fase, há, assim, uma forte dependência do ator para com os estúdios e empresários; é, depois, num momento de virada de sua imagem artística, que o ator busca construir, além de uma imagem midiática autônoma de seu desempenho especializado inicial, uma independência empresarial. O resultado é que Tom Cruise chegou a adquirir tal Born on the Fourth July (1989) começa com a persona especializada de Cruise e depois a transforma no contrário como um veterano do Vietnam paraplégico. Ou seja, este filme tanto reforça a persona “tipo” quanto contribui para dar prosseguimento a sua virada (cf. MARSHALL p. 113).

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autonomia, e acabou por produzir os próprios filmes. Como vemos, Tom Cruise e outros têm um ponto razoavelmente bem delimitado em suas carreiras onde a primeira pessoa do singular começa a falar mais alto, ou seja, há um momento onde o trabalho de construção de uma persona pública, da qual faz parte uma biografia começando pelos ascendentes e a primeira infância, se intensifica, embora dificilmente se trate de um abandono completo do prestígio inicialmente conquistado. Talvez seja difícil determinar com nitidez um momento de virada de Derrida, indo de sua persona acadêmica para a de celebridade internacional, embora seja claro que uma tal virada foi sendo gestada ao longo dos anos 70, de modo que, a partir daí, mais elementos autobiográficos passaram a circular, Derrida veio a participar de mais projetos políticos, ele até tornou-se o empresário de seus livros com a editora Galilée, ele – em forte contraste com a sua primeira fase – tem falado em inúmeras entrevistas, inclusive de anedotas pessoais, e ele até abriu mão de sustentar uma estrita separação entre sua vida pessoal e o discurso filosófico29, sem deixar de se reafirmar em renovadas performances interpretativas e críticas sua maestria inicial especializada e técnica em filosofia e literatura.

IV Ao que eu saiba, a primeira vez em que Derrida usa a primeira pessoa do singular com densidade autobiográfica é já em 1963 no texto Cogito et Histoire de la Folie onde ele se refere a ter sido aluno de Foucault. Em geral, essa passagem é tolamente entendida ao pé da letra tal como se Derrida estivesse mesmo intimidado pelo mestre, enquanto – hoje isto pode ser considerado relativamente óbvio – se trata de um deboche a Foucault que teria se preocupado tão longamente com o silêncio através de vários séculos, mas que não se dava conta de que professoralmente não cessava de silenciar seus alunos, como que antecipando que Foucault, incapaz de abandonar sua posição de professor, não o ouviria. Derrida usa o eu autobiográfico para que sua crítica ao Embora a passagem de Derrida que se segue deva ser interpretada num contexto que estou omitindo, ela não deixa de ser significativa: “For me there is no radical distinction between the grand discourse on ‘the task [of philosophy]’ with all its dignity, and the reasons for wanting to go out dinner with someone”(DERRIDA/ FERRARIS 2001, p. 87). Em todo caso, Circonfissão é um livro, onde discurso filosófico e autobiografia se confundem quase inteiramente. Sobre a mistura entre o público e o privado no processo de formação de algumas personas publicas ver MARSHALL (1997), especialmente, p. 144-149.

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livro de Foucault seja também uma crítica à atitude de Foucault e, em geral, à estrutura didática e acadêmica da filosofia. Se sua ironia falha, é só porque ele ainda era muito cru, muito sem poder, muito sem reconhecimento; enfim, porque ainda não era a hora de sua dimensão autobiográfica ser considerada. Derrida estava se antecipando demais no uso da primeira pessoa. Ao que parece, ele ainda não tinha se dado conta da importância de construir sua persona pública. Assim, sua ironia nessa passagem sempre foi entendida como um testemunho temeroso de sua incapacidade de romper sua submissão a um idolatrado Foucault. O que se passa é que já nos anos 60 Foucault tinha uma persona pública razoavelmente consolidada não só devido a seu possante livro sobre a loucura, mas também por meio de uma série de trabalhos de crítica literária e entrevistas30, de modo que era a ele que era facultado ser irônico e arrasador enquanto Derrida não tinha ainda uma persona suficientemente substanciada para conseguir sustentar publicamente uma ironia tão complexa e cáustica, que exigia que os leitores lhe dessem atenção e crédito. Foucault reinventou muito de sua persona depois de maio de 68, para ainda renová-la mais uma vez quando intensificou sua conexão americana e se tornou uma celebridade transatlântica. Entretanto, ainda em 1972, há uma passagem em que Derrida se mostra zeloso em manter uma persona acadêmica resguardada de um processo mais amplo de construção de sua persona pública. Refiro-me a uma nota que ele pôs no início de Positions31 – um livro composto de três entrevistas (uma, a primeira de todas em sua vida, em 1967, outra em 1968 e, a mais longa até então, em 1971). Entrevistas são um dos lugares por excelência da construção da persona pública, portanto, um perigo, ou talvez uma tentação, para quem, como Derrida nessa época, busca sustentar uma persona acadêmica isenta de elementos mundanos. Essa nota inicial não é um Préface, nem um Exergue, nem um Avant-propos, mas se chama sisudamente “Avertissement”. Ess Advertência, em um tom nitidamente apologético, diz: “Estas três entrevistas, as únicas de que participei em toda minha vida, dizem respeito a publicações em curs”32. É como se Derrida estivesse constrangido de ter participado alguma vez de uma coisa dessas, uma entrevista; ele tenta minorar esse seu deslize limitando-o com firmeza ao número de três – é quase Cf. FOUCAULT 1994. DERRIDA 1972, p. 7. 32 “Ces trois entretiens, les seuls auxquels j’aie jamais pris part, concernent des publications em cours” (loc. cit.). Talvez seja interessante assinalar que isso não é verdade, Bennington relaciona mais uma entrevista de Derrida em 1968: ‘Culture et écriture. La prolifération et la fin du livre’, Noroît 132, nov. 1986 (cf. BENNINGTON/ DERRIDA p. 259). 30 31

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uma promessa de que não fará mais isso, porém ele ainda se vê na obrigação de se justificar, e alega que foram entrevistas sobre publicações em curso, isto é, elas não são sobre sua vida extra-acadêmica. Ou seja, Derrida ainda é aqui, com escassa elaboração autobiográfica, o Tom Cruise da primeira fase. É necessário analisar com mais atenção quando e como se dará, nos anos subseqüentes, a virada para a construção de sua persona público-midiática. Mas, ao que me parece, há na trajetória de Derrida uma relativa sobreposição da intensificação da construção de sua persona pública com sua ascensão, através de sucessivos convites por universidades americanas, à celebridade intelectual internacional de primeira grandeza. Talvez mais recentemente Derrida, para desespero de alguns die-hard fãs, tenha entrado em um processo de renovação de sua persona, sendo acusado por eles de estar adocicando a desconstrução em uma ladainha politicamente correta. Essas reconstituições da persona não necessariamente trazem mudanças sensíveis no uso da primeira pessoa do singular. Poder usar a primeira pessoa do singular com densidade autobiográfica é uma prerrogativa básica para toda persona pública, assim como abusar da primeira pessoa do singular pontificando auto-indulgentemente sobre n’importe quoi é um luxuriante mimo que é por vezes dado pela mídia a algumas notáveis personas públicas suas protegidas. Foucault geriu essa auto-indulgência, em seus últimos anos de vida, restringindo-a em muito às entrevistas e artigos em jornais. Em seus livros, porém, há uma interessante evolução no uso da primeira pessoa do singular, onde ele tanto valoriza uma ascese pela escrita quanto confere discretamente mais densidade autobiográfica para seus comentários em primeira pessoa do singular – um desenvolvimento, nesses livros, sobriamente compatível com a consolidação de sua persona pública. Mas essas recomposições da persona pública não são raras entre artistas de outros ramos. Deixem-me agora tomar como exemplo Alanis Morissette33. Ela começou, ainda criança, no Canadá, como atriz de televisão, depois, na adolescência, tornou-se uma cantora pop, mas quando sua carreira começou a se desgastar ela se mudou para Los Angeles disposta a reconstruir o que aqui estou chamando de persona; então, assessorada por um certo Glen Ballard (produtor de Michael Jackson e do Aerosmith), decidiu perfilar entre as artistas femininas “alternativas” como P. J. Harvey, Liz Phair e Tori Amos seguindo um estilo musical poético, na ótica feminina, e com letras simples, sem perder o contado com a dance music. O seu

O resumo que se segue é inteiramente baseado em: REIN/ KOTLER/ STOLLER 1997, p. 4-5.

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redesenhamento de marketing logo se traduziu em um estrondoso sucesso de vendas. A ida de Alanis para Los Angeles é um marco claro na reconstrução de sua persona, no caso, sua virada é no sentido de redirecionar sua imagem – mas nem sempre, como já comentei, esses redesenhos precisam ocorrer abruptamente. Não sei quando isso começou, mas Derrida, em algum momento de sua carreira, começou também, como veremos, a cuidar mais ativamente de sua imagem34. “Ferraris: Your resistance to photography lasted until 1979 (...) Derrida: There where several different reasons for my refusal to be photographed, which did last a long time. One of them, a profound one, unquestionably has to do with being ill at ease with my own image – the relation to death that one reads in every portrait, the dissimulation of the face in writing, the problem I always have, for that matter, with my own face. The other explanation, regarding my refusal of public photography, has a political basis: it was a question of resistance to the rules that organize promotion in the ‘culture market’. Authors had their pictures taken in stereotyped poses, the professor or the writer with the books behind them, etc. I had absolutely nothing against the art of photography, I just wanted to protest against the culture market and what it did with the image of author. I remember when they were preparing that special issue of Arc about me [no. 54, 1973] – I said I didn’t want any photos, which very nearly sank the whole project, since an issue like that was supposed to have a photo of the author in question on the cover. They did cave in in the end – they put that reptile of Escher’s on the cover and it sold very well, but there really had been a problem. It was a war. I felt that the author should not appear, it was ridiculous, vulgar, and inconsistent with the very things I had written about authors. Even now that I’ve practically given up resisting – because it’s effectively not possible, and besides it’s too late – I don’t have a clear conscience about it. Since the early 1980s the question of photography has become relatively secondary – now we have the big question of television, which has taken its place.” (DERRIDA/ FERRARIS p. 51-52 – o grifo é meu). Deixo ao leitor o prazer de analisar uma passagem tão contraditória de Derrida. A única conclusão que se pode tirar de toda a passagem é que Derrida, de fato, “do[es]n’t have a clear conscience about it”, pois, de resto, se todas as razões que ele alega seriam boas para que ele se recusasse a ser fotografado (se é que eram válidas e se é que eram estas as razões – considero que é muito mais adequado pensar que essa esquivança pode ser própria a um intelectual especializado) deveriam continuar valendo até hoje; contudo, apesar de que a situação teria se agravado, ele passou a não mais se guiar por elas. Em todo caso, a televisão, se agora é um problema, também já o era nos anos 70; logo, ele não deveria mudar a sua conduta, além do que se a conduta dele era a de não ser fotografado nos anos 70 (quando a fotografia seria o problema), o que ele deveria fazer nos anos 80 (quando a televisão seria o “big problem”) seria não dar as caras na televisão, porém, segundo Derrida, uma vez que a televisão seria um problema maior, ele aceita – incoerentemente – aparecer na telinha. Entretanto, o que ele sobretudo omite com esta lengalenga blasé, é que ele passou a cuidar de sua imagem de um modo ativo, distribuindo até mesmo fotos suas. Se bem que o mais – permitam-me usar as palavras dele – ‘vulgar’ da explicação de Derrida é como ele fugiu para o ‘grad récit’ em suas desencontradas alegações: ‘relação com a morte’, ‘base política’, ‘poses estereotipadas’, ‘protesto contra o mercado cultural’ e o primoroso clichê, digno do elitismo da, já nos anos 60 criticada, teoria da sociedade de massas, segundo o qual aparecer na mídia de imagem seria ‘vulgar’. Sem falar também que Derrida, há mais de uma década, mais do que a maioria dos intelectuais, é quem difunde ‘poses 34

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V O texto de Derrida que estou reservando para comentar é o livro que tem como título: Jacques Derrida, e como autores: Geoffrey Bennington e Jacques Derrida. O livro teria duas partes, mas a primeira é, ela mesma, subdividida em duas: o livro de Bennington, Derridabase, e o de Derrida, Circonfissão35. O livro de Bennington pretende ser um cuidadoso condensado do pidgin derridiano; e, de fato, nele, não falta nenhum termo derridiano importante, o que falta de importante é um traço lingüístico: é o discurso em primeira pessoa. Bennington, zelosamente, sem citar nenhuma passagem ou frase inteira de Derrida, apenas usando palavras de Derrida inseridas em suas (nas dele, Bennington) frases busca explicar as palavras de Derrida, as quais, assim, de certo modo foram feitas suas (dele, de Bennington), ou seja, ele incorpora totalmente o pidgin derridiano, sem deixar restos, sem deixar citações, trata-se de um canibalismo sem restos, como se ele tivesse limpado o prato com miolo de pão, como se as palavras de Derrida fossem agora suas próprias hemácias (ou glóbulos brancos). É, de fato, difícil para um comentador usar a primeira pessoa do singular pelo mesmo motivo que era difícil para Derrida usar a primeira pessoa do singular em 1963. Em 1963, Derrida era ainda um comentador, ou seja, tal como Tom Cruise em seus primeiros filmes era um artista especializado e sem persona, Derrida era um comentador especializado em textos filosóficos. Um comentador (ainda que, como Bennington, se trate de um comentador de Derrida) tem uma persona pública muito fraca e restrita. Um comentador especializado tem uma persona que depende quase inteiramente da persona que ele comenta. Assim, a primeira pessoa do singular, mais exatamente a primeira pessoa do singular de Derrida, é, do pidgin derridiano, o grande ausente que rege o texto de Bennington. Por mais que Bennington tenha criticado Gashé por submeter-se a um mestre, ele, Bennington, está, de certo modo, muito mais submetido ao mestre que Gashé. Gashé, pelo menos, tinha seu projeto – criminoso que fosse aos olhos de Bennington – ao buscar submeter Derrida à História da Filosofia, e tinha uma consciência moral própria para julgar quem está ou não entendendo Derrida, mesmo que Gashé seja um escravo do triunvirato Kant, Hegel e Heidegger, e mesmo que ele seja um tolo que entende Derrida ao contrário, pelo

estereotipadas’ dele mesmo (até mais estereotipadas – quem diria – que as de Foucault); poses, aliás, ridículas. 35 BENNINGTON/ DERRIDA 1996 – edição original em francês em 1991.

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menos ele não sacrificou seu eu pelo de Derrida36. Mas Derrida cedeu de bom grado todo o seu pidgin para o amigo Bennington (eles falam muito da amizade entre eles), assim ele (isto é, Derrida) pôde se dedicar a escrever sobre ele mesmo, enfim, pôde se dedicar a prosseguir com a construção de sua persona (ainda que ao modo de quem, nas circunvoluções das circonfissões, a está desconstruindo). Tudo se passa como se Bennington fizesse o trabalho sujo, carregasse o piano, e Derrida ritmasse com a batuta. O pidgin de Derrida, incorporado no Derridabase, é, aí, tanto a sua assinatura assegurando sua propriedade, sua autoria, sua mestria, sobre o texto de Bennington, quanto a Não é só destino dos comentadores de Derrida renunciarem a falar numa primeira pessoa do singular com cunho autobiográfico, é o destino de todos os comentadores. Um comentador, talvez o único, a problematizar a primeira pessoa do singular – mas que talvez por isso mesmo não seja um comentador – fui eu nos meus textos ‘A Diferænça’ e ‘Minhas Chances’ (cf. RIOS 2001). Em ambos comecei escrevendo como sendo eu quem estivesse escrevendo, para depois indicar que Derrida já havia usado aquelas mesmas palavras, aquelas mesmas frases, de modo que, embora estivesse sendo totalmente fiel ao texto de Derrida, necessariamente estava sendo diferente, ou antes, diferænte dele, ou seja, a impossibilidade de eu ser absorvido por ele se mostrava mais gritantemente ainda por eu estar usando as mesmas palavras dele. Enfim, a alienação extrema de minha primeira pessoa fazia com que ela retornasse como um traço característico do meu comentário (ainda que às custas de meu comentário deixar de ser comentário). De certa maneira, recorri a uma estratégia que vai ao contrário da de Bennington, com o benefício de pôr em questão, de gerar tensão com o que está silenciado em Bennington. (Há que se reparar que Derrida, no Limited Inc. [Illinois, 1988; Paris 1990] também joga com ter canibalizado o texto de Searle, mas Derrida nesse momento já tem sua persona autônoma constituída, ou seja, bem diferente de 1963, já é uma celebrity, não é mais um mero comentador especializado cujo prestígio depende do do autor comentado, ao contrário, ao comentar Searle, a autonomia de sua persona se amplia ainda mais, de modo que toda instabilidade da primeira pessoa e de sua propriedade do texto assinado, enfim, todos os jogos relativos à questão do copyright, que supostamente ameaçariam a estabilidade dos autores e de sua própria (de Derrida) assinatura, não conseguem ser mais do que uma encenação inócua de instabilidade, sem ameaçar em especial a persona autoral de Derrida que, ao final, sai fortalecida desse embate, que, aliás, também poderia ser lido exatamente pelo viés de ser um embate entre duas celebrities intelectuais internacionais em luta pela manutenção e incremento de suas personas, um pouco como quanto dois atores contracenam e a crítica vai discutir quem interpretou melhor os respectivos papéis. Assim, Derrida canibaliza Searle e sai mais Derrida do que nunca – não corre quase nenhum risco. Bem ao contrário, Bennington canibaliza Derrida e sai menos Bennington do que nunca. E o que acontece comigo quando eu degluto exatamente a primeira pessoa do singular de Derrida?) Evidentemente, o uso da primeira pessoa neste texto que estou escrevendo aqui pressupõe a primeira pessoa desses meus textos anteriores. O que se passa é que eu, se é que tenho alguma fama, seria a de ser um comentador especializado, se me arvoro em sustentar uma dimensão autobiográfica sem me ter sido facultado construir uma persona pública, se ainda não pude trabalhar em uma virada para a fama autônoma, então meu texto cairá no vazio, seu status de comentário científico será cassado e serei criticado como presunçoso. Mas entre ser um presunçoso filósofo que desqualifica os que não leram Kant ou Heidegger e ser um presunçoso que cai no vazio (sunyata?!), parece que eu (quem? qual persona?) já optei. 36

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anulação de Bennington; anulação que liberta também Derrida da persona de acadêmico, isto é, o Derrida cuja persona é regida pelos textos que ele comentou: Derrida fica livre para fazer o que parece ser inexoravelmente imperativo para uma celebridade, a saber, encorpar sua persona autobiográfica – Bennington, trabalhando em contraponto, funciona como um talk show, ele é um tipo de David Letterman, um palco onde Derrida expõe, negocia, justifica, constrói e estiliza a dimensão autobiográfica de sua persona pública. Depois vem a segunda parte do livro, trata-se de um tipo de biografia autorizada, tal como existe aos montes para cada star hollywoodiano: um burocrático, mas glamoroso, resumo da vida, com uma esmerada seleção de fotos; fotos, aliás, que foram em sua maior parte fornecidas por Derrida – é o que indiquei acima: ele, tal como Tom e Alanis, cuida atentamente de sua imagem. Não negaria que ele busque pôr em questão sua persona (de certo modo ‘Signature, Événement, Context’, em 1971, quando ele supostamente ainda evitava entrevistas, talvez já fosse um passo crítico e preventivo frente à tentação da virada para a celebridade), talvez seu cuidado em manter, com as fotos que distribui, uma imagem cafona até seja, quem sabe, uma tentativa válida de autodesconstrução. Mas se não for, talvez seja a hora de ele pedir a Alanis a dica de algum bom assessor.

Bibliografia BENNINGTON, Geoffrey. Interrupting Derrida. London/ New York, Routledge, 2000 BENNINGTON, Geoffrey/ DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996 – edição original em francês em 1991 BIAGIOLI, Mario (ed.) The Science Studies Reader.New York/ London, Routledge, 1999 DERRIDA, Jacques. Positions. Paris, Minuit, 1972 –––-. Spectres de Marx. Paris, Galilée, 1993 DERRIDA, Jacques/ FERRARIS, Maurizio. A Taste for the Secret. Malden (USA), Blackwell, 2001 FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits I 1954-1969. Paris, Gallimard, 1994 GASHÉ, Rudolphe. Le Tain du Moroir. Derrida et la philosophie de la reflexión. Galilée, 1995 – tradução abreviada da edição americana de 1986

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HUSSERL, Edmund/ DERRIDA, Jacques. L’Origine de la Géométrie. Paris, PUF, 1962 – Tradução e Introdução por Jacques Derrida MARSHALL, P. David. Celebrity and Power. Fame in Contemporary Culture. Minneapolis/ London, University of Minnesota Press, 1997 REIN, I./ KOTLER, P./ STOLLER, M. High Visibility. The Making and Marketing of Professionals into Celebrities. Chicago, NTC, 1997 RIOS, André Rangel. Mediocridade e Ironia. Rio de Janeiro, Caetés/COC, 2001

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Celebridade e Medicalização da Crueldade na Autobiografia de Jacques Derrida ∗ ______________________________

Em resposta a críticas de um panfleto anônimo – escrito, na verdade, por Voltaire – Rousseau escreve suas Confissões. Ele começa seu livro com um “Je” que se quer consciente da originalidade do que escreve: Eu empreendo aqui algo do qual nunca se teve exemplo e cuja execução não terá nenhum imitador. A seguir, explica em que consiste essa originalidade: Eu quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e este homem serei eu. É, portanto, a seus semelhantes – e não, tal como Agostinho, a Deus – a quem ele se dirige nesse trecho inicial, ou seja, sua originalidade consiste em contar sua vida para o público, em prestar contas em primeiro lugar para o público. Mesmo que depois ele possa levar este livro para apresentá-lo ao juiz soberano no Juízo final (eu virei com este livro na mão me apresentar ao juiz soberano), Rousseau então não terá mais nada a acrescentar: Eu direi altivamente: eis o que fiz, o que eu pensei, o que fui. Ou seja, quem já tiver prestado contas com sinceridade a seus semelhantes, não precisará confessar mais nada diante de Deus. Em outras palavras, confessar-se para Deus é secundário; agora, no lugar de Deus, há os semelhantes. Contudo, os semelhantes não são tão semelhantes assim, pois Rousseau escreve também para mostrar o quanto ele é diferente dos semelhantes: Somente eu. Eu sinto no meu coração e eu conheço os homens. Eu não sou feito como nenhum desses que eu vi; eu ouso crer que não sou feito como nenhum desses que existem. Se eu não sou melhor, ao menos eu sou outro. Se a natureza fez bem ou se ∗

Publicado originalmente no livro de Ângela Maria Dias e Paula Glenadel, Estéticas da Crueldade, Rio de Janeiro, Atlântica, 2004, p. 187-198.

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fez mal em quebrar o molde no qual ela me pôs, é isso que não se pode julgar senão depois de me haver lido. Ao seguir esta sua proposta, Rousseau está, pela primeira vez, cumprindo todos os elementos do que Philippe Lejeune veio a chamar de pacto autobiográfico (LEJEUNE, 1975) – adequação que não é nenhuma surpresa, pois Lejeune, por sua vez, desenvolveu o conceito de pacto autobiográfico baseando-se em muito exatamente na análise das Confissões de Rousseau. Ou seja, apesar das dificuldades de se traçar os limites de um gênero, baseando-me em Lejeune, posso descrever as Confissões de Rousseau como sendo (1) uma narrativa em prosa, (2) que trata da vida individual – apresentando-a de um modo relativamente linear e profano –, (3) sendo que o narrador é também o personagem principal e (4) tem uma perspectiva retrospectiva. Assim, vemos que as Confissões não são um livro de memórias, pois as memórias versam muito sobre acontecimentos sociais de épocas passadas e nem tanto sobre a vida íntima do autor, além de nem sempre serem lineares. Certamente, os Ensaios de Montaigne têm muito de autobiográfico, mas não só divagam muito para além da vida íntima do autor como também carecem de linearidade. Também é inegável que Agostinho tenha escrito sobre sua vida individual e que o tenha feito de modo bastante linear, mas o constante direcionamento de sua narrativa a Deus, ainda que sempre possamos dizer que ele escreveu suas Confissões também pensando no público (ou, como diz Rousseau, em seus semelhantes), não há nelas a perspectiva de estar prestando contas ao público, mas a Deus; além do quê, o objetivo do livro, por mais que Agostinho possa estar preocupado com sua imagem profana, também é o de converter o público a Deus. Enfim, o livro de Agostinho se insere em um projeto amplo de hegemonia eclesiástica cristã, no qual tanto a confissão está submetida à catequese e ao proselitismo, quanto o confessar-se em público é estilizado como sendo secundário frente ao confessar-se a Deus. Esta última característica, o caráter profano das Confissões de Rousseau, uma característica que eu estou explicitando, ou mesmo acrescentando aos elementos que Lejeune considera básicos ao pacto autobiográfico, me parece particularmente importante porque ela se insere em uma linha que, vindo já de Montaigne, vai na direção de remover o cuidado com a interioridade da tutela das igrejas cristãs. O cuidado de si, ou ascese, próprio à formação dos indivíduos, ou seja, o cuidado com a consciência e os remorsos, o controle da sexualidade e as técnicas para manutenção de um sentimento de motivação diante das dificuldades da vida, o exercício das renúncias relacionadas com a

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formação profissional (enfim, os dispositivos formadores de subjetividade e conseqüente socialização em grupos específicos) estão em processo de deslocamento para fora da esfera dos poderes eclesiásticos cristãos. A consolidação do gênero autobiográfico é um marco desse deslocamento: no caso, é a apropriação pelos círculos de escritores literários e políticos de parte do cuidado de si ainda sob controle das igrejas. Movimentos de caráter revolucionário vão também, ao longo do século XIX, formar subjetividades revolucionárias, isto é, indivíduos dispostos a dar a vida por suas causas sociais. Ainda que francamente antieclesiásticos, os movimentos políticos, em especial os anarquistas, podem gerar por parte de seus adeptos discursos e atos devocionais com ressonâncias cristãs37, em especial as práticas mais relacionadas à adoção do messianismo por esses movimentos como a disposição ao martírio ou a uma vida de privação material em favor da causa revolucionária. Porém, uma forma bem peculiar e produtiva de apropriação do discurso ascético cristão se dá pelas tentativas de medicalização dele; no caso, a forma de apropriação que mais tem sido discutida é a psicanálise. O discurso desenvolvido por Freud, que recebe o nome de psicanálise, origina-se a partir de uma apropriação médica do cuidado de si voltada para aspectos como a consciência corporal e a sexualidade. Ou seja, a psicanálise busca medicalizar a esfera dos dispositivos individuais de formação da subjetividade. Com a psicanálise, o relato da própria vida é elaborado e reelaborado no âmbito de um dispositivo derivado da relação médico-paciente que é chamado de transferência. De A Interpretação dos Sonhos (1900) aos seus últimos escritos como Análise Terminável e Interminável (1937) seus textos trazem a marca do conflito entre medicina e religião. Freud medicaliza dispositivos que estavam sob a égide sobretudo das igrejas cristãs, mas ao fazêlo incorre no risco não só de ser criticado pela sociedade e suas igrejas, mas também de não mais ser reconhecido como médico. A tática de Freud, em resposta, é, por um lado, não só a de afirmar a cientificidade da psicanálise, mas a de criticar as limitações de uma visão cientificista tacanha e, por outro, a de deslegitimar a religião negando-lhe qualquer status particular e reduzindo-a a uma forma mais expandida de sintomatologia neurótica. Há textos de Freud que O treinamento militar poderia ser visto como um tipo de ascese, assim como treinar boxe. Contudo, uma vez que em geral se considera que o militar, ou o boxeador, não desenvolve sua vida interior, mas que principalmente condiciona o corpo ao combate, não é costume se comparar o militar ao monge, embora seja lugar-comum comparar o cristão ao soldado. Porém, Joana d’Arc é um bom exemplo de que se pode reunir espiritualidade e belicosidade – os revolucionários dos séculos XIX e XX seriam como ela. 37

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apresentam uma valorização clara da psicanálise enquanto discurso científico num confronto em que a religião é reduzida a um produto secundário de estruturas neuróticas. Mas há textos, como o comentário ao livro de Schreber, em que o principal objetivo parece ser o de afirmar a cientificidade e o caráter médico da psicanálise, embora a religião também possa aparecer como um tema secundário, como um fenômeno explicável pelas categorias psicanalíticas. Freud passou a vida sustentando o caráter médico da psicanálise, mas sempre inserindo-a num balanço entre cientificidade, por um lado, e saber social promotor de um cuidado de si, por outro. Assim, para Freud, parece essencial manter a relação entre a gênese das neuroses e a sexualidade. Falar de libido como uma energia psíquica geral – o que, na visão de Freud, afastaria a sexualidade de sua base orgânica, ou seja, a afastaria de ser um objeto da medicina – é por ele criticado. Ao que se pode supor, isso faria da psicanálise mais um saber social – digamos, para-religioso – do que uma prática médica. Mais inaceitável ainda – no caso, mais social e menos médico – é a noção de inconsciente coletivo. A posição de Freud é que é a medicina que tem que se apropriar do cuidado de si, não o cuidado de si se apropriar da medicina38. Contudo, por problemática que seja essa apropriação do cuidado de si pela psicanálise, do ponto de vista de muitos pensadores tal apropriação é tida como um sucesso invejável. Muitos filósofos do século XX viveram uma mal dissimulada inveja da ascese, isto é, uma inveja de a psicanálise ter conseguido se firmar como um saber que atua sobre o cuidado de si. Embora na Antiguidade a filosofia, juntamente com a medicina, tenha sido em grande parte o saber portador da ascese, esse saber acabou passando para o domínio da religião; além disso, questões e argumentações tidas como sendo da filosofia passaram a ser subsumidas num currículo teológico mais amplo. Ao longo da Era Moderna, foi restituído ao saber denominado filosofia seu estatuto de independência, mas a filosofia se manteve com um perfil teórico, lidando com questões epistemológicas ou históricas. O ramo da filosofia que teria um viés mais prático, a filosofia política, tem em sua linhagem anglo-saxã com Locke e Stuart Mill uma concepção de homem enquanto indivíduo autônomo e racional que já supõe essa autonomia e racionalidade como próprias a cada indivíduo, de modo que nenhuma ascese específica seria necessária para conduzir os homens até fazê-los membros aptos dessa sociedade supostamente igualitária e mais justa. O pensamento político de esquerda, tal como o de Marx, é que considera a E no caso de se aceitar que a psicanálise, como suas estratégias de legitimação reivindicam, é um saber médico, então pode-se dizer que ela é uma tentativa de medicalização da autobiografia.

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questão da transformação da consciência de classes e da necessidade de formar os indivíduos para uma nova sociedade e em uma nova sociedade. Vários pensadores do século XX tentaram suprir suas necessidades ascéticas recorrendo ao marxismo, ou mesmo tentando associar o marxismo à psicanálise. Como opção a este destino freudo-marxista, ou como mais um combustível para ele, muitos recorreram ainda a Nietzsche que, embora crítico do ideal ascético cristão, parecia propor muitos elementos para o desenvolvimento de uma nova forma de ascese sob a competência da filosofia. No rol dos invejosos da ascese psicanalítica, ainda que por vezes suas tendências neo-ascéticas sejam apenas incipientes, temos, por exemplo, Heidegger – com sua Gelassenheit e as preleções em tom iniciático no anos 50; Bataille – com sua ateologia e a valorização da transgressão dos contraprazeres e da experiência interior; Deleuze – com suas linhas de fuga e com livros que fecundaram uma ascese neonietzschiana (Nehamas) e neo-espinosiana (Althusser; Balibar), além de, na linha de Bataille, também valorizar os contraprazeres no seu livro sobre Sacher Masoch; Michel Foucault, talvez aquele que foi mais longe que todos na retomada filosófica contemporânea da ascese e que, sempre com sentimentos de amor e ódio à psicanálise, veio a falar explicitamente do cuidado de si e até mesmo em uma ascese homossexual, além de também prestigiar os contraprazeres do sadomasoquismo. Nos anos 60, Foucault manteve tanto um discurso impessoal em seus livros quanto cultivou um discurso em primeira pessoa do singular em várias entrevistas; essas linhas paralelas se encontram na primeira parte da Introdução de O Uso dos Prazeres – um livro não só de história antiga, mas que pretende pôr a questão do cuidado de si para a década de 1980. Apesar deste irrompimento da 1a pessoa do singular no início de O Uso dos Prazeres39, foi mesmo nas entrevistas que Foucault se mostrou, nos anos 70 e 80, um ativo militante de uma nova intensificação do cuidado de si, chegando a falar de uma ascese homossexual. Dois casos, porém, em vista da complexidade das negociações que eles empreenderam, merecem uma menção à parte. Primeiramente, Lacan que, num novo contexto de forças, com a psicanálise já institucionalizada e ele sendo um psiquiatra reconhecido, busca uma valorização da psicanálise pela filosofia, mas só para depois desvalorizar a filosofia também como algo que deixa a dever à superioridade do saber psicanalítico. Um texto que testemunha a complexidade das negociações de Lacan para assegurar o prestígio da psicanálise que ele

Para uma análise mais detalhada do uso da primeira pessoa do singular em Foucault, ver meu texto ‘Filosofia e Ascese’ in: Rios, Mediocridade e Ironia, p. 181-218.

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preconiza é o primeiro capítulo do Seminário XI, intitulado L’Excommmunication. Naquele momento, ele chamar o afastamento dele da sociedade de psicanálise de excomunhão é dizer que a sociedade psicanalítica perdeu, tal como era o propósito de Freud, sua base predominantemente científica e descambou para o lado da religião. Lacan reforça, ao início, os aliados científicos de sua psicanálise referindo-se – após haver prestado uma agradecida homenagem a Braudel – a Henry Ey e a Lévi-Strauss prosseguindo até chegar, ao final, a um debate epistemológico. Lacan busca assegurar a posição científica da psicanálise, livrando-a de uma possível suspeição de mística ou de religião, valorizando a filosofia, mas sempre pondo-se acima dela. O curioso é que seu tom sobranceiro ressoa como iniciático. Ou seja, embora Lacan, enquanto psicanalista, seja autorizadamente um guia contemporâneo de ascese, mesmo ele tem de manter por meio de circunstanciadas negociações o equilíbrio instável que legitima a apropriação médico-científica do cuidado de si, mantendo-a sempre como uma apropriação parcial e em risco de se inverter no contrário, a saber, em uma sedução místico-religiosa solapando a cientificidade medicalizante central ao projeto de Freud. O segundo caso que destaco é o de Derrida. Embora já na Gramatologia tenha surgido a questão da proximidade ou não de seu projeto para com a teologia negativa, a desconstrução se manteve desde o início basicamente como um processo de análise textual, longe de apresentar conceitos que pudessem repercutir de um modo imediato em práticas corporais ou formadoras de subjetividade. Na verdade, nesse momento inicial, não havia um eu palpável o suficiente nos escritos de Derrida para que fosse desenvolvido com base nele qualquer proposta de ascese. Inicialmente, como já comentei em outro texto40, Derrida tem uma política de imagem que é a de promover uma imagem de si estritamente acadêmica, a ponto de nessa época, quem diria, ele recusar ser entrevistado ou só aceitar, como ocorre com o livro Positions, conceder entrevistas sobre seus trabalhos em curso41. No processo de ascensão à celebridade intelectual internacional, sua conduta muda. Porém, não seria certo dizer que ele muda sua política de imagem apenas em função das demandas midiáticas. Na verdade, desde cedo ele buscou trabalhar o seu eu a partir de sua escrita, isto é, Derrida esteve se preparando para poder tanto suportar quanto, de algum modo, ainda resistir à lógica midiática da celebrização ao tentar constituir sua narrativa em primeira pessoa e sua biografia como questões Ver acima neste livro: “A Construção de Derrida como Celebrity”. Ver a Advertência de Derrida em Posições (p. 7), uma coletânea de três entrevistas, publicada originalmente em 1972.

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internas ao pensamento da desconstrução. Por exemplo, em La Carte Postale (1980) (um livro, aliás, onde há também três importantes textos sobre a psicanálise), mais exatamente no texto Envois, Derrida traz muito de sua vida pessoal e de sua narrativa em primeira pessoa para o debate42. Contudo, não é certo que ele tenha conseguido escapar à lógica própria à celebrização midiática. Em “A Construção de Derrida como Celebrity”43, mostrei que o percurso de Derrida até o status de celebrity pode ser em muito comparado ao de outras celebridades; no caso, comparei a sua carreira com a de Tom Cruise. Ambos têm um período onde investem na fama especializada. No início da carreira, Tom Cruise especializa-se em papéis de jovem bonitão; enquanto isso, Derrida constrói uma persona de filósofo acadêmico. Com a virada para celebridade, Tom Cruise vai formando uma persona pública mais variada tanto por ir aceitando papéis que divergem de seu perfil especializado inicial quanto por ir aceitando participar de entrevistas nas quais mais informações sobre sua vida, que antes eram escassas, passam a circular. Do mesmo modo, uma vez firmado em sua fama acadêmica, Derrida vai diversificando o formato e o estilo de seus textos, bem como passa a aceitar mais entrevistas e deixa circular relatos sobre sua vida pessoal – vindo ainda a participar de um filme e, como curador, a escolher desenhos a serem expostos numa exposição no Louvre. Derrida chegará até o ponto de produzir, tal como os megastars hollywoodianos, uma autobiografia autorizada, a saber, na forma do livro, Jacques Derrida, escrito juntamente com Bennington (1996; publicado originalmente em 1991). Vou analisar a seguir alguns aspectos da estratégia narrativa desse livro. Jacques Derrida contém: um texto autobiográfico de Derrida, Circonfissão; um texto de Bennington, Derridabase, expondo os conceitos básicos do pensamento de Derrida; uma biografia de Derrida escrita por Bennington onde os fatos oficiais e documentados da vida são apresentados em ordem cronológica (há ainda um breve texto de Bennington explicando que ele não buscou contrariar a lei do gênero que rege as biografias e decidiu por relatar apenas os fatos documentados da vida de Derrida); uma série de fotos (a grande maioria fornecida pelo próprio Derrida); e uma extensa bibliografia dos livros de Derrida e de fontes secundárias. A biografia cronológica de Bennington e a galeria de fotos derridianas corroboram que inegavelmente se trata de uma biografia autorizada. No todo do livro, o texto autobiográfico Circonfissão fica dissolvido em sua especificidade, funcionando principalmente como uma Porém, já desde um texto como ‘Cogito et Histoire de la Folie’ (in: Derrida L’écriture et la différence) o eu de Derrida, provocando Foucault, sobe ao palco. 43 Ver acima neste mesmo livro.

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ilustração travessa do próprio autor sobre o que está sendo contado no currículo anexado por Bennington. Se somarmos o Circonfissão, a biografia de Derrida feita por Bennington e a fotogaleria autobiográfica de Derrida, temos, de certa forma, os elementos que satisfazem o pacto autobiográfico postulado por Lejeune. Porém, se lermos isoladamente o Circonfissão, outras leituras se tornam possíveis. Em Circonfissão, não é de se esperar que Derrida exponha sua vida seguindo o formato tradicional de uma autobiografia. Certamente, ele irá se desviar da lei do gênero. Isso, porém, não é nenhuma novidade de Derrida. Primeiramente, há que se considerar que mesmo as autobiografias que não se propõem como transgressoras costumam contrariar as expectativas do gênero; tais quebras de protocolo vão contribuir para a credibilidade e a vivacidade da narrativa. Em segundo lugar, quando uma celebridade escreve sua autobiografia, se ela não fugir ao que se espera de uma autobiografia, os leitores pensarão que se trata de um ghost writer − embora Derrida seja evidentemente o autor de sua autobiografia, ele também tem de autenticar a sua sinceridade por meio de surpresas no que seria a narrativa autobiográfica. De certo modo, a celebridade, num gesto extremo, deveria empreender em sua autobiografia uma destruição de sua celebridade, pois, a rigor, só então sua narrativa se tornaria plausível e seria reconhecida como sincera, de outra maneira a autobiografia fracassaria frente a leitores e leitoras mais exigentes que poderiam considerá-la uma mera biografia autorizada, desnecessariamente escrita pelo próprio biografado. Em terceiro lugar, uma autobiografia que recorra à experiência pósmoderna de escrita literária não só terá de buscar contrariar a lei do gênero como provavelmente irá além ao tirar efeitos de uma narrativa não linear, das mudanças de ponto de vista narrativos ou da sobreposição de escritos já existentes tais como jornais, sentenças judiciais, ou mesmo outros textos do autobiografado. Seja qual for a motivação do gesto desconstrutor do gênero autobiográfico, o recurso mais usado parece ser o de proceder com falta de tato, com relatos humilhantes (por vezes abjetos) ou constrangedores. Curiosamente, relatos autodepreciativos já eram comuns em Rousseau, ou mesmo em Agostinho, mas tais relatos parecem sempre ainda constituir uma tensão entre o dentro e o fora do texto, uma vez que eles, embora façam parte dos chefsd’oeuvre da autobiografia, parecendo gratuitos são, exatamente por isso, vistos como uma irrupção do real na narrativa. Quanto mais esses relatos autodegradantes parecerem desnecessários tanto mais o leitor ganhará a certeza da sinceridade do autor e tanto mais ele aceitará outros aspectos da narrativa. Em vista disso, se pode esperar que o esforço de Derrida seja o de esquivar-se da

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lei que o manda contrariar a lei do gênero. Seja como for, há que se reconhecer, uma vez que tantas artimanhas desviantes já foram usadas no gênero autobiográfico, que é de fato difícil, ao menos para os leitores ou leitoras mais habituados a ardilosas narrativas ditas pós-modernas, que a narrativa de Circonfissão possa vir a surpreender. Mas quais são as características da narrativa de Circonfissão? O texto se desenvolve como um relato em primeira pessoa do singular entremeado com citações de trechos não publicados do próprio Derrida de um período 1976 a 1981 (em especial do Livro de Elias, um livro sobre a circuncisão projetado a partir de 1976) e de passagens em latim das Confissões de Agostinho (há ainda alusões e breves citações a La Carta Postale e Glas). A narrativa em 1a pessoa do singular vai relatar muito extensamente a agonia da mãe demenciada, de modo que a mãe chega perto de ser um personagem tão importante quanto o narrador. Além disso, são narrados de modo fragmentário vários acontecimentos de sua vida pessoal. É difícil (sem recorrer ao Curriculum Vitae e às fotos) compor uma idéia geral de como teria sido a vida de Derrida. Contudo, o tema geral da autobiografia é o sofrimento e a morte. O sangue como que escorre por todas as páginas. Há o sangue coletado da veia do Derrida criança; há o sangue pulsionado da artéria do Derrida adulto; há a imagem do sangue colhido no exame, há o sangue nos modesses da mãe; há o sangue da circuncisão; há o sangue das escaras da mãe acamada. É um livro cruento. Porém, não há sangue escorrendo no chão. De certo modo, todo o sangue está medicalizado. A crueldade, aliás, está fortemente medicalizada em todo o livro. Mesmo a circuncisão, segundo nos informa Derrida, também teria sido objeto de regulamentação médica, a saber, a sucção do sangue, teria sido abolida em Paris, em 1843 (§13). Em Circonfissão, que, dentre todas as autobiografias que conheço é de longe a mais medicalizada, os corpos se mostram multifaceticamente rendidos à medicina – e não só à medicina mas à tecnologia. Assim, o corpo de Derrida se desloca constantemente em aviões e fala constantemente ao telefone. A ascese em Circonfissão seria em grande parte a do adestramento do corpo à tecnologia, aos múltiplos suplementos tecnológicos. Aliás, o computador domina o livro. Em Derridabase, Bennington declara que a idéia diretriz do livro veio da informática, isto é, que ele gostaria de sistematizar o pensamento de J. D. a ponto de fazer dele um programa interativo44. Por sua vez Derrida deveria, em Há também a foto dos dois autores diante do computador logo na p. 17, além de várias referências ao Macintosh ao longo de Circonfissão. Notar que a foto é posada: é uma reencenação do cartão postal que está na capa de La Carte Postale; essa foto

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seu texto, mostrar que um sistema desses deve permanecer essencialmente aberto, este empreendimento estava de antemão votado ao fracasso, e o interesse que ele [Derrida] pode ter consiste em fazer a prova, em provar esse fracasso. Portanto, esta é a tarefa explicitamente assumida por Derrida: Para demonstrar a necessidade inelutável do fracasso [a princípio, isto estaria se referindo ao fracasso do livro Derridabase de Bennington, não ao do seu Circonfissão], nosso contrato quis que J. D., tendo lido o texto de G. B., escrevesse por sua vez alguma coisa que fugisse à sistematização assim proposta, que a surpreendesse. (BENNINGTON e DERRIDA, 1996, p. 5) A proposta de Derrida seria, portanto, a de surpreender. Ora, pode-se ler aqui também a ironia derridiana. Se seu propósito é surpreender, e esse propósito não só já está anunciado como faz parte de um contrato, então ele já não poderá surpreender tanto assim, talvez a surpresa já esteja mesmo excluída, de modo que o fracasso talvez seja o do texto de Derrida e não o do de Bennington. De certo modo, todo o projeto é um fracasso, pois ele tem a marca de uma biografia autorizada. Porém, ser uma biografia não é necessariamente a história toda. De fato, o texto de Derrida – afinal ele é uma grande celebridade – é mais forte que o texto de Bennington e é mais forte mesmo que a galeria de fotos. Com efeito, Derrida está escrevendo (1) uma narrativa em prosa (apesar de uma sintaxe algo bíblica), (2) que trata em grande parte de uma vida individual, a sua, embora dê grande destaque a sua mãe e não apresente um relato linear, (3) sendo que o narrador é o personagem principal, mas que divide o espaço com a mãe e com as citações de Agostinho, e (4) tem um relato com momentos retrospectivos junto com numerosas referências a eventos em curso (como é o caso da doença de sua mãe e de suas visitas aos Estados Unidos). Ou seja, há restrições em todos os itens da classificação de Lejeune. Porém, como já expus acima, era de se esperar que houvesse vários desvios, digamos, que houvesse vários desvios pós-moderno-desconstrutivos da lei do gênero tal como Lejeune a estabeleceu. Contudo, não se pode dizer que tais restrições façam de Circonfissão um procedimento literário realmente radical. Antes, eu diria que, sugere que todo o Jacques Derrida é posado, isto é, é uma reencenação calculada da vida e obra da celebridade intelectual internacional que atende pelo nome de Jacques Derrida.

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sob esse aspecto, se pode até mesmo dizer que Derrida fracassou em contrariar a lei do gênero, em nos surpreender com a esperada transgressão do gênero. Do ponto de vista narrativo, a autobiografia de Georges Perec W ou a memória da infância, de 1975, seria, em grande medida, o modelo narrativo de Derrida. Perec, também judeu, que teve intenso contato com o cristianismo na infância, tendo sido até batizado, já recorrera em sua autobiografia a elementos narrativos que Derrida veio a usar em Circonfissão (tais como intercalação de extensas autocitações, o recurso a fotos – descritas por Perec –, citação de trechos de outros autores, problematização da questão da memória e relativo destaque – ainda que menos que em Circonfissão – a procedimentos médicos). Contudo, apesar de Perec, de fato, não ser um modelo de biografia autorizada, seguir Perec (supondo que aceitamos ser W um modelo para Circonfissão), não chegaria a caracterizar Circonfissão como um fracasso enquanto biografia oficial. Assim, o que continuamos tendo de procurar é onde Derrida fracassa em ser uma autobiografia autorizada de uma celebridade intelectual, ou seja, quando ele consegue – se é que ele consegue – sabotar, em alguma medida, o projeto celebrizante de seu fiel escudeiro, Geoffrey Bennington. O óbvio é dizer que, se uma autobiografia tradicionalmente se caracteriza pela sinceridade do narrador em primeira pessoa do singular, então Derrida teria ou de fugir da 1a pessoa do singular ou mentir. E teria de mentir uma mentira irreversível à verdade mesmo por uma denegação, tal como Freud usava interpretar. A primeira mentira, pode-se sugerir, seria a referência a Agostinho. Derrida menciona que muito ensinou sobre temas em Agostinho45. Ora, o que temos dele publicado não são aulas sobre Agostinho, mas grande parte de um livro sobre Rousseau. É em confronto com As Confissões de Rousseau que Derrida está escrevendo Circonfissão, não em confronto com as Confissões de Agostinho46. De fato, Rousseau busca, com sua autobiografia, reforçar sua posição de celebridade intelectual enquanto Derrida tem de problematizar essa função celebrizante da autobiografia. Para Rousseau, o cuidado de si em sua autobiografia é um cuidado da celebridade; Derrida, por sua vez, teria de cuidar de não seguir o papel de celebridade intelectual. Mas será que não é exatamente porque ele não está desconstruindo seu “celebrismo” e porque ele está usando o livro para se promover e se consolidar como celebridade que ele está fracassando em escrever uma biografia oficial desconstrutiva? Se Rousseau se “...frases que cito em latim, muito ensinei sobre esses temas...” – § 3. O que não quer dizer que as Confissões de Agostinho não funcionem de várias maneiras interessantes na Circonfissão. 45

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fingia de sincero (ou se ele estava totalmente possuído por seu fingimento), Derrida não estaria senão fingindo que não está fingindo que está sendo sincero. Poder-se-ia até mesmo dizer que Derrida está cinicamente usando a sua mãe moribunda para escrever, para gerar credibilidade às custas do mau gosto de expor a decadência física e psíquica de sua mãe; um gesto narrativo passível de gerar repulsa ao leitor ou à leitora nem tanto pela descrição das escaras da mãe, mas pela insensibilidade e pelo exibicionismo de insensibilidade de Derrida. Ou seja, Derrida estaria sinceramente sendo abjeto – ou será que ele está não mais que usando, ainda que com alguma dramaticidade, o corriqueiro recuso da autodepreciação da prosa autobiográfica? Seja como for, ele está propondo a questão de se a medicalização, os tantos cuidados médicos que estão sendo dedicados a sua mãe, estaria ou não minorando o sofrimento dela47. Se a medicalização minora os sofrimentos, então Derrida não está sendo insensível, mas se tudo continua um degradante sofrimento, então ele está sendo oprobrioso. Que decisão tomar quanto à medicalização? Que decisão tomar quanto à conduta narrativa – apelativa ou sincera – de Derrida? Não só sua mãe, mas também Derrida aparece em Circonfissão medicalizado até os neurônios (nos §§ 22 e 23 há sua paralisia facial ou doença de Lyme), ou seja, a face, a memória, o cérebro, a fala, o sangue, enfim, tudo (ver também § 2) está medicalizado, tudo está apropriado pela tecnologia. Na verdade, a escrita de Circonfissão parece ocorrer através do computador – do Macintosh presente em vários parágrafos (o que é uma referência clara ao capitalismo de grandes empresas que, portanto, é de certo modo co-autor de Circonfissão). Ao contrário de Heidegger, que falava como se fosse possível se esquivar da tecnologia, Derrida se mostra de corpo e escrita envolto em tecnologia. Pode-se até dizer, e isso seria uma das primeiras tecnologias, que a reunião de seres humanos levou à inscrição nos corpos de processos imunológicos, de vacinações recíprocas, que possibilitaram a estabilidade desses grupos sociais. A fala seria mais uma inscrição constituinte e mantenedora desses grupos. A linguagem, que pode ser considerada essencial, ou seja, natural ao homem, enfim, um elemento inalienável da natureza humana racional, é também já tecnologia. Não se pode falar, portanto, de uma natureza humana in A indecidibilidade quanto ao valor ético da crueldade e da consolação inerente à medicalização e à tecnologia perpassa todo o livro. Assim, por exemplo, à respeito do carro (símbolo do capitalismo tecnológico – objeto de consumo familiar e insígnia individualista), tanto vemos a foto de um Derrida pimpão dirigindo seu primeiro carro (p. 240 – na verdade, Derrida destaca, ao numerá-las, as quatro fotografias em que aparecem carros), quanto lemos sobre a morte do “meu priminho Jean-Pierre” atropelado por um carro (§ 56).

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statu innnocentiae, purificada de toda a tecnologia. Também se pode dizer que, com a fala, o ser humano já estava tecnologizado até os neurônios. E se considerarmos que, com a fala, os humanos ampliaram sua memória, ou seja, que a fala é um tônico para a memória, então temos de admitir que a fala foi já uma medicalização do cérebro humano. Assim, podemos dizer que Circonfissão é uma problematização da inexorabilidade da tecnomedicalização, isto é, da tecnomedicalização do cuidado com o corpo e com a mente, enfim, da tecnomedicalização do cuidado de si. A tecnomedicalização seria não só indesconstrutível, mas a desconstrução não deixaria de ser mais um recurso dela. No contexto de um mundo inelutavelmente tecnológico, a questão seria a de se o nome Derrida seria um nome da mesma ordem que a marca Macintosh. Para surpresa de Derrida, sua mãe não o trata como uma celebridade, como uma grife intelectual internacional, mas como um filho entre outros; isso fica bem evidente quando Derrida constata que sua mãe não guardou quase nada das cartas dele48. Certamente, houve leitores que, ao verem esse relato, lamentaram que o mundo perdera um grande livro: “As cartas de Derrida para sua mãe”. E esse é um ponto forte de tensão na narrativa de Circonfissão. Por um lado, é uma crueldade de sua mãe (e curiosamente trata-se de uma crueldade não medicalizada) não ter guardado as cartas dele; por outro, esse é um gesto redentor que salva Derrida do destino implacável – corroborado pelo Derridabase de Bennington – de ser unilateralmente uma celebridade internacional49, uma grife semelhante à marca Macintosh. A mãe de Derrida talvez não possa redimi-lo da tecnomedicalização, mas pode, de certo modo, restituí-lo a uma dimensão não midiática. Jogando fora as cartas do filho – nunca o reconhecendo como celebridade –, a mãe dele também

“...vasculhando no armário de seu quarto, sob os seus olhos que não mais me vêem, cada vez que me encontro junto a ela em Nice para constatar que não guardou quase nada, alguns, quando muito, dos cartões postais e cartas que lhe escrevi durante cerca de trinta anos...” – § 31. 49 Derrida tem clareza de seu papel de celebridade intelectual: “...o único filósofo de meu conhecimento que, acolhido – mais ou menos – na instituição acadêmica, autor de escritos mais ou menos legítimos sobre Platão, Agostinho, Descartes, Rousseau, Kant, Hegel, Husserl, Heidegger, Benjamin, Austin, terá ousado descrever seu pênis...” (§ 22). Ele se sabe como um a mais nessa galeria de heróis do pensamento; descrever o próprio pênis é uma tentativa de diferenciar-se dos outros nomes, mas é uma tentativa de eficácia bem limitada, pois acaba contribuindo para se glamorizar ainda mais. Somente sua mãe, que no momento da escrita de Circonfissão já não mais o reconhecia sequer como filho, por nunca tê-lo reconhecido como celebridade intelectual canônica, lhe restitui um espaço de escrita fora de sua persona celeber.

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salva50, de certo modo, o livro Jacques Derrida de ser mais uma biografia autorizada de uma celebridade51 (embora, apesar desse gesto, Jacques Derrida não necessariamente deixe de ser também uma biografia autorizada). As cartas jogadas no lixo propõem um caminho de leitura alternativo para os textos de

A mãe de Derrida, Georgette, é, embora ele o negue (ou denegue), santa Georgette (§ 3): Afinal, ela o salva, ou seja, ela o converte. Tal como santa Mônica é fundamental na conversão de Agostinho ao Catolicismo, santa Georgette é fundamental na desconversão do midiático (católico?) Derrida de volta em apenas filho, em pessoa empírica não midiática. É interessante ainda destacar que, se Derrida, no § 3, alega que “...não escrevo sobre santa Georgette, o nome de minha mãe...”, “...pois minha mãe não foi uma santa...”, ele acrescenta logo a seguir “...não [uma santa] católica em todo caso...”, ou seja, ele deixa em aberto a possibilidade da santidade, enfim, ele praticamente afirma que Georgette é uma santa. Assim, se Derrida, por exibicionismo, pecou – o que foi um pecado chocante ou apelativo – ao expor sensacionalisticamente sua mãe nua e demenciada em seu livro e, portanto, à mídia (“...exibira-se nua diversas vezes seguidas após ter arrancado nervosamente algumas roupas que a prendiam ao leito...” § 4), foi exatamente essa mãe exposta, ou superexposta, foi esse pecado de deixar o lar ser invadido, a seu convite, pelo hostil e pelo mundano, enfim pela mídia, que o salvou da unilateralidade a que Bennington o havia destinado; o terrível pecado do filho, Derrida, foi sua felix culpa, enfim, a culpa que o fez ser redimido, ao menos parcialmente, por santa Georgette: “O felix culpa, quae talem ac tantum meruit habere Redemptorem!” (mote citado por Tomás de Aquino na Summa Theologiae III, q. 1, ª 3 ad 3). 51 De certo modo, em Circonfissão (publicado originalmente em 1991) vemos Derrida tentando fazer um trabalho oposto ao que fez em Otobiographies (originalmente uma palestra de 1976). No primeiro capítulo desse livro, o que está sendo discutido, embora Derrida não formule assim, é a questão da celebridade do homem da política e, nesse caso, a relação entre o eu-célebre do político e seu eu-empírico. Porém, o texto também pode ser lido como uma meditação sobre a questão da dualidade entre o eu da celebridade intelectual e seu eu empírico (uma questão que prosseguirá no comentário sobre Nietzsche nos capítulos subseqüentes). Lembrando que Derrida, em 1976, está no caminho de transformar sua fama especializada (quando ele supostamente recusava entrevistas) em celebridade internacional, temos, nessa transição, o contexto dessa palestra. Vários elementos são interessantes, mas deixarei para discuti-los mais aprofundadamente em outra ocasião. Primeiramente, a palestra se origina de um convite; ora, um convite é uma forma de entrevista de uma pergunta só, mas que também tem a função de possibilitar o desenvolvimento da persona celeber. Depois, há a questão da tensão entre pessoa pública e pessoa empírica; o equivalente da celebridade e do indivíduo privado; uma tensão que gera a questão de até que ponto a pessoa célebre é independente da pessoa empírica (e de o que uma pode dar de crédito à outra, ou o que uma deve à outra – ver p. 46 e seguintes sobre essa questão em Nietzsche); podemos desdobrar essa tensão também na questão de até que ponto é a celebridade intelectual que dita o que a pessoa empírica redige ou o contrário, etc. Em Jacques Derrida, de certo modo, o Derridabase de Bennington colocou Derrida na posição de celebridade intelectual que deveria ditar um texto para a pessoa empírica Derrida. Surpreender Bennington seria, para Derrida, recuperar essa dimensão não celebrizada. Enquanto em Otobiographies Derrida parece fascinado com seu desdobramento em persona celeber, em Circonfissão ele parece fascinado com sua mãe nunca tê-lo tratado como celebridade. 50

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Derrida, um caminho anti-Bennington, anticelebrização; enfim, um caminho que nos deixa entender que textos dele podem ser jogados fora.

BIBLIOGRAFIA

BENNINGTON, Geoffrey & DERRIDA, Jacques: Jacques Derrida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996. DERRIDA, Jacques: Posições. Lisboa, Plátano Editora, s/d. ____: La Carte Postale. Paris, Flammarion, 1980, ____: L’écriture et la différence. Paris, Seuil, 1967 ____: Otobiographies. Paris, Galilée, 1986. LEJEUNE, Philippe: Le Pacte Autobiographique. Paris, Seuil, 1975. PEREC, Georges. W ou a memória da infância. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. RIOS, André Rangel: Mediocridade e Ironia. Rio de Janeiro, Caetés/COC, 2001. ____: “A Filosofia e o Pidgin Acadêmico. A Construção de Derrida como Celebrity” CD-Rom Abralic, 2002. [Ver acima neste mesmo livro]

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Inventado e Planejado∗ ______________________________

Telles furent mes règles de conscience sur le mensonge et sur la vérité. Mon cœur suivoit machinalment ces règles avant que ma raison les eut adoptées, et l’instinct moral en fit seul l’application. (Tais foram minhas regras de consciência sobre a mentira e a verdade. Meu coração seguia maquinalmente essas regras antes que minha razão as tivesse adotado e o instinto moral viesse a aplicá-las por ele mesmo) Jean-Jacques Rousseau, Reveries d’un promeneur solitaire, Quatrième Promenade, O. C. vol. 1, p. 1032

De volta de um doutorado em Berlim, em 1991, ingressei, com vistas a um trabalho interdisciplinar, no Instituto de Medicina Social da Uerj. Uma casa onde Michel Foucault, no momento de fundação do Mestrado, em 1974, proferiu aulas famosas52. Aí também trabalhou Roberto Machado, divulgador de Foucault e Deleuze no Brasil. De modo que, uma vez que no Brasil dois já são lastro para se falar em tradição, via-me motivado a dar continuidade a uma



Parte deste texto, com o título ‘O Acontecimento Textual da Desconstrução’, foi originalmente apresentado no IX Congresso Internacional da Abralic, realizado em Porto Alegre, em 2004, e será publicado nos anais do congresso. Posteriormente, parte deste texto, com o título ‘Energia, Máquina, Poética, Desconstrução’, foi publicada no livro de Luiz Fernando Medeiros de Carvalho, Cenas Derridianas, Rio de Janeiro, Caetés, 2004, p. 124-131. 52 Duas delas foram incluídas em Michel Foucault, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979: ‘O Nascimento da Medicina Social’ e ‘O Nascimento do Hospital’.

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linha de trabalho própria a esse instituto, à valorização do pensamento francês contemporâneo. Sendo mais jovem, era de se esperar que eu lecionasse, além do institucional Foucault, alguém como Jacques Derrida. Já havia estudado Heidegger e Husserl durante o Mestrado. Em Berlim, para além do tema da minha tese em Escolástica Tardia, seguira seminários de Theunissen, sobre Husserl e Heidegger, e de Hübener, sobre Derrida. Com efeito, estava encaminhado para trabalhar numa nova leva de recepção de Derrida no Rio de Janeiro. Até mesmo uma editora me convidou, nessa época, a publicar um livro introdutório sobre o pensamento de Derrida. De fato, ofereci alguns cursos sobre textos de Derrida, especialmente sobre a polêmica em torno da História da Loucura. Mas desde o início me senti incomodado e aborrecido com o que me parecia a imposição de uma carreira. Muitas coisas conspiravam para que eu me entusiasmasse pelos textos de Derrida, mas eu permaneci desinteressado – não digo desmotivado ou hesitante – em me tornar um agente de Derrida no Brasil. Embora seus textos tenham me parecido engenhosos e mesmo lúdicos, embora eu o tenha por diversas vezes defendido de reducionismos alarmistas que o rotulavam como niilista relativista, embora eu tenha constantemente buscado a companhia de auto-intitulados derrridianos, nunca me reconheci um derridiano, ou mesmo um especialista em Derrida. Não que eu seja ingênuo em afirmar que eu não seja um derridiano. De certo modo, o sou. Tanto que – ainda que com discrição – freqüento simpósios e escrevo em livros sobre Derrida. Sobretudo já fui mais de uma vez, em pareceres oficiais, malevolentemente xingado de derridiano. Enfim, cumpri uma série de rituais que me investem, ao menos frente às instituições acadêmicas, do direito, quer eu lance mão dele ou não, de me auto-intitular derridiano. Direito que tento, provavelmente em vão, reverter em direito a negar que eu seja derridiano. Em todo caso, a unção que, tal como um sacramento, me impôs uma marca indelével de derridiano foi ter traduzido différance por diferænça (ou, para facilitar a tipografia, diferaença). Essa minha modesta contribuição à maquinaria de tradução de Derrida, ainda que uma contribuição pouco aceita, é traço de meu engajamento na importação dessa enorme máquina abstrata de produção de textos reconhecidos como derridianos. Textos que em geral ostentam diretamente em seus títulos, senão ao menos nas palavras-chave, o logo “Derrida”. Este, por exemplo, por mais que eu pareça resistir, é mais um texto ornado com um derridalogo, é mais um texto derridalógico; enfim, é mais um texto dessa máquina de produção e autenticação de textos derridianos.

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Há sempre nossos currículos, repletos de publicações e orientações, há sempre nossos cargos institucionais (professor, coordenador de pós-graduação etc.), que dão peso a nossas propostas e solicitações para realização de eventos, mas isso que afinal somos, maquininhas de produção de discursos e papers acadêmicos, pode receber também financiamento para a movimentação de seu núcleo corpóreo para um congresso, ou obter recurso para imprimir um livro sob o pressuposto de fazermos, entre outras coisas, bom uso do logo Derrida. Com efeito, o nome Derrida pode ser boa cartada, por exemplo, para sermos trazidos para um congresso da Abralic. Resumidamente, as coisas funcionam assim: há uma valorização do pensamento francês no Brasil (por brevidade não me estenderei sobre essa história), então alguns de nós se engajam em escrever sobre Derrida, ou indo fazer doutorado ou pós-doutorado com Derrida ou algum derrridiano; depois convidamos Derrida ou derridianos para virem ao Brasil; nesse processo promovemos colóquios, lançamentos de livros e simpósios na Abralic; inscrevemos linhas de pesquisa no CNPq; com isso, vamos enriquecendo nosso currículo e inflando as pesquisas em torno de Derrida, consolidando o reconhecimento do valor dessas pesquisas e eventos nos órgãos de fomento; enfim, a importação de Derrida tem que criar um parque industrial auto-sustentado de produção de derridianismo – ainda que insumos externos pareçam uma necessidade constante. Alguns desses eventos em torno de Derrida até incluem derridianos meramente diletantes; sobretudo quando o que se visa prioritariamente é a divulgação do logo ou a ampliação do mercado, quer do mercado de derridianos seriamente acadêmicos quer do de consumidores culturais de pensamento francês; porém, há também eventos e livros mais fechados que adquirem em muito a função, para os que deles participem, de cartórios para autenticação dos mais bem aquilatados derridianos53. Contudo, todos reconhecemos que há uma certa dificuldade em divulgar Derrida. Foucault, por exemplo, é muito mais palatável, muito mais popular. Há algo nas temáticas e no estilo de Derrida que parece gerar resistência no público acadêmico. Os derridianos, ora lamentam essa resistência, ora se orgulham dela. Ora ela é atribuída à inércia institucional (isto é, às carreiras universitárias constituídas com base em autores filosóficos tidos como clássicos), ora é atribuída a algum fator intrínseco ao estilo desconstrutor que desconstruiria idolatrias simplistas. O fato é, porém, que, seja pela bravura de alguns Foi, de certo modo, o caso do colóquio ‘Pensar a desconstrução - Questões de política, ética e estética’, realizado no teatro da Maison de France, em agosto de 2004, que contou coma presença de Jacques Derrida.

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derridianos, seja por generosidade institucional, volta e meia estamos nos encontrando em colóquios, bancas ou livros assinalados com o logo Derrida. Nesses encontros estamos tanto nos validando reciprocamente quanto, de certo modo, nos hierarquizando enquanto derridianos. Daí a minha resistência a fazer carreira como derridiano estar inelutavelmente, desde o início, eivada pela dúvida, ou possibilidade, de eu, ao me pôr como crítico do carreirismo derridiano, estar buscando, ao correr por fora, ser o mais derridiano dos derridianos exatamente ao tentar ser o mais distante, o mais diferente dos derridianos. Assim, ao final, minha ruptura não seria talvez mais do que a tentativa de uma ruptura didática, isto é, uma crítica à falta de ruptura didática do pensamento de Derrida com o currículo filosófico no qual o estudo de seus textos, aqui no Brasil, formalmente está incluído – ainda que também apareça, e muitas vezes com mais aceitação ou ao menos maior tolerância, no currículo de Letras. Porém, embora a causticidade da diferænça seja uma violência antifundacionalista, ou seja, embora ela seja “a” violência antifundacionalista do que se vinha chamando de filosofia, a força dessa violência não parece nem sempre ter levado a um abalo profundo na didática da filosofia. Em 1994, Derrida participou da fundação de um programa de doutorado na Villanova University onde, depois de ter afirmado que na França o ensino de filosofia deveria ser dado para adolescentes com menos de 16 e 17 anos, ainda encontrou ocasião para afirmar coisas como: ...eu enfatizava, ao mesmo tempo, a necessidade da disciplina, de algo especificamente filosófico, que nós não deveríamos dissolver a filosofia em outras disciplinas, que nós necessitamos ao mesmo tempo de interdisciplinaridade, de cruzar fronteiras, de estabelecer novos temas, de novos problemas, de novos caminhos, de novas abordagens para novos problemas, durante todo o tempo ensinando história da filosofia, as técnicas, rigor profissional, aquilo que é chamado disciplina. Não penso que precisemos escolher entre os dois [isto é, a manutenção ou a rejeição do ensino seguindo o cânon da filosofia]. Deveríamos ter filósofos treinados como filósofos, tão rigorosos quanto possível... (p. 7 – itálicos no original)54 Jacques Derrida, Deconstruction in a Nutshell. A Conversation with Jacques Derrida, New York, Fordham University Press, 1997, p. 9. “...at the same time I emphasized the necessity of discipline, of something specifically philosophical, that we

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Derrida está tal como Heidegger eternizando a filosofia ao afirmar que “não se deve dissolver a filosofia” ao mesmo tempo que a está substancializando ao dizer que há nela algo “especificamente filosófico”. Contudo, ele logo mais abaixo afirma também que: A desconstrução não é um método ou um instrumento que você, de modo externo, aplicaria a alguma coisa (...) A desconstrução é algo que acontece e que acontece no interior [something which happens and which happens inside]; há desconstrução em ação dentro da obra de Platão, por exemplo (p. 9). 55 Ele está dizendo que não há nada de especifico na desconstrução, isto é, não haveria também nada de especificamente filosófico nela. A desconstrução seria algo que já ocorre nos textos, que já os desconstrói, mas, se os textos são passíveis de serem desconstruídos, é porque a desconstrução que está neles faz parte das tensões estruturais deles, ou seja, a desconstrução neles é de certo modo parte das tensões que constróem o texto. Assim, por exemplo, lendo um texto de Platão a desconstrução põe em evidência como as múltiplas e paradoxais articulações de suas argumentações e figurações; em outras palavras, a desconstrução, ao mostrar como as argumentações e figurações no texto emperraram e se contradizem, expõe como se dá o pensamento dito filosófico. O que temos é que a desconstrução, que não é nem método nem doutrina, seria o que há de mais filosófico no texto filosófico, pois esse, favorecendo com suas argumentações e figurações leituras cegas às suas contradições – ou seja, favorecendo a sua ilegibilidade –, corroboraria um entendimento logocêntrico, a apreensão de um ilusório sentido estável, pois nele haveria em ação a invalidação dessa estabilidade (que, no meu entendimento, conseqüentemente leva, digamos, maquinalmente, à impossibilidade de se manter um conceito, ou um cânon, para o que se aceita

should not dissolve philosophy into other disciplines, that we need at the same time interdisciplinarity, crossing the borders, establishing new themes, new problems, new ways, new approaches to new problems, all the while teaching the history of philosophy, the techniques, professional rigor, what one calls discipline. I do not think we need to chose between the two. We should have philosophers trained as philosophers, as rigorous as possible...”, p. 7. 55 “Deconstruction is not a method or some tool that you apply to something from the outside(...). Deconstruction is something which happens and which happens inside; there is a deconstruction at work within Plato’s work, for instance.” p. 9.

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curricularmente como história da filosofia). O “especificamente filosófico” preconizado por Derrida? Em todo caso, ele também diz:

que

seria,

então,

o

Porque, logo que alguém examina meus textos, e não apenas os meus, mas os textos de muitos que me são próximos, vê que o respeito pelos grandes textos [respect for the great texts], pelos textos dos gregos e de outros também é a condição para nosso trabalho. (p. 9 – itálicos no original)56 Aqui Derrida, como que oferecendo garantias para seus epígonos, expressa de modo claro e distinto sua fé no cânon dos grandes textos ocidentais (digamos que ele expressa seu inequívoco respeito pelos Great Books of the Western World, da Encyclopaedia Britannica, Inc.), a ponto de ele, mais abaixo, admitir que ...I do not understand what is going on with this question of the canon. Ele não entende o debate sobre o cânon porque para ele o cânon está bom como está – é só uma questão de acrescentar mais alguns nomes e questões57. Assim também, os derridianos brasileiros não deveriam se preocupar com o cânon ou com o atual sistema de publish or perish, um grande aliado da canonelatria, que muitas vezes tem enrijecido as áreas humanas numa caricatura do que se faz internacionalmente nas mesmas áreas. Se, contudo, o estudo da Literatura Brasileira, devido à sua especificidade local, talvez possa ou poderia ser mais livre de uma submissão a padrões internacionais, o mesmo não acontece em filosofia. Para os derrianos na área de filosofia, a questão é incluir – ou valorizar mais – o logo Derrida no CNPq e nas agências de fomento em geral, pois de resto, quanto ao ensino e à pesquisa, não haveria muito o que mudar. Nesse debate, a desconstrução pode ser, em alguns aspectos, inovadora, mas ao final, ao menos seguindo-se as palavras de seu grand manitou, não teria a propor mais do que uma acomodação – seria, portanto, no máximo uma violência acomodadora.

“Because as soon as one examines my texts, and not only mine but the texts of many people close to me, one sees that respect for the great texts, for the texts of the Greeks and of others, too, is the condition of our work.” p. 9. 57“I am in favor of the canon, but I won’t stop there. I think that students should read what are considered the great texts in our tradition – even if that’s not enough, even if we have to change the canon, even if we have to open the field and to bring into the canonical tradition other texts from other cultures.” Jacques Derrida on Rhetoric and Composition: A Conversation http://jac.gsu.edu/jac/10/ Articles/1.htm (acessado em 10/7/4). 56

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No entanto, a estratégia da desconstrução talvez não tenha nunca sido a da ruptura revolucionária, mas a de comer pelas beiradas; em todo caso, no campo da didática do que chamam de filosofia (se é que, tal como defende Derrida, ela não deva ser dissolvida) a proposta desconstrucionista é das mais conservadoras. Nesse aspecto, Derrida chega a dizer: So you see, I am a very conservative person58 (p. 8). De fato, não era de se esperar propostas muito inovadoras nisso, já que afinal Derrida nunca considerou possível criticar a metafísica a partir de uma linguagem que não tivesse nada de metafísica – uma linguagem purificada da metafísica seria impossível. Daí sua idéia de que a desconstrução se processaria com desconstruções recíprocas. Essas ponderações, contudo, reforçam meu mal-estar em estar sendo alinhado, ou antes, de estar me alinhando aos derridianos. Tenho de confessar um certo constrangimento em não ter conseguido evitar esse destino (essa imposição, quem sabe, sociologicamente explicável) de eu, ainda que manobrando com várias e várias ironias, ainda que tendo escrito um livro convolutamente irônico e auto-irônico chamado Mediocridade e Ironia, não ter como negar que – e o meu currículo, bem como este texto, mais uma vez confirmam – sou um derridiano. Assumo a faixa de derridiano, ou antes, roubo essa faixa, esse ruban, nas várias vezes em que busco um financiamento para bolsa ou tenho de oferecer um perfil acadêmico mais convincente; enfim, confesso-me, ou seja, cometo perjúrio ao dizer-me em alguma medida derridiano. Afigurando-me derridiano busco defender-me contra pareceristas supostamente, digamos, ficcionalmente imparciais, sempre vigilantes em exigir que a proposta esteja inserida em uma carreira acadêmica definida segundo o que burocraticamente são considerados os clássicos da filosofia. Assim, reconheço, ou antes, confesso que por vezes, ainda que constrangidamente, peguei a faixa de derridiano para obter benefícios próprios: para ostentar um mínimo de prestígio acadêmico e amealhar passagem e estadias. Mas ao falar em confissão, em perjúrio, em constrangimento (que seria um equivalente da vergonha de Rousseau ao se confessar), em máquinas, em admitir uma certa paranóia persecutória (no meu caso, em relação ao Evidentemente Derrida também diz sobre a construção o contrário, isto é, que a desconstrução não é conservadora; contudo, o amor pela tradição é profundo: “I’m in favor of tradition. I’m respectful of and a lover of the tradition. There’s no deconstruction without the memory of the tradition. I couldn’t imagine what the university could be without reference to the tradition, but a tradition that is as rich as possible and that is open to other traditions, and so on. That’s conservative; tradition is conservative to that extent. But at the same time deconstruction is not conservative.” loc. cit.

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maquinismo das instituições de fomento), enfim ao confessar as maquinações calculistas do meu engajamento derridiano, estou usando tantas categorias e alusões a Derrida e a de Man discutindo Rousseau que é impossível que eu não esteja também sendo um derridiano. Tudo se passa como se eu não quisesse ser derridiano, como se eu resistisse a Derrida, isto é, resistisse à Teoria, mas maquinalmente fosse derridiano; e seria derridiano sobretudo por exigência da maquinaria de produção de pesquisa no Brasil. Seria principalmente para aplacar a burocracia que eu, como que cedendo a uma máquina de tortura, me confessaria derridiano em meus relatórios e solicitações, afigurando-me assim como maquininha de produzir papers com logo de Derrida. E como não confessar também que nem tudo é constrangimento e coação intelectual? Há o prazer em escrever textos que recorrem a expedientes desconstrutores. É prazeroso até mesmo escrever um texto confessando meu constrangimento. Há, portanto, a motivação real. Há a energia que recebo pelo prazer de ler e de discutir textos saborosamente complexos como ‘Invention de l’autre’59. Ser derridiano também produz energia em mim. Um pouco apenas de energia, mas o suficiente para escrever e publicar alguns textos sem que me sinta um mero escrivão redigindo escrituras segundo um formato preestabelecido. E, já que estou me confessando, por que não reconhecer que esse aporte de energia intelectual suscitado por ler e escrever sobre Derrida tem me ajudado a contornar uma depressão que se assoma em relação a minha vida acadêmica, essa mesma depressão que me faz pintar com cores tão pesadas a dependência intelectual do nosso círculo derridiano brasileiro e sugerir que o mesmo se passa em geral com a pesquisa e ensino de áreas humanas no Brasil? Tudo se passa como se eu escrevesse maquinalmente levado por um coração deprimido. Nesse sentido, Derrida poderia, quem sabe, me servir como um antídoto, ou, ao menos, como uma ajuda, contra a depressão. Com efeito, um aspecto que muito admiro em Derrida é como, ao longo dos anos, ele foi dando mostras de crescente atividade com uma energia e prolixidade desmedidas. A depressão, tida por alguns como o mal do fim do século XX, nunca pareceu – academicamente ao menos – abalá-lo. Em uma entrevista, em 2002, Derrida fala sobre isso:

‘Psyché. Invention de l’autre’ in: J. Derrida, Psyché. Inventions de l’autre, Galilée, 1987, p.11-61. Daqui em diante as referências a essa obra estarão incluídas entre parênteses no texto.

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Eu levo uma vida muito ativa e exaustiva. Se alguém me tivesse dito, quando eu tinha 20 anos, que eu estaria fazendo o que faço com a idade de 72 anos, eu não acreditaria. Eu era fisicamente mais frágil naquela época, e teria sofrido um colapso se eu fizesse uma fração do que faço agora. A recepção do meu trabalho me dá esta energia. As pessoas são generosas comigo e com meu trabalho; tenho a certeza de que teria sofrido um colapso sem essa generosidade.60 [o negrito é meu] Derrida é, portanto, tanto uma usina geradora de energia quanto uma central captadora e redistribuidora de energia. Nós, pesquisadores brasileiros, recebemos e redistribuímos uma fração dessa energia ao escrevermos sobre sua obra. Este meu artigo é produzido com uma diminuta fração do que a usina Derrida mobiliza. Mas o que me chama atenção nesse trecho da entrevista é que ele irradia um certo deslumbramento de Derrida com seu status de celebridade intelectual. Evidentemente, Derrida sempre esteve tentando pensar criticamente a mídia e, sobretudo, não fazer concessões a ela. Em especial, ele se sente constrangido (ill at ease/ discomfort) com sua imagem em fotografias, ou seja, com as imagens dele reproduzida pelas máquinas fotográficas. Derrida também alega que inicialmente buscava evitar tanto as “poses estereotipadas” (stereotyped poses; ou seja, as poses repetitivas tal como um produto industrializado), quanto fazer concessões ao cultural market61 (ou seja, a este mercado que vende cultura maquinalmente produzida). Enfim, são sempre as máquinas – desde as máquinas fotográficas até a indústria cultural como um todo – que deixam Derrida constrangido tanto a evitar aparecer quanto em fornecer sua imagem. Ou seja, Derrida parece, por motivos ou sentimentos http://www.lichtensteiger.de/derridathreeages.html : Three Ages of Jacques Derrida . November 8 – 14, 2002 (acessado em 10/7/4). Traduzido por mim. 61 “There were several different reasons for my refusal to be photographed, which did last a long time. One of them, a profound one, unquestionably has to do with being ill at ease with my own image... Authors had their pictures taken in stereotyped poses, the professor or the writer with books behind them... I just wanted to protest against the cultural market and what it did with the image of authors”. J. Derrida & M. Ferraris, A Taste for the Secret, Cambridge, Polity Press, 2001, p.52-52. Explicando por que hesitou em aceitar aparecer em um filme sobre ele mesmo Derrida diz: “I proceeded with deep reservations that had to do with the discomfort I’ve always felt about my image in photographs. I succeeded in publishing for almost 20 years without a single image of myself appearing in connection with my books... I had what you might describe as ideological objections to the conventional author photograph...I’ve always had a difficult relationship with my own body and image”. Three Ages of Jacques Derrida, loc. cit. 60

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diversos, ter dificuldade em pensar – portanto, em desconstruir – essas duas facetas da vida de uma celebridade intelectual: a revigorante satisfação com os freqüentes convites e o constrangedor assédio da mídia.62 Quem, entretanto, tem algo a dizer sobre as celebridades intelectuais e suas carreiras é Bourdieu, um colega de Derrida na École Normal Superieur, ou seja, um colega dele naquela fase da vida em que, ao estarem em uma instituição formadora da elite intelectual francófona e assim internacional, trilhavam os primeiros passos para a fama como intelectuais: Através dos jogos sociais que propõe, o mundo social proporciona algo mais e distinto do que são os móveis aparentes: a caça, como lembra Pascal, conta tanto, senão mais, do que a presa, e existe uma felicidade da ação que supera os ganhos patentes, salário, preço, recompensa, e que consiste no fato de sair da indiferença (ou da depressão), de estar ocupado, envolvido com metas, e de se sentir dotado, objetivamente, logo subjetivamente, de uma missão social. Ser esperado, solicitado, assoberbado por obrigações e compromissos, tudo isso tem o significado não apenas de ser arrancado da solidão ou da insignificância, mas também de experimentar, da maneira mais contínua e mais concreta, o sentimento de contar para os outros, de ser importante para eles, logo para si mesmo, e encontrar nessa espécie de plebiscito permanente que vêm a ser os testemunhos incessantes de interesse – pedidos, expectativas, convites – uma espécie de justificativa continuada para existir.63 [o negrito é meu] Bourdieu descreve nesse trecho um circuito de energia. A preocupação dele é em especial com a produção do saber na França, mas não há como não irmos além e nos pormos a pensar no circuito internacional de energia intelectual, no qual – obviamente de forma desigual e assimétrica – também estamos inseridos.

Em ‘A Construção de Derrida como Celebrity’ comentei que, no entanto, seu status de celebridade intelectual internacional é algo que Derrida não consegue criticar senão muito superficialmente Uma primeira versão desse meu texto encontra-se nos anais do Congresso da Abralic de 2002; uma versão revisada foi incluída mais acima neste livro. 63 Pierre Bourdieu Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001 p. 293-294. Publicado na França em 1997. 62

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O que se passa é que a pesquisa constitui um circuito de informação e energia (convites, publicações, metas, homenagens, rankings, prêmios, medalhas etc.); de um modo geral, não há como resistir a engajar-se nele. Quem não corresponde às exigências não é lido nem convidado pela academia (ainda que eventualmente consiga ser publicado devido a inserções em algum outro circuito), ou seja, fica desmotivado, ou deprimido, ao menos do ponto de vista de suas metas acadêmicas. Não que a criatividade e a crítica não valham. Ao contrário, elas são valorizadas, mas, é claro, no pressuposto de sua boa inserção no circuito. Assim, há um planejamento geral com metas e orçamento; algumas áreas ou alguns temas são circunstancialmente privilegiados; outros temas são definidos pelos pesquisadores seniores das respectivas áreas; os pesquisadores ou as equipes apresentam seu projeto ou plano de pesquisa, que são julgados por outros pesquisadores; depois há os relatórios e a avaliação da produtividade das instituições ou programas de pós-graduação e dos pesquisadores. A criatividade tem de ser exercida no trajeto do plano aos resultados e relatórios. É uma criatividade planejada, o resultado de um programa, de uma máquina. Há um trecho de Derrida em ‘Psyché. Invention de l’autre’64 que comenta essa situação: Segundo os trajetos mais inaparentes ou mais supradeterminados ainda, nós sabemos que tais programações [para fomentar pesquisas] podem envolver a dinâmica da invenção, por assim dizer, a mais “livre”, a mais selvagemente “poética” e inaugural [sauvagement “poétique” et inaugural]. A lógica geral desta programação, se houver, não será necessariamente aquela das concepções conscientes. A programação pretende, e por vezes chega a isso até certo ponto, a estabelecer a margem aleatória que é necessária levar em conta. Ela a integra em seus cálculos de probabilidades. Há alguns séculos se entendia a invenção como um acontecimento errático [un événement erratique], o efeito de um lance genial individual [un coup de génie individuel] ou de uma circunstância imprevisível. Isso freqüentemente se deveu a um desconhecimento, ainda que desigualmente difundido, dos trajetos tortuosos pelos quais a invenção se ‘Psyché. Invention de l’autre’ in: J. Derrida, Psyché. Inventions de l’autre, Galilée, 1987, p. 11-61. Daqui em diante as referências a essa obra estarão incluídas entre parênteses no texto.

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deixava constranger [contraindre], prescrever, senão prever. (p. 40) [o negrito é meu] Derrida, portanto, se mostra sensível a esse paradoxo da conjunção da invenção (ou seja, da criatividade intelectual) com a máquina, ainda que aí, mais uma vez, ele não se dê conta da circulação de energia que esse circuito, ao promover a fama ou a desmotivação, está distribuindo ou retendo. “Invention de l’autre” é basicamente a confluência de uma discussão sobre a desconstrução de-maniana (com sua ênfase característica na questão do performativo e do constatativo) e uma desconstrução do “conceito tecno-ontoantropo-teológico da invenção” (p. 61). Nele, Derrida descreve e critica o conceito de invenção que ele entende como sendo o comumente aceito, ou seja, ele primeiramente constrói esse conceito a partir de autores usuais ao cânon filosófico, sobretudo, Descartes, Leibniz, Kant e Heidegger – para depois buscar desconstuí-lo. O autor menos usual ao cânon filosófico citado com destaque por Derrida, embora seja legitimamente um autor do cânon, é Cícero; e, com efeito, a discussão sobre Cícero abrirá questões de grande importância, que infelizmente não poderei discutir aqui, sobre a relação entre o Direito e a invenção, enfim, sobre o problema das patentes. Não há, porém, nenhuma menção da rica discussão epistemológica pós-kuhniana sobre a produção da ciência. Derrida segue o modelo heideggeriano de considerar tacitamente os ditos grandes filósofos como os lídimos representantes do pensamento de suas épocas; na verdade, ele repete a mesma preferência de Heidegger por Leibniz, no Der Satz vom Grund65, como figura fulcral na constituição do pensamento científico moderno. Assim, também tacitamente, Derrida corre o risco de tomar para si a mesma concepção eurocêntrica do desenvolvimento científico europeu na época da colonização66. M. Heidegger, Der Satz vom Grund, Verlag Günter Neske, 1978 [1957]. Uma concepção descaradamente eurocêntrica do saber na modernidade é exposta por Foucault em As Palavras e as Coisas – as epistemes são “aprioris históricos” europeus e explicam a organização dos saberes apenas na Europa. Nesse livro, ludicamente elegante embora autocentradamente monstruso, tudo se passa como se o saber europeu tivesse uma dinâmica própria, absolutamente independente de tudo o mais que era saqueado e exaurido das colônias; enfim, tudo se passa como se a intensa interação entre as metrópoles européias e as colônias em nada tivesse maculado a dinâmica transcendental dos saberes europeus. Ainda que Foucault tenha sido constantemente citado e discutido nos Estudos Pós-coloniais, não lembro de ter visto qualquer crítica ao assombroso eurocentrismo desse livro. Sobre o Der Satz vom Grund, ver também o meu texto: ‘Nada é sem Razão. Impessoalidade e Eurocentrismo na História do Ser’ in: Éthica. Cadernos Acadêmicos, vol. 9, n° 1 e 2, 2002, p. 147-156 [incluído mais acima neste mesmo livro].

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A parte mais interessante do ‘Invention’ é quando Derrida, analisando um poema de Francis Ponge, ‘Fable’, cita uma passagem de de Man (que, em seu contexto original, não se refere a Ponge) tal como se fosse um trecho dele mesmo (isto é, de Derrida) para, por meio do enxerto desse trecho de de Man, tal como um desdobramento ou explicação final de sua própria análise, concluir o seu próprio comentário sobre Ponge (...essas poucas linhas que parecem escritas para a ‘Fable’ – p. 28). Ou seja, Derrida explica o pensamento de de Man a partir da explicação que ele mesmo, Derrida, dá sobre o poema de Ponge; e esclarece sua própria interpretação do poema de Ponge, citando um trecho de ‘The Rhetoric of Temporality’67 de de Man (um texto que nem menciona Ponge). Tudo se passa como se duas máquinas fossem acopladas uma à outra, duas máquinas interpretativas, uma para explicar e problematizar a outra. É como se a máquina interpretativa de Derrida explicasse a invenção de-maniana e a máquina de de Man, a invenção derridiana, sem que qualquer uma das duas chegasse a se estabilizar. Em nossa época de invenções de máquinas, época que comercializa cinematograficamente o temor de um mundo maquínico em que o humano seja dispensável, a questão de ‘Invention de l’autre’ é premente68. Derrida questiona a necessidade de reinventar a invenção: uma invenção teria de ser uma ruptura, a quebra de algum contrato implícito, um tipo de desordem, enfim, teria de ser algo de imprevisto, de imprevisível, de impossível. Assim, o texto se desenvolve na confrontação entre uma invenção possível e uma impossível, uma invenção que, dentro de certa medida, respeitaria as normas vigentes e uma invenção que, ao acontecer, reinventaria as próprias normas. A análise do poema de Ponge (sobretudo da contradição suscitada pelo verso inicial de ‘Fable’: Par le mot par commence donc ce texte – citado na p. 31), juntamente com a discussão da ironia e do performativo/ constatativo segundo de Man, ilustraria a questão de uma instabilidade intimamente ligada ao acontecimento textual, isto é, à

Paul de Man Blindness and Insight, Minneapolis, University of Minnesota press, 1983 [1971], p. 222. 68 A produção de seres humanos por máquinas em escala industrial não é algo que possa surpreender os filósosfos. Heidegger, em ‘Überwindung der Metaphysik’, um texto publicado em 1957, antevê um mundo em que, tornados mera matéria prima, seres humanos – o que é bem mais radical do que nos mostra o filme Matrix – serão fabricados quimicamente: “Sendo, pois, o homem a mais importante matérias prima, pode-se já prever que, com base na atual pesquisa em química, serão erguidas fábricas para a produção de material humano. As pesquisas do químico Kuhn, que foi laureado este ano [1951] com o prêmio Goehte da cidade de Frankfurt, abrem já a possibilidade de que se venha a organizar a produção de seres masculinos e femininos.” Vorträge und Aufsätze, Neske, 1990, p. 91. 67

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invenção. O trecho que cito a seguir pode ser tomado como resumo da problemática abordada nessa parte do texto de Derrida: A oscilação infinitamente rápida [na ‘Fable’ de Ponge] entre performativo e constatativo, linguagem e metalinguagem, ficção e não-ficção, auto- e hetero-referência etc., não produz somente uma instabilidade essencial. Essa instabilidade constitui o acontecimento (l’événement) mesmo, digamos, a obra, da qual a invenção perturba normalmente, se se pode assim dizer, as normas, os estatutos e as regras. (p. 25) A instabilidade é, portanto, o acontecimento, ou seja, a invenção. O que acontece num texto é a instabilidade que está em processo nele. Não se trata propriamente da instabilidade que um texto possa causar na sociedade, mas instabilidades que o constituem no mesmo gesto que o desconstituem. Sendo a sociedade um texto, as instabilidades sociais incluem um processo desconstrutivo e, assim, também um acontecimento ou invenção, mas não se deve por isso confundir com as suas tensões desconstrutivas internas as instabilidades fenomenologicamente visíveis – os tumultos de rua ou as crises econômicas –, bem como o que um texto possa desencadear como repercussões sociais imediatas. Assim, temos que a desconstrução pela leitura desconstrutivista, quer de textos literários quer de filosóficos, é uma; e a desconstrução da máquina acadêmica desconstrutivista e sua energética – uma desconstrução que nos vemos agora constrangidos a, por assim dizer, empreender – é outra. Para isso, para empreender a desconstrução da máquina acadêmica desconstrutivista, é necessário evitar entender o pensamento de Derrida como resultante de “um acontecimento errático” ou de “um lance de gênio individual”, tampouco como uma invenção “livre” ou “selvagemente poética e inaugural”, mas como o output de uma máquina internacional de produção acadêmica e de celebridades intelectuais. Do mesmo modo, a máquina que desconstruirá essa máquina desconstrutora da máquina acadêmica desconstrutivista, se é que ela já não está sendo desconstruída, será – podemos supô-lo – ela mesma desconstruída, em um outro momento – por vir. Assim também, podemos continuar, uma invenção científica é invenção no que ela altera as normas da ciência – não tanto no quanto sua aplicação em produtos tecnológicos provoca mudanças na vida social (o uso que a sociedade faz de um objeto tecnológico pode ou não ser inventivo, mas o que caracterizaria uma invenção não seria em si, como já mencionei acima, as repercussões dela

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fenomenologicamente apreciáveis, mas sua quebra das normas e das regras – o que pode ou não provocar comoção social). Não que uma invenção enquanto acontecimento, ou mesmo a desconstrução (que, afinal, como citei acima, é “algo que acontece” e, portanto, é inventiva; la déconstruction est inventive ou elle n’est pas – p. 35), não possa causar comoção social, de fato, muitas vezes causa, mas a invenção ou a desconstrução podem acontecer de um modo aparentemente não-violento. Assim, também não deveríamos considerar que, quando não há transtornos sociais evidentes, a invenção ou a desconstrução tenham liberado apenas uma violência mantenedora, e não uma violência revolucionária. Em vista da forma paradoxal em que a invenção ou a desconstrução acontecem, sua subversão pode ser tanto mais subversiva quanto menos ela é percebida conscientemente. De fato, o fascínio por um poema pode se dar independentemente de que haja ou não uma leitura explicitadora de suas tensões descontrutivas; e esse fascínio, é claro, pode ser brando e sutil, não necessariamente um arrebatamento corporalmente perceptível. Ainda que para resumir eu tenha acrescentado alguns comentários, quem sabe, excessivamente inventivos, creio que passei a idéia geral das questões que conduzem o ‘Invention de l’autre’. É basicamente nesse contexto que Derrida vem a se preocupar com o paradoxo que vivemos atualmente: há financiamentos para pesquisas, a saber, para que ocorram invenções. Assim, as invenções ocorrem devido a um planejamento, como resultado de uma grande máquina que planeja, financia e controla a produtividade, enfim, que controla a inventividade das pesquisas. Nas palavras dele: “Toda a política moderna da invenção tende a integrar o aleatório em cálculos pragmáticos” (p. 51). Desse modo, podemos dizer que, por exemplo, o CNPq é uma máquina de produzir invenções, de integrar o aleatório em um cálculo. Essa inventividade calculada, porém, Derrida busca desqualificar como sendo “a invenção do mesmo”: Eis isso que tentam todas as políticas modernas da ciência e da cultura quando elas se esforçam – e como elas poderiam fazê-lo de uma outra maneira? – em programar a invenção. A margem aleatória que elas querem integrar resta homogênea ao cálculo, à ordem do calculável. Ela revela uma quantificação das probabilidades e permanece, pode-se dizer, na mesma ordem e na ordem do mesmo. Nenhuma surpresa absoluta. É o que chamo de invenção do mesmo. (p. 53)

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Porém, essa desqualificação, depois de anunciada, tem de ser relativizada, tem de ser desdita, embora fique tendo sido dita. Não há como hierarquizar as invenções. O que me parece é que aqui quem está falando por detrás do texto de Derrida é o texto de Heidegger. Para Heidegger, há uma elite pensante européia, um punhado de filósofos, que verdadeiramente pensaram ou pensam; os demais, nós aqui por exemplo, apenas – quando muito – calculamos. Para Heidegger, nem os cientistas exercem um pensamento verdadeiramente criador, eles também não mais que calculam. Derrida, bem mais condescendente, considera que a ciência pensa, isto é, inventa, ou seja, em vez de desqualificar o pensamento científico como mero cálculo e manter a pureza de uma exclusivista tradição filosófica pensante, ele busca, até certo ponto abrindo mão de um purismo do pensamento filosófico, como que democratizar a capacidade de pensar atribuindo-a também à prática científica; contudo, não abre mão de deixar inscrito, embora depois rasurado, um movimento de hierarquização. Assim ele continua: E eu não a [a invenção do mesmo] oporia à invenção do outro (aliás, eu não lhe oporia nada), pois a oposição, dialética ou não, pertence ainda a esse regime do mesmo. A invenção do outro não se opõe àquela do mesmo. (p. 53) Como já indiquei, o que Derrida está buscando é reinventar a invenção. Ele reconhece que ele não pode fazer isso sozinho (“O outro clama por vir e isso não acontece senão com muitas vozes” – p. 61), mas ele espera que essa invenção à venir (p. 6), digamos, esse novo regime de inventividade, aconteça. Ele antevê que, com a invenção reinventada, as antigas hierarquias não mais terão sentido. Assim, ele continua: Sua diferença [isto é, a diferença da invenção do outro] aponta [fait signe] para uma outra sobrevinda [survenue], para essa outra invenção com a qual sonhamos, aquela do totalmente outro, aquela que deixa vir uma alteridade ainda inantecipável e aquela para a qual nenhum horizonte de espera parece já estar pronto, disposto, disponível. É necessário, porém, se preparar para ela, pois, para deixar vir o totalmente outro, a passividade, um certo tipo de passividade resignada pela qual tudo retorna ao mesmo, não é aceitável. Deixar vir o outro não é a inércia de um nada importa. Sem dúvida, a vinda do outro, se ela deve

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permanecer incalculável e de uma certa maneira aleatória (esbarra-se no outro em um encontro), subtrai-se a toda programação. (p. 53) É impressionante o quanto a contaminação heideggeriana permeia todo esse trecho citado. Há heideggerianismo na linguagem (fait signe) e há a rejeição, o pavor, ao pensamento calculante, bem como a idéia de uma espera que não seria nem ativa nem passiva, em todo caso, de modo algum resignada. A desqualificação do pensamento calculante, que fora logo acima relativizada, ou seja, de certo modo havia sido concedido que o pensamento calculante tem alguma inventividade (teria ele, afinal, também um poder desconstrutor?), ao menos se reconhecia que ele não se oporia à invenção do outro, agora é retomada pela firme exclusão do cálculo no, digamos, desvelamento do totalmente outro. Ou seja, o ‘Invention de l’autre’ se desenvolve na tensão entre a aceitação de um maquinismo interpretativo, manifestada ao recorrer a de Man69 no processo de interpretação do poema ‘Fable’, e a rejeição ao cálculo (isto é, à máquina), reforçada ao recorrer a Heidegger para comentar a questão da inventividade científica. Cabe lembrar que, em Heidegger, a rejeição da calculabilidade vai de par com a desqualificação da cultura de massas, tida também como um resultado do cálculo. Não vejo em Derrida o mesmo desprezo pela dita cultura de massas que Heidegger e Barthes nutriam; prefiro recomendar que alguém pesquise esse tema ao longo do trajeto de Derrida. Em todo caso, há a resistência inicial de Derrida em conceder entrevistas e seu incurável mal-estar com sua imagem em fotos. Ao longo dos anos, porém, ele passou a conceder entrevistas com freqüência, a aparecer na TV e até a participar de filmes. Não sei até que ponto, entretanto, ele, ao se tornar mais popular, veio a ficar mais condescendente com a mídia e a cultura pop. Seja como for, Derrida, ao recorrer, além de a Heidegger, a de Man (que só comenta autores canônicos), se põe bem distante de pensar, por exemplo, a obra de Andy Warhol (cito-o a título de exemplo, e cito-o para não ir muito longe, pois afinal Warhol também pode ser visto como sendo um canônico), com a qual, quem sabe, ele poderia discutir bem mais aprofundadamente as questões: cálculo, mercado, máquina, lucro, criatividade, tagarelice etc. do que com Ponge, de Man, Leibniz e Heidegger (apesar de Ponge ser nesse contexto, sem dúvida, a Sobre a questão da máquina em de Man ver: G. Bennington ‘Aberrations: de Man (and) the Machine’ in: L Waters & W. Godzich (eds.) Reading de Man Reading, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1989.

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melhor ajuda). Enfim, embora eu esteja dizendo que o ‘Invention de l’autre’ é um texto pouco inventivo e pouco aleatório (por ser muito heideggeriano), ressaltei que a interpretação do poema ‘Fable’, na qual as desconstruções de Derrida e de de Man surgem tal como máquinas de detectar e potencializar instabilidades, é fabulosa (esse jeu de mot: fábula/fabulosa roubei – sem me dar conta (ou será que maquinalmente?) – do texto de Derrida). De resto, o texto exsuda um elitismo que precisaria ser desconstruído. Sobretudo, desconstruído por nós. De certo modo, o que o ‘Invention de l’autre’ nos indica é que estamos – nós, os derridanos brasileiros – dentro de uma máquina produtora de pesquisa, no caso, produtora da recepção do Derrida no Brasil. A máquina, digamos, o CNPq, sabe que um tanto em dinheiro investido levará a um tanto de filosofia francesa assimilada no Brasil. Sob esse ponto de vista, não há nada de verdadeiramente inventivo em nada que escrevemos ou que discutimos em um simpósio. Por mais que nos esforcemos em sermos inventivos ou poéticos isso estaria previsto no cálculo institucional que nos promove. Assim, viveríamos uma sombria miséria maquínica, seríamos peças de uma máquina de pesquisa, da qual nossos papers, livros e conferências são os outputs; Derrida produziria os insumos para nosso trabalho. ‘Invention de l’autre’ é, por exemplo, o principal input deste meu texto. Porém, Derrida não dá mostras de se ressentir do penso de nenhum constrangimento (cf. contraindre – p. 53) maquínico para escrever. Ao contrário, Derrida simplesmente se sente cheio de energia (não deveria ele desconstruir essa energética?), escrevendo e publicando como se fosse uma usina. Afinal, na descrição de Bourdieu, Derrida é aquele que é “esperado, solicitado, assoberbado”, sobre o qual recaem “pedidos, expectativas, convites”. É Derrida que nos confirma seu sentimento de “ser importante” ao narrar, por exemplo, no ‘Invention’, o convite feito por de Man para ele dar dois seminários em Yale ao longo dos anos de 1975 até 1978; seminários nos quais Derrida discutiu Ponge e Heidegger. Talvez a intenção de Derrida, ao mencionar esse episódio, seja mais uma vez a de agradecer a generosidade do amigo – a mesma generosidade que, na entrevista que citei acima, é geradora da enorme energia que faz com que ele aos 72 trabalhe muito mais do que suportaria aos 20 anos. Trata-se de uma energia gerada, distribuída, recaptada, repotencializada, armazenada, redistribuída – como que em escala industrial – pelo jet set internacional da pesquisa. Derrida fala como se as atividades dele dependessem apenas de amizade, generosidade e convites pessoais – tudo se passa como se ele estivesse fora da lógica maquínica da produção das pesquisa. Sempre voando entre Paris e Yale, Derrida estaria, assim, em alguma medida, à parte do

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maquinismo tecnológico. Heidegger buscava se pôr à parte da onipresença tecnocientífica refugiando-se na Floresta Negra, mas ele tinha clareza de dizer que não há mais florestas, mas apenas áreas verdes, isto é, áreas que são mantidas com árvores por algum tipo de planejamento. Derrida tampouco tem a ilusão da possibilidade de excluir-se da tecnociência. Sua autobiografia, Circonfissão70, é perpassada por tecnologia; há referências, em especial, a carros, aparelhos médicos e computadores. A escrita de Derrida é mostrada no Jacques Derrida como se dando através do computador. Bennington escreve o Derridabase71 em ¾ da página e no ¼ inferior, como um rodapé, como um footnote72, Derrida, buscando fugir do maquinismo do livro de Bennington sobre ele, escreve sua Circonfissão. A questão a ser decidida pelo leitor é a de se ele escapou ou não das múltiplas máquinas que se acoplam a ele, inclusive da máquina interpretativa de Bennington, uma máquina que é a metonímia de toda a maquinária interpretativa sobre o pensamento dele; nós aí incluídos. Mas se ele pensa anti-humanisticamente, isto é, se ele não considera que haja o homem de um lado e a máquina do outro, se para ele o homem sempre é já um monstro maquínico e a as máquinas são invenções, isto é, são algo não inteiramente inorgânico, então o que seria escapar da máquina? Essa questão é a que Derrida discute em ‘Invention’, Circonfissão e vários outros textos, mas parece que ela solicita uma resposta incessante, ou seja, precisa – tal como o poema de Ponge – de ser infinitamente desestabilizada. Mas, ao que parece, essa instabilidade tem de ser repetidamente reinventada. Os textos de Derrida, as análises de de Man, os poemas de Ponge seriam exemplos da reinvenção constante da instabilidade. A ironia é que a repetição da desconstrução sugere um maquinismo da desconstrução, de modo que, ao final, a desconstrução só poderia almejar uma fuga do maquinismo que fosse parasitária ao maquinismo. Ao desestabilizar, ao desconstruir máquinas textuais, a desconstrução se faz máquina – e tem de voltar a se desconstruir, voltando, é claro, a se remaquinizar. Derrida seria, em última instância, um engenheiro, mas um que desconstrói. Seu pensamento seria a engenharia da diferænça; Derrida estaria – em refinado estilo – a serviço das máquinas. Nós, derridianos, seriamos os Circonfissão é um dos dois livros que compõem Geoffrey Bennington & Jacques Derrida, Jacques Derrida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996. Publicado na França em 1991. 71 Derridabase é o outro livro que compõe Jacques Derrida. 72 Circonfissão, sendo um livro onde Derrida fala extensamente sobre a sua mãe doente e os cuidados para com ela, é ironicamente escrito como se fosse uma footnote, tal como se fosse um texto edipiano. Sobre a relação entre Édipo e footnote, ver J. Derrida, Papier Machine, Galilée, 2001, p. 56-57.

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peões no canteiro de desconstrução desse engenheiro, no máximo, seus mestres de obra. Isso é que, de certa forma, me deixa constrangido. Se me interessei por Derrida, é porque ele me parecia aguçar meu senso crítico, ajudar-me a não ficar estanque em idées reçues. Porém, o que poderia fazer, se assumisse ser derridiano, senão receber idéias já preconcebidas? E como resistir? Afinal, antes um bom peão de obra que um engenheiro desempregado – e pretensioso. Seja como for, é necessário estar ocupado, ainda que não se esteja na roda-viva do jet set internacional da pesquisa, há que fazer por merecer convites, cada um de nós tem de estar, é o que nos disse Bourdieu, “ocupado, envolvido com metas” para “ser arrancado da solidão ou da insignificância”, enfim, “da depressão”. É por isso que temos de publicar livros e de irmos a simpósios. Senão fizermos isso em escala suficiente, se não formos maquininhas produtivas, se não nos deixarmos constranger o suficiente para mantermos o crescente ritmo industrial de itens curriculares, o que nos espera, tal como nos indica ominosamente Bourdieu, é a depressão. Mas não se desesperem, há, como já disse, a fluoxetina. O que se passa é que os medicamentos nos podem fornecer uma metáfora que nos ajudaria a recolocar a questão que estive discutindo. Não é uma metáfora sutil, ao gosto de de Man, mas é porque os problemas, quando vêm para o campo da medicina, ficam gritantes: as pessoas sofrem e morrem. Porém, diferentemente de nós – operários da pesquisa –, as pessoas com aids felizmente não têm se mostrado dispostas a sofrer em silêncio: o conformismo com o status quo da produção intelectual farmacológica não é uma opção viável para elas. Assim, o governo brasileiro encontra-se pressionado a fornecer medicamentos de graça para todos os doentes, o que põe em pauta a questão da quebra de patentes. Os laboratórios alegam que fizeram pesquisas caríssimas e que têm de cobrar fortunas por cada medicamento, o que é condenar milhões e milhões a morrerem desassistidos. As multinacionais de medicamentos fazem as pesquisas na Europa e nos Estados Unidos, e exigem receber royalties. Há, porém, uma pesquisa que elas deixam para ser feita por aqui: a adaptação do medicamento às características próprias ao uso e comercialização no Brasil. Além disso, o que se passa é que o princípio ativo pode ser uma substância instável, algo que é chamado de quiral, ou seja, a substância não permanece em uma forma constante (tal como se ela estivesse o tempo todo se desconstruindo), mas está sempre variando de acordo com diversas circunstâncias. Ao copiar ou reproduzir moléculas ativas dos remédios contra a aids no Brasil, verificou-se que muitas têm atividade quiral, o que tornou

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necessário fazer, aqui no Brasil, algumas pesquisas adicionais para estabilizálos. O que se passa é que algumas moléculas podem assumir duas formas: uma dextrógira e outra levógira; uma alternância equivalente à simetria entre a mão direita e a esquerda. Em alguns compostos, as moléculas não ficam estáveis em uma ou em outra forma, mas se apresentam como uma mistura das duas. O problema, então, surge quando cada uma das formas tem efeitos diversos. Assim, a configuração dextrógira da talidomida tem efeito sedativo enquanto sua configuração levógira é teratogênica; o etambutol dextrógero causa cegueira enquanto o levógiro é tuberculostático; e a fenilanina dextrógira é doce enquanto a levógira é amarga73. Em outras palavras, a quiralidade de um phármakon pode fazer com que ele seja um remédio ou um veneno. No caso da aids, o que se espera é que as substâncias sintetizadas sejam benéficas para a saúde e não maléficas ou ineficazes. Ainda que tendo sua importância, a estabilização dos quirais seria apenas uma fração da pesquisa do medicamento a ser produzido. O que significa que teríamos de pagar o quanto os laboratórios internacionais estabelecessem pelas substâncias, e também pelo processo – caso eles mesmos o desenvolvam – de estabilizá-los. Porém, o que se tem feito no Brasil, em Far Manguinhos, é retroproduzir essas substância74. O que se passa é que a patente não é relativa apenas ao princípio ativo, mas ao caminho para sintetizá-lo (a chamada rota sintética). Se se descobre um outro caminho, então se pode sintetizar a substâncias sem ter de pagar royalties. Quando se consegue ter uma tecnologia de síntese, a conversa com os laboratórios passa a ser outra, já que, então, ou eles vendem o medicamento mais barato, ou Far Manguinhos libera força o licenciamento da patente para a síntese da substância e produção do medicamento. Em vista de tais argumentos, os laboratórios têm oferecido os medicamentos com generosos descontos. Uma outra luta também é exatamente mudar a legislação sobre as patentes, em especial, sobre as patentes de medicamentos75.

73 Cf. J. ª Z. Bermudez &P. Barragat, “Medicamentos Quirais: da dimensão química à discussão política’, in: Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 12 (1); jan.-mar. 1996, p. 47-51. 74 Uma apresentação mais detalhada e melhor fundamentada da experiência de síntese de medicamentos anti-aids pode ser encontrada em M. Cassier & M. Correa, ‘Patents, Innovation and Public Health: Brazilian Public-Sector Laboratories’ experience in Copying AIDS Drugs’, in: J.-P. Moatti et al., Economics of AIDS and Acess to HIV/AIDS Care in Developing Countries. Issues and Challenges, Paris, ANRS, 2003, p. 89-108. 75 No Brasil, de 1945 a 1996 os medicamentos eram considerados bens públicos. Foi uma invenção jurídica, o TRIPS, que permitiu a patente de produtos farmacêuticos. Sobre as conseqüências disso cf. Cassier & Correa, loc. cit.

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A minha metáfora é bem óbvia: Derrida, num circuito internacional de pesquisa, desenvolveu o princípio ativo desconstrução, agora nosso trabalho é estabilizar esse quiral para melhor divulgá-lo por aqui. Tal como as sucursais dos laboratórios internacionais, nós fazemos os últimos estágios da pesquisa e disponibilizamos, sob a logomarca Derrida, os produtos desconstrutivistas para universitários e consumidores culturais. Em outras palavras, somos uma franchising do logo Derrida – e até que temos nosso lucro e nossa fração de fama e energia. Um problema ainda é que as nossas pesquisas podem vir a estabilizar a instabilidade dos quirais derridianos. O que teríamos, então, de fazer – sempre ainda seguindo a analogia – seria algo como inventar outros caminhos de síntese para atingir os “mesmos” quirais ou outros ainda mais eficazes, forçando a quebra de patente da invenção desconstrutiva76. De certo modo, desconstruir, enquanto desconstruir é inventar, vai junto com quebrar a patente, quebrar o regime de patentes, ou mesmo abolir os processos jurídicos de proteção a patentes. De fato, Derrida em ‘Invention de l’autre’ aborda a questão das patentes e reconhece o caráter incontornavelmente jurídico da compreensão usual de invenção. Por um lado, ele indica que também há inventividade em formular leis, mas, por outro, ele sugere que um novo conceito de invenção iria além desse envolvimento essencial da invenção com o Direito. Porém, enquanto a capacidade inventiva científica se reveste com uma truculenta blindagem jurídica e tem como conseqüência conspícua a morte por desassistência de milhares de doentes com aids, ou seja, enquanto a produção desigual de ciência e tecnologia busca se legitimar em leis internacionais que visam manter o controle do saber na área de produção de medicamentos com laboratórios europeus e americanos a despeito de causar morte e sofrimento em populações inteiras, enquanto movimentos sociais organizados reagindo aos descalabros causados por um capitalismo ganancioso que busca se camuflar em um regime jurídico genocida forçam o governo a investir – e o governo brasileiro tem sido levado a isso – em produção nacional de saber farmacológico, nas áreas humanas essa mesma assimetria na produção do saber, se é que aí ela não é até maior, não é percebida como um problema; aqui a dependência, sobretudo a dependência direta a um grande scholar europeu ou Nas ciências humanas, porém, as idéias não formariam apenas quirais dextrógiros e levógiros, isto é, quirais de direita e de esquerda, mas – sobretudo se considerarmos a complexidade histórica do que seria direita ou esquerda na sociedade – os quirais assumiriam configurações muito mais diversas e plurais com efeitos que podem ser instigantes e renovadores, reacionários e cruentos, ou mesmo largamente ineficazes e desmobilizadores.

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anglo-saxão, no caso a Derrida em pessoa, é tida como virtude (é o que chamam de colaboração internacional). Há na produção do saber crítico a reprodução das mesmas desigualdades que há na produção econômica e tecnocientífica global. Mas tudo se passa como se o saber crítico fosse uma dádiva dos ricos para nós. O pensamento crítico que consumimos ou que reproduzimos – tal como uma reprodução à la franchising – é um insumo intelectual do qual, ao final, também nos são cobrados royalties, se nem tanto em dinheiro, ao menos em veneração e submissão intelectual. Tudo se passa como se as idéias em áreas humanas fossem livres dos constrangimentos da produção desigual de riquezas e saberes. Assim, o pensamento de Derrida seria uma invenção errática, uma tirada genial individual (a coup de génie individuel) e não precisaríamos questionar os caminhos tortuosos que, ao condicionarem sua produção, divulgação e recepção, contribuem para realimentar ou reenergizar esse mesmo sistema gerador de desigualdades a partir do qual o jet set desconstrucionista e seus textos maravilhosos foram possibilitados, enfim, esse mesmo sistema a partir do qual a elite crítica (ainda que ela, até certo ponto, até critique seu próprio elitismo), ao produzir, – maquinalmente? – reproduz.

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O Prazer do Autor∗ ______________________________

Não é necessária nenhuma sutileza supostamente desconstrutivista para questionar o paradoxo de estar escrevendo sobre um autor aclamado como autoricida, sobretudo quando ele já está morto e só sobrevive como autor. É evidente que não estamos homenageando nem um cadáver decomposto, nem uma urna de cinzas, mas um autor ou uma obra assinalada com o nome de um autor. Estamos participando de um “livro-homenagem” a Barthes. Estamos escrevendo à sombra do nome de Barthes. Eu até que estou mais vivo que Barthes, mas o nome dele é mais vivo que o meu. Participando deste livro, nós estamos pegando carona na fama de Barthes. É o grande nome de Barthes que me empresta um pouco de fama para que eu possa me tornar autor no espaço deste livro: em vez de autoricida, Barthes é autorígeno. No espaço deste livro, somos vários os rebentos autorais de Barthes. Inegavelmente, temos todos nós nossos méritos acadêmicos, foi pelo nosso currículo que fomos convidados a escrever sobre Barthes. Mas Barthes é só o pretexto do momento. Já homenageei outros autores. Já critiquei vários deles também – e a crítica, afinal, é também uma maneira de pegar carona na fama alheia. Mas a fama de Barthes não é também em muito roubada da fama de outros? De fato, a fama é sempre de um outro. Sempre se rouba um ladrão. Barthes foi perdoado e mesmo glorificado em seus numerosos saques. Ao longo deste livro, com nossos ensaios, somos ladrões muito menos ousados. Viemos aqui para homenagear Barthes e saímos de barriga cheia e com os talheres nos bolsos. Tiramos proveitos mesquinhos de nossa homenagem ao famigerado autoricida. Que proveito? Quem não sabe? Todo o mundo sabe que os professores das pós-graduações vivem ávidos atrás de itens para pontuar sua produtividade. Todos nós estamos atentos para que nosso nome não seja ∗

Este texto foi escrito originalmente para o livro-homenagem de Paula Glenadel e Vera Casa Nova (orgs.), Viver com Barthes, a ser publicado em 2005.

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omitido, para que possamos pôr todos os itens de nossa produtividade no currículo Lattes77. Ao contrário do que dizia Foucault, que no século XVIII a ciência tornou-se anônima78, o nome em um paper vale tanto para o autor quanto para o próximo autor que, fundamentando sua pesquisa, o cita. E há autores científicos que combinam entre si citarem-se reciprocamente (e chegam a assinar contratos com essa finalidade), aumentando os respectivos índices ISI. O currículo Lattes é apenas um dos tantos dispositivos que asseguram a nãoanonimidade da ciência, ou seja, um dos dispositivos que produzem autores, avaliando-os e valorizando-os79. Contudo, é claro que não vou admitir que sejamos tão venais assim. Não vou negar que há um prazer em escrever. Até que gosto de escrever a esmo textos que nunca vou publicar. Mas quando falo aqui em escrever, no prazer em escrever, não posso deixar de referir-me ao prazer de ser publicado, ao prazer de ser autor e, no caso de Barthes, ao prazer de ser celebridade intelectual80. De Não está no meu currículo, mas, no presente texto, é pertinente mencionar que assisti a várias aulas de Barthes no Collège de France, em 1980. Sou, portanto, seu aluno; quem sabe, até seu discípulo. Enfim, isso não está em meu currículo, mas está em minha vida. Ainda me lembro com clareza que em uma das aulas o sistema de som repetidamente falhava, a aula era interrompida, tentavam fazer funcionar, voltava a falhar, até que o próprio Barthes foi ver qual era o problema; quando ele voltou, disse ironicamente algo como: “Estamos no Collège de France, uma instituição que reúne muitos dos melhores cientistas do mundo, mas ninguém sabe pôr o sistema de som para funcionar”. 78 “No século XVII ou no XVIII, produziu-se um quiasma; começou-se a receber os discursos científicos por si mesmos, no anonimato de uma verdade estabelecida ou constantemente demonstrável; é a sua pertença a um conjunto sistemático que lhes confere garantias e não a referência ao indivíduo que os produziu. Apaga-se a função autor, o nome do inventor serve para pouco mais do que para batizar um teorema, uma proposição, um efeito notável, uma propriedade, um corpo, um conjunto de elementos, uma síndrome patológica.” Foucault O que é um autor? Editora Passagens, 1992, p. 49. De fato, os dispositivos de validação do enunciado acolhido como científico levaram a uma diminuição da importância dada ao nome do autor, mas é abusivo dizer que se chegou a uma anonimidade. 79 O currículo Lattes é apenas uma nova versão, de certo modo potencializada, desse gênero narrativo que é o do Curriculum Vitae. É evidente que antes da plataforma Lattes do CNPq por várias vezes apresentamos nossos currículos, por exemplo, para aceitação no Mestrado e Doutorado, inscrição em concurso de professor, proposta de convênio de cooperação internacional etc. Provavelmente, Barthes também teve de redigir e apresentar algumas vezes na vida seu Curriculum Vitae. 80 Barthes busca distinguir plaisir (prazer) e jouissance (‘fruição’, como Guinsburg preferiu traduzir, ou ‘gozo’, como é a tradução usual em textos de psicanálise), mas suas repetidas tentativas de manter essa distinção sempre o levam a admitir que ele sempre retorna a uma ambigüidade na qual “O ‘prazer’ é, portanto, aqui (e sem poder prevenir), ora extensivo à fruição, ora a ela oposto.”Barthes, O Prazer do Texto, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1994, p. 28 – tradução de J. Guinsburg). A mesma contradição que Barthes não conseguiu expurgar da palavra ‘prazer’ deixo valer neste meu texto. 77

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onde vem esse prazer em escrever, no caso, esse prazer em ser autor? De onde vem o desejo de ter esse prazer de autor? Por volta dos anos 70, muito se discutiu sobre: autor/autoridade, desejo-saciável/desejo-falta e prazer/gozo. Nesse contexto, também muito se criticou a narrativa, isto é, a narrativa estruturada com início, meio e fim, como sendo uma forma de controle do desejo e do prazer81. De certo modo, o autor – que foi tão repetidamente assassinado e ressuscitado – seria o resultado de uma narrativa tradicional estabelecendo uma biografia ou autobiografia cuja história teria princípio, meio e fim, e que seria, assim, um dispositivo de segunda instância controlando, ao ditar qual seria a intenção desse autor ao escrevê-los, as narrativas dos textos com seu nome. O autor seria a autoridade controladora do acontecimento literário levada à segunda potência. A ansiedade em banir o autor estaria em grande medida ligada à ansiedade em banir o controle narrativo sobre o texto literário. O que levava essa ansiedade ao paroxismo era a convicção de que toda a narrativa é repressiva. Tendencialmente, no entanto, um texto sem autor seria uma narrativa sem narração. Das cinzas do autor só surgiriam narrativas fragmentárias82. Porém, no texto de Barthes “A morte do autor”, há duas questões imbricadas. Uma é a questão de que a figura do autor sempre foi ilusória; outra é a de que, compreendido o caráter ilusório e pernicioso do autor, se deveria escrever de modo que o texto trouxesse nele a impossibilitação de um controle autoral. Ou seja, a ilusão autoral seria a realidade de um dispositivo de poder, digamos, o poder autoral, que dirigiria a leitura e reduziria o leitor à docilidade e à incapacidade de ver que o rei está nu, que o autor é uma tirânica miragem Sobre a crítica à narrativa tida como repressiva, em especial nos anos 70, ver Jay Clayton The Pleasures of Babel, Oxford University Press, 1993, capítulo 2: “The Story of Deconstruction”. 82 Na verdade, o programa de Barthes, em O Prazer do Texto, é por vezes ainda mais radical. Para além de fragmentar a narrativa, dever-se-ia seguir um caminho de desmontagem da língua que iria até um despedaçamento do léxico e da sintaxe: “Em seguida, o texto destrói até o fim, até a contradição, sua própria categoria discursiva, sua referência sociolingüística (seu “gênero”): é ‘cômico que não faz rir’, a ironia que não se sujeita, a jubilação sem alma, sem mística (Sarduy), a citação sem aspas. Por fim, o texto pode, se tiver gana, investir contra as estruturas canônicas da própria língua (Sollers): o léxico (neologismos exuberantes, palavras-gavetas, transliterações), a sintaxe (acaba a célula lógica, acaba a frase. Trata-se, por transmutação (e não mais somente por transformação), de fazer surgir um novo estado filosofal da matéria linguareira; esse estado inaudito, esse metal incandescente, fora de origem e fora de comunicação, é então coisa de língua e não uma linguagem...” – p. 42-43. O interessante é que, apesar de tanta radicalidade pulverizadora, dois nomes próprios, ou seja, dois autores: Sarduy e Sollers, sobressaem-se. É como se esses autores fossem como fênices ressurgindo das cinzas. 81

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hermenêutica. Assim, essa dissipação da ilusão autoral seria também uma devolução do, digamos assim, poder hermenêutico para o leitor. Seria um tipo de revolução onde o autor é decapitado e os leitores acedem ao poder. Nas palavras de Barthes nesse texto de 1968: ...um texto é feito de escritas (écritures) múltiplas, provenientes de diversas culturas e que, umas com as outras, entram em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é, tal como se disse até o presente, o autor, é o leitor...83 Essa análise, ao pôr os leitores como os unificadores do texto, indevidamente assume tacitamente que os leitores acabarão por se comportarem como dóceis discípulos de Barthes (e, por exemplo, viriam a desprezar as biografias e as narrativas não-fragmentárias e sem neologismos ou sintaxe alterada)84 enquanto, ao contrário, os leitores (no nosso caso, por

Barthes, ‘La mort de l’auteur’. A tradução é minha. Barthes afirma que “a unidade de um texto não está em sua origem, mas em sua destinação”, mas ele postula que essa destinação, ou seja, o leitor, seria uma instância tão destituída – ou liberta – de um self quanto ele está propondo seja o autor: “mas essa destinação não pode mais ser pessoal: o leitor é um homem [sic] sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é somente alguém que mantém reunido num mesmo campo todos os traços com os quais o escrito é constituído”. Ou seja, não se trata apenas da morte do autor, mas também da morte do leitor; e o problema está que esta “morte” (o melhor talvez, se o que se quiser for passar do plano hermenêutico para o do ativismo político, fosse falar em “enfraquecimento” do autor ou da autoridade do autor), a princípio uma proposta de análise textual favorável ao modernismo erudito e experimentalista, se tornar uma proposta política em que haveria “la naissance du lecteur” (“o nascimento do leitor” – como é próprio da época de Barthes, “o leitor” é sempre referido no masculino) em oposição à morte do autor, pois esse leitor que nasce seria um leitor cosmopolita, portador e praticante de uma cultura universal canonizada pelo modernismo, enfim um leitor que renunciaria às suas especificidades sociais e pessoais, do mesmo modo que os escritores teriam renunciado, ou seja, os leitores teriam de ser escritores, teriam de estar tão “mortos” quanto os escritores: o “nascimento do leitor” seria a assunção na vida social da arte modernista. Em contraste a isso – e é para reforçar esse contraste que recorro ao livro de Clayton com seu enfoque na literatura e no multiculturalismo norte-americanos – os leitores e leitoras caminharam na direção de se constituírem como grupos e redes políticas, passando a levar mais em conta o caráter político do ato de leitura (da escolha dos autores a serem lidos), de modo que houve uma valorização das narrativas com uma menor valorização do experimentalismo numa busca de reforçar identidades através de uma renovação do tecido narrativo que constituiu e altera identidades, bem como amplia e redime conflitos e sofrimentos, abrindo novas perspectivas de lutas e de associações entre grupos sociais. De fato, com o “enfraquecimento” do autor, nasceram, ou antes, “se fortaleceram” novos leitores e leitoras. Barthes estava certo ao problematizar essa 83

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exemplo, os nossos leitores CNPq e Capes exigindo que produzamos papers sob nosso nome, mas também o mercado editorial que continua apreciando as narrativas não fragmentárias), seguem reinventando e reforçando o autor. De certo modo, o exagero de Barthes está em estender um programa de análise textual – segundo o qual a dominância do autor sobre o texto deveria ser minimizada – em uma proposta de atuação política segundo a qual se deveria escrever apagando os rastros autorais. Assim, a proposta de Barthes é a de acabar não só com a propriedade privada dos meios de produção, mas também com a propriedade intelectual; o que, aliás, seria ainda hoje uma boa proposta: acabar, ou ao menos, liberalizar em muito, a propriedade intelectual dos livros, das músicas, dos medicamentos, dos softwares etc. Assim, é a estrutura jurídica da sociedade que é, ao final, o objeto tendencial, embora nunca mencionado, do mot d’ordre barthesiano sobre a morte do autor. Essa estrutura jurídica que nos leva a que cuidemos de definir o que é nossa autoria e o que foi uma ajuda de amigos ou uma orientação do dono da editora quanto a como adequar o livro ao público alvo. Os agradecimentos não são apenas um sinal de nossa sincera gratidão, mas um ato delimitando, inclusive juridicamente, quem é o detentor dos possíveis lucros do livro. No caso deste livro, no qual, suponho, um pré-requisito era o de sermos todos autores acadêmicos titulados, a estrutura jurídica é que assegurou e possibilitou os diplomas expedidos com os nossos nomes. Ou seja, não foi apenas o nome de Barthes, autor francês de prestígio internacional cujo renome é promovido por universidades e instituições de difusão da cultura francesa, que nos assegurou o espaço onde escrevemos, mas também a estrutura jurídica que nos equipou com nossos títulos. Assim, o autor literário não morreu. O grande autor literário, antes visto quase que como um príncipe da cultura, é que se tornou relativamente menos relevante numa sociedade extensamente midiatizada. De fato, a carreira das celebridades intelectuais muito se alterou ao longo do século XX. A figura do escritor célebre foi reorganizada em uma sociedade onde, por um lado, a mídia de imagem e, por outro, novos fatores como o multiculturalismo, a internet ou a tendência; contudo, quis submetê-la ao projeto modernista propondo uma quase caricata universalização messiânica do experimentalismo em literatura. Evidentemente, nem o experimentalismo do romance francês dos anos 70 ficou infecundo, nem a questão do multiculturalismo na França se dá do mesmo modo que nos Estados Unidos, mas não posso ir a detalhes nesse breve artigo: meus objetivos são apenas indicar o caráter programático da análise de Barthes e, como farei a seguir, ressaltar a importância dos dispositivos jurídicos na constituição tanto dos autores/as quanto dos leitores/as.

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globalização geraram novos conflitos e abriram novas possibilidades de resistência e transformação: um cenário global em que, por um lado, um autor, ainda que oriundo de um país central, é cada vez mais um autor entre outros, um nome em uma multidão, e em que, por outro, as biografias se tornam uma mercadoria por vezes extremamente rentável. A celebridade unânime tornou-se impossível na Babel multicultural, mundial ou local; contudo, uma celebridade intelectual literária pode ser comercializada na forma de biografias (heroizantes ou demonizantes; romanceadas ou supostamente históricas) e de filmes. O Ulisses – um livro, de fato, modernística e eruditamente babélico, mas não babélico no sentido sócio-cultural de multiculturalismo – já foi reconhecido nos próprios anos 20 como uma obra-prima (escrita, aliás, por um autor então já lendário). O mesmo ocorreu, nessa mesma época, com À la Recherche du Temps Perdu. Mas como nomear um seleto elenco de obras-primas na última década?85 Não há nem autores francamente unânimes, representantes de uma alta cultura cujo exclusivismo hoje seria visto mais como criticável que como meritório, nem há obras literárias excelsas vistas como desenlace heróico de um cânon ocidental consagrado86. Clayton considera que o período atual é de grande produtividade em literatura e que uma das características desta época é o desaparecimento da noção romântica de masterpiece. Embora ele não seja claro sobre quais sejam seus critérios de qualidade, ele afirma que há livros que são melhores e outros piores, mas que a força desses livros, ao final, não estaria em sua excelência e sim em sua participação em extensas redes sociais e na capacidade de atrair, manter e formar comunidades de leitores: op. cit, p. 30-31. 86 “The inability of any writer or style to hold sway is a defining characteristic of the times, the result (I have argued) of an increasingly multicultural society, postindustrial economy, and interdisciplinary conception of writing. It is certainly not the result of some decline in the imaginative energy of the nation’s culture, or of the lack of dedication and talent of writers. If critics of the literary canon have helped readers to see that the very concept of the “masterpiece” is socially constructed, then they need to extend that insight and recognize that today’s society is constructing a literature without masterpieces. This does not mean that rich cultural experiences are unavailable. On the contrary, it means that the kinds of experience one would traditionally call “literary’ are more diverse and challenging than ever before.” op. cit,. p. 148. Clayton refere-se aqui à literatura norte-americana dos anos 80/90. Deixo em aberto o quanto dessa experiência se aplica ao Brasil, lembrando apenas que o mercado editorial brasileiro é parte do mercado editorial norte-americano. Também não seria apropriado fazer conjecturas de como Barthes se posicionaria frente ao multiculturalismo que Clayton tanto aprecia. Barthes, no Prazer do Texto, buscava superar o autor através de uma radicalização do projeto modernista experimentalista, mas eu evitaria entender que suas deprecações contra a cultura de massas seriam uma rejeição do multiculturalismo que Clayton enaltece; afinal, poderíamos também pensar que a valorização bakthiniana da carnavalização também viesse a levar Barthes a admirar isso que Clayton chama de os prazeres de Babel. Seja como for, estou no presente texto restringindo meus comentários às obras de Barthes até agora

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Há, nas últimas décadas, uma riqueza em livros e narrativas constituindo linhagens, ou, se se quiser, “cânones” heterogêneos; cânones ora complementares ora francamente conflitantes. Em nossas casas, por exemplo, há vários “cânones” em competição. Tenho um cânon para o meu lazer em viagens de fim de semana, um cânon para me assegurar respeitabilidade acadêmica, um cânon que me instiga a escrever romances, um cânon que supostamente me amplia a compreensão da política mundial, um cânon de livro de xadrez... Há livros nesses cânones de cujos autores dificilmente lembro o nome; porém, há também livros de autores dos quais já estudei em detalhe a biografia. Ou seja, segue havendo autores, o que mudou é a forma como a autoridade dos autores é produzida socialmente, bem como mudou o papel e a relevância da celebridade intelectual literária ou acadêmica. Na verdade, não se reconhece mais a sublime primazia do cânon romanesco ou poético frente aos outros cânones. Por vezes, citar autores de romances policiais é socialmente mais palatável que os do velho cânon. Sem mencionar que no geral das conversas sociais são os cânones filmográficos os mais correntes. Enfim, tanto o autor literário, ainda que combalido em sua monumentalidade, quanto o autor científico, ainda que encomiado em índices cientométricos, sobrevivem. Também sobrevivem tanto o prazer em escrever um texto cujos destinos o signatário não controla quanto o prazer em ser celebridade intelectual. O grande autor não é mais o mesmo, mas o autor não morreu; o debate sobre o papel do autor e das biografias e autobiografias prossegue fecundo87. Do mesmo modo, a questão da produção jurídica do autor – um tema ao meu ver altamente relevante e central, mas que foi negligenciado por Barthes e Foucault – tem recebido recentemente atenção crescente. O “autor” tem sido questionado tanto no Law in Literature quanto no Law as Literature: programas acadêmicos de pesquisa que discutem a relação entre lei (argumentação jurídica e julgamento) e narrativas88.

mencionadas; sem dúvida, obras mais tardias de Barthes trazem novas perspectivas que permitiriam desenvolver de um modo mais aprofundado e interessante os temas mencionados nesta nota e neste texto e geral. 87 Para mencionar somente dois títulos: Sean Burke, The Death and Return of the Author. Criticism and Subjectivity in Barthes, Foucault and Derrida. Edinburgh University Preess, 1998 (2nd edition); Mary Rhiel & David Suchoff, The Seductions of Biographe, New York, Routledge, 1996. 88 Ver Gary Minda, Postmodern Legal Movements. Law and Jurisprudence at Century’s End, New York, New York University Oress, 1995, em especial, capítulo 8, “Law and Literature”. O livro de Richard Posner, Law and Literature, Harvard University Press, 1998 tem um capítulo exatamente sobre a questão do autor. O livro de Pierre Shag, The Enchantment of Reason, Duke University Press, 1998, discute a

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Barthes, a seu modo e no seu tempo, em textos temperados com ousadias e contradições, discutiu alguns impasses da figura do autor literário. Agora a discussão continua por outros campos, no caso, também no campo do Direito. Assim, enquanto o aparato jurídico continua constituindo pessoas com nome próprio, diplomas, RGs, CPFs, passaportes e tudo o mais, enquanto o currículo Lattes conta para eu pedir bolsas e idas a congressos, meu status de autor sobrevive; sobrevive no modo contraditório tanto de uma persona burocrática desempenhando uma atribuição profissional com o cumprimento de uma cota de produtividade quanto de um multifacético agenciador de vivências e posicionamentos num perigo constante de não estar senão incorrendo em riscos ilusórios e me deleitando com prazeres compensatórios. Assim, deixo ao encargo do leitor ou leitora (como se lê na citação acima, o leitor é a única instância que, segundo Barthes, pode unificar o texto) julgar se, além do meu nome de autor, ao escrever este texto, sobreviveu ainda algum prazer. Quem sabe, um prazer em também ser autor.

questão da concepção jurídica do self. Clayton, op. cit., p. 12-16, também discute o tema lei e narrativa.

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Nada é sem razão Impessoalidade e Eurocentrismo na História do Ser ∗ ______________________________

O Ser e Tempo é um livro com uma narrativa basicamente impessoal. Em geral, Heidegger usa nele a primeira pessoa do plural, e o faz de duas maneiras. Assim, logo na primeira frase, temos ...unsere Zeit... o que se refere a um “nós a humanidade”, no caso: “o período de tempo no qual todos nós humanos estamos vivendo”; e, na página seguinte, lemos: Wir wollen daher die Diskussion der Vorurteile nur so weit führen, dass..., onde o nós é a voz do narrador científico que está indicando como o texto está organizado e o que será tratado em cada uma das questões que são enumeradas e apresentadas logo a seguir. Trata-se, portanto, de um narrador sem praticamente nenhuma densidade autobiográfica. Evidentemente, uma vez que um livro nunca é um contexto hermeticamente fechado sobre si mesmo, um narrador nunca consegue expurgar todos os elementos autobiográficos implícitos. Primeiramente, o que é óbvio, há o nome do autor (ou o pseudônimo, o que sempre é uma pista) estampado na capa, depois há a língua, no caso, trata-se de um narrador que domina a língua alemã. Além disso, há o tema e as leituras empreendidas, que tornam claro que se trata de um professor de filosofia. A forma de desenvolvimento da temática sugere que ela tenha sido apresentada anteriormente em preleções. Não esquecendo ainda demais resquícios autobiográficos tais como a data e o lugar de conclusão do texto, bem como sua dedicatória (e a conhecida nota da página 38, onde Heidegger se refere a si mesmo como der Verf., isto é, como “o autor”). Muito da biografia de Heidegger poderia ser reconstituída apenas com uma análise do livro. Apesar da linguagem de tratado alemão de filosofia, há muito de autobiográfico nessa obra, inclusive ∗

Uma primeira versão deste texto foi lida no I Fórum de Filosofia Contemporânea, maio 2003, na PUC-Rio. Foi publicado posteriormente na revista Ethica, Rio de Janeiro, Editora Gama Filho, vol. 9, n. 1 e 2, 2002, p.147-156.

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a pretensão de que ela seja uma grande obra, quem sabe a culminância de algo que seria a tradição filosófica ocidental, a pretensão até mesmo de estar salvando essa tradição de um longo descaminho. Embora o livro não declare diretamente, há na narrativa dele o tom de certeza de ele se tratar de um grande evento na história, o que significa que o narrador, ou seja, que Heidegger, já se considerava um grandioso personagem histórico, mais um nome na solene Galerie der Heroen der denkenden Vernunft mencionada por Hegel89. Contudo, a estratégia narrativa geral do Ser e Tempo me parece ser a de fazer a sua voz narrativa soar como desnudada de toda e qualquer dimensão autobiográfica, como fosse uma pura voz evocativa, algo como uma versão filosófica do narrador onisciente do romance do século XIX. Além da narrativa impessoal, uma outra forma de narrativa comum em Heidegger é a narrativa na primeira pessoa do plural. Um bom exemplo disso é a conferência Der Satz vom Grund, que está incluída num livro homônimo baseado numa série de doze preleções lidas em 1955/56 em Freiburg90. O texto do livro é conduzido por uma voz na primeira pessoa do plural que é, porém, comparando-se com o Ser e Tempo, menos impessoal. Isso se deve ao texto estar dividido em doze horas, Stunden, o que nos dá um pouco a sensação de estar assistindo Heidegger na sala de aula; em conseqüência disso, a primeira pessoa do plural chega mesmo a nos soar como uma primeira pessoa do singular. Considerando ainda que a linguagem não é tão pesada como a de um tratado, ainda que o tom seja ainda algo distante do de um bate-papo entre amigos – de um Gerede, há o tom conversacional. Heidegger nos fala. Ele está ali como que pensando em voz alta. Ele vai mostrando como seu pensamento se move em idas e vindas. Como que tateante, ele vai desbravando o caminho e vai nos chamando a segui-lo. Estaremos nós a altura de pensar junto com ele, de seguir seus passos, de acompanhar palavra por palavra seu pensamento a ponto de realizar com ele a experiência do pensar? O texto, apesar de algumas dificuldades próprias ao jargão filosófico, é em muito um texto iniciático. Heidegger está nos ensinando a pensar. Ele pensa, ali de pé à nossa frente, e nós, maravilhados, o seguimos, esforçando-nos para merecer atingir as alturas do pensamento. Tentamos, com a ajuda dele, passarmos de impensantes a pensadores do impensado. Uma vez que eu não tenho aqui doze horas, vou me apressar apresentando uma rápida leitura da conferência. Infelizmente, devido à cf. Vorlesung über die Geschichte der Philosophie, vol. 1, Frankfurt, Suhrkamp, 1971, p. 20. 90 M. Heidegger, Der Satz vom Grund, Verlag Günter Neske, 1978 [1957]

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brevidade, não vou lhes poder passar a sensação grandiosa de calma, de solene resistência à pressa tecnológica, que Heidegger procura criar em seu trajeto pensante. A conferência começa com Heidegger citando a frase de Leibniz Nihil est sine ratione, Nichts ist ohne Grund, Nada é sem razão. Depois de algumas explicações preliminares, ele vai nos dizer que esta frase precisou, na história do pensamento Ocidental (in der Geschichte des abendländischen Denkens – p.192), de 2.300 anos para emergir numa formulação que fosse reconhecida como válida. Ele se refere a essa hibernação como Inkubationszeit, tempo de incubação. Ou seja, ele usa um termo médico que se refere ao período de latência de uma doença. O princípio de razão é, portanto, o sintoma de uma doença. O que se apreende desses parágrafos iniciais é que Heidegger está argumentando que a formulação ‘Nada é sem razão’ faz parte de um destino do Ocidente, mas que é também parte de uma doença. Assim, ao ele nos conduzir na compreensão disto que Leibniz chama de principium magnum et nobilissimum, ao ele nos ensinar a admirar a grandeza de Leibniz que, como um médico hipocrático, soube pacientemente deixar essa doença chegar ao seu paroxismo na forma desse princípio grandioso; Heidegger, então, nos desvela a miséria que tal princípio trouxe com ele. A miséria desse princípio grandioso é exatamente a calculabilidade irrefreada da sociedade tecnológica. Mais à frente, Heidegger chamará Goethe para nos medicar com poemas na tentativa de nos restabelecer no pensamento meditativo. Na visão de Heidegger, o que mais caracteriza a época em que ele está vivendo é a energia atômica. Curiosamente, para quem se quer tão pessimista com a miséria do mundo, ele até que é bastante otimista quanto às possibilidades do uso da energia atômica. Embora ele cite um trecho de um livro, cuja introdução foi escrita por um prêmio Nobel da física, exatamente para indicar o quanto os cientistas são impensantes e acríticos acerca da aridez do mundo omnitecnológico, ele parece aceitar a idéia de que em breve se estaria vivendo pelo mundo afora por meio da energia atômica. Assim, ele não cogita limites para o poder do átomo. Ele também não teme se a energia atômica será usada pacificamente ou em guerras, curiosamente ele considera isso uma questão de segunda ordem (Fragen zweiten Ranges – p. 199). Ele não parece ver grande diferença entre uma bomba atômica explodir ou não. De fato, uma explosão atômica não é algo sutil, mas o que temos de considerar é que Heidegger se põe em seu grandioso, digamos, nobilíssimo modo de pensar, ou seja, se põe acima de tropeços menores da história. Ele pensa grande: para ele a história do mundo é essencialmente uma história que vai da Grécia Antiga até a

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Europa do Século XX, até uma Europa, onde o peso dos pensadores alemãs seria o maior. A calculabilidade estava no destino trágico-heróico europeu. Os europeus seriam essencialmente os pioneiros e artífices dessa omnivoraz tecnologia. Os europeus seriam os campeões da ciência. E os europeus – e aí entra Heidegger – seriam também os campeões da crítica à ciência91. Os europeus seriam tanto os mentores da industrialização quanto os executores ou mandantes dos assassinatos em massa – na Europa ou nas colônias –, bem como das explosões atômicas. Por mais superiores que os Estados Unidos e a União Soviética fossem na época dessa conferência, para Heidegger, do ponto de vista da história do Ser, esses países não passariam de sequazes, ainda que por vezes muito mais radicais, dos europeus. Os europeus seriam os responsáveis pela desgraça tecnológica, portanto caberia a eles, e em especial aos alemães, indicar a heróica possibilidade de um novo começo. Assim, o que Heidegger vê é que a tecnologia está dominando o mundo, está calculando tudo, reduzindo nosso pensamento ao automatismo do cálculo, embotando nossa capacidade de ouvir o Ser. Incidentes como Hiroxima ou Auschwitz seriam questões de segunda ordem. Também, é claro, é uma questão de segunda ordem para Heidegger o quanto ele pode estar, em sua rispidez meditativa, sendo violento em relação aos seus contemporâneos que perderam parentes e amigos nessas catástrofes. Reconheçamos, é certo, o que Heidegger está fazendo: ele pensa profunda e autenticamente, estando acima de vicissitudes menores. Afinal, Aristóteles, para Heidegger, não passara a ser menos grandioso com Nagasaki ou Treblinka (nem vou citar descalabros na África ou na América Latina, pois eles estão fora do trajeto incubatório heideggeriano; digamos que, nesse aspecto, Heidegger não difere muito da visão de mundo de Hegel em suas Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte), tampouco o Ser e Tempo teria passado a ser menos importante, menos marcante, depois da 2a Guerra Mundial, de modo que Heidegger, sinceramente, Este é um padrão que se vê com clareza, por exemplo, no livro de Conrad, Nostromo, onde os europeus (incluindo aqui um magnata americano do norte) são não só os mais ricos, os mais cultos e os donos das ideologias libertárias, mas também os donos das aventuras e dos sucessos humanitários; aos nativos de Costaguana (um país latino americano fictício) fica reservado praticamente apenas o trabalho sujo. Esse é de certo modo o esquema básico da argumentação heideggeriana nesta conferência. Há muitos exemplos desse tipo de procedimento: por vezes são ONGs financiadas por dinheiro americano que estão denunciando e promovendo manifestações contra algum descalabro promovido, direta ou indiretamente, pelo governo americano. Um exemplo recente desse autoconflito imperialista é atuação da Fundação Ford que, entre outras coisas, no Chile, após um cruento golpe apoiado pelos EUA, dava bolsas para intelectuais em desfavor com o regime estudarem em universidades americanas – cf. Le Monde Diplomatique, maio 2000. 91

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acredita na irrelevância destes contratempos. O que preocupa Heidegger é que o calcular, errechnen, está vencendo, talvez mesmo banindo da Terra, o meditar, besinnen. Assim, é urgente que vejamos com clareza a diferença entre o pensamento meramente calculante e o pensamento meditativo (den Unterschied zwischen dem bloss rechnenden Denken und dem besinnlichen Denken – p. 199). Na verdade, o objetivo principal da conferência é mostrar que o ‘Nada é sem razão’ permite basicamente duas leituras. Uma é a de que se deve prestar contas de tudo, se deve dar as razões para tudo, se deve calcular tudo; esta seria a leitura que enfatizaria ‘NADA é SEM razão’, ou seja, é a leitura que diz que, seja o que for que aconteça, temos de apresentar o cálculo que possibilitou que isso assim fosse: é o niilismo do cálculo. Porém, a outra leitura é a que enfatiza ‘Nada É sem RAZÃO’, ‘Nichts ist ohne Grund’, dizendo que o Ser (ist) é o fundamento (Grund), ou seja, é a leitura que nos deixa ouvir a consolação ou a solicitação do Ser (Zuspruch), cujo esquecimento é a essência da doença da calculabilidade inveterada. Contudo, Heidegger não deixa de ver com um certo otimismo essa calculabilidade extrema. A visão de Heidegger é a de que a tecnologia conseguiria crescentemente calcular a vida da sociedade, reduzindo as incertezas. Em conseqüência, essa calculabilidade buscaria banir a possibilidade da meditação. A meditação seria um tipo de incerteza, ou ao menos, de inconformismo com a grandeza das conquistas tecnológicas. A pior miséria a que a opulência tecnológica nos conduziria seria o automatismo calculante do pensamento nos submetendo a máquinas pensantes (Denkenmaschinen – p. 203), ou seja, nos pondo na dependência completa delas. Com a tecnologia, teríamos tudo, mas seríamos destituídos do que nos seria o mais próprio: a possibilidade de pensar, de escutar o Ser. Assim, Heidegger teme em especial o consumismo e a cultura de massas (p. 200). Ou seja, ele de certo modo segue a Hypodermic Needle Theory, isto é, a teoria segundo a qual as massas seriam de tal modo controladas pela mídia que tudo o que a mídia propusesse as convenceria com a mesma intensidade de uma droga injetada diretamente na veia. Heidegger vê, assim, a todos nós como basicamente dopados pelo consumismo e estimulados pela cultura americana. Não faríamos nada sem razão: nosso consumo se deveria não à nossa vontade mas ao marketing, tampouco pensaríamos, mas consumiríamos bens intelectuais. Embora Heidegger não fale em mídia neste texto, parece claro que a mídia está incluída em seus temores frente à tecnologia, ao consumismo e à Cultura Americana. Há, portanto, muito de datado na análise heideggeriana. Entre os malefícios da tecnologia ele não menciona nada que possa corresponder a

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preocupações tais como o aumento da fome no mundo, o apartheid social continental da África, a disseminação do terrorismo ou o surgimento de novas doenças. No otimismo sombrio de Heidegger, os perigos são sobretudo o consumismo e a cultura de massas. Sendo que, partindo de Heidegger, ele provavelmente temia eram os efeitos do consumo da cultura de massas nos grupos sociais que deveriam estar lendo o Ser e Tempo ou os poetas, principalmente os poetas alemãs do século XIX. Assim, é a Goethe que Heidegger recorre para nos fazer ouvir o apelo do Ser, apelo oculto por detrás da face onicalculante do princípio de razão. A poesia ou a arte da época de Heidegger não parecem dizer muito a ele. É como se tudo estivesse já contaminado por um estéril espírito consumista92. Seja como for, Heidegger vê a necessidade de dar um passo atrás (dann wir müssen den Schritt zurückmachen – p. 206), e ele dá, de fato, um belo de um grande passo indo até 1815, onde ele colhe inspiradoras passagens de Goethe. Chegando ao final da conferência, vemos que a voz em primeira pessoa do plural de Heidegger nos conduziu a um momento de decisão. Ele, deixandonos fazer a experiência da admiração pelos poderes da face calculante do princípio de razão, pretende com seus argumentos e citações de Goethe nos ter possibilitado libertarmo-nos do enfeitiçamento do pensamento calculante (behext durch das rechnende Denken – p. 211). Mas, ao finalizar seu texto, ele deixa em aberto qual será a resposta que afinal será dada a essa questão. Seria dessa resposta, dessa decisão, que dependeria no que a Terra se tornaria e no que a vida humana passaria a ser sobre a Terra (An ihrer Beantvortung entscheidet sich, was aus der Erde wird und was aus dem Dasein des Menschen auf dieser Erde – p. 211). Ou seja, tudo se passa como se fossem os filósofos e os poetas que fossem decidir ou que, ao menos, fossem influenciar fortemente nessa resposta. Tudo se passa como se o principal da história do mundo tivesse sido determinado pela herança greco-latina do Ocidente e como se agora fosse uma tarefa premente para uma certa elite pensante européia guiar-nos para darmos uma resposta satisfatória aos perigos. Evidentemente, não está em questão ouvir a voz dos tantos milhões pelo mundo afora que vêm sofrendo em função do crescimento tecnológico, quer sob o colonialismo dos séculos XIX e XX, quer sob o que agora chamam de globalização; para Heidegger, recolhido em suas meditações, o que é urgente é ouvir o Ser; de modo que, aceitando-se que nada é sem razão, há que se dizer que o Der Satz “Auch die Kunst lässt sich als ein Sektor des Kulturbetriebes vorstellen” in: Heidegger:) Vorträge und Aufsätze Stuttgard, Neske, 1954, p. 41 (na conferência: “Wissenschaft und Besinnung”).

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vom Grund de Heidegger atende muito bem às razões eurocênctricas que pedem moderação ao capitalismo predatório também eurocêntrico. De nossa parte, porém, que lição tirar deste aprendizado, deste processo iniciático em tecnofobia? Se foi a tradição eurocêntrica que levou a este desastre planetário, por que continuar seguindo-a ou dando-lhe qualquer crédito? Se há que se esperar por um novo começo, por que esperar que um novo começo ocorra lá, em continuidade com esta desalentadora e totalitária tradição? Mas será que essas questões estão bem colocadas? Será que devemos ter tanta fobia assim da tecnologia ou será que nossa fobia deveria ser dirigida ao eurocentrismo? Será que falar, como Heidegger, em história do pensamento ocidental – pressupondo que haveria uma tradição cruzando a história e carregando com ela um destino de exuberância tecnológica que incontivelmente levaria a que a Europa, sob o peso deste destino desgraçadamente impensante, domine o mundo – não é aceitar acriticamente uma fábula eurocêntrica? Heidegger fala o tempo todo como se a tradição ocidental fosse fechada sobre ela mesma e como a sua face malsã só agora estivesse empestiando o mundo com o deletério pensamento calculante. Porém, a Europa nunca viveu sem intercâmbio e sem guerras com o resto do mundo. A Europa colonialimperialista da década de 1950 tem atrás de si um trajeto de interações e agressões com a África, o Médio e o Extremo Oriente, bem como com as Américas. Os europeus muito aprenderam em termos de técnicas e ciência com os povos colonizdos, sem falar o quanto a exploração de riquezas das colônias, desde o século XVI, foi decisiva para a industrialização e o esplendor tecnocientífico atual. Tampouco é apenas hoje que a tecnologia revolve a superfície do planeta: já no século XVII a Europa produziu enormes desastres ecológicos pelo mundo afora, especialmente com o sistema colonial de plantation93, sem falar na multiplicidade de devastadoras doenças disseminadas através dos diversos continentes. Assim, devido à escravidão e à insalubridade, populações indígenas foram exterminadas aos milhões. Culturas inteiras entraram em colapso e declinaram num irreversível esquecimento94. Cf. Richard H. Grove, Green Imperialism. Colonial expansion, tropical island Edens and the origins of environmentalism, 1600-1860, Cambridge Univ. Pr., 1995. 94 “No tocante à saúde, o século XVIII foi mundialmente um grave desastre. O ritmo acelerado das explorações e descobertas extramarinhas, bem como a internacionalização do capitalismo e da guerra, levaram a que doenças locais se tornassem universais. O tráfico de escravos espalhou doenças do Velho Mundo pelo Novo Mundo enquanto doenças tropicais como a febre amarela eram transportadas através dos oceanos. A abertura do interior da América do Norte e as incursões pelo Pacífico resultaram nas doenças européias como varíola, sarampo e sífilis, que dizimaram populações que não tinham nenhum contato com elas e, assim, também 93

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Por que Heidegger busca purificar a história européia de suas violências históricas? Por que insiste em banalizar o empobrecimento planetário causado pelo tecnoeurocentrismo o estilizando na suposta esterilidade do pensamento calculante? Será que podemos suportar a experiência desse pensamento negativista e autocentrado? Será que, para pensarmos o impensado que Heidegger prioriza, podemos suportar o empobrecimento que nos traz acolhermos esse tendencioso impensado heideggeriano que impassivelmente ignora o sofrimento estrutural imposto a milhões de excluídos, isto é, a milhões de excluídos desse mesmo processo euro-americano de racionalização social que a Heidegger parece só incomodar na medida em que gera o consumismo e a cultura de massas? Derrida, que é, ao contrário de Heidegger, sem dúvida, sensível às injustiças da ordem econômica mundial, cultivou durante algum tempo a tecnofobia heideggeriana. Assim, durante muitos anos ele ferozmente evitava ser fotografado, além de resistir em conceder entrevistas. Depois, ele acabou relaxando. Sua virada midiática se deu nos anos 70. Hoje ele é um megastar que dá entrevistas a dime a dozen. Heidegger, porém, até o final resistiu à mídia. Na verdade, ele constituíra já nos anos 30 uma imagem de celebridade intelectual para a qual estar fora da mídia era traço essencial. Embora Lorde Byron, uma das maiores celebridades intelectuais do século XIX, tenha tido muito de sua vida privada repassada para seu público, a imagem padrão de celebridade intelectual para filósofos, ao menos na Alemanha, seguiu sendo, até meados do século XX, a de quem cultiva a sua obra para a posteridade desconsiderando-se, salvo por algumas anedotas, a vida cotidiana. O desejo de Heidegger parece ter sido o de se manter nessa lógica pré-tecnomidiática da celebridade intelectual. Assim, ele – paradoxalmente numa entrevista e falando na televisão – cita Kleist ao encerrar solenemente sua última resposta: “Apago-me diante de alguém que não está ainda aqui, e inclino-me, a um milênio de distância, perante seu espírito”95. Com essa frase, Heidegger está dizendo que ele cultiva a sua imagem não para o presente, mas para a posteridade – e que ele espera que, então, não mais lembrem de sua vida extrafilosófica; enfim, ele tentou constituir sua nenhuma resistência a elas. Os efeitos foram cruéis e catastróficos – os germes mataram mais que as armas na expansão do imperialismo europeu. Rapidamente a cólera, que havia permanecido restrita à Ásia por séculos, foi exportada para todas as partes do planeta.” L. Conrad; M. Neve Vivian Nutton; Roy Porter The Western Medical Tradition. Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1995, p.474. 95 Citado por Heidegger em “Entrevista concedida por Martin Heidegger ao professor Richard Wisser” in: Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-RIO, outubro de 1996, vol .1, p.17.

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imagem pública seguindo uma concepção do século XIX de celebridade intelectual. Com efeito, ele nunca soube lidar com a imagem em movimento ou com a saturação de registros visuais e sonoros. Para ele, era insuportável engajar-se numa lógica de celebrização que se intrometesse em detalhes cotidianos e perfunctórios. Derrida e Foucault ainda conseguiram realizar uma virada midiática. Derrida tenta a cada dia se aperfeiçoar nisso: já escreveu uma autobiografia e, autoironicamente, se gaba de ser o primeiro filósofo que falou do próprio pênis; de fato, nada mal para este incisivo – e sempre irônico – crítico do falogocentrismo.

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