Centros, margens e periferias na Europa da perspectiva de Eduardo Lourenço

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Centros, margens e periferias na Europa da perspectiva de Eduardo Lourenço


Anamarija Marinović (CLEPUL) [email protected]

Introdução

Um dos propósitos deste trabalho é apresentar e discutir as ideias de
centros, margens e periferias do ponto de vista cultural, político, social,
económico e religioso na Europa contemporânea, isto é, desde as últimas
décadas do século XX até ao momento actual. Analisando duas obras de um dos
maiores pensadores portugueses ainda vivos, Eduardo Lourenço, Nós e a
Europa ou as Duas Razões e A Europa Desencantada Para uma Mitologia
Europeia, discutiremos as questões da identidade nacional e /ou europeia, a
singularidade vs, a universalidade, a soberania nacional e a globalização,
a relação entre "nós" e os Outros e veremos a posição de Portugal dentro da
Europa e em relação a ela, os estereótipos culturais que persistem sobre as
determinadas partes do continente europeu e abordaremos um pouco os termos
da fronteira e da diferença, tão discutidos na época pós-moderna.
Introduziremos também as noções da "identidade periférica" e da "semi-
periferia" e tentaremos mostrar que hoje em dia tudo pode ser centro,
margem e periferia, dependendo da perspectiva a observação.

Como suportes teóricos para esta investigação, utilizaremos entre
outras as obras os seguintes autores: Miguel Real Eduardo Lourenço e a
Cultura Portuguesa (2009), Teresa Pinheiro (et.al.) Peripheral Identities
(2011), José Eduardo Franco "O mito e o espelho A ideia da Europa em
Eduardo Lourenço, alguns dos ensaios de e outras obras que abordem a
temática europeia, identitária ou cultural.

Este breve estudo será dividido em duas partes: uma mais teórica, e
que se abordarão os aspectos acima referidos e outra mais prática em que se
analisará a visão dos cânones, centros, margens e periferias através dos
exemplos e reflexões concretas de Eduardo Lourenço nas duas colectâneas de
ensaios em questão.

Uma vez que Nós e a Europa ou as Duas Razões foi publicada em 1988,
relativamente pouco depois da adesão de Portugal à Comunidade Económica
Europeia, a actual União Europeia, e A Europa Desencantada Para uma
Mitologia Europeia data de 1993, ver-se-á se e de que forma o percurso do
pensamento europeísta de Eduardo Lourenço se altera entre estas duas
publicações. Para estes efeitos observar-se-á particularmente a relação
entre Portugal e a Europa.

No caso do primeiro livro em questão, discutir-se-á particularmente a
dicotomia entre a "Europa-Europa" (Lourenço, 1988) e a "Europa menor"
(idem), sublinhando-se a clara diferença entre os "centros" (os países
tecnologicamente desenvolvidos e culturalmente superiores a Portugal em
alguns aspectos, tais como a França, a Bélgica ou os países nórdicos) e as
"periferias" ou "margens" que seriam Portugal e Espanha.

Nesta primeira fase do seu pensamento sobre a Europa e o lugar de
Portugal dentro dela, faz-nos pensar que Lourenço via o seu país como de
certa forma indigno de estar ao mesmo nível dos países "cêntricos", devido
ao seu atraso industrial e à excessiva importância que dá ao seu passado
histórico e cultural.

Já na segunda obra que iremos analisar nota-se uma atitude mito mais
crítica e analítica da própria Europa, do seu percurso, caminho e futuro,
procura-se uma mitologia comum e um imaginário partilhável por todos os
cidadãos do espaço cultural e geográfico europeu, e afirma-se que neste
domínio Portugal teria muito que contribuir.

Enquanto na primeira obra deste autor predomina um olhar basicamente
concentrado na Europa Ocidental, Na posterior colectânea de ensaios
introduzem-se também os olhares para outros centros, cânones, margens e
periferias na Europa e no mundo (Os Estados Unidos, o Japão, os países
islâmicos, a Rússia, os Balcãs), tornando o mosaico e a situação de uma
Europa Desencantada ainda mais complexos do que se pode supor após uma
primeira leitura.

O enquadramento teórico deste trabalho

Antes de nos debruçarmos com mais atenção nas duas obras que
pretendemos analisar, convém discutirmos um pouco a problemática da
identidade e alteridade, o que seria apenas um ponto de partida na
tentativa de definição dos conceitos do cânone, centro, margem e periferia,
que serão os pontos fulcrais da parte teórica desta investigação. O termo
"identidade" por causa da multiplicidade dos seus sentidos provoca muitas
dificuldades na interpretação, quer que se trate da esfera individual ou do
nível colectivo.

Embora na época pós-moderna se defenda muito a ideia da identidade
como algo que não é fixo, estável e "inato", como refere Amin Maalouf
(2001) e que se constrói ao longo dos anos, há que salientar que um
indivíduo ao nascer, não escolhe vários factores que futuramente
influenciariam a sua vida na maior ou menor medida: o lugar e a data de
nascimento, as circunstâncias familiares em que nasceu e foi criado, a
língua materna, as características físicas, o nome e apelido e muitas
outras, que num determinado momento podem parecer pouco relevantes, mas que
noutro podem ser decisivas para a sua identificação ou distinção das outras
pessoas. Tendo em conta todos estes elementos, Maalouf (op.cit.) afirma que
a identidade é algo que não se divide nem se compartimenta, que tem o seu
carácter distintivo e subjectivo, como também que (idem,34) "a identidade é
antes de tudo uma questão de símbolos e de aparências". Precisamente este
valor simbólico e afectivo dos fenómenos com os que as pessoas se costumam
identificar (uma religião, uma língua e cultura, um passado histórico, uma
mitologia, uma ideologia), é o que faz parte da identidade no sentido mais
amplo do termo. Com a palavra "aparências" no sentido em que usou este
investigador deve se ter mais cuidado, uma vez que a identidade não se
reduz apenas às manifestações externas de uma pertença ou identificação.
Tal como um indivíduo à partida não pode escolher alguns dos factores que
condicionam a sua identidade, um país também não pode escolher alguns
elementos que o definem enquanto tal: a sua posição geográfica, a densidade
populacional, o número e as etnias dos habitantes que o integram, a
religião dominante, a língua oficial, o imaginário e a mitologia que se vão
desenvolver no seu espaço etc. Por outro lado, os indivíduos que governam
um país e os que o habitam, determinam a relação que vão ter com a sua
bandeira, as fronteiras geográficas do seu país, as figuras importantes da
sua cultura, o seu alfabeto, língua, religião, leis e outros denominadores
identitários de um país. Desta forma, Guiles, e Middleton (2001:34) são de
opinião que:

Although the cultural forms and practices that are produced in
a society are shaped by the structures of that society, they
are also shaped by the subjectivities of the individual women
and men in our roles as social actors.[1]

Da afirmação que acabámos de citar, vê-se que os actores sociais numa
comunidade não são apenas os políticos, os intelectuais e os jornalistas,
mas todos os habitantes de um espaço geográfico e cultural, que têm o dever
e a responsabilidade de construir a estrutura da sua sociedade, tal como
tem a liberdade de gostar ou não de determinados aspectos da sua cultura e
de as aceitar ou rejeitar.

Aprofundando a discussão sobre o problema da identidade, é
indispensável salientar que ao abordar-se este assunto sem se pensar nos
conceitos da diferença e do Outro. Para confirmar este ponto de vista
Annabela Rita (in: Pinheiro et.al.2011) salienta a multiplicidade de
perspectivas de observar o Eu e o Outro, quer que se trate meramente de
relações interpessoais, ou se esta visão se aplica aos países e culturas,
uma entidade é simultaneamente vista como ela própria e como O Outro,
dependendo apenas da perspectiva da observação e da representação, das
imagens e ideias que se têm de si mesmo e dos que nos rodeiam.

Esta já parece a altura adequada para se introduzirem e abordarem um
pouco as noções do cânone, centro, periferia e margem. Na matemática e nas
ciências exactas, o centro (de um círculo por exemplo) é o ponto que mantém
a mesma distância de todos os outros pontos que fazem parte do círculo.
Usando esta metáfora, apenas pretendemos salientar a importância do centro
como tal. Existindo um centro com a mesma distância de todos os outros
pontos, na matemática não significa que esses pontos sejam menos
relevantes, eles servem para fazerem o círculo perfeito e completo. Na vida
real e nas sociedades humanas, que têm as suas irregularidades e
imperfeições, a situação torna-se ligeiramente diferente. Aplicando a noção
do centro a uma cidade, pode dizer-se que ele é aquela parte da cidade que
é a melhor organizada em termos de funcionamento, a melhor fornecida de
transportes públicos, serviços que tornam a vida dos seus habitantes mais
confortável e é o ponto da maior actividade e mais "vida", mais eventos
culturais, mais tradição histórica e a que provoca o maior interesse dos
habitantes e dos turistas que visitam a cidade em questão. As restantes
partes deste espaço urbano, as mais afastadas e um pouco pior abastecidas
são consideradas periferias, de certa forma também as partes da cidade com
menor relevância, enquanto as margens são aquelas zonas geralmente pobres,
de bairros sociais, pouco controlados e frequentados, com habitantes
provenientes das camadas sociais mais baixas e de comportamentos
frequentemente problemáticos. Na realidade a palavra "margem" nem sempre
deve ser interpretada negativamente, uma vez que pode significar
"contorno", "limite" um determinado período de tempo ou uma qualidade de
espaço.

Tratando-se de países e estados, há muitos factores que, além da sua
posição geográfica, implicam a sua "centralidade": o número de habitantes,
a influência e a difusão da sua língua, o poder económico, a relevância
política, o papel social, a tradição histórica que atribui a um determinado
país o "direito" de se considerar mais importante que os outros. O passado
de colonizador ou de colonizado, o sistema monárquico ou republicano em
vigor, a tradição da democracia e do parlamentarismo multissecular ou a
ditadura de um regime totalitário, são também dados que há que ter em cota
no jogo do poder sociopolítico e cultural que ditam a visão do país pelos
seus próprios habitantes, pelos países vizinhos ou pelos outros. Destas
visões e representações depende se um país vai ser considerado de centro,
periferia ou margem. Rui Lopo no seu artigo "A Cultura Portuguesa é um
Problema Filosófico"[2] Considera que "o problema filosófico das diferenças
culturais depende de como são definidas a diferença e a cultura". Não é de
estranhar que no século XIX, em que começaram a desenvolver-se a etnografia
e a antropologia como disciplinas autónomas, se tenha falado nas culturas e
civilizações "primitivas" e "desenvolvidas". Embora esta terminologia hoje
em dia seja ultrapassada e se proclame que formalmente não há culturas
superiores a outras e que tos elas têm o seu valor, politicamente
observando, nem sempre se respeitam as igualdades das culturas. É
justamente isso o que provoca a valorização de alguns países e cultura como
"centros", e de outros como "periferias" ou "margens". Teresa Pinheiro
(et.al. op.cit.) considera que na Europa pós-moderna, com a fluidez das
noções a fronteira e da identidade, com as lutas entre a importância do
passado nacional e o presente europeu, os espaços culturais ibéricos
(Portugal e Espanha) e os espaços eslavos (divididos por sua vez na Slavia
Latina e Slavia Ortodoxa) durante muito tempo foram vistos como periferias
no sentido político e cultural. Isto pode dever-se a uma presença
multissecular do factor islâmico nos dois espaços (árabe na Península
Ibérica e turca na Península Balcânica), à ocupação longa e dura de alguns
territórios eslavos pelo Império Austro-Húngaro, ao "esquecimento" e
marginalização de territórios ibéricos após a perda das suas colónias, e
aos regimes totalitários que tanto no mundo ibérico como no eslavo duraram
várias décadas. Tudo isto contribuiu para a visão destes territórios com um
certo receio por parte dos "grandes centros" do poder e da economia
mundiais (Os Estados Unidos, os países europeus tecnologicamente mais
desenvolvidos). Este receio implicava as ideias estereotipadas sobre o
Outro como uma ameaça ou no mínimo como estranho ou menos aceitável nos
círculos sociais culturais, políticos e económicos "superiores".

Beata Cieszyńska (et.al. in: Pinheiro, op.cit.15) nesta linha de
pensamento, refere que "the orientation towards Europe means the
dissociation from the East"[3]. Neste momento surge a questão que há que
sublinhar: após o termo dos regimes ditatoriais nos países do Leste europeu
e muitos outros mais pequenos, incluindo os ibéricos, tinham duas
alternativas: renunciar às suas identidades nacionais, ao seu passado, aos
seus mitos, tradições, crenças, modelos de comportamento a favor das
integrações europeias ou reconstrui-las e entendê-las de uma outra forma,
integrando-se na Europa sem renunciar a elas? Esta questão até hoje em dia
não parece fácil de se resolver, mesmo depois de muitas reflexões e ideias
dos políticos e dos pensadores.

Não é de estranhar que estes espaços "periféricos" ao longo do tempo
tenham sido vistos como "atrasados" e qualificados como "o terceiro mundo",
subdesenvolvidos" etc. Agora poder-nos-íamos perguntar até que ponto os
próprios países observados pelos outros desta forma, também têm alguma
responsabilidade e "culpa" pela mensagem que eles mesmos transmitem à
Europa e ao mundo sobre si e o se país, a sua cultura e os seus valores,
mas isso será abordado mais adiante, na parte prática deste trabalho.

Francisco Nazareth, (in: Pinheiro, op.cit.), reflectindo sobre a
problemática das identidades nos espaços ibéricos e eslavos, e concentrando-
se no caso particular dos Balcãs, introduz mais um termo que valeria a pena
discutir "a semiperiferia". Uma vez que, devido à sua posição
geoestratégica, a Península Balcânica (e de certa forma também a Ibérica)
sempre serviram como um ponto de ligação entre mundos e culturas. Sendo
"periferizadas" no sentido político e económico, estes espaços têm o se
indubitável valor histórico e cultural, tal como a sua importância em
interligar "a Europa desenvolvida" com outros países. Considerados como um
"ponto de transição" entre civilizações, os espaços ibéricos e eslavos (e
particularmente o espaço cultural balcânico) não podem ser vistos nem
avaliados nem como meras periferias, nem como "margens" no sentido
depreciativo do termo.

Com a alteração significativa das condições geopolíticas e
socioculturais no mapa mundial no século XX (as duas guerra mundiais, a
perda das colónias das antigas grandes potências, o desaparecimento de
algumas monarquias e repúblicas importantes, com as crises económicas, a
criação de associações e comunidades transnacionais e transculturais)
mudaram bastante também os conceitos da fronteira, da nação e identidade
nacional, do poder, e assim mesmo da fronteira, da margem, da periferia e
do centro, podendo tudo ser submetido a cada uma destas categorias, em
situações e avaliações diferentes.

No que diz respeito ao "cânone", em palavras simples, este termo poder-
se-ia interpretar como um modelo que há que seguir, como um conjunto de
regras que há que respeitar e das quais não se convém desviar, uma norma o
padrão que determina os critérios para avaliar o valor de outros fenómenos
que dependem dele. Nesta última conotação, o termo "cânone" é
frequentemente usado na literatura e nas outras artes, salientando uma
série de obras de notável qualidade e de um indiscutível valor estético,
segundo o qual se deve definir o gosto das pessoas. O cânone é
frequentemente visto como algo firme, sólido, imutável. Já que a palavra
provém do domínio da religião cristã, tem um carácter quase dogmático, de
algo em que não se pode nem deve tocar. Mesmo assim Harold Bloom (1995)
afirma que os cânones não são invariáveis e que dependem da época para
época e de lugar para lugar. O que numa cultura pode ser considerado
cânone, noutra pode passar desapercebido ou ter uma relevância menor. O
mesmo fenómeno repete-se na esfera política e cultural, social, religiosa,
económica e das relações do poder no mundo actual. Se entendermos a Europa
contemporânea, nomeadamente a União Europeia, como um "cânone" o qual ser
seguido por todos os países europeus, pode-se dizer que tanto os que já
estão "dentro" como os que se encontram "fora" da União têm os seus
receios, temores, dúvidas e reflexões em relação a si próprios e à
identidade europeia. Desta forma verifica-se a existência de duas
tendências mais visíveis: uma mais "globalista" que defende a ideia da
identidade nacional como uma categoria ultrapassada e como uma relíquia do
século XIX, da época romântica e da ideia dos Estados-Nação, e outra mais
"nacionalista", que rejeita a Europa unida e salienta apenas as
particularidades nacionais. Obviamente que ambas são extremistas à sua
maneira, e que a melhor solução seria encontrar um meio-termo, preservando
a singularidade de cada cultura dentro de um espaço supranacional e
transnacional como a Europa actual pretende ser.

Neste sentido Eduardo Lourenço tenta oferecer as suas ideias de
"europeísta convicto", defendendo ao mesmo tempo "uma mitologia europeia",
sem descartar absolutamente as diferenças de cada um dos países europeus.

Reflexões de Eduardo Lourenço sobre os centros, margens e periferias
na Europa

Uma vez que a Europa e as relações intra-europeias são um dos temas
fulcrais no pensamento de Eduardo Lourenço, antes de nos concentrarmos nos
exemplos concretos referidos nas duas obras que pretendemos contrastar,
valeria a pena fundamentar e aprofundar um pouco a ideia sobre a cultura
portuguesa e a Europa, para se compreenderem melhor as conclusões que este
autor tirou em relação aos assuntos que aborda nos seus ensaios.

José Eduardo Franco no seu artigo " O Mito e o Espelho: A Ideia da
Europa em Eduardo Lourenço"(p.3)[4] destaca duas tendências importantes na
reflexão da temática europeia. Em Nó e a Europa ou as Duas Razões, nota-se
a visão de uma Europa observada pelo prisma português, isto é " o esforço
de pensar e repensar Portugal. A Europa-espelho-de-Portugal no qual o nosso
pás pela voz eduardina se vê e revê tristemente distanciado e deformado de
uma Europa que mitifica, glorifica e endeusa, e com quem por vezes se
assemelha quase por milagre".

Nesta afirmação podemos vislumbrar uma determinada consciência de
inferioridade de Portugal em relação à União Europeia, o seu
desenvolvimento tecnológico, cultural, social e político, que este país
ibérico, não se sente preparado para atingir: Tendo em conta que esta obra
foi publicada em 1988, relativamente pouco depois da "entrada" de Portugal
na então Comunidade Económica Europeia, há que compreender uma certa dose
de pessimismo e desilusão de Lourenço, que se manifesta nas suas reflexões.
Há que mencionar que não é por acaso que o título desta obra começa por
"Nós", sendo "a Europa" colocada no segundo lugar, o que apenas confirma o
pensamento de Franco sobre o prisma "topocêntrico" pelo qual a Europa é
observada.

Por um lado, nesta fase de discutir a Europa, o pensador português
debruça-se muito sobre a memória, na história, no passado, na imagem e na
missão dos Portugueses ao longo dos séculos expressando dois temores
principais: o da perda ou crise da identidade de Portugal dentro da Europa
e a hiperidentidade, o excesso e sobrecarga dos valores, mitos e ideias
passadas, que não permitem a Portugal integrar-se com toda a naturalidade
num espaço cultural e nacionalmente superior. Segundo Lourenço (1988:11) a
"existência imaginária já delirante" da portugalidade expressa em Os
Lusíadas é o que impede o Portugal pós 25 de Abril a olhar para si de um
ponto de vista realista e a ver " a sua mais que modesta existência". A
demasiada glorificação das vitórias passadas poderia entender-se como um
mecanismo de defesa de Portugal perante uma nova realidade para a qual este
país aparentemente não tem força.
Nesta perspectiva a Europa, e sobretudo alguns dos países mais
desenvolvidos (nomeadamente a França, a Bélgica a Alemanha ou os estados
escandinavos) poderiam ser considerados como "cânones" qu há que seguir ou
"centros" pelos quais um país pequeno em território e população e fraco em
economia e poder se deve orientar. A "periferização" ou ainda
"marginalização" de Portugal em certos aspectos em Eduardo Lourenço
(op.cit. 17) pode notar-se também quando este autor trata a independência
do próprio país como um "mero acidente histórico". Simultaneamente este
autor defende a dignidade histórica e a autonomia do seu país, de oito
séculos de história, comparando-o com a Espanha medieval. Desta forma
(idem,18). "Enquanto a Espanha era um "puzzle" de nações cristãs e
muçulmanas - Leão, Castela, Navarra, Aragão, Catalunha, Granada- o destino
português define-se quando Portugal abandona o projecto ibérico ou o
integra no mais vasto e imprevisível das descobertas marítimas e da
colonização."

Daqui resulta evidente que Portugal pode ser simultaneamente
"periferia" ou "margem" para os outros países europeus e como "centro"
referindo-se à Espanha, país vizinho e rival de Portugal em muitos
aspectos. O continente europeu enquanto um organização política e económica
trans- e supranacional nos Portugueses, na altura em que esta obra foi
publicada causava"ressentimento e fascínio", por múltiplas e não apenas
duas razões às que se refere Lourenço. Nesta fase do seu pensamento europeu
e europeísta o autor vê-se profundamente descontente com a "marginalidade",
a"fatal dependência e inferioridade" de Portugal no que se refere aos
modelos e exemplos europeus "mais elevados", tais como Charles de Bos,
Dante, Petrarca, Cervantes, Rousseau, Tolstói, Dickens, Goethe, Proust,
Shakespeare, Picasso, Matisse, Delacroix, Turner, Rafael e Van Eyk. Citando
alguns dos nomes mais importantes do cânone da literatura e pintura
ocidental, o pensador português está consciente de alguns "atrasos"
concretos de Portugal, nomeadamente a ausência da revolução industrial e um
determinado isolamento cultural.

Renato Epifânio[5] (p.1) como uma das causas do atraso de Portugal
refere a sua posição geográfica de "finisterra", que contribuiu para um
certo "descentramento" deste país o que por sua vez provocou um "défice
económico, social e político, um défice cultural e civilizacional".

Repare-se que este investigador não nem o termo "periferização", nem"
marginalização", mas escolhe o "descentramento", o que se poderia entender
como um "afastamento do centro", ou "inacessibilidade ao centro", por
causas alheias à vontade de Portugal, tal como o é o distanciamento
geográfico dos maiores centros da economia e da cultura. Este ponto de
vista poder-se-ia discutir muito, uma vez que o Reino Unido também não tem
uma posição geográfica demasiado favorável (sendo ilha e bastante afastada
do "Continente", sendo, porém, capaz de criar as condições necessária pare
se tornar numa das maiores potências económicas, políticas e culturais na
Europa e no Mundo. Há que reparar que Álvaro Ribeiro (apud. Epifânio,
op.cit.) também segue a mesma linha de pensamento e afirma uma distância
geográfica de Portugal e a "Europa Central". Obviamente a "centralidade" da
Europa que este autor tem na mente nada tem a ver com a sua conotação de
situação no mapa da Europa (podendo como países da Europa Central entender-
se a Hungria, a Áustria, a Polónia, a República Checa e alguns outros). A
Europa como centro da qual Portugal s encontra distanciado, é vista no
sentido figurado do termo, como centro do ponto de vista do poder, da
política, da economia e da influência social, podendo-se acrescentar a tudo
isto também o papel da comunicação social e da propaganda.

Reagindo ao "desprezo" que a Europa mostrou sentir por Portugal em
determinados momentos da História moderna Lourenço (op.cit.36) refere que
"Inventámos "Europa" à margem da Europa que se dilacerava", implicando
também que a Europa "nunca nos bastou" tal como "a nossa recusa de nos
casarmos no tarde com uma Europa supostamente despida das antigas artes de
nos fascinar".

Com este seu pensamento criticam-se simultaneamente o
"ultranacionalismo" e uma determinada arrogância portugueses e a rejeição
de tudo o que é europeu, e o medo de não se ser bem recebido pela mesma
Europa. Nas suas reflexões Lourenço faz uma clara distinção entre a "Europa
católica" e a "Europa protestante", sendo a primeira representada como uma
realidade ultrapassada e a segunda uma realidade desenvolvida com uma forte
auto-consciência derivada da filosofia alemã. Curiosamente, nesta obra o
autor nem menciona uma "Europa Ortodoxa" ou uma "Europa socialista" ou uma
"Europa ateia". Concentrando-se apenas no olhar ocidental sobre a realidade
europeia, indirectamente sugere a sua visão dos cânones, margens,
periferias e centros na realidade europeia que descreve e discute.
Debatendo também a crise da Universidade europeia, Eduardo Lourenço debruça-
se sobre a existência de um imaginário europeu, "universal e
universalizante" com a sua origem "cêntrica" nos países desenvolvidos, que
o "impunham" de certo modo aos países mais pequenos e "periféricos".

No que diz respeito às relações de Portugal com a Espanha, o que se
mostra como mais do que evidente que se nota uma sensação de ambivalência:
por um lado salienta-se a marginalidade dos dois países e por outro a
Espanha por vezes serve como uma "nação de referência", causando nos
Portugueses tal como a Europa o mesmo ressentimento e o mesmo fascínio.
Desta forma pode-se chegar à conclusão que Portugal se sente duas vezes
"periférico" e duas vezes "marginalizado", perante a Espanha e perante a
"Europa-Europa"

Curiosamente quase mesmo número de ensaios que estão escritos em
português estão nesta obra publicados em francês. De entre os títulos em
francês citaremos "L' Europe et Nous", "Camões et L' Europe", "Le
Romantisme et Camoens" e "L' envoi ou L' Adieu à Madelaine", abordando
todos eles alguns dos aspeto mais relevantes da cultura portuguesa. Poder-
nos-íamos agora qual seria a razão do uso desta língua nestes específicos
capítulos; a de chamar a atenção dos estrangeiros para a cultura
portuguesa? A de divulgar o mais valioso desta cultura a um público mais
vasto, supondo-se que os intelectuais em vários países devem dominar a
língua francesa antes que a portuguesa? A de mostrar que a língua e cultura
portuguesa são igual de dignas e igual de cêntricas como o francês? Não é
fácil dar uma resposta definitiva a estas questões, mas o que é evidente
nesta obra é que Lourenço pretende definir Portugal em relação à Europa e
ao contrário, sendo os seus pensamentos e sentimentos a este respeito muito
misturados e vão desde o receio até à euforia europeia.

Na segunda obra que aqui estamos a analisar, A Europa Desencantada,
Para uma Mitologia Europeia, de acordo com José Eduardo Franco (op.cit.)
nota-se como evolui, desenvolve-se e amadurece o percurso filosófico de
Lourenço no que se refere à temática europeia. Uma parte dos ensaios
representados nesta colectânea foi publicada em 1991, fazendo parte do
livro L' Europe Introuvable, escrito em francês, para esta obra ser editada
dois anos mais tarde, com um novo título, que ao mesmo tempo indica o
desengano e a possibilidade de a Europa se "encontrar" ou "desencantar"
enquanto comunidade. Nesta segunda fase do seu pensamento europeu e
europeísta, é notável uma atitude mais imparcial e realista do autor em
relação a Europa e ao próprio Portugal. Dá-se um diagnóstico mais profundo
e neutro do ponto de situação de Portugal face ao novo paradigma europeu,
que por sua vez não deixa de ser visto como progressivo e desenvolvido.

Quando esta obra foi editada o mapa político, económico e
sociocultural da Europa alterou-se bastante influenciado por acontecimentos
de extrema relevância tais como a queda do Muro de Berlim, a derrocada da
União Soviética, a desintegração da Jugoslávia. Foi então que começaram a
definir-se e destacar-se novos centros, cânones, margens e periferias
dentro e fora da Europa, que condicionaram um pouco o pensamento de
Lourenço na sua busca de um imaginário europeu baseado na mitologia comum e
nos valores que fazem com que os europeus se mantenham mais unidos perante
os novos desafios e perigos. Este autor (Lourenço, 2005:11) propõe uma
atitude mais proactiva para se ter a certeza do desejo da construção de um
futuro melhor e salienta esta ideia com as seguintes palavras:

"O futuro não nos cai do céu já feito É preciso merecê-lo, se não, é
só um futuro do outros". Desta vez colocam-se novamente as questões dos
centros, periferias e margens, defendendo-se o ponto de vista que só
participando num futuro é possível ser-se "centro" e não permitir ser-se
marginalizado ou visto como periferia por parte dos Outros. Este pensador é
da opinião que hoje em dia muitos dos países que até há relativamente pouco
foram considerados como "centros", Nomeadamente a França e a Alemanha, hoje
em da começaram a perder a sua força e importância no mapa do mundo. Desta
forma, a França "uma vez instalada no seu famoso hexágono", nunca mais,
após o seu "sonho napoleónico" foi vista do mesmo modo. Especialmente após
a Guerra do Golfo em que muitos dos países da Europa Ocidental participaram
e enfraqueceram economicamente, como um novo-antigo centro destacam-se cada
vez mais os Estados Unidos, que aproveitam o seu poder político e económico
para influenciarem e condicionarem as políticas e os Governos em outros
espaços culturais europeus e não-europeus, mais "periféricos" e mais
"marginais" tais como Timor, os países balcânicos, Afeganistão, Groenlândia
e outros.

Depois do termo da "guerra fria", a Rússia torna-se uma potência cuja
"centralidade" no mapa do mundo começa a ser cada vez mais visível, a par
do Japão, os numerosos e ricos países islâmicos, a China e alguns
territórios até há relativamente pouco impensáveis no sentido de serem
considerados como "centrais".

Afastados geograficamente da Europa, antigo "centro" em termos
civilizacionais, económicos e culturais, estes países estão longe de serem
desprezados ou vistos como "periferias" u ainda "margens. A Europa em si,
após várias crises, divergências, perdas das colónias e das influências e
contactos, começou a perder a sua reputação de "centro" e a não ser "levada
a sério" pelos seus rivais políticos. Daqui surge a urgência de os europeus
"procurarem a Europa", de que Portugal "de repente descubra Espanha"
(p.75), de se lembrar das raízes ibéricas e de fazer algo para que chegue
"a hora da Península". A "sobrecarga do passado histórico" e o "imaginário
delirante" agora tornam-se uma das armas principais dos europeus para
deixarem de ser considerados de "periferia" e voltarem a ocupar o seu lugar
cêntrico no mapa do mundo cultural e social se não o político e económico.

A situação da guerra do Golfo e da guerra entre Irão e Iraque mostrou
apenas como e até que ponto a Europa actual é e se sente marginalizada no
cenário geopolítico mundial A Europa parece ter perdido o papel da
protagonista, tal como o seu poder de mediação entre as partes que se
encontram numa disputa e o que resta, na opinião de Lourenço é tentar unir-
se ainda mais, deixando as suas antigas e enraizadas divergências locais.
Nesta linha de pensamento o autor também se mostra crítico perante uma
Europa que reage face à tragédia do povo curdo, mas que é incapaz de tomar
uma posição mais corajosa na guerra da Bósnia ou durante o último
bombardeamento da Jugoslávia em 1999. Desta forma mostra-se óbvio que não é
apenas a Europa que está "periferizada" e "marginalizada" por outros
"centros" mais poderosos, mas também que ela própria ainda define quem são
os centros e margens para ela.

Mesmo defendendo fervorosamente um imaginário europeu comum, Eduardo
Lourenço parece ter a plena consciência das ideias estereotipadas que ainda
persistem na mente dos Portugueses sobre a Europa e vice-versa, afirmando
que (idem,105) : "A Europa, era o que tendo sempre sido Europa, estava
fora de nós e nós dela." Se em Nós e a Europa ou as Duas Razões" se nota um
certo receio de Portugal em relação à Europa, em A Europa Desencantada é
evidente uma desconfiança e desinteresse mútuo dos dois espaços culturais.

Questionando o novo surto do nacionalismo em determinadas zonas da
Europa, o que o autor põe em evidência é a crise do "sonho europeu"
enquanto uma comunidade cênrica e novamente importante no mapa universal.
Após todas as provas e crises pelas que a actual Europa tem passado, esta
vai ser uma tarefa muito difícil, sobretudo perante a presença "ameaçadora"
e "fascinante" ao mesmo tempo de uma América, que confirma uma e outra vez
o seu papel cada vez mais central no cenário político e económico do mundo.

No jogo de espelhos entre a identidade, não identidade e alteridade da
Europa, a sua centralidade, perifrialidade ou marginalidade ao mesmo tempo,
este espaço cultural aos olhos de Eduardo Lourenço e muitos outros
pensadores, torna-se cada vez mais labiríntico, fluido, pouco claro,
simultaneamente repugnante e fascinante. Ainda assim, nas palavras do
autor, (op.cit, 240) nota-se uma ligeira esperança por poder salvar-se o
sonho de uma Europa forte, unida e novamente "centralizada":

Uma utopia europeia assumida só é digna de ser vivida como
vitória da Europa sobre a Europa, da ficção de si mesma que,
consciente ou inconscientemente tem condicionado o seu destino
contra a sua realidade. Em suma, do triunfo da sua não
identidade sobre os fantasmas da sua alucinada identidade.

Apenas quando a Europa voltar a conseguir encontrar a sua identidade e
a sua posição central perdida no mapa do mundo e quando ultrapassar as suas
divisões e divergências externas, poder-se-á considerar de vencedora de si
mesma e só então é que merecerá não sentir-se n margem e na periferia dos
acontecimentos importantes.

Conclusões

Este trabalho pretendeu reunir as reflexões de Eduardo Lourenço acerca
dos cânones, margens, centros e periferias no espaço cultural, político e
económico europeu através da análise das obras Nós e a Europa ou as Duas
Razões e A Europa Desencantada Para uma Mitologia Europeia e chegou-se à
conclusão de que não apenas o pensamento do célebre ensaísta português
sobre os assuntos m questão se divide em duas fases, mas também que as
próprias noções do centro, periferia e margem variam ao longo do tempo e
são condicionadas política, económica, social e culturalmente.

Referências bibliográficas:

BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Lisboa: Temas e Debates, 2001.

GUILES, Judy, MIDDLETON, Tim. Studying Culture. Massachussets: Blackwell
Publishers, 2001.

LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as Duas Razões. Lisboa: imprensa
Nacional-Casa da Moeda,1998.

_______________. A Europa Desencantada Para uma Mitologia Europeia.
Lisboa: Lisboa, 2005.

MAALOUF, Amin. As Identidades Assassinas. Difusoras DIEFL, Oeiras,
2001.

PINHEIRO, Teresa (Et.Al.) Peripheral Identities, The Eastern Europe
Between the Dictatorial Past and the European Present. Glasgow, Warsow,
Chemnitz, Madrid, Lisbon: Pearlbooks 2011.




Artigos em formato electrónico:

EPIFÂNIO, Renato "De José Marinho a Eduardo Lourenço e Miguel Real
passando por Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva Breves Reflexões sobre o
nosso "Atraso" in: http://www. eduardolourenco.com/…/renato_epifanio.pdf
Acesso: 08/09/2012.

FRANCO, José Eduardo "O Mito e o Espelho: A Ideia da Europa em Eduardo
Lourenço" in: http://www.eduerdolourenco.com/.../jose_eduardo_franco.pdf
Acesso: 08/09/2012.

LOPO, Rui "A Cultura Portuguesa é um Problema Filosófico" in:
http://www.academialisboa,edu/ruilopo_a_cultura_portuguesa_e_um_problema_fil
osofico.pdf Acesso: 08/09/2012.

Embora não directamente referidos para a elaboração deste trabalho
foram consultados também os seguintes blogues

http://lereduardolourenco.blogspot.com

http://palavrofilacuriosa.blogspot.pt












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[1] Embora as formas e práticas culturais que são produzidas numa sociedade
sejam modeladas pelas estruturas dessa sociedade, elas também são modeladas
pelas subjectividades de mulheres e homens individuais nos nossos papéis de
actores sociais .(tradução nossa)
[2] Este artigo foi encontrado na página Web:
http://www.academialisboa,edu/ruilopo_a_cultura_portuguesa_e_um_problema_fil
osofico.pdf A página foi consultada pela última vez no dia 8 de Setembro de
2012 às 14:46


[3] (Ing.) A orientação em direcVlção da Europa significa a dissociação do
Leste (tradução nossa)
[4] Este artigo foi encontrado na seguinte página Web:
http://www.eduardolourenco.com/.../jose_eduardo_francopdf. A página foi
consultada pela última vez no dia 8 de Setembro de 2012 às 14:45
[5] O artigo foi encontrado na seguinte página Web: http:
www.eduardolourenço.com/.../renato-epifanio.pdf A página foi consultada
pela última vez no dia 8 de Setembro de 2012 às 14:46
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