Chão de Deus. Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais, Brasil (séculos XVIII-XIX)

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Pero el que teme el gobierno de los dioses como a una tiranía sombría e inexorable, ¿a donde se trasladará, a donde huirá, que tierra sin dioses, qué mar? Plutarco

Índice 1. 1.1. 1.2. 1.3. 1.4.

Introdução.............................................................................................. 13 A cidade brasileira na historiografia e nas disciplinas afins ..................... 13 Objetivos da pesquisa .............................................................................. 17 O recorte espacial e cronológico .............................................................. 21 Caracterização das fontes utilizadas ........................................................ 24

2. 2.1. 2.2. 2.2.1. 2.2.2. 2.2.3. 2.3. 2.3.1. 2.3.2. 2.3.3. 2.4. 2.4.1. 2.4.2.

Perspectiva teórico-metodológica e problemas conceituais................. 27 Considerações gerais ............................................................................... 27 Espaço ..................................................................................................... 33 O retorno do espaço................................................................................. 33 O que é uma cidade? ............................................................................... 45 O que é um arraial? ................................................................................. 49 Religião ................................................................................................... 52 Religião popular ...................................................................................... 62 Sagrado/profano ...................................................................................... 67 «Superstição» ........................................................................................... 70 Por uma síntese das abordagens............................................................... 71 A contribuição da ciência da religião ....................................................... 71 A contribuição da geografia da religião ................................................... 73

3. 3.1 3.1.1 3.1.2 3.2 3.2.1 3.2.2 3.2.3 3.3 3.3.1 3.3.2 3.3.3 3.3.4 3.4 3.5

O sagrado e as formas elementares do espaço ..................................... 81 Religião popular em Minas nos séculos XVIII e XIX .............................. 81 Homo ludens, habitus nômade e religião ................................................. 85 A religião e o mundo da vida ................................................................. 103 Casa....................................................................................................... 124 Microcosmo .......................................................................................... 124 «Segregação» da mulher ........................................................................ 135 Janus e Vesta ......................................................................................... 139 Arraial ................................................................................................... 141 Patrimônio ............................................................................................. 145 Capela e praça ....................................................................................... 150 Cemitério .............................................................................................. 156 As «vilas de domingo» existiram? .......................................................... 159 Sertão .................................................................................................... 164 Espaços utópicos ................................................................................... 171

4. 4.1 4.2 4.3 4.3.1 4.3.2 4.3.3

Sociogênese e dinâmica do arraial ...................................................... 175 Proto-urbanização e atividade econômica .............................................. 175 Proto-urbanização e política indigenista ................................................ 182 Proto-urbanização e cosmos sagrado ..................................................... 190 Capela-patrimônio-arraial ...................................................................... 199 Sagas e mitos de origem ........................................................................ 221 Ritos de fundação .................................................................................. 232

4.3.4 4.4 4.4.1 4.4.2. 5.

Relações de poder.................................................................................. 237 A desclericalização do espaço ................................................................ 246 Interesses privados e desclericalização .................................................. 247 Poder público e desclericalização .......................................................... 256

Derrota da «cidade selvagem»? ............................................................... 263

Fontes e Bibliografia ....................................................................................... 269 Anexos .............................................................................................................. 301

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Agradecimentos A realização desta pesquisa contou com o acompanhamento e o decidido apoio de meu orientador, Prof. Dr. Hans-Jürgen Prien. Desde nosso primeiro contato, o Prof. Prien demonstrou grande interesse por minha proposta de trabalho. Os resultados obtidos devem muito ao construtivo diálogo que, ao longo destes anos, se estabeleceu entre nós. Meus agradecimentos se extendem igualmente ao Prof. Dr. Michael Zeuske e ao PD. Dr. Holger Meding, não só pela solicitude com que sempre me receberam mas também pelos inúmeros conselhos durante o período em que desenvolvi meus estudos no Instituto de História Ibérica e Latino-americana da Universidade de Colônia. Ao Prof. Dr. Oswaldo Bueno Amorin Filho agradeço pelas instrutivas conversas e inúmeras indicações bibliográficas no campo da geografia cultural. A Profa. Dra. Zeny Rosendahl teve a gentileza de me enviar um exemplar de seu manual de introdução à geografia da religião. O Prof. Dr. Wolfgang Schieder honrou-me com um convite para participar das sessões do seu colóquio de doutorandos, onde pude aprender bastante sobre a moderna escola alemã de história social. Graças ao Prof. Dr. Ion Taloş dei-me conta da importância das contribuições recentes da folclorística ao estudo da religião e da cultura popular. Sem o decidido apoio de Daniel Hirschler, Johannes Hirschler e Ulrich Eumann as dificuldades impostas pelo idioma alemão certamente teriam sobrepujado minhas forças. Prof. Dr. Tarcísio Botelho, Dalton Andrade, Renato Alves, Ricardo Álvares e Izabel Missagia de Mattos enviaram-me do Brasil – muitas vezes espontaneamente – todo o material de que eu por vezes carecia. Dra. Débora Bendocchi Alves e Michael Faust foram muito mais que amigos. Débora e Michael ajudaram-nos, a mim e minha esposa, de todas as formas possíveis, antes mesmo de nos conhecermos pessoalmente. A todos o meu muito obrigado. Desnecessário dizer do quão importante foi o apoio financeiro que obtive junto ao Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) para a realização e publicação deste estudo. Um agradecimento especial, por fim. Desde que surgiu em mim a idéia de analisar as relações entre religião e proto-urbanização em Minas Gerais, tive em minha esposa muito mais que uma companheira. Refletindo sobre minhas hipóteses (não raro criticando-as), auxiliando-me na cansativa fase da pesquisa documental, dividindo comigo os frutos de seu rico aprendizado junto ao Prof. Taloş, relendo e corrigindo as primeiras versões dos capítulos, Giulle acabou por exercer uma influência direta sobre praticamente tudo que escrevi. Creio fazer-te um mínimo de justiça, minha preta, ao dedicar-te este livro.

Para Giulle

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Prefácio A fim de escrever sua tese sob minha orientação e obter o título de Doutor em História pela Universidade de Colônia, Sérgio da Mata submeteu-se a todos os requisitos da Faculdade de Filosofia, das provas germanicum e latinum aos seminários em história e, em especial, em história ibérica e latino-americana. Da Mata é um exemplo do quão frutífero pode ser o intercâmbio acadêmico a nível internacional. Por meio deste intercâmbio ele pôde entrar em contato com a tradição historiográfica e a literatura produzidas na Alemanha. Além do mais, foi um feliz acaso que, para o estudo de seu objeto, a cátedra de história ibérica e latino-americana estivesse ocupada por um especialista em história da Igreja. É com prazer que recomendo ao prezado leitor este excelente estudo interdisciplinar, no qual Da Mata oferece uma importante contribuição ao ainda pouco pesquisado tema da proto-urbanização nas suas relações com o espaço e a religiosidade popular na Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. Da Mata defende, de forma decidida, uma linha de pesquisa própria. E fundamenta-a convincentemente. Prof. Dr. Hans-Jürgen Prien Colônia/Lübeck, junho de 2002

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1.

Introdução

1.1.

A cidade brasileira na historiografia e nas disciplinas afins

Quase toda cidade brasileira já teve seus historiadores, ou, quando menos, seus memorialistas. Sempre em voga, a história do urbano é fruto de uma ânsia de (re)construir a memória de uma coletividade. Suas características fundamentais são recorrentes, e não nos seria difícil enumerar algumas delas: o retrato de vida dos pioneiros, a genealogia das famílias ilustres e dos beneméritos locais, a visão harmônica das relações entre as classes sociais, a fé inabalável no «progresso» da comunidade. Não deve surpreender o fato de que, no mais das vezes, este tipo de literatura histórica continue pouco ou nada afeita a questões de rigor teórico-metodológico, pois o que ela procura não é explicar a história mas sim idealizar o passado e, sobretudo, mitificá-lo. O historiador «pós-moderno» poderá dizer, com alguma ironia, que a historiografia acadêmica nem sempre se afasta deste modelo. De fato. Mas o grande problema da história tradicional do urbano reside no fato de que, freqüentemente, o retrato que ela oferece procede a uma simples inversão da lógica da caricatura. Se esta realça os «defeitos», aquela simplesmente os ignora. Tem-se a impressão de que esse tipo de «historiografia» não passa de uma tentativa de fundir o histórico, o mítico e o utópico num só gênero.1 As barreiras da memorialística foram rompidas. A cidade é hoje um campo de pesquisa dos mais privilegiados das ciências humanas no Brasil. A produção científica é extensa e, pode-se mesmo dizer, desfruta de uma tradição própria. O fato de que os estudos sobre a cidade desde muito cedo atraíram a atenção não só de historiadores mas também de sociólogos, geógrafos e urbanistas, traduziu-se numa tendência sempre acentuada pelo diálogo interdisciplinar – aspecto que continua aliás a ser uma das marcas das pesquisas nessa área. Fazer um amplo levantamento desta literatura seria assumir uma tarefa muito além de nossas forças. Limitaremo-nos aqui a mencionar alguns dos estudos mais significativos e as diferentes perspectivas analíticas neles desenvolvidas. A influência de um historiador como Sérgio Buarque de Holanda foi e continua imensa. Seu grande mérito foi sem dúvida o de propor uma análise da cidade brasileira no contexto de uma interpretação abrangente de nossa cultura e de nossa história. Somente Oliveira Vianna parece ter tido a mesma preocupação, embora suas conclusões tenham sido obviamente distintas das de Sérgio Buarque. Há entretanto um evidente ponto de convergência entre estes dois clássicos. Para o mestre paulista a cidade colonial portuguesa, ao contrário da espanhola, não se impôs sobre a natureza, não chegou a configurar «um ato definido da vontade humana».2 Para Vianna, nossa rede urbana foi um fruto da ação do Estado, nunca 1 2

Um caso exemplar: Salgado, Plínio. Como nasceram as cidades do Brasil. Lisboa: Ática, 1946. Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984, p. 62.

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do povo – nosso homo colonialis era, diz ele, um «amante da solidão e do deserto».3 Debilidade da vontade civilizadora em um, déficit de sociabilidade no outro. Essa visão negativa e às vezes pessimista da cultura e da sociedade brasileira é bem típica (com as exceções de Gilberto Freyre e Cassiano Ricardo) da geração de intérpretes do período do entre-guerras. O esforço de interpretação do fenômeno urbano brasileiro como parte inseparável de uma teoria geral do Brasil passa a ser contrabalançado pela influência crescente da pesquisa universitária. Dois trabalhos clássicos, escritos a partir de uma ampla perspectiva comparada, foram publicados pelos geógrafos Rubens Borba de Moraes (1935)4 e Pierre Deffontaines (1938).5 A antropologia social, por sua vez, centrou-se no estudo monográfico de pequenas unidades urbanas afastadas dos grandes centros, e teve em Emílio Willems e Donald Pierson duas figuras de referência a partir de fins da década de 1940.6 Em 1950, um outro cientista social, Thales de Azevedo, conclui seu Povoamento da cidade de Salvador.7 No mesmo ano Pierre Monbeig defende sua tese de doutorado sobre a conquista e urbanização do oeste paulista.8 A contribuição dos geógrafos ganha importância a partir de meados daquela década com Aroldo de Azevedo. São da sua autoria e de sua equipe alguns dos mais significativos estudos sobre a evolução e a morfologia dos «embriões de cidades brasileiras».9 Dois outros importantes trabalhos surgem em 1968 e 1971, respectivamente com Nestor Goulart Reis Filho e Nelson Omegna.10 Neste período, a crescente influência da sociologia urbana 3 4 5

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7 8 9

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Vianna, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, vol. I, p. 102. Moraes, Rubens Borba de. «Contribuição para a história do povoamento em São Paulo até fins do século XVIII». In: Geografia (1) 1935: 69-87. O texto de Deffontaines aparece um julho de 1938 na Geographical Review e em dezembro do mesmo ano no Bulletin de la Societé de Géographie de Lille. Utilizamo-nos aqui da tradução brasileira: Deffontaines, Pierre. «Como se constituiu no Brasil a rede de cidades ». In: Boletim Geográfico (14) 1944: 141-148; (15) 1944: 299-308. Willems, Emílio. Uma vila brasileira. Tradição e transição. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1961 (1947); Pierson, Donald. Cruz das Almas. A Brazilian village. Washinton: United States Government Printing Office, 1951. Azevedo, Thales de. Povoamento da cidade de Salvador. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1955. Monbeig, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Polis, 1984. Azevedo, Aroldo de. «Embriões de cidades brasileiras». In: XVIIIe Congrès International de Géographie [1956]. Rio de Janeiro, 1965 (tomo III); idem, «Arraiais e corrutelas». In: Boletim Paulista de Geografia (27) 1957: 3-26; idem. «Vilas e cidades do Brasil Colonial». In: Anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros 9(1) 1957: 83-168; idem (org.) Brasil. A terra e o homem. São Paulo: Cia. Editora Nacional-Edusp, 1970. Reis Filho, Nestor G. Evolução urbana do Brasil. São Paulo: Pioneira, 1968; Omegna, Nelson. A cidade colonial. INL-Ibrasa: Brasília, 1971.

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norte-americana é atestada por autores como Richard Morse, Donald Ramos e Otávio Velho.11 Outros autores ocuparam-se principalmente com as relações entre modernidade, disciplinarização do corpo social e transformação do espaço urbano. Foi o caso dos estudos de José Murilo de Carvalho sobre os conflitos que marcaram a reforma urbana no Rio de Janeiro no início do século XX, bem como da grande quantidade de pesquisas realizadas sobre a primeira capital brasileira planejada, Belo Horizonte.12 Duas outras marcas das publicações recentes são, de um lado, uma revisão crítica do modelo bipolar que, desde Sérgio Buarque, contrapunha rigidamente a cidade hispano-americana à luso-brasileira,13 e, de outro, uma abertura para abordagens fortemente marcadas pela «nova história cultural».14 Nesse contexto inserem-se também as contribuições do urbanista Murillo Marx e da geógrafa Cláudia Damasceno Fonseca.15 Quer-nos paracer, porém, que a historiografia das cidades brasileiras continua a ser a história de uma ausência – a ausência das origens. No que diz respeito aos livros e teses sobre nossos núcleos setecentistas e oitocentistas, a fase «pré-urbana» tende a ocupar um lugar secundário. Somente a partir da emancipação política, com a instalação da Câmara Municipal e do símbolo da autonomia recémconquistada, o pelourinho, é que o historiador se sente à vontade para reconstruir a trajetória do espaço urbano. Toda a história pregressa do lugar é apresentada um tanto sumariamente. Certamente esta ausência se relaciona com o fato de que a documentação escrita sobre uma cidade é, num primeiro momento e quase sempre, de caráter político-administrativo – a qual, por sua vez, só passa a ser produzida de forma contínua a partir da emancipação. Mas não parece ser menos verdadeira a impressão de que a historiografia brasileira foi e continua vítima de uma concepção segundo a qual a história do urbano em nada é tributária da história do pré-urbano. Nossa história das cidades tem sido, antes de mais nada, a his-

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Morse, Richard M. «Some characteristics of Latin American urban history». In: The American Historical Review. 17(2) 1962: 317-338; Morse, Richard M. A evolução das cidades Latino-Americanas. São Paulo: Cebrap, 1975; Ramos, Donald. A social history of Ouro Preto: stresses of dynamic urbanization in Colonial Brazil. 1695-1726. Phd dissertation, The University of Florida, 1972; Velho, Otávio. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. Carvalho, José M. de. Os bestializados. São Paulo: Cia. das Letras, 1987; Almeida, Marcelina das Graças de. «Belo Horizonte: 100 anos – história e historiografia». In: LPH, Revista de História (6) 1996: 230-234. Delson, Roberta Marx. New towns for colonial Brazil. Spatial and social planning in the Eighteenth century. Ann Arbor: University Microfilms International, 1979. Ver o número especial sobre história urbana em EIA 24 (1) 1998. Marx, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Edusp, 1989; Marx, Murillo. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Edusp-Nobel, 1991; Fonseca, Cláudia D. Mariana: gênese e transformação de uma paisagem cultural. Dissertação de mestrado em geografia, UFMG, 1995.

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tória do «município».16 É revelador que os únicos estudos sobre os embriões das cidades brasileiras tenham sido escritos não por historiadores, mas por geógrafos e cientistas sociais. Refletindo uma concepção provavelmente tão antiga quanto a sua própria disciplina, o historiador centra sua atenção nos espaços que, ao seu ver, são o «palco» da história. Ele parece querer confirmar a tese de Oswald Spengler segundo a qual «a história do mundo é a história do homem urbano. Estados, povos, política e religião, todas as artes, todas as ciências baseiam-se em um fenômeno primevo: a cidade».17 É forçoso admitir que a identificação da cidade com o processo civilizatório é um mito que a historiografia nunca se preocupou seriamente em combater. Na linguagem cotidiana do nosso país há uma expressão que revela muito a respeito da relação que estabelecemos com o fenômeno urbano. Os livros escolares, a imprensa e os guias turísticos costumam se referir às antigas cidades mineiras setecentistas que se formaram em torno da exploração do ouro com a expressão cidades históricas. Esta adjetivação deveria causar surpresa. Haverá mesmo aglomerados humanos «sem história»? Precisamente neste ponto o senso comum e a historiografia se tocam: o povoado e a pequena cidade são deixados de lado porque eles são percebidos (não raro por seus próprios habitantes) como lugares «onde o tempo não passa», onde «nada de interessante acontece». Um único povoado brasileiro parece ter rompido esta lógica – o arraial de Canudos. O que dizer, contudo, da infinidade de embriões de cidade que não tiveram o seu Euclides da Cunha? Menos preocupados com a singularidade do evento que com a dinâmica do social, do cultural e do espacial, os cientistas sociais, os folcloristas e os geógrafos dedicam-se há tempos ao estudo dos povoados. Nada impede que a historiografia possa dar uma valiosa contribuição a esse campo de estudos. Influenciada por nomes como Deffontaines e Monbeig, a primeira geração de geógrafos profissionais brasileiros sempre considerou artificial a separação entre história e geografia. Isso tornou-a, desde cedo, sensível à necessidade de historicizar a produção das diversas modalidades do espaço urbano. É chegada a hora de retomar este diálogo.

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Boschi, Caio César et alii. Evolução Urbana e municipalismo em Portugal e no Brasil. Anais do Primeiro Colóquio de Estudos Históricos Brasil-Portugal. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. Spengler, Oswald. Der Untergang des Abendlandes. München: C. H. Beck, 1922, 2. Band, p. 106. A força deste mito pode ser observada no entusiasmo com que Oliveira Vianna encarava o «grande milagre paulista» que foi «a conquista do sertão, a fundação da riqueza agrícola sobre bases modernas, a germinação e a consolidação dos núcleos urbanos no interior». Vianna, Oliveira. «A formação das cidades». In: Revista do Brasil 25 (95) 1923: 225-226, p. 225.

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1.2.

Objetivos da pesquisa

A intenção primeira de nosso trabalho é debruçar-se justamente sobre o que, até o presente momento, foi posto de lado pela historiografia: a história das formas elementares do espaço urbano. Uma história, enfim, dos nossos arraiais. A exígüa atenção que tem sido dispensada ao tema pode ser medida através dos dois dicionários existentes sobre o Brasil no período colonial. O verbete «arraial» do Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil resume-se às seguintes considerações: «Pequeno povoado. Feira de bois ao longo da rota dos currais na fase de ex-

pansão e penetração de pecuária pelos sertões. De um modo geral, vilarejos primitivos que se foram formando e fixando no decurso do processo colonizador.»18

No Dicionário do Brasil Colonial19 a temática foi simplesmente suprimida. Estes dois exemplos demonstram que, para uma parcela significativa da comunidade de historiadores, o estudo dos nossos arraiais não é um tema relevante. Esta ausência revela algo mais que a escassez de pesquisas sobre nossos embriões de cidades. Ela revela o desinteresse com o qual a obra pioneira de Deffontaines e Azevedo é tratada. Muito provavelmente este descaso se deve à relação desigual, hierárquica mesmo, que se instalou entre história e geografia, tema ao qual ainda voltaremos. Nossa pesquisa se inscreve numa linha cujos fundadores foram geógrafos, não historiadores. Isso não quer dizer que o objetivo fundamental a ser perseguido seja a descrição da evolução do pré-urbano ao urbano no seu aspecto puramente espacial ou demográfico. De fato, um elemento importante do legado de Deffontaines e Azevedo, e que se procurou aqui preservar, é o estudo morfológico e comparado da proto-urbanização. As características básicas do processo de formação e evolução de um arraial só se dão a conhecer se o número de casos analisados permite apontar regularidades. Acreditamos ter identificado algumas delas. Para tanto, fez-se necessário enriquecer a perspectiva desenvolvida pelos pioneiros com a contribuição de outras disciplinas. Nas suas origens, a geografia histórica da cidade brasileira concedeu pouco ou nenhum espaço a questões como a relação entre mito e instituição do espaço, o peso das relações de poder ou a dinâmica do cotidiano nas comunidades nascentes. Como seria de se esperar, só excepcionalmente os estudos desenvolvidos pelos geógrafos lançaram mão de fontes arquivísticas, de forma que as especificidades das transformações em curso dificilmente pôde ser adequadamente visualizada. O que procuramos foi, simplesmente, intercambiar aquilo que ambos os enfoques, o histórico e o geográ18 19

Silva, Maria B. Nizza da (org.) Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, p. 71. Vainfas, Ronaldo (dir.) Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

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fico, eventualmente têm de melhor a oferecer. E não se pense que a balança das inter-influências disciplinares continua pendendo francamente a favor da história. Afirmá-lo seria ignorar a riqueza do debate teórico-metodológico que, desde a década de 1970, se desenvolve na geografia.20 Deve-se investigar a formação do arraial como um todo, ou privilegiar um fator (ou conjunto de fatores) que nela desempenha um papel decisivo? Desnecessário dizer que há poucos fenômenos tão multifacetados quanto o que aqui se pretende discutir. As causas que presidem a formação de um povoado são legião: a instalação de um posto militar avançado, a decisão solitária de um soberano ansioso de levar a «civilização» a regiões inóspitas, um local de encontro de comerciantes, o esconderijo de escravos fugidos, a ética salvacionista de um missionário ou de um líder milenarista, a decisão coletiva de um grupo emigrado e disposto a «começar de novo», uma concorrida rota de comunicação que, espontaneamente, parece coagular-se num determinado ponto, etc. A interação com as possibilidades oferecidas pelo meio não é menos decisiva. O caráter do povoamento está em relação direta com o quadro natural do sítio escolhido. Os ascetas optam pela montanha ou o deserto; os quilombolas buscam o refúgio das matas; a cidadela se estabelece preferivelmente na planície, às margens de um curso d’água. Fundem-se o econômico, o político, o religioso, o ecológico. Resta saber a qual dessas dimensões daremos prioridade. Quer-nos parecer que, dos fatores envolvidos no nascimento de uma cidade, os que tradicionalmente menos chamaram a atenção dos pesquisadores foram os de ordem religiosa. Numa obra de síntese sobre a geografia do Brasil lê-se que «a importância das cidades está na relação direta com as funções por elas abrigadas. Entre essas funções podemos citar a comercial, a industrial, a financeira, a política, etc.»21 O autor das linhas acima resume as funções do núcleo urbano a duas apenas: a econômica (em suas diversas modalidades) e a política. Nenhuma referência, por ligeira que seja, é feita à função religiosa. Cidades-santuário das quais todo brasileiro já ouviu falar, como Juazeiro ou Aparecida do Norte, não parecem representar um fenômeno digno de nota. Cidades que nasceram e se desenvolveram, somos tentados a dizer, quase que como a expressão espacializada do universo religioso popular – e elas não são poucas. Embora sempre tenha havido vozes na literatura especializada a ressaltar a importância decisiva da religião na criação do espaço urbano22, não se deu atenção à questão. Em resumo pode-se dizer que, no que diz respeito à cidade brasileira, a geografia se ressente da ausência do religioso tanto quanto a historiografia se ressente da ausência da origens. Em boa medida, esta atitude diante do espaço e do social traduz uma projeção inconsciente da visão de mundo contemporânea sobre fenômenos que se desen20 21 22

Estas questões serão analisadas nas seções 2.2 e 2.4.2. Scarlato, Francisco C. «População e urbanização brasileira». In: Ross, Jurandir (org). Geografia do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995, pp. 404-405. Munford, Lewis. A cidade na história. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.

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volveram num contexto cultural completamente distinto. Traduz, para usar o termo tão caro a Lucien Febvre, um anacronismo. Eis o raciocínio que parece guiar o pesquisador moderno: «Não se trata aqui de crença ou submissão às ‹forças do além›, mas de simples cálculo racional. É natural ao homem que ele busque o melhor para si. Ele se estabelece onde as possibilidades de sobrevivência e/ou de acumulação de riqueza se mostram mais promissoras. Ele traz sua fé consigo, não o contrário». O que é verdade, mas não toda a verdade. Para nossos antepassados, o urbano e o religioso são a expressão de uma mesma e indissociável realidade. Do oriente próximo à China, da Grécia à Índia, na África, os exemplos se repetem. Os casos de Roma ou Lisboa demonstram como a origem mesma da cidade muitas vezes se confunde com o mito. Essa relação estreita entre religião e gênese urbana fica particularmente visível no fato, por toda a parte comprovado, de que o ato de fundação assume a forma de um rito religioso. O gesto que tranforma a natureza bruta em espaço habitável não se consubstancia sem a condescendência dos deuses. O espaço selvagem deve ser «domesticado». O topos só se dá a habitar depois de ter assumido uma dimensão inteiramente nova: depois de ter se tornado um temenos. É o rito religioso que desencadeia esta metamorfose. Nas suas origens, o espaço urbano se define como espaço sagrado. Frobenius identificou no norte do Sudão um complexo de ritos cujo prólogo se desenvolve da seguinte maneira. O oráculo que permitia prever se o local escolhido para a nova cidade prometia um futuro feliz determinava que os ferreiros da tribo soltassem galos no terreno. Se os mesmos fossem comidos por chacais ou hienas, as perspectivas eram sombrias. Caso os galos sobrevivessem à primeira noite, então tratava-se de erigir a cidade.23 Ao determinar a localização da cidade, diz Granet em seu clássico sobre a China, «o Fundador, vestindo seus adornos sagrados, começava por proceder a uma inspeção dos locais, à qual se sucediam operações divinatórias». E acrescenta: «é traçando um templum que se constroem os acampamentos e as cidades».24 A fundação de uma cidade grega só se faz após uma peregrinação a Delfos. Somente então, «e qualquer que seja a ambigüidade do oráculo de Apolo, o fundador se certifica da legitimidade de sua empresa».25 Reza a tradição que Rômulo, conhecedor das técnicas oraculares, definiu o local de Roma através da observação do vôo dos pássaros. Segundo Fustel de Coulanges, a escolha do local, «coisa grave e da qual se crê depender o destino do povo, sempre é deixada à decisão dos deuses».26

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Frobenius, Leo. Kulturgeschichte Afrikas. Wuppertal: Peter Hammer, 1998, p. 176. Granet, Marcel. O pensamento chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, pp. 84, 196. Detienne, Marcel. Apollon – Le couteau à la main. Une approche expérimentale du polythéisme grec. Paris: Gallimard, 1998, p. 106-107. Fustel de Coulanges, Numa Denis. La cité antique. Paris: Hachette, s/d (1898), p. 153.

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O fato de centrarmos nossa atenção não nos padrões de urbanização, mas sim nos de proto-urbanização, pode ser finalmente justificado. Quantos povoados brasileiros não se resumem a um conjunto de casas disposto em torno de uma igreja? O olhar do geógrafo, sempre atento às peculiaridades da paisagem, percebe-o mais rápido e procura entender por que o espaço assume uma determinada configuração e não outra. Foi assim que Deffontaines, em sentido diametralmente oposto à tese do «anti-urbanismo» de Oliveira Vianna, observou que a formação do embrião de cidade é fruto «de uma necessidade de vida social». A cidade nascente, continua ele, «é essencialmente uma igreja e uma praça». E mais: «O modo de criação desses burgos mostra bem a proeminência da função re-

ligiosa que serviu de ponto de concentração inicial. Em geral é um fazendeiro ou uma reunião de fazendeiros vizinhos que faz doação do território; ele o constitui em patrimônio, patrimônio oferecido à igreja ou antes a um santo. (...) Os proprietários vizinhos, desejosos de aproveitar as vantagens deste agrupamento, obtém lotes por locação, por arrendamento muito longo ou por perpetuidade mediante pagamento de um foro. Os benefícios realizados são destinados à construção da capela, à manutenção de um padre, cura ou vigário, ao estabelecimento de um cemitério, à organização de festas (festas religiosas) e também ao embelezamento da cidade, ou antes, da praça.»27

Deffontaines constata ao fim de seu estudo que «foi sem dúvida esse processo do patrimônio que deu ao Brasil a maioria das suas cidades, pelo menos na parte central do país».28 Monbeig, num texto originalmente publicado em 1940, escrevia que seria para ele motivo de alegria que «verdadeiros historiadores» se dedicassem «ao problema das origens das cidades brasileiras». E concluía: «é o voto formulado por um leigo e os historiadores dirão se é possível atendê-lo».29 É surpreendente que, mais de meio século depois, se continue a ignorar este convite. À exceção dos geógrafos (e não foram muitos), somente o urbanista Murillo Marx deu-se conta da importância de dar prosseguimento às pesquisas neste campo. Dissemos há pouco: a literatura disponível sobre a cidade brasileira se ressente, de um lado, de uma ausência das origens, e, de outro, de uma ausência do fator religioso. Algo como uma geografia histórica da religião pode vir a ser uma forma de contribuir para que ambas as lacunas possam ser ao menos parcialmente preenchidas. É o desafio diante do qual nos colocamos ao iniciar este trabalho. Ele se propõe a estudar de forma sistemática a importância das representações e

27 28

29

Deffontaines, «Como se constituiu no Brasil a rede de cidades», (15), pp. 299-300. Idem, ibidem, p. 301. A importância dos patrimônios em Minas foi posteriormente ressaltada por Valverde, Orlando. «Estudo regional da Zona da Mata, de Minas Gerais». In: Revista Brasileira de Geografia 1 (20) 1958: 3-82, p. 69. Monbeig, Pierre. «O estudo geográfico das cidades ». In: Monbeig, P. Novos estudos de geografia humana brasileira. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1957, p. 44.

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práticas religiosas na gênese das cidades e embriões de cidades em Minas Gerais ao longo dos séculos XVIII e XIX.

1.3.

O recorte espacial e cronológico

Os estudos de «geografia urbana retrospectiva» realizados pela escola paulista centraram-se, por motivos óbvios, no estado de São Paulo. Pouco ou quase nada de semelhante foi feito pelos pesquisadores interessados pela história do fenômeno urbano em Minas. Livros como os de Mário Leite e Augusto de Lima Júnior,30 publicados no início da década de 1960, não representaram avanços significativos nesse sentido. Somente dez anos depois vieram à luz duas obras que, ainda hoje, são referências básicas para aquele que pretende se aprofundar no estudo da temática que aqui nos ocupa. Referimo-nos à tese de Yves Leloup, Les villes du Minas Gerais, e ao indispensável Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, de Waldemar Barbosa.31 A partir de então predominaram estudos de caso, seja entre historiadores seja entre geógrafos. Nossa investigação parte do princípio de que Minas, estado que durante muito tempo foi tido como o «mais católico do Brasil», constitui um campo de testes privilegiado para a análise da dialética entre religião e espaço; e de que é possível demonstrá-lo por meio de um esforço de síntese. Como se sabe, o desencadeamento do processo de povoamento em Minas, em seus primórdios decorrente do gold rush iniciado na passagem dos séculos XVII-XVIII, representou algo inteiramente novo na história do Brasil. Se antes das primeiras descobertas minerais todo aquele imenso território não era dotado de um povoado sequer, ao fim do ano de 1789 já havia ali nada menos que quatorze vilas: Vila do Carmo (Mariana), Vila Rica (Ouro Preto), Sabará, São João del-Rei, Vila Nova da Rainha (Caeté), Vila do Príncipe (Serro), Pitangui, São José del-Rei (Tiradentes), Minas Novas, Vila do Tamanduá (Itapecerica), Barbacena, Queluz (Conselheiro Lafaiete), Paracatu e Campanha.32 Tudo conspirou para que a historiografia, ao se referir à formação da rede urbana mineira, se centrasse nas chamadas vilas do ouro. O que parece indicar que nos encontramos diante de uma região e de um período pouco ou nada propícios ao estudo da relação entre religião e gênese urbana. A avidez de riquezas sem dúvida explica o enorme afluxo de aventureiros para a região das Minas;33 enquanto que a criação das vilas corresponde a um de30

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Leite, Mário. Paulistas e mineiros: plantadores de cidades. São Paulo: EdArt, 1961; Lima Júnior, Augusto de. As primeiras vilas do ouro. Belo Horizonte: Santa Maria, 1962. Leloup, Yves. Les villes du Minas Gerais. Paris: Université de Paris, 1970; Barbosa, Waldemar. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995 (1a edição: 1971). Paula, Floriano Peixoto de. «Vilas de Minas Gerais no período colonial». In: RBEP (19) 1965: 275-284. Costa, Iraci Del Nero da. «Fundamentos econômicos da ocupação e povoamento de

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sejo explícito da Coroa portuguesa em manter a crescente população sob controle.34 Mas a singularidade de Minas não se limita ao século XVIII. Os estudos pioneiros de Roberto Martins mostraram que a passagem para o século seguinte de forma alguma correspondeu ao mito da «decadência» que uma certa historiografia, concedendo excessiva importância ao declínio da produção de ouro, ajudou a propagar. A sociedade pós-mineradora não experimentou refluxo econômico e muito menos demográfico. Impossibilitada de se sustentar com base no extrativismo mineral ou no abastecimento das áreas que em torno dele giravam, ela demonstrou ser capaz de desenvolver um perfil alternativo ao da típica economia de plantation. A manutenção do ritmo de crescimento populacional e o isolamento geográfico de Minas garantiam a manutenção do maior plantel de escravos da época e o desenvolvimento de uma economia baseada na agricultura para o mercado interno e nas atividades de transformação.35 Todavia continua comum a idéia segundo a qual processou-se então um refluxo do fenômeno urbano. Mesmo Martins afirma que, nesta fase, «as aglomerações urbanas perderam importância e a população se dispersou pelo vasto território da província».36 Século XIX, século da «ruralização» – a nossa Idade Média? Um período de letargia urbana que só teria tido fim em 1897, com a fundação de Belo Horizonte? Esse espaço em branco na literatura é particularmente difícil de explicar quando se sabe que, entre 1801 e 1850, 52 localidades mineiras são elevadas à condição de município. Significa dizer: um crescimento de 300% em relação ao período 1751-1800.37 O surto urbano não só não declinara, mas na verdade seguira de perto a evolução demográfica mineira. A progressiva expansão da rede urbana torna, desde já, algo evidente aos nossos olhos. A formação de novos núcleos teve continuidade a partir de condicionantes distintos dos que predominaram na primeira metade do século XVIII. O novo perfil da economia mineira conferiu um papel cada vez mais importante a estruturas sociais que, ao longo do período anterior, aparentemente só tinham tido uma importância secundária. O fenômeno urbano oitocentista reflete este novo momento. Sua formação acompanha agora o ritmo lento da vida das fazendas, e não a atividade febril que fora a marca das vilas do ouro. Não estamos no direito

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Minas Gerais». In: RIEB (24) 1982: 41-52. Boxer, C. R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1963, p. 140; Delson, New towns for Colonial Brazil, pp. 24-26. Martins Filho, Amilcar e Martins, Roberto B. «Slavery in a nonexport economy: nineteenth-century Minas Gerais revisited». In: HAHR 63 (3) 1983: 537-568; Botelho, Tarcísio Rodrigues. População e nação no Brasil do século XIX. São Paulo: tese de doutorado em História, USP, 1998. Martins, Roberto B. e Martins, Maria do Carmo S. «As exportações de Minas Gerais no século XIX ». In: RBEP (58) 1984, p. 106. Carvalho, Orlando. A multiplicação dos municípios em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Administração Municipal, 1957, p. 16.

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de ignorar a importância desta transição. Como e por que uma sociedade de perfil nitidamente rural, centrada em unidades auto-suficientes – as fazendas – continuou a gerar cidades? Poder-se-ia perguntar ainda como se justifica um estudo das formas elementares do espaço urbano num espaço de tempo tão dilatado. Em princípio, não se trata de postular a transição de um modelo de proto-urbanização a outro, mas de demonstrar que formas alternativas de instituição do espaço podem ser identificadas relativamente cedo na história de Minas Gerais, e que elas não só se mantiveram como ganharam importância ao longo do século XIX. A que será alvo principal de nossa atenção é a que evidencia a «proeminência da função religiosa» (Deffontaines). A formação de um arraial a partir de uma capela e do seu patrimônio em terras é um processo dotado de tal força e regularidade que não hesitaríamos em qualificá-lo de estrutural. Estrutural no sentido da longa duração de Braudel: processos que obedecem a um regime de temporalidade radicalmente distinto do da variação dos ciclos econômicos, do das reviravoltas políticas ou ainda, para tomar um exemplo contemporâneo, do tempo curtíssimo que rege as bolsas de valores sob o influxo da «globalização». Quando se estuda o impacto da religião na sociogênese dos arraiais fica evidente a continuidade de determinados padrões por praticamente dois séculos. Por vezes é possível identificar esta persistência mesmo nos dias de hoje, como se vê no caso da Vila de Piedade de Gerais, um embrião de cidade em pleno desenvolvimento a 110 km de distância de Belo Horizonte. Este embrião deve sua origem à crença em aparições de Nossa Senhora a três crianças a partir de setembro de 1987. Onde inicialmente havia apenas duas moradas, em 1994 viviam cerca de 200 pessoas distribuídas em 40 casas. O local, anteriormente denominado Barro Vermelho, passou a ser chamado Vila de Piedade dos Gerais, ou ainda Vale Santo.38 Numa sociedade dita «secularizada» fenômenos deste tipo tendem a ser cada vez mais raros, o que evidentemente não era o caso da Minas antiga. Se é excessivo postular, como fez Barbosa, que «à exceção das vilas do ouro, em todos eles [os povoados mineiros] a capela precedeu a formação do arraial»,39 há que reconhecer que os números são expressivos. Um primeiro levantamento realizado a partir da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros e do Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais mostrou-nos que cerca da metade das localidades elevadas à condição de cidade em Minas Gerais até o ano de 1900 tiveram sua origem em patrimônios religiosos. Quando se trata de analisar fenômenos dessa espécie, capazes de manifestarem-se durante longos períodos de tempo sem experimentar variações qualitativas de vulto, toda e qualquer tentativa de se 38

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Ferreira, Amauri Carlos. As aparições em Piedade dos Gerais e a construção do sujeito religioso. São Paulo: dissertação de mestrado em Ciência da Religião, PUC-SP, 1995. DHGMG, p. 264.

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estabelecer marcos cronológicos rígidos deixa de fazer sentido.40 Em todo o caso, e não apenas por motivos operacionais, toda pesquisa histórica deve limitar-se a um espaço de tempo determinado. Nosso ponto de partida coincide com a formação das primeiras vilas do ouro, vale dizer, as primeiras décadas do século XVIII. O ponto de chegada compreende o final do século XIX, no qual sobressaem dois momentos decisivos: a Proclamação da República e a inauguração de Belo Horizonte. A queda do regime imperial em 1889 marca a ascenção política de grupos civis e militares profundamente influenciados pela ideologia positivista, sabidamente hostil à tradicional aliança entre Estado e Igreja. Pode-se dizer que a primeira grande expressão urbanística da visão de mundo destas elites concretiza-se em 1897 com a nova capital de Minas. A oposição em relação à antiga capital, a velha Ouro Preto, é evidente: de um lado, o traçado intrincado da cidade barroca; de outro, o plano urbano retilíneo, racionalizado. Belo Horizonte pretende simbolizar o triunfo da «razão» e do «progresso». Como Brasília, mais tarde, ela é a expressão de um ato da vontade e não de um longo e intrincado processo evolutivo.

1.4.

Caracterização das fontes utilizadas

Minas Gerais conta atualmente com 853 cidades, distribuídas por uma área de 593.000 km² (França: 551.000 km²). Impensável, dentro dos limites de uma pesquisa levada a cabo quase que individualmente, cobrir todo esse território, todos ou mesmo a maior parte destes núcleos de povoamento e sua história. O que se pode fazer é trabalhar um número representativo de casos e, assim, tentar identificar padrões de continuidade. O enfoque a ser desenvolvido buscará o meio termo entre as perspectivas morfológica e histórica. Como reconstruir a trajetória de núcleos nascentes? Com efeito, o primeiro grande problema a resolver foi o de identificar fontes capazes de fornecer dados referentes àqueles instantes iniciais do espaço urbano. A resposta já fora, de certa forma, encontrada por Waldemar Barbosa. Se, como postulou Deffontaines, a ereção de uma igreja e a constituição de seu patrimônio (em terras) representaram o ponto de partida de um imenso número de cidades brasileiras, daí se conclui que a história do templo e seu respectivo patrimônio forneceriam a chave para a solução da questão. Uma parcela significativa da documentação básica é, portanto, de tipo eclesiástico. Os pedidos de ereção de capelas e ermidas domésticas feitos aos bispos traziam quase sempre um relato do isolamento geográfico à qual determinado grupo humano estava submetido, assim como as dificuldades enfrentadas nas viajens até as paróquias mas próximas. As fontes principais das 40

Para Simmel, se o início e o fim de uma época «se confondaient complètement sur le plan qualitativ, je ne vois pas en quoi son plus ou moins de durée pourrait nous intéresser». Simmel, Georg. «Le problème du temps historique». In: Revue de Métaphysique et de Morale (3) 1995: 295-309, p. 303.

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quais nos servimos são pedidos de provisão para a ereção de capelas e documentos atestando a doação dos patrimônios das mesmas. De modo a recolher uma amostragem representativa em termos históricos e geográficos, utilizamo-nos de arquivos eclesiásticos nas regiões centro (Mariana e Belo Horizonte), norte (Diamantina) e sul (Campanha) do estado. As dioceses de Mariana e Diamantina, criadas respectivamente em 1745 e 1854, são as mais antigas de Minas. Os arquivos de Belo Horizonte e Campanha, embora pertencentes a dioceses criadas no século XX, contém dados referentes ao período anterior uma vez que é norma da instituição que uma nova diocese receba a documentação referente à área de sua jurisdição. Como o regime de padroado pressupunha que o Estado participasse ativamente das decisões relativas ao «culto público», trabalhamos também com o acervo do Arquivo Público Mineiro, em especial com os microfilmes dos papéis avulsos trazidos do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Em Mariana tivemos o privilégio de localizar e vasculhar uma importante série de documentos, ao que parece ainda inédita. São os processos de patrimônio organizados em fins de século XIX pelo então Vigário-geral da Cúria, Monsenhor Júlio Bicalho. Trata-se de um material de difícil acesso, uma vez que diz respeito a propriedades da Igreja. Tais processos surgiram da necessidade de se comprovar legalmente, após a Proclamação da República em 1889, a propriedade eclesiástica sobre uma infinidade de patrimônios em terras que, desde o século XVIII, haviam sido doados para a ereção e manutenção das capelas e igrejas. O número relativamente baixo de processos de patrimônio disponíveis não deve causar impressão, haja vista as enormes dificuldades em reunir testemunhos. Na maior parte das capelas e igrejas mais antigas do arcebispado de Mariana, os documentos relativos à doação dos patrimônios simplesmente perderam-se, e nem sempre era possível localizar termos de doação no próprio arquivo da Cúria ou nos cartórios civis. O empenho incansável de Bicalho brindou-nos entretanto com um conjunto de fontes de enorme valor, já que tais dossiês permitem visualizar a trajetória de diversas localidades mineiras, desde a construção dos templos primitivos e a formação dos primeiros conjuntos de casas até a virada para o século XX. Quando se mostravam infrutíferas as tentativas de recuperar originais ou cópias de documentos, o Vigário-geral de Mariana orientava os párocos a realizar verdadeiros inquéritos e entrevistas com os moradores mais idosos de determinada cidade ou arraial. Devemos à seriedade com a qual ele se dedicou a esta tarefa alguns dos mais preciosos testemunhos utilizados neste trabalho. Os livros dos viajantes que percorreram Minas Gerais no século XIX são outra importante fonte de informação. É notável que, salvo Azevedo, os geógrafos não tenham se utilizado destes relatos, alguns deles bastante cuidadosos nas descrições do fenômeno urbano em seus distintos níveis de complexidade. Por outro lado os viajantes deixaram-nos testemunhos fundamentais sobre a religião popular mineira, em especial sobre aquelas práticas cotidianas que as fontes de tipo oficial (tanto civis quanto eclesiásticas) normalmente desprezam.

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Dois importantes instrumentos de pesquisa já citados anteriormente devem ainda ser mencionados: a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (EMB) e o Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais (DHGMG). O que faz dos três volumes da EMB dedicados a Minas uma fonte particularmente interessante é o fato de que nela se reproduzem sagas e mitos de origem relativos aos primórdios de um grande número das cidades do estado. Postas de lado por Barbosa e mesmo por sacerdotes que se interessaram pela evolução urbana mineira, como Monsenhor Lefort, tais sagas e mitos (seguramente recolhidas da tradição oral) permitem-nos analisar em que medida o universo religioso popular concebe a origem da cidade. Em outras palavras, como representações religiosas e instituição do espaço se condicionam mutuamente. Um último e ainda pouco explorado recurso são as obras de alguns escritores mineiros, em especial as de Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimarães e João Guimarães Rosa. Aspectos da vida cotidiana dos nossos embriões de cidades, difíceis de serem identificados através das fontes tradicionais, recebem normalmente maior atenção por parte do romancista. Desde que utilizada com o devido cuidado, a literatura enriquece o retrato que os viajantes fizeram de Minas, de seus arraiais e especialmente da visão de mundo de seus habitantes. O fato da obra de Guimarães Rosa ter sido escrita no século XX não diminui a importância de sua contribuição. Tendo nascido e trabalhado por anos no Hinterland, em lugarejos só muito incidentalmente afetados pela lógica do mundo propriamente «urbano», Rosa tornou-se um exímio conhecedor da cultura popular e da paisagem mineira.41 Sua extraordinária sensibilidade psicológica e sociológica convida a servirmo-nos do seu gênio literário da mesma forma que um Weber serviu-se do gênio de Tolstoi e Dostoievski.42 Mais que válido, trata-se de um procedimento fundamental para que possamos penetrar no universo mental dos mineiros de outrora, de vez que, como notou Alfred Schütz, «o poeta e o artista estão muito mais próximos de uma interpretação adequada dos mundos dos sonhos e dos fantasmas que o cientista e o filósofo, pois suas categorias de comunicação se referem, em si mesmas, ao campo do imaginário».43

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O seu tradutor para o alemão escreve, num prefácio, que Rosa «tem algo de antropólogo, ornitólogo e especialista em pedras (Gesteinsforscher)». Curt Meyer-Clason, «Nachwort». In: Rosa, João Guimarães. Sagarana. Köln: Kiepenheuer & Witsch, 1982, p. 18. Impressiona como esta obra, publicada pela primeira vez em 1946, oferece quase que uma versão literária do estudo de antropologia social de Willems (e que viria à luz somente no ano seguinte) sobre o universo social, religioso e cultural de uma pequena cidade paulista próxima da divisa com Minas Gerais. Ver Willems, Uma vila brasileira. Sobre o tema, ver o depoimento de Honigsheim, Paul. «Max Weber in Heidelberg». In: König, R. & Winckelmann, J. (Hrsg.) Max Weber zum Gedächtnis. Köln: Westdeutscher Verlag, 1963, pp. 234-241. Schütz, Alfred. «On multiple realities». In: Schütz, A. Collected papers. The problem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff, 1973, p. 244.

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2.

Perspectiva teórico-metodológica e problemas conceituais

2.1.

Considerações gerais

Tem crescido, nos últimos anos, o número de pesquisadores insatisfeitos com os rumos que alguns setores da historiografia vem tomando. Há uma sensação crescente de que a superação do paradigma dominante até meados da década de 1980 – de uma história das estruturas sócio-econômicas, quantitativa ou de perfil marxista para uma história da cultura e das mentalidades – se faz muito mais a nível temático que teórico-metodológico. Formalmente, é verdade, nunca se deixa de falar em «teoria». Os problemas surgem quando se trata de averiguar a eficácia dos conceitos empregados, ou mesmo em saber se sua aplicação é adequada. Tais deficiências exprimem duas ordens distintas de problemas. De um lado elas apenas reproduzem as contradições do paradigma ora dominante; de outro, elas dão a pensar o dilema da auto-compreensão da história enquanto disciplina científica. Não parece ser uma mera coincidência que, precisamente num tal contexto, ela tenha assumido, e em proporções antes impensáveis, o status de gênero «vendável». A historiografia tornou-se, no entender do filósofo Horst Günther, um gênero «estimado mais pela mídia que pela ciência».1 O que impressiona quando se acompanha a produção atual de setores da comunidade historiográfica é menos a massiva filiação à história das mentalidades ou à história cultural que a forma por meio da qual esta filiação tem se processado. Se as novas tendências contribuíram de forma inequívoca para a superação dos limites da historiografia, não é menos verdade que essa nova tradição tem sido marcada por um visível déficit no plano epistemológico. Numa longa entrevista publicada em Geschichte und Gesellschaft sobre as relações entre história e sociologia, Pierre Bourdieu afirmou que «apesar de certos aggiornamentos técnicos nos anos 1960, a história permanece centrada, na sua definição dominante, numa espécie de contato sagrado com os arquivos».2 O «culto do estilo elegante» e a «desconfiança» em relação aos conceitos seriam ainda, para Bourdieu, traços típicos do trabalho dos historiadores franceses. De fato, não se pode dizer que autores que se preocuparam em dar uma densa fundamentação teórica às suas pesquisas – como Marc Bloch, Marcel Granet, Fernand Braudel, Jean-Pierre Vernant, Paul Veyne ou Roger Chartier – tenham constituído uma maioria. Na Inglaterra o quadro não é diferente. Lynn Hunt observou como os trabalhos pioneiros de Edward Thompson e Charles Tilly abriram todo um novo campo de pesquisas sem que muitos dos que se diziam por eles inspirados mantivessem o mesmo rigor científico: «quanto mais a história social avançava, menos ela estava 1 2

Günther, Horst. «Historiker ohne Geschichte». In: Die Neue Rundschau 105 (1) 1994: 31-40, p. 38. Bourdieu, Pierre und Raphael, Lutz. «Über die Beziehungen zwischen Geschichte und Soziologie in Frankreich und Deutschland». In: GG (22) 1996: 62-89, p. 67.

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ligada a um projeto teórico qualquer».3 Sacralização do levantamento documental e escassa preocupação a nível propriamente teórico. Um sinal evidente da pregnância deste habitus é a recorrente advertência quanto ao «perigo» do uso de modelos estabalecidos a priori (para usar uma fórmula consagrada: quanto ao «risco de se ajustar os fatos aos modelos, e não o contrário»). Nada perdeu em atualidade a observação feita por Max Weber em 1906, de que «justamente os historiadores – através da forma através da qual eles tentaram fundamentar a particularidade da ‹história› no sentido técnico da palavra – contribuíram não menos para a consolidação do preconceito de que o trabalho ‹histórico› seria algo qualitativamente distinto de um trabalho ‹científico›».4 Ora, nenhum empreendimento científico pode prescindir do uso de hipóteses, categorias e, eventualmente, esquemas interpretativos («teorias») antecipadamente definidos – mesmo e principalmente quando se pretende refutá-los. Os conceitos funcionam como marcos a partir dos quais o cientista delineia seu objeto e estabelece seus objetivos. O exame cuidadoso dos dados atestará a validade das hipóteses e do aparato teórico utilizado, permitirá reelaborar alguns dos seus postulados ou, no limite, demonstrará a inadequação do modelo. Para o cientista os seus dados constituem um meio, nunca um fim em si mesmo. Descobrir «regularidades» e «relações» é o seu maior intento, e o modo mais eficaz (talvez mesmo o único) de atingí-lo é fazer uso de conceitos e teorias.5 Que se pode esperar de um campo do conhecimento marcado pela resistência a se entregar a tais tarefas? Em outros termos: de uma disciplina na qual está difundida a crença de que a estrutura narrativa é dotada de eficácia explicativa? No mais das vezes a história se contenta, na sua praxis – embora isso raramente seja admitido a nível do discurso –, em ser aquilo que Husserl chamava de Tatsachenwissenschaft, uma disciplina meramente descritiva. Basta observar, e isso na grande maioria dos estudos, a discrepância entre a cuidadosa análise do corpus documental e o exíguo espaço dedicado à discussão das categorias de análise a serem empregadas.

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Hunt, Lynn. «History beyond social theory». In: Carroll, David (ed.). The states of «theory». History, art, and critical discourse. New York: Columbia University Press, 1990, p. 96. Weber, Max. «Zur Auseinandersetzung mit Edward Meyer». In: Weber, M. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1988 (1922), pp. 216-217. Desnecessário dizer que nosso modelo de ciência histórica em nada lembra o de Popper. Para o mais ilustre representante do «racionalismo crítico», «history is characterized by its interest in actual, singular, or specific events, rather than in laws or generalizations». Popper, Karl. The poverty of historicism. London: Routledge/Kegan Paul, 1966 (1957), p. 143. Mesmo admitindo que Popper possa ter razão em sua crítica ao componente teleológico de determinadas teorias da história e à utopia de uma ciência da sociedade que identifique «leis», não nos parece realista negar à história e à sociologia a capacidade de apontar determinadas regularidades.

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O momento atual da epistemologia certamente reforça tal atitude. Se bem que por vezes justificada, a crítica dita «pós-moderna» demonstra o impasse vivido nas ciências humanas como um todo, de modo que a abertura de novos campos de pesquisa se faz numa espécie de vácuo teórico, ou, na melhor das hipóteses, como ironiza Marc Augé, num contexto em que «teorias da não-teorização» ganham terreno.6 O que infelizmente está longe de ser mera força de expressão. Há, nos dias de hoje, quem chegue a falar em «pós-teoria».7 O impacto desse estado de coisas sobre a disciplina histórica é imediato, sobretudo no campo da «nova» história cultural.8 Jörn Rüsen mostrou como o «retorno à narrativa» nos últimos decênios tem-se desenvolvido, de um lado, em prejuízo do ideal de objetividade, e, de outro, numa sobre-valorização da «ficcionalidade» no trabalho do historiador. Rüsen considera que «essa poetização do conhecimento histórico está intimamente relacionada com a falta de uma metodologia da interpretação histórica».9 O holandês Chris Lorenz, em seu excelente manual de introdução à teoria da história, observa que iniciativas como a de Hayden White implicaram numa substituição de problemas relativos à epistemologia por questões de ordem estética e estilística. O momento da pesquisa é artificialmente separado do da escrita da história, mas é sobretudo por este último que a perspectiva «pós-moderna» se interessa.10

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Augé, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 28. Numa obra dedicada à discussão da «post-theoretical condition » (sic), Fernando de Toro reforça o coro daqueles que acreditam que «the whole epistemological edifice [has collapsed], particulary the one based on the faith in science». Barry Rutland advoga, no mesmo volume, que «post-theory refers to the limits of theory and the surpassing of those limits. (...) /Post/ implies a further effort of theorization, within, but perhaps also against, the parameters of theory. Post-theory is the other of theory (...)». De Toro, Fernando (ed.) Explorations on post-theory: toward a third space. Madrid/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 1999, pp. 10 e 72. Só nos resta concordar com Luhmann quando ele escreve que «uma das características centrais do pensamento pós-moderno é a sua fundamentação última num paradoxo. O paradoxo é a ortodoxia do nosso tempo ». Luhmann, Niklas. Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1997, p. 1144. Conferir as oportunas críticas de Wehler, Hans-Ulrich. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts (1945-2000). Göttingen: Wallstein, 2001, pp. 71-78. Rüsen, Jörn. «Narratividade e objetividade na Ciência Histórica». In: EIA 24 (2) 1998: 311-335, p. 327. Ainda sobre as polêmicas em torno do narrativistic turn, ver Adam, A. M. «On the methods of history». In: Philosophy of the Social Sciences 29 (2) 1999: 315-324, p. 319. O extenso debate em torno do «pós-modernismo» no âmbito da historiografia é admiravelmente sintetizado por Lorenz, Chris. Konstruktion der Vergangenheit. Eine Einführung in die Geschichtstheorie. Köln: Böhlau, 1997, pp. 134-187. Ver ainda Lorenz, Chris. «Comparative historiography: problems and perspectives». In: HT (38) 1999: 25-39; Archila, Mauricio. «Es aún posible la búsqueda de la verdad?

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É notório que tais dilemas não se limitam à historiografia. O linguistical turn de um Richard Rorty está intimamente ligado ao «clima» hoje dominante nas ciências humanas.11 Tome-se ainda a figura de um Paul Feyerabend, o qual propõe um modelo de construção do conhecimento que se aproxima perigosamente de uma legitimação do subjetivismo. Seu mote (anything goes) lembra o do personagem trágico de Dostoievski, o intelectual Ivan Karamázov: «tudo é permitido». Feyerabend chega a propor que o avanço da ciência não se realiza apenas pela formulação de teorias alternativas às teorias já consolidadas, mas também pelo desenvolvimento de teorias incompatíveis com fatos comprovados.12 O relativismo tende assim a atingir assim sua forma paroxística, há muito denunciada por Husserl: ele culmina com «a bancarrota do conhecimento objetivo».13 Os efeitos colaterais desse Feierabend der Erkenntnis não são difíceis de perceber à nossa volta. Se «tudo vale», até mesmo sustentar hipóteses não amparadas em fatos, um Luiz Mott pode especular sobre as preferências sexuais de Zumbi, líder do Quilombo de Palmares; da mesma forma que historiadores (ditos «revisionistas») como David Irving contestam que o extermínio dos judeus tenha acontecido ao fim da Segunda Guerra Mundial. Um diagnóstico de curto espectro, como o oferecido por Rüsen, limita-se aos quadros da nossa própria disciplina e mostra como os debates em torno do neohistoricismo refletem um problema (ou antes: um dilema) estrutural da ciência histórica.14 Rapidamente nos damos conta, ao adotarmos uma perspectiva «estrutural», de que os impasses da historiografia refletem a crise das ciências humanas e mesmo da auto-compreensão do Ocidente como um todo. Numa análise que deve muito aos brilhantes estudos de Arnold Gehlen15, Peter Berger e Thomas

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Notas sobre la (nueva) historia cultural». In: Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura (26) 1999: 251-285. Ver Rorty, Richard. «Method, social science, and social hope». In: Seidman, Steven (ed.) The postmodern turn. New perspectives on social theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. Coutinho, Francisco A. «O modelo epistemológico de Paul Feyerabend e os elementos irracionais do progresso científico ». In: Revista da Fundação Educacional Monsenhor Messias (5) 1998: 19-44, p. 30. Husserl, Edmund. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Hamburg: Felix Meiner, 1996 (1936), p. 97. Rüsen, Jörn. «Historismus als Wissenschaftsparadigma. Leistung und Grenzen eines strukturgeschichtlichen Ansatzes der Historiographiegeschichte». In: Oexle, O. G. & Rüsen, J. (Hrsg.) Historismus in den Kulturwissenschaften. Köln: Böhlau, 1996, p. 126-127. Gehlen, Arnold. «Über kulturelle Kristallisation». In: Gehlen, A. Studien zur Anthropologie und Soziologie. Neuwied: Luchterhand, 1963. O autor argumenta que o nível crescente de complexidade das sociedades contemporâneas exprime-se, tanto no plano da arte como no da ciência, por meio da especialização, da pluralização e da conseqüente impossibilidade de surgimento de novas Weltanschauungen (para usar a terminologia de Augé: «retóricas intermediárias »). Donde se con-

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Luckmann mostram como o processo de modernização, assentado em meios técnico-científicos, levou à constituição de um tipo de pluralismo cujas formas mais recentes têm implicado numa pulverização das instâncias produtoras de sentido. A nível individual o pluralismo contemporâneo é experimentado por meio de uma sensação permanente de desorientação; e, a nível coletivo, por crises de sentido intersubjetivas.16 Poder-se-ia acrescentar que, no âmbito das ciências humanas, e especialmente em disciplinas como filosofia, antropologia, sociologia e história, as crises de sentido têm se exprimido por meio do ultra-relativismo, do ceticismo teórico e do conformismo prático. Para fazer frente a este momento de refluxo do ideal de objetividade na disciplina histórica, é absolutamente fundamental concentrar esforços a nível teórico. Numa palavra: precisamos menos de «descrições densas» que de explicações densas.17 Isso não significa que o historiador desconheça o quanto a subjetividade é parte constitutiva do processo através do qual um determinado objeto é eleito, reconstruído empiricamente e analisado. Sabe-se, e isso bem antes do advento do «pós-modernismo», que uma visão radicalmente dicotômica da oposição entre objetividade e subjetividade não responde às necessidades de um investigador interessado em zelar pelo rigor de seu trabalho. A ciência também nasce de um diálogo com a (e mesmo uma utilização consciente da) própria subjetividade.18 A este respeito, é revelador que a obra revolucionária de um Gilberto Freyre – e há quem a considere tão importante e original quanto a de Braudel19 – tenha sido ignorada pelos historiadores brasileiros durante praticamente meio século. Para Freyre a concepção rankeana de objetividade era, antes, um entrave a ser superado. Ele se propusera a escrever uma história que fosse «uma aventura de sensibilidade, [e] não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos».20 Somente depois de incorporada entre nós a noção de nova história emanada dos Annales, o sociólogo e historiador pernambucano passou a receber a atenção que lhe é de

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clui que a assim chamada «crise» dos paradigmas deve-se, em boa parte pelo menos, à profusão de paradigmas. Berger, Peter und Luckmann, Thomas. Modernität, Pluralismus und Sinnkrise. Die Orientierung des modernen Menschen. Gütersloh: Bertelsmann Stiftung, 1995. O entusiasmo com que a obra de Clifford Geertz foi recebida nos últimos anos provavelmente não teria sido o mesmo caso os historiadores estivessem atentos às críticas que lhe fazem outros importantes representantes do pensamento antropológico contemporâneo, tais como Ernst Gellner, Marc Augé, Roy D’Andrade e Thomas Schweizer. Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenschaften..., pp. 100-108. Para uma síntese das discussões a respeito no âmbito da historiografia, ver Kocka, Jürgen. Sozialgeschichte. Begriff, Entwicklung, Probleme. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1986, p. 40-45; e Lorenz, Konstruktion der Vergangenheit, pp. 367-383. «Freyre’s originality of approach puts him in the same class as Braudel». Burke, Peter. History and social theory. Ithaca: Cornell University Press, 1993, p. 17. Freyre, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1995 (1933), p. lxv.

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direito. O que torna o caso brasileiro singular é o fato de que livros como Casagrande & Senzala (1933) ou Sobrados e Mucambos (1936), que constituíam, em si mesmos, um programa de renovação radical da ciência histórica21, não tenham tido este impacto no país de origem daquele que os escreveu. Por que a obra de Gilberto Freyre não deflagrou entre nós uma reviravolta semelhante à causada por Marc Bloch e Lucien Febvre na França, E. P. Thompson e E. Hobsbawm na Inglaterra ou Werner Conze na Alemanha? Para entender este fenômeno não basta nos limitarmos a constatar o «complexo de inferioridade» que marca uma camada representativa do campo sócio-cultural brasileiro, ou ainda as disputas regionais que marcaram a institucionalização das ciências humanas em nossas Universidades («escola paulista» versus «escola de Recife»). É preciso que se entenda em que medida a relação ambígüa da história com outras disciplinas parece ser constitutiva do seu próprio ethos. Daí que periodicamente surjam vozes a reclamar uma aproximação. Fernand Braudel clamava, há tempos, por um diálogo mais intenso entre história e ciências sociais. Na década de 1970 Hans-Ulrich Wehler, Reinhardt Koselleck e Paul Veyne chamavam a atenção para a «indigência teórica» e os riscos do «impressionismo» na historiografia. Quase vinte anos depois, Peter Burke insistia ainda na importância de os historiadores «levarem a teoria social mais a sério do que normalmente o fazem», enquanto Roger Chartier falava da importância de se empreender uma releitura dos clássicos da sociologia.22 A conclusão é clara. Se há tanto tempo se insiste na importância de aproximar a história da metodologia e do aparato conceitual das ciências sociais, é porque houve e continua a haver resistência. Não sem razão, Hunt e Lorenz diagnosticam uma hostilidade à teoria entre os historiadores.23 As palavras de Sérgio Buarque resumem bem, ao nosso ver, um tipo de 21

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Quando do aparecimento da edição francesa de Casa-grande & Senzala, Roland Barthes escreveu: «C’est la quadrature du cercle des historiens, presque réalisé ici, le point ultime de la recherche historique». Barthes, Roland. Oeuvres complètes (1942-1965). Paris: Du Seuil, 1993, p. 210. Braudel, Fernand. «Historia e sociología». In: Gurvich, Georges (org.) Tratado de sociología. Buenos Aires: Kapelusz, 1962; Braudel, F. História e ciências sociais. Lisboa: Presença, 1972; Wehler, Hans-Ulrich. «Soziologie und Geschichte aus der Sicht des Sozialhistorikers». In: Ludz, P. C. (Hrsg.) Soziologie und Sozialgeschichte. Aspekte und Probleme. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1972, p. 60, 6770; Koselleck, Reinhardt. «Über die Theoriebedürftigkeit der Geschichtswissenschaft». In: Schieder, T. & Graübig, K. (Hrsg.) Theorieprobleme der Geschichtswissenschaft. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1977, p. 48; Veyne, Paul. «L’histoire conceptualisante». In: Le Goff, Jacques & Nora, Pierre (ed). Faire de l’Histoire. Paris: Gallimard, 1974 (vol I), p. 71; Burke, History and social theory, p. 164; Chartier, Roger. «Zeit der Zweifel. Zum Verständnis gegenwärtiger Geschichtsschreibung». In: Conrad, C. und Kessel, M. (Hrsg.) Geschichte schreiben in der Postmoderne. Beiträge zur aktuellen Diskussion. Stuttgart: Reclam, 1994, p. 91. Hunt, «History beyond social theory», p. 95; Lorenz, Konstruktion der Vergangen-

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atitude que continua comum entre nós: «Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental apurado e fatigante, as

idéias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da inteligência, parecem-nos constituir a verdadeira essência da sabedoria.»24

Uma historiografia que insiste em reservar um papel secundário à teoria, ou (o que é igualmente grave) que se relaciona com ela de forma passiva, não está em condições de fazer frente à tentação do impressionismo ou ao ceticismo «pós-moderno». Sem rigor lógico, sem precisão conceitual, sem a constituição de tipos ideais,25 não há como lançar as bases para a superação do estado de indigência epistemológica que ainda dá o tom em amplos setores da pesquisa histórica.

2.2.

Espaço

2.2.1. O retorno do espaço As línguas ocidentais dão prova, por meio de expressões tão difundidas como ter lugar, to take place, avoir lieu (no caso do alemão, um verbo: stattfinden), que a existência de um dado fenômeno está em relação direta com a sua espacialidade. Esquecidos da verdade desta constatação elementar, voltamos nossa atenção preferivelmente para aquela dimensão que nos parece ser a única efetivamente «dinâmica» em se tratando da vida do homem em sociedade. O tempo constitui, no berço da civilização judaico-cristã, quase que um valor em si mesmo. Neste contexto cultural torna-se possível afirmar que «a verdade tem um núcleo feito de tempo» (Heidegger). Esta inclinação pela diacronia adquiriu sua expressão máxima com o capitalismo e o advento do mais poderoso dos mitos por ele infundidos: o mito do «progresso». Talvez seja justamente a crise deste ideal um dos fatores que explique a redescoberta, hoje mais evidente do que nunca, do espaço. Sente-se enfim o impacto de uma reviravolta que se processa há tempos em disciplinas como a filosofia e a geografia. A década de 1990 evidenciou o que poderíamos chamar de retorno do espaço. Mas afinal o que se quer dizer quando se fala em «retorno»? O uso desta noção não será tão problemático quanto o daquela outra, igualmente disseminada nos últimos anos, a noção de «fim»? Falar em «retorno à narrativa», «retorno do sagrado» ou «retorno do espaço» não implica uma mera inversão da tendência em se falar em «fim da memória» (Nora), «fim da Revolução Francesa» (Furet), «fim da história» (Fukuyama)? Em termos. O problema surge quando se postula que fe-

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heit, p. 13. Holanda, Raízes do Brasil, p. 117. Habermas, Jürgen. Zur Logik der Sozialwissenschaften. Frankfurt: Suhrkamp, 1970, pp. 103-125; Weber, Max. «Die ‹Objektivität› sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer Erkenntnis ». In: Weber, Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, pp. 146-214.

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nômenos inerentes à vida social, como o são a memória ou a religião, possam «acabar». Por outro lado, é perfeitamente legítimo falar em «fim» ou «retorno» quando se trata de determinadas temáticas ou perspectivas analíticas (sejam elas tidas como frutíferas ou não). Nosso uso da expressão «retorno do espaço» deve ser assim compreendido: ela apenas diagnostica um fato; o fato de que a categoria espaço voltou a ocupar nos dias de hoje um lugar de destaque nas ciências humanas. Esse retorno se faz sentir um pouco por toda a parte. Da sociologia à teoria da história, da antropologia à ciência da religião.26 Este movimento pode ser igualmente constatado na historiografia. Volta-se a dar grande atenção à questão da fronteira. De um lado, a perspectiva de um Lucien Febvre27 ou um Sérgio Buarque de Holanda28 demonstra influenciar ou coincidir com alguns estudos recentes, como o de Laura de Mello e Souza.29 Uma outra leitura enfatiza não o espaço em si, mas as representações construídas a seu respeito. Os precursores desta linha (tomaremos a liberdade de chamá-la culturalista) parecem ter sido Aaron Gurjewitsch, Julio Caro Baroja e Jacques Le Goff. No seu clássico sobre as categorias de pensamento do homem medieval, Gurjewitsch dedicou um longo capítulo à análise das concepções espaciais.30 Sob a visível influência de Simmel, Baroja publicou alguns estudos notáveis sobre as formas de percepção da paisagem,31 enquanto que Le Goff dedicou-se à análise 26

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Augé, Marc. Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994 (1992); Luchiari, Maria T. «A categoria espaço na teoria social». In: Temáticas 4 (7) 1996: 191-239; Hirsch, Eric & O’Hanlon, Michael (eds.) The anthropology of landscape: perspectives on place and space. Oxford: Claredon Press, 1996; Sanchis, Pierre. «Topos, raízes, identidade: um enfoque sobre o Brasil», mimeografado, 1997; Guelke, Leonard. «The relations between geography and history reconsidered». In: HT 36 (2) 1997: 216-234; Gehlen, Rolf. «Raum». In: HrwG, 3. Band (1998), pp. 377-398; Gieryn, Thomas F. «A space for place in sociology». In: Annual Review of Sociology (26) 2000: 463-496; Löw, Martina. Raumsoziologie. Frankfurt: Suhrkamp, 2001. Febvre, Lucien. «Frontière – Wort und Bedeutung». In: Raulff, Ulrich (Hrsg.) Lucien Febvre. Das Gewissen des Historikers. Berlin: Klaus Wagenbach, 1988; Febvre, Lucien. Der Rhein und seine Geschichte. Frankfurt: Campus, 1995 (1925). Holanda, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Cia das Letras, 1994 (1957). Souza, Laura de Mello e. «Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações ». In: Souza, L. de M. e (org.) História da Vida Privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 1997, pp. 41-81. Ver também Potthast, B., Kohut, K. und Kohlhepp, G. (eds.) El espacio interior de América del Sur. Frankfurt: Vervuert, 1999. Gurjewitsch, Aaron. J. Das Weltbild des mittelalterlichen Menschen. München: C. H. Beck, 1986 (1972). Baroja, Julio Caro. «La interpretación histórico-cultural del paisage». In: RDTP (37) 1982: 3-55; Baroja, J. C. «Arte visoria». In: RDTP (48) 1987: 7-48.

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do deserto, da floresta e do purgatório no imaginário cristão.32 Enquadram-se aqui ainda as iniciativas de David J. Robinson e Russel-Wood em estudar, respectivamente, o significado do «lugar» na América Latina e o caráter «metafórico» da fronteira no Brasil Colônia.33 As relações entre espaço e mentalidade, paisagem e memória, também têm chamado a atenção dos pesquisadores; da mesma forma que a história de um espaço liminar tão especificamente brasileiro como o sertão.34 Vê-se, enfim, – e o amplo balanço feito por Bernd Schröter o comprova35 – que o retorno do espaço consolidou-se como uma das tendências principais da historiografia na passagem para o século XXI. A questão dos limites da visão formalista do espaço, entretanto, não tem sido discutida a fundo – com as honrosas exceções de Francisco Carlos T. da Silva e Ciro Flammarion Cardoso36 – pelos historiadores brasileiros. Como domina ainda a temática do espaço urbano, só aos poucos outras formas de experiência e percepção espacial têm sido exploradas. A concepção tradicional de espaço, ainda hoje majoritária entre historiadores, é a de que ele se reduz a um «palco». Seja dito: autores como Lucien Febvre e Fernand Braudel deram uma esplêndida contribuição à difusão desta concepção empobrecida do espaço. As posições de Febvre foram sistematicamente apresentadas num livro publicado em 1922, La terre et l’evolution humaine. Toda a primeira parte desta obra é dedicada à crítica daquilo que o próprio autor celebrizou com a expressão «determinismo geográfico». Para Febvre a expressão mais elaborada do determi32

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Le Goff, Jacques. La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1981; Le Goff, J. «Le désert-forêt dans l’Occident médiéval». In: Le Goff, J. L’Imaginaire Médiéval. Paris: Gallimard, 1985. Robinson, David J. «A linguagem e o significado de lugar na América Latina». In: RH (121) 1989: 67-110; Russel-Wood, A. J. R «Frontiers in Colonial Brazil: reality, myth, and metaphor». In: Covington, P. (ed.) Latin American frontiers, borders and hinterlands. University of New Mexico, 1990. Lecouteux, Claude. Démons et génies du terroir au Moyen Âge. Paris: Imago, 1995; Brunner, Karl. «Virtuelle und wirkliche Welt. Umweltgeschichte und Mentalitätsgeschichte». In: Spindler, Konrad (Hrsg.) Mensch und Natur im mittelalterlichen Europa. Flagenfurt: Wieser, 1998; Schama, Simon. «Landschaft und Erinnerung». In: Conrad, C. und Hessel, M. (Hrsg.) Kultur und Geschichte. Neue Einblicke in eine alte Beziehung. Stuttgart: Reclam, 1998; Carrara, Ângelo Alves. «O ‹sertão› no espaço econômico da mineração». In: LPH – Revista de História (6) 1996: 40-48; Araújo, Emanuel. «Tão vasto, tão ermo, tão longe: o sertão e o sertanejo nos tempos coloniais». In: Del Priore, M. (org.) Revisão do paraíso. Rio de Janeiro: Campus, 2000; Carrara, Ângelo Alves. «Paisagens de um grande sertão: a margem esquerda do médio-São Francisco nos séculos XVIII a XX». In: Ciência e Trópico 29 (1) 2001: 61-123. Schröter, Bernd. «Bemerkungen zu einer Historiographie der Grenze». In: JbLA (31) 1994: 329-360. Silva, Francisco Carlos T. da. «História das paisagens». In: Cardoso, Ciro F. e Vainfas, R. (org.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997; Cardoso, Ciro F. «Repensando a construção do espaço». In: RHR 3 (1) 1998: 7-23.

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nismo se encontra na concepção de geografia desenvolvida por Friedrich Ratzel em seus Anthropogeographie e Politische Geographie. Curiosamente, boa parte de suas ressalvas a Ratzel são tomadas das páginas do órgão oficial da escola sociológica francesa, o Année Sociologique. Durkheim havia sugerido, em lugar da geografia do homem, uma disciplina denominada «morfologia social», entendida enquanto sub-área da sociologia.37 Febvre se agarra a esta proposta, e sentencia no seu livro: «renasce assim das cinzas, mas sob uma denominação distinta, a antropogeografia anteriormente imolada sobre o altar do confusionismo». Fatos históricos e fatos geográficos, diz ele, são coisas distintas. Pretender intercalá-los «é impossível, é absurdo». Ao invés da ciência «confusa», «ambiciosa», «determinista» que seria a geografia humana de Ratzel, Febvre defende a adesão dos geógrafos ao programa estipulado pela sociologia. A geografia, diz o historiador Febvre, deve ser «modesta». Ela deve ser «a ciência dos lugares».38 A veemência destes ataques é surpreendente quando se sabe que nada há de confuso na concepção de geografia humana elaborada por Ratzel. Segundo este a geografia deve estar intimamente associada à história, mas nunca numa condição de «ciência auxiliar», rótulo que ele repudiava vigorosamente. Essa proximidade entre ambas advém do fato que há uma evidente inter-relação entre espaço e história. Se «a história não pode ser entendida sem seu chão», é igualmente verdade que «a geografia de qualquer lugar da terra não pode ser apresentada sem o conhecimento da história que nele deixou suas marcas».39 Num ponto Febvre tem razão. Ratzel havia estabelecido um programa ambicioso, talvez tão ambicioso quanto o dos Annales. Obviamente o olhar do geógrafo tende a se deslocar para «as relações dos homens com o seu chão», mas há aqui duas inovações fundamentais (não nos esqueçamos que o primeiro volume da Anthropogeographie foi publicado em 1882). Ratzel diz que a antropogeografia deve se ocupar tanto com o «onde» quanto com o «para onde». Ela é bem mais que uma modesta «ciência dos lugares», ela é uma ciência do movimento, da dinâmica do elemento humano sobre a terra. Basta pensar em contextos históricos profundamente marcados pelo desenraizamento, como é o caso da Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX, para nos darmos conta da importância deste enfoque. Por outro lado, a dialética entre espaço e história não se processa apenas num nível puramente formal. O espaço influencia a constituição física e mesmo a mentalidade (o «espírito») de um grupo. Trata-se de processos – admite ele – tradicionalmente estudados pela fisiologia e pela psicologia, «todavia a antropogeografia não passará à margem dos conhecimentos adquiridos na descrição de regi37

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Durkheim e Mauss não chegaram a redigir uma apresentação sistemática da nova disciplina. Este trabalho foi levado a cabo por Halbwachs, Maurice. Morphologie sociale. Paris: Armand Colin, 1970 (1938). Febvre, Lucien. La terre et l’évolution humaine. Paris: Albin Michel, 1970 (1922), pp. 47, 49, 73, 76. O grifo é nosso. Ratzel, Friedrich. Anthropogeographie. Grundzüge der Anwendung der Erdkunde auf die Geschichte. Stuttgart: J. Engelhorn, 1909 (1882), pp. 50, 55.

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ões e povos».40 Durkheim se opôs a esta última intenção (em sua resenha do livro de Ratzel publicada no terceiro volume do Année), sob o argumento de que a sociologia religiosa é que deveria se ocupar com o impacto do meio natural sobre as representações coletivas. Febvre, duas décadas mais tarde, não fez senão reproduzir a mesma argumentação.41 Que uma disciplina possa ter a pretensão de estabelecer, mesmo a posteriori, os limites e o objeto de uma outra, parece ser um fenômeno típico de fases em que jovens ciências se institucionalizam. A conseqüência deste imperialismo inter-disciplinar foi a progressiva redução da geografia à condição de «ciência auxiliar»; assim como a perpetuação da antiga noção de que o espaço é um simples invólucro da história. Ratzel escreveu que a antropogeografia é uma ciência descritiva. E acrescentou logo em seguida: «ser descritiva só representa uma censura para uma ciência se ela nada mais é além disso». Para tanto a antropogeografia deve ser uma «ciência comparada», uma geografia rica em idéias (vergeistigte Erdkunde) e que identifique leis. Leis similares às da química, às da física? Não, nem ela nem as demais disciplinas que lidam com o homem em sociedade poderiam alimentar tal pretensão; pois «um povo, tanto quanto um ser humano, demonstra ter uma vontade livre. Mas por toda a parte em que essa vontade se converte em ações, ela tem de levar em conta os limites que lhe são impostos pelas condições de existência».42 Parece algo superada hoje, em alguns aspectos, essa forma de analisar a dialética entre o espaço e sociedade. Ratzel elege o «povo» e a «nação» como categorias-chave, o que é fácil de se entender se levarmos em conta que a historiografia da sua época se ocupava predominantemente com a esfera da política e das relações entre os Estados Nacionais. O que surpreende é que o fundador da geografia humana vai além, e incorpora grande quantidade de dados etnográficos às suas reflexões. Em nenhum momento de sua análise ele separa povos «civilizados» de povos «primitivos». Aquela idéia tão difundida no século XIX, a de que os «primitivos» não teriam história, não encontra eco nas obras de Ratzel. A etnografia era uma de suas paixões, e um dos fundadores da antropologia norte-americana, Franz Boas (o futuro mestre de Gilberto Freyre), tinha-o como uma de suas maiores influências. Mas a abordagem da antropogeografia não é monográfica como tende a ser a da etnologia, e isso já fora claramente admitido por seu fundador.43 Essa ampla perspectiva comparada levou-o a desenvolver a noção de «concepção de espaço» (Raumauffassung): a forma através da qual uma coletividade concebe a extensão em que vive.44 Caso este conceito não fosse dotado de uma coloração 40 41 42 43

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Ratzel, Anthropogeographie, pp. 49-50. Febvre, La terre..., pp. 45-46. Ratzel, Anthropogeographie, pp. 59, 63. O grifo é nosso. A antropogeografia ambiciona «die Völker als ganze, als zusammenhängende Körper sich vorzustellen; sie ist wesentlich einheitlich, die Ethnographie dagegen wesentlich auf das Trennende gerichtet». Ratzel, Anthropogeographie, p. 59. Ratzel, Friedrich. Politische Geographie. München: Oldenbourg, 1897, pp. 334-341.

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tão marcadamente materialista, dir-se-ia que ele poderia ter desempenhado um papel tão frutífero quanto o da noção durkheimiana de «representação coletiva», da qual, num certo sentido, está muito próximo. Não se pode dizer que o empenho de Febvre em desqualificar a contribuição de Ratzel não tenha dado frutos. O historiador Nelson Werneck Sodré foi outro a assumir para si a tarefa de redigir uma «Introdução à Geografia»; obviamente com todas as críticas de direito ao «determinismo».45 Embora um Max Sorre tenha chamado a atenção para o fato de que «seria bem pueril afastar com desprezo tudo o que se chamou, às vezes, determinismo ratzeliano»,46 ou Yves Lacoste tenha demonstrado como Febvre manipulou cuidadosamente suas citações dos clássicos da geografia francesa de modo a legitimar o seu projeto para esta disciplina,47 só muito recentemente passou-se a reavaliar com seriedade a importância do legado ratzeliano.48 Com Fernand Braudel, o pai da assim chamada geo-história, verifica-se uma reviravolta nesse quadro? De fato não. Se Braudel se interessa pelas grandes estruturas espaciais, como o Mediterrâneo, ele o faz antes de tudo para ressaltar a existência de um outro regime de temporalidade, a longa duração (também identificada num outro plano, o do mito). A geografia mereceu de sua parte, numa entrevista, o pouco honroso título de «ciência subjugada».49 A ascenção dos métodos quantitativos na década de 1970 pareceu acentuar ainda mais a concepção formalista de espaço associada a esta visão empobrecida da geografia.50 Por tudo isso tem razão Edward Soja ao afirmar que o historicismo, na sua supervalorização da contextualização cronológica, implica, necessariamente, numa «subordinação implícita do espaço ao tempo».51 A despeito de iniciativas como a de Koselleck52, a ciência histórica não demonstrou maior interesse em acompanhar a discussão desenvolvida em torno da 45 46 47 48

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Sodré, Nelson Werneck. Introdução à Geografia. Petrópolis: Vozes, 1992. Megale, Januário Francisco (org.) Max Sorre. São Paulo: Ática, 1984, p. 73. Lacoste, Yves. A geografia. Isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1993, pp. 121-124. Carvalho, Marcos B. de. «Ratzel: releituras contemporâneas. Uma reabilitação?». In: Biblio 3w. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales (25) 1997 (www.ub.es/geocrit/bw-ig.htm); Carvalho, Marcos B. de. «Diálogos entre as Ciências Sociais: um legado intelectual de Friedrich Ratzel (1844-1904) ». In: Biblio 3w (34) 1997. A citação é feita por Lacoste, A geografia, p. 125. É o caso do livro de Chaunu, Pierre. Histoire, Science Sociale. La durée, l’espace et l’homme a l’époque moderne. Paris: Société d’Édition d’Enseignement Supérieur, 1974. Soja, Edward. «History: geography: modernity». In: During, Simon (ed.) The cultural studies reader. London: Routledge, 1993, p. 140. Koselleck, Reinhart. «Raum und Geschichte». In: Koselleck, R. Zeitschichten. Studien zur Historik. Frankfurt: Suhrkamp, 2000, pp. 78-96. Este estudo, originalmente apresentado num congresso em 1986, faz justiça à contribuição de Ratzel

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categoria espaço. Um nome a ser relembrado, e não só pelo seu pioneirismo, é o de Georg Simmel. Publicada em 1908, sua Soziologie contém um extenso e rico capítulo sobre as relações entre espaço e sociedade. Ratzel não é citado, mas a alusão e a contraposição às suas teses é clara. Simmel afirma que nem tempo nem espaço podem ser tidos, em si mesmos, como causas de fenômenos sociais. Tempo e espaço configurariam meras coordenadas em que tais fenômenos se verificam. Para ele, «em si mesmo, o espaço é uma forma destituída de eficácia, onde, na verdade, as energias reais se manifestam». Que energias são estas e de onde provêm? Formado na escola de pensamento kantiana, sua resposta não poderia ser outra: «o espaço é apenas uma expressão da alma».53 Nenhuma teoria é elaborada, nenhum programa disciplinar é estipulado. Simmel prefere definir alguns problemas a serem explorados – como a relação que distintas formas de socialização têm com o espaço ou a importância do que ele denominou «pontos de rotação» (focos a partir dos quais irradiam forças de coesão e/ou subordinação). Outro tema que Simmel explorou pioneiramente, e que o tornou conhecido entre os historiadores brasileiros é o efeito da vida nas metrópoles sobre a vida espiritual dos homens. A grande cidade é o locus por excelência da mentalidade moderna. Neste espaço gigantesco e racionalizado, dominado pela lógica econômica capitalista, as relações entre os homens se automatizam e perdem o caráter pleno que é comum nas pequenas cidades.54 Sua oposição entre metrópole e pequena cidade é análoga à que Tönnies havia identificado entre sociedade e comunidade. A atualidade da sociologia do espaço de Simmel é ainda mais flagrante quando se sabe que ela se ocupa longamente com o problema da constituição e significado dos limites e fronteiras. Há assim uma dialética entre coesão de um grupo e os limites espaciais que ele ocupa. A unidade do grupo e a do seu espaço são indissociáveis uma da outra. Esta questão aparece aqui sob uma ótica radicalmente distinta da de um Ratzel ou de um Febvre. «A fronteira – diz Simmel – não é um fato espacial que gera efeitos sociológicos, mas um fato sociológico que adquire forma espacial. (...) Toda fronteira é um fenômeno espiritual, ou antes, sociológico».55 É fácil entender o caráter inovador desta visão da fronteira se se leva em conta o domínio absoluto exercido até então pela perspectiva formalista. Outra contribuição a ser ressaltada é a análise do «espaço mítico» proposta por Ernst Cassirer. O espaço mítico é aquele espaço carregado de sentido, em oposição ao espaço que se apresenta aos nossos órgãos sensoriais (o «espaço geomé-

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sem responsabilizá-lo (como se tornou lugar comum) pelos descaminhos da Geopolítica. Koselleck não deixa porém de chamar nossa atenção para «inúmeras passagens dubiosamente formuladas » nas obras de Ratzel (p. 88). Simmel, Georg. «Der Raum und die räumlichen Ordnungen der Gesellschaft». In: Simmel, G. Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung. Frankfurt: Suhrkamp, 1999 (1908), pp. 687-689. Simmel, Georg. «Die Großstädte und das Geistesleben». In: Simmel, G. Aufsätze und Abhandlungen (1901-1908). Frankfurt: Suhrkamp, 1995. Simmel, «Der Raum...», pp. 697, 699.

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trico»). Este é homogêneo, puramente funcional; enquanto que aquele é um espaço diferenciado, heterogêneo. Da mesma forma que Ratzel, Cassirer se utiliza amplamente de material histórico e etnográfico. Mas como o centro de sua atenção é a forma através da qual o espaço é vivenciado em sociedades ainda não dominadas pelo pensamento racionalista, pode-se dizer que ele oferece as bases para a constituição de uma antropologia do espaço que, àquela época, mal se delineava. Cassirer portula que, «inversamente à homogeneidade que reina no conceito geométrico de espaço, na concepção mítica cada lugar e direção são dotados quase que de um acento próprio».56 A experiência básica do espaço se resumiria à percepção de duas regiões qualitativamente opostas: uma cotidiana («profana») e outra extra-cotidiana («sagrada»). Mesmo sistemas de orientação altamente complexos, como o dos zuni, dos iorubás ou dos chineses se baseariam para ele na mesma dicotomia primordial entre sagrado e profano. O fundamental para nós, no momento, é perceber que em Cassirer a peculiaridade de um espaço é sobretudo expressão da atividade simbolizante dos homens.57 O pensamento racionalista moderno conseguiria perceber e classificar espaços segundo sua forma, mas não mais – como no pensamento mítico – segundo sua qualidade. A contribuição dos filósofos à análise do espaço readquire importância no início da segunda metade do século XX com Gaston Bachelard e Otto Friedrich Bollnow.58 O neo-kantismo de Simmel e Cassirer dá lugar ao método fenomenológico. O objetivo fundamental passa a ser identificar as formas básicas através das quais o espaço se constitui na consciência. Martina Löw criticou neste método a sua pouca sensibilidade para com disparidades sociais e mesmo a sua «ahistoricidade».59 Sem dúvida: relações de poder e tensões entre classes ou grupos não têm lugar nos estudos desses autores, mas apenas pelo fato de que o foco de suas preocupações é outro. Não se trata de ignorar a dinâmica do espaço, mas de perceber como a forma de nos relacionarmos com ele muitas vezes reproduz determinadas estruturas do espírito humano. O princípio post hoc, propter hoc não explica por que determinados elementos próprios à construção do espaço sagrado se verificam de forma idêntica em contextos históricos e culturais radicalmente distintos entre si. Nada seria mais contrário à lógica que pressupor que tudo aquilo que se refere ao espaço só possa ser explicado no tempo. Os métodos histórico e fenomenológico não são entretanto excludentes entre si como muitas vezes se afirma.60 Uma prova disso é a famosa conferência feita por Michel Fou56 57

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Cassirer, Ernst. Philosophie der symbolischen Formen. Das mythische Denken. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1958 (1923), p. 106. «Die Sinnfunktion ist das primäre und bestimmende, die Raumstruktur das sekundäre und abhängige Moment». Cassirer, Ernst. Symbol, Technik, Sprache. Aufsätze aus den Jahren 1927-1933. Hamburg: Felix Meiner, 1985, p. 102. Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (1957); Bollnow, Otto F. Mensch und Raum. Stuttgart: Kohlhammer, 1997 (1963). Löw, Raumsoziologie, pp. 19-20. O próprio Husserl parece ter sentido a necessidade de ressaltá-lo em alguns dos

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cault em 1967, onde ele se propôs a fazer para os espaces autres algo semelhante ao que Bachelard fizera para o espaço da casa.61 Foucault sugere o termo heterotopias para aqueles espaços que, em toda sociedade, constituem como que ilhas regidas por uma lógica à parte: hospícios, prisões, asilos de idosos, cemitérios, jardins, museus, bibliotecas, feiras, casernas, etc. Foucault se distancia dos fenomenólogos ao centrar sua atenção na historicidade e no poder disciplinador que caracteriza inúmeras heterotopias (e este é sem dúvida o aspecto mais proveitoso da sua abordagem), mas ao mesmo tempo tem-se a impressão que esta concepção corre o risco de se auto-invalidar à medida em que seu escopo é demasiadamente ampliado. Se a lista das heterotopias é de fato tão extensa e variada como sugere Foucault, pode-se então perguntar: qual é afinal o espaço do cotidiano por excelência, do mundo da vida (Lebenswelt)? Pois só faz sentido invocar heterotopias se a vida «normal» transcorre num regime «normal» de espacialidade. Ora: num sentido estrito, só há heterotopias, uma vez que a heterogeneidade do espaço é um dado elementar da experiência de qualquer grupo humano; ela não se limita, como supunha Cassirer, às sociedades tradicionais. Se toda extensão é única, tanto em termos do «feixe de relações» que comporta, quanto em termos da forma através da qual é semantizada, a tarefa preliminar consistiria em caracterizar de forma sistemática os espaços aos quais se adequa o termo heterotopia. É preciso reconhecer, em todo o caso, que a morte precoce de Foucault provavelmente não lhe permitiu dar continuidade a este trabalho. A abordagem propriamente antropológica tomará uma direção bem diferente. Na etnologia norte-americana popularizou-se, entre 1930 e 1940, o uso do conceito de «área cultural». Kroeber tinha utilizado-se dele, pioneiramente, no seu estudo das culturas indígenas da América do Sul, e Herskovits aplicou-o mais tarde à África.62 Embora a categoria «área cultural» não rompa com a concepção formalista de espaço (uma vez que visa identificar áreas geográficas dentro das quais determinados traços de cultura se apresentam de forma homogênea), ela representa uma valiosa ferramenta de análise, como demonstram inúmeros estudos no campo da etno-lingüística. Num segundo momento esta preocupação de caráter propriamente empírico dá lugar a um esforço de sistematização teórica. Lévi-

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seus últimos escritos: Husserl, Edmund. Die Krisis des europäischen Menschentums und die Philosophie. Weinheim: Beltz Athenäum, 1995 (1935). Ver ainda Grathoff, Richard. Milieu und Lebenswelt. Frankfurt: Suhrkamp, 1995 (1989), pp. 117-118. Foucault, Michel. «Des espaces autres». In: Foucault, M. Dits et écrits. 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994 (tome IV), pp. 752-762. Para uma análise da importância do espaço na sua obra, ver Flynn, Thomas R. «Foucault and the spaces of history». In: The Monist 74 (2) 1991: 165-186. Herskovits, Melville. Antropologia cultural. São Paulo, Mestre Jou, 1973 (Cap. XII: «Áreas Culturais: a dimensão espacial»). Sobre a história do conceito, ver Ehrich, R. W. and Henderson, G. M. «Culture area». In: IESS, vol 3, pp. 563-568. Para o caso brasileiro, ver Diégues Júnior, Manuel. Áreas culturais do Brasil. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1960.

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Strauss – dando continuidade a um projeto explicitado no famoso estudo de Durkheim e Mauss sobre as «Formas primitivas de classificação» – defendeu a tese de que existe «uma relação (...) entre a configuração espacial e a estrutura social» de um grupo.63 Sua própria concepção de morfologia social foi apresentada num sofisticado estudo sobre o problema das «organizações dualistas» em grupos indígenas da América do Norte, Melanésia e Brasil. Mais ou menos na mesma época, Julian Steward desenvolveu as bases da «ecologia cultural», cuja proximidade em relação às teses de Ratzel é evidente. Para Steward a ecologia cultural «é o estudo dos processos através dos quais uma sociedade se adapta ao seu meio». O ponto-chave é tentar entender em que medida «estas adaptações deflagram transformações sociais internas ou transformações evolutivas».64 A proposta pareceu não fazer muitos adeptos, possivelmente devido à influência crescente do funcionalismo e a recusa deste último em incorporar a historicidade ao estudo das «sociedades primitivas». A obra de Steward parecia ser vítima, aos olhos do paradigma funcionalista, de dois pecados capitais: «determinismo» e «evolucionismo». Com o retorno do espaço dos últimos anos, ela tem servido de ponto de partida para iniciativas como a de Morán.65 Não se deve deixar de mencionar a reviravolta experimentada pela geografia na década de 1970 e a diversidade de orientações daí resultante. Na França, em estreito diálogo com a tradição marxista, surge a geografia crítica. O espaço deixa de ser o «palco» da vida social e da história para tornar-se o «locus da reprodução das relações sociais de produção».66 Não seria de todo absurdo caracterizar a obra de Henri Lefebvre, referência teórica fundamental dessa escola, como uma reação marxista à perspectiva de Bachelard e dos antropólogos.67 A contribuição de Foucault pode e deve ser inserida neste contexto de valorização das relações entre espaço e poder («space is fundamental in any exercise of power»).68 Nos Estados Unidos, os geógrafos tomaram uma direção diametralmente oposta – justamente a criticada por Lefebvre. O excelente volume organizado por Lowenthal e Bow-

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Lévi-Strauss, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973 (1958), pp. 155-189; 331. Steward, Julian. «Cultural ecology». In: IESS, vol. 4, p. 337. Ver ainda: Helm, June. «The ecological approach in anthropology». In: American Journal of Sociology (67) 1962: 630-639; e os artigos de Paul Baker, Marshall Newman e Charles Frake em «Ecology and Anthropology: a symposium». In: American Anthropologist (64) 1962: 15-59. Morán, Emilio F. Adaptabilidade humana. Uma introdução à antropologia ecológica. São Paulo: Edusp, 1994. Corrêa, Roberto L. «Espaço, um conceito-chave da geografia». In: Castro, I. E., Gomes, P. C. e Corrêa, R. L. (orgs.) Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 25. Lefebvre, Henri. The production of space. Oxford: Blackwell, 1991 (1974). Foucault, Michel. «Space, power and knowlegde». In: During, S. The cultural studies reader, p. 168.

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den,69 ou ainda os conhecidos trabalhos de Yi-fu Tuan70 dão prova da originalidade dos estudos produzidos pela geografia culturalista. Simultaneamente, organizava-se na Alemanha um grupo de pesquisadores interessados em conferir um caráter sistemático à geografia da religião. O modelo desenvolvido pela «Escola de Bochum» – voltaremos a ele adiante – abriu perspectivas para todo um novo campo de pesquisas: a geografia das atitudes mentais (Geographie der Geisteshaltungen).71 Tendo em vista melhor entender a interação entre espaço e sociedade, alguns autores dedicaram-se à análise das formas antitéticas de espaço e lugar (toda tentativa de se estabelecer uma distinção rígida entre estas duas últimas noções, como observou corretamente J. E. Malpas, não acrescenta muita coisa à discussão).72 Uma iniciativa pioneira nesse sentido foi empreendida pelo geógrafo canadense Edward Relph em seu livro Place and placelessness. Para Relph, lugares são extensões carregadas de sentido, profundamente ligadas à existência individual e coletiva. Por placelessness entende ele um processo de uniformização e massificação (cultural e, conseqüentemente, espacial) que levaria a uma progressiva perda da identidade associada aos lugares.73 Não é outro o sentido das reflexões de Augé a respeito dos «não-lugares». Augé postula que a experiência tradicional do lugar – entendido como uma das realidades através das quais os homens estabelecem relações entre si, onde eles constroem sua identidade coletiva e vivenciam sua história – encontra seu oposto nos «não-lugares» típicos do mundo contemporâneo, como caixas automáticos, aeroportos ou grandes centros comerciais. O não-lugar em nada contribuiria para a construção da identidade ou reforço da sociabilidade de um determinado grupo. Ele não constituiria uma referência, mas sim uma mera condição de transitoriedade: o não-lugar representaria uma «perda da vinculação social que era inerente ao lugar».74 Os termos placelessness e non-lieux têm um sentido preciso em Relph e Augé, não há dúvida. O que não parece isentá-los de alguns problemas. De um ponto de vista mais amplo, não há como negar que ambos estão imbuídos de um ideal romântico – nem tanto na constatação empírica de que novas formas de produção e de experiência do espaço emergem com a sociedade contemporânea, mas sim no pressuposto não-declarado de que elas seriam inferiores 69 70

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Lowenthal, David and Bowden, Martyn J. (ed.) Geographies of the mind. Essays in historical geosophy. New York: Oxford University Press, 1976. Tuan, Yi-fu. Topofilia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980 (1974); Tuan, Yi-fu. Espaço e lugar. A perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983 (1977). Büttner, Manfred. «Von der Religionsgeographie zur Geographie der Geisteshaltung?» In: Die Erde (107) 1976: 300-329. Malpas, J. E. Place and experience. A philosophical topography. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, pp. 25-26. Relph, Edward. Place and placelessness. London: Pion, 1976, pp. 79 e 90. Augé, Marc. «Espacio y alteridad ». In: Revista de Occidente (140) 1993: 13-34, p. 31.

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às que lhes precederam. Em termos estritamente lógicos, a expressão «não-lugar» é, em si mesma, um contrasenso. Se ter lugar (avoir lieu, to take place, stattfinden) significa «acontecer», «passar a existir», o não-lugar denota um paradoxo. Não-lugar significa não-ser; e era obviamente isso que Thomas Morus tinha em mente quando cunhou o termo utopia. Pode-se igualmente perguntar (no caso de a tomarmos como válida) se tal concepção se sustenta quando tentamos aplicá-la em outros contextos culturais. Ciro Flammarion Cardoso observou que em sociedades como a brasileira, supostos não-lugares como os aeroportos ou caixas eletrônicos podem se transformar naquilo que Augé chama de «lugares antropológicos».75 Para Simmel, a extensão onde não se desenrolam relações sociais de forma constante (o «não-lugar» de Augé) deve ser definida como «espaço vazio». Sua expressão paradigmática seria o espaço não-habitado. Nestas condições o espaço é experimentado como «pura distância, como extensão destituída de qualidade». Vale dizer: «o terreno não-habitado e que a ninguém pertence é, por assim dizer, mero espaço e nada mais».76 A trajetória tumultuada do termo não-lugar, por outro lado, deixa entrever a dificuldade de conferir-lhe um sentido homogêneo. O termo foi utilizado por Lefebvre e posteriormente aparece no título de uma obra de Jean Duvignaud; porém em ambas as oportunidades não se elabora qualquer difinição satisfatória de nonlieux.77 Para Paul Zumthor o «não-lugar» é mais uma metáfora que um conceito, empregada para se referir aos lugares típicos dos penitentes, dos criminosos e dos foragidos na Idade Média: o deserto, a montanha e a floresta.78 Bollnow acrescenta um dado que aparentemente reforça esta perspectiva ao mostrar que o sentido primitivo da palavra «espaço», em alemão, diz respeito à derrubada de uma mata com o objetivo de erigir ali uma morada.79 Se o espaço é produto da ação transformadora do homem sobre a natureza, então – e somente então – a natureza em estado selvagem poderia ser entendida como um «não-espaço» (nicht Raum). O caráter ambivalente de algumas formas de extensão ou de experiência espacial encontra no mundo contemporâneo a sua expressão mais complexa no «espaço virtual» ou cyberspace. Não é sem alguma dificuldade que os dois critérios que até agora nos permitiram falar no espaço enquanto eixo fundamental da vida social se aplicam a ele. A Internet ou a realidade virtual são um produto do intelecto e do trabalho humano, onde aliás as pessoas se deslocam («surfar», «navegar»). Neste sentido, constituem um espaço. É claro que a sociabilidade virtual não se concretiza como nas relações face-a-face que se dão no mundo da vida, mas este potencial efetivamente existe. O surgimento e a difusão de cidades vir75 76 77 78 79

Cardoso, «Repensando a construção do espaço». Simmel, «Der Raum...», pp. 785 e 788. Lefebvre, The production of space, p. 35; Duvignaud, Jean. Lieux et non-lieux. Paris: Galilée, 1977. Zumthor, Paul. La mesure du monde. Représentation de l’espace au Moyen Âge. Paris: Seuil, 1993, pp. 62-68. Bollnow, Mensch und Raum, p. 33.

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tuais, por exemplo, é um fenômeno que ainda reclama uma análise aprofundada. Cyberion City, criada na primeira metade da década de 1990 no Massachusetts Institute of Technology, parece hoje um simples povoado diante de Metropolis («fundada» na Alemanha em 1996), com sua população de mais de um milhão de «habitantes».80 O espaço é, pois, uma realidade social e histórica a partir do momento em que é «produzido» pela ação transformadora do homem e «preenchido» por uma determinada forma de socialização. Uma visão-síntese dos processos discutidos acima bem poderia ser a proposta por Löw: «espaços são arranjos e ordenações de bens sociais e seres vivos. Todos os espaços são espaços sociais, uma vez que não existem espaços que não sejam constituídos pela ação sintética dos homens. Todos os espaços têm um componente simbólico e um componente material».81 Estas considerações de maneira alguma implicam no abandono do princípio segundo o qual o espaço exerce um impacto considerável sobre a sociedade e a história, especialmente quando se trata de estudar uma região do Brasil que ostenta em seu próprio nome («Minas») a prova desta influência. Mas vimos que há outros aspectos que não se pode correr o risco de ignorar. Se a constituição do espaço é um processo social, este há de espelhar as relações de poder que se verificam no grupo que o preenche. A experiência espacial não se reduz, porém, aos ditames das relações de poder. Ela se baseia na percepção elementar de uma extensão que nunca é completamente homogênea, que nunca é totalmente racionalizada. Uma análise do «espaço vivido» (Bollnow), da síntese resultante do cruzamento entre o nível especificamente material e a atividade simbólica dos homens, deve ser o complemento necessário de toda sociologia histórica do espaço.

2.2.2. O que é uma cidade? É preciso definir o objeto do nosso estudo: o arraial. Sabemos, de antemão, que ele constitui uma estrutura situada a meio caminho entre o rural e o urbano. Evidentemente, só poderemos fazê-lo a contento se formos capazes de caracterizar minimamente os «pólos» entre os quais ele se situa. A tarefa é mais complexa do que poderia parecer à primeira vista. Pois o campo, como bem observou Zimmermann, é um «conceito relacional».82 Ele se define negativamente: onde não há cidade. E o que é uma cidade? Para Ratzel «o espírito da cidade baseia-se, essencialmente, no seu maior número de habitantes». Enquanto que para o fundador da antropogeografia a cidade 80 81 82

Sobre cidades virtuais, ver Löw, Raumsoziologie, pp. 96-97; e Focus (15) 9.04.2001, pp. 188-190. Löw, Raumsoziologie, p. 228. Zimmermann, Clemens. «Dorf und Land in der Sozialgeschichte». In: Schieder, W. & Sellin, V. (Hrsg.) Sozialgeschichte in Deutschland. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1986 (Band 2), pp. 93-94.

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seria o assentamento humano dotado de mais de 2.000 habitantes,83 para Aroldo de Azevedo este patamar mínimo é substancialmente mais elevado: 10.000 habitantes.84 Uma definição geográfica bem mais sofisticada é oferecida por Klöpper: «Cidades são povoações com grande número de moradores e alta densidade populacional, [e] que para a concretização de sua existência efetuaram uma intensa transformação do espaço natural nas suas redondezas».85 Weber optou – depois de reiteradamente advertir de que se tratava de uma opção entre várias possíveis – por analisar o fenômeno urbano baseando-se nos critérios econômico e político-administrativo. Para ele a cidade é uma povoação dotada de um mercado e de uma estrutura política autônoma.86 A despeito do extremo cuidado e da sofisticação com que construiu suas análises, houve quem quisesse ver uma espécie de reducionismo econômico na sua sociologia do urbano. Segundo Ronald Raminelli, a cidade, em Weber, não passa de «um aglomerado onde as pessoas faziam trocas comerciais».87 Desnecessário dizer que se trata de uma avaliação reducionista do pensamento, de resto claríssimo, exposto em Die Stadt.88 De uma forma geral, os historiadores brasileiros que se ocupam com os séculos XVIII-XIX orientam-se por critérios puramente formais, ou seja, critérios político-jurídicos. A história do espaço urbano se «inicia» com a criação da vila.89 É importante observar que, seguindo uma tradição oriunda da Idade Média, o título de «cidade» só era atribuído às povoações dotadas de sede episcopal (o mesmo vale para o uso antigo dos termos city e Stadt). Daí porque a primeira vila de Minas, a Vila de Nossa Senhora do Carmo (1711), só ascendeu à condição de «Cidade Mariana» com a criação do bispado em 1745. O que o historiador contemporâneo pretende invocar ao falar em cidade não corresponde portanto àquilo que o homem setecentista entendia pelo termo. Mas a variação da terminologia no tempo não é o único nem o mais simples dos problemas com os quais temos 83 84 85

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Ratzel, F. Anthropogeographie. Die geographische Verbreitung des Menschen. Stuttgart: J. Engelhorns, 1912 (1891), p. 265. Azevedo, Aroldo de. «Vilas e cidades do Brasil Colonial», p. 86. Klöpper, Rudolf. «Der geographische Stadtbegriff». In: Schöller, Peter (Hrsg.) Allgemeine Stadtgeographie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969, pp. 254-255. Weber, Max. «Die Stadt». In: Weber, M. Wirtschaft und Gesellschaft. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1925, pp. 514-515, 518-519. Raminelli, Ronald. «História urbana». In: Cardoso, C. F. e Vainfas, R. (orgs.) Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 195. Para uma análise aprofundada da sociologia weberiana do espaço urbano, ver Breuer, Stefan. «Herrschaftsstruktur und städtischer Raum». In: AfKG (77) 1995: 135-164; Breuer, Stefan. «Nichtlegitime Herrschaft». In: Nippel, W. (Hrsg.) Max Weber und die Stadt im Kulturvergleich. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2000. Ver Soares, Maria T. de Segadas. «A primeira vila portuguesa no Brasil». In: Actas do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros. Lisboa, 1959, p. 79.

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de nos defrontar. Num artigo em que examina a história dos núcleos urbanos em Westfalen a partir do século XII, Carl Haase mostra como é difícil se chegar a uma definição global de cidade.90 O critério econômico (a cidade, ao contrário do povoado, não se basearia na agricultura) revela seus limites quando se sabe que a maior parte das civitates do medievo não se diferenciavam, sob este aspecto, de um simples vicus. O critério demográfico (cidades seriam núcleos com mais de 2.000 habitantes) esbarra no fato de que inúmeras «cidades» medievais tinham uma população inferior a este patamar. O critério morfológico (a cidade é um espaço habitado, fechado e eventualmente fortificado) não é suficiente, pois muitos vici assumiam esta mesma configuração. O critério jurídico (a cidade é uma unidade política autônoma) também deve ser visto com cuidado: as condições a serem preenchidas por uma localidade que pretendia ser elevada a «cidade» se flexibilizaram muito no século XIX.91 Some-se a isso a singular inversão que se observava na China, onde os povoados, e não as cidades, é que eram dotados de instituições políticas próprias.92 A alternativa oferecida por Haase é historicizar o conceito: «para cada época, para cada estágio da formação citadina, para cada novo tipo urbano, é necessária uma nova definição e delimitação do conceito de cidade».93 Historicizar um conceito significa, entretanto, relativizá-lo de uma tal maneira que ele se vê destituído de sua eficácia. As palavras de Lutz Niethammer parecem comprová-lo: «é fundamental, em primeiro lugar, a compreensão de que a cidade simplesmente não existe, e sim de que trata-se, sob este conceito, de uma abstração».94 Seria satisfatório falar simplesmente – como faz Niethammer para se referir àquilo que ele crê ser impossível categorizar – em «a forma de vida em comum hoje dominante»? É evidente que não. Uma definição satisfatória de cidade deve se basear num mínimo denominador comum capaz de resistir, tanto quanto possível, à erosão do tempo e à prova da comparação inter-cultural. Em seus escritos sobre o espaço urbano brasileiro, o filósofo tcheco Vilém Flusser sugeriu que a cidade deve ser compreendida como «um lugar no qual a 90

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Haase, Carl. «Stadtbegriff und Stadtentstehungsschichten in Westfalen». In: Haase, C. (Hrsg.) Die Stadt des Mittelalters. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1978 (1. Band). A «febre de emancipações» de municípios no Brasil, em meio à década de 1990, oferece um exemplo recente da volatilidade do princípio jurídico, assim como a influência de interesses políticos locais no surgimento de novas «cidades». Ver «Mapa em mutação – numa febre de emancipações, o Brasil ganhou 800 prefeituras em quatro anos e há centenas de plebiscitos engatilhados para este ano». In: Veja, 16.08.1995, pp. 68-73. Weber, Max. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1988 (1920), 1. Band, pp. 291-293; 380-383. Haase, «Stadtbegriff...», p. 86. Niethammer, Lutz. «Stadtgeschichte in einer urbanisierten Gesellschaft». In: Schieder, W. & Sellin, V. (Hrsg.). Sozialgeschichte, pp. 113 e 127.

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natureza foi, em alto grau, tornada habitável. (...) Cidades são natureza dominada, e por isso elas são habitáveis. São natureza vencida, e é como um vencedor que eu moro nelas.»95 O leitor certamente estará lembrado do que já foi dito mais acima: o espaço é fruto da constituição de um «feixe de relações» sociais sobre uma dada extensão e da ação transformadora (ou antes: domesticadora) do elemento humano sobre a natureza. A aceitarmos a definição de Flusser, como diferenciar os conceitos de espaço e cidade? A resposta, para ele, reside nestas três palavras: «em alto grau». A cidade é um espaço coletivo resultante da domesticação em alto grau da natureza. Que esta definição mínima não satisfaz de todo, percebeu-o provavelmente o próprio Flusser. A distinção entre povoado e cidade continuava obscura. Num outro ensaio, escreveu ele mais tarde: «tão logo é teorizada, a vida do povoado se torna citadina. (...) Tão logo a geometria é posta em prática, povoados tornam-se cidades».96 Esta diferenciação não corresponde à realidade do arraial na Minas antiga. Os arraiais também observavam, em maior ou menor medida, um determinado padrão de ordenação espacial. A bem da verdade, o espaço proto-urbano nunca se desenvolve de maneira absolutamente «espontânea». Já estamos a par das dificuldades de se abordar a questão sob um ponto de vista puramente demográfico ou jurídico. Um critério como o desenvolvido por Simmel, baseado no estudo das distintas formas de sociabilidade, só se aplica plenamente a partir do momento sem que, sob o influxo do capitalismo, surge a metrópole moderna. Depois de estudar a história da cidade feudal russa e confrontar-se com as mesmas dificuldadades apontadas por Haase, Michail Rabinovič elaborou uma definição que pareceu-nos mais adequada. A cidade seria marcada por três traços básicos: predominância da produção para a troca e do comércio, difusão e intercâmbio de bens culturais e religiosos, nível mais elevado de complexidade social (crescente divisão do trabalho) e, eventualmente, étnica. Para Rabinovič «A cidade é um centro econômico e cultural, de tamanho relativamente

grande, com um perfil social e étnico mais complexo – em comparação com povoados rurais – de sua população, a qual está majoritariamente envolvida na produção voltada para o mercado e em atividades de troca; tudo isso resulta num complexo de aspectos de vida doméstica e pública que são característicos do modo de vida urbano.»97

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Flusser, Vilém. «Brasilianische Städte». In: Flusser, V. Brasilien oder die Suche nach dem neuen Menschen. Für eine Phänomenologie der Unterentwicklung. Mannheim: Bollmann, 1994, p. 261. Flusser, Vilém. «Städte entwerfen». In: Flusser, V. Vom Subjekt zum Projekt. Menschwerdung. Mannheim: Bollmann, 1994, p. 50. Rabinovič, Michail G. «On the problem of defining the concept of ‹city› for the sake of ethnographic studies ». In: Ethnologia Slavica (16) 1984: 111-119, p. 118.

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2.2.3. O que é um arraial? O espaço pré-urbano mineiro setecentista e oitocentista é, por excelência, o arraial. O uso desta palavra para designar aquelas primeiras povoações não deixa de ser curioso, se observarmos que em Portugal predominam os termos «povoado» e «aldeia», este último advindo do árabe (ad-dai’a) e por isso mais comum ao sul do Tejo. É interessante observar que, ao contrário de «povoado» ou «aldeia», o vocábulo «arraial» adquiriu um caráter polissêmico. Morais e Silva apresenta-nos as seguintes definições: acampamento militar; lugar de povoação temporária, mais ou menos densa; ajuntamento festivo de povo; lugar onde há música, dança e descantes de povo em véspera de festividade; reunião de pequenas casas, à beira do rio ou do mar, onde se guardam aprestos de pesca; pequena aldeia.98 O sentido primitivo corresponde, segundo Machado, ao de «acampamento». A evolução da palavra provavelmente se deu no sentido real > arraial. A forma real se originou na tradição segundo a qual o soberano deveria acompanhar seu exército nas campanhas.99 De fato, arraial não não guarda qualquer relação (etimológica ou morfológica) com o latim castrum. Só tardiamente «arraial» passou a denominar povoações temporárias e espaços festivos. Testemunhos dos séculos XVI e XVII mostram bem a predominância, à época, da conotação militar. Nos diversos relatos seiscentistas recolhidos por Gomes de Brito, «arraial» surge sempre como sinônimo de acampamento.100 Em documentos relativos à guerra movida contra o Quilombo de Palmares, fala-se da estratégia dos portugueses de «fazer arraial no meio d’elles [dos quilombos]».101 Um outro interessante documento relativo a Palmares, datado de 1697, demonstra que o simples acampamento militar pode «evoluir» e chegar a vila: «q.to a assistencia do arrayal na frontr.a, he couza indubitavel, que não só não se hade largar, mas se hade perpetuár povoação nella, e fundar Villa.»102

Nada nos autoriza a concordar com o viajante inglês Richard Burton, segundo o qual em Minas Gerais a palavra arraial foi aplicada às aldeias porque estas eram, nos primórdios da capitania, «fortificada[s] e, em geral, situada[s] perto do território ocupado pelos índios».103 Não existiram em Minas tais povoações fortifica98 99 100 101

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Morais e Silva, Antônio. Grande dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Confluência, 1950 (vol. II), p. 27. Machado, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Confluência, 1967, pp. 313-314. Gomes de Brito, Bernardo (org.) História trágico-marítima. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998 (1735-1736). «Memória dos acontecimentos havidos nos primeiros annos de guerra contra os negros das Palmeiras, e dos sucessos obtidos, até a paz feita com o rei Gangasuma, em junho de 1678». In: RIHGB (38) 1876: 293-322, p. 301. Reproduzido em Ennes, Ernesto. As guerras nos Palmares. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938, p. 325. Burton, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Belo Horizonte: Ita-

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das, salvo, talvez, durante aquelas escaramuças que passaram à história sob o pomposo título de Guerra dos Emboabas. Vejamos agora como as tentativas de definição do arraial no contexto brasileiro distanciaram-se, de forma significativa, umas das outras. Para Leloup, arraiais foram «acampamentos de mineradores no século XVIII». Angela Garcez chama arraiais aos «vilarejos primitivos que se foram formando e fixando no decurso do processo colonizador», enquanto que para Augusto de Lima Júnior «arraial é o conjunto de casas que se forma em torno das igrejas e onde acorrem os fiéis para as solenidades religiosas e encontros comerciais».104 O viajante Saint-Hilaire, que percorreu a província pela primeira vez em 1817, foi sem dúvida quem melhor descreveu aquelas povoações nascentes. Uma praça, por vezes bastante ampla e em formato retangular, em torno da qual dispunhamse as habitações, e uma igreja ou capela – às vezes uma venda – compunham o perfil básico do arraial mineiro em fins do período colonial. Muitos deles permaneciam praticamente vazios durante os dias de semana, e só eram «preenchidos» em ocasiões de missa e de festa. Eis aí um aspecto a ser ressaltado, pois parece ter contribuído para justificar a permanência da palavra «arraial» em Minas. Como mostrou Sanchis, em Portugal «arraial» denomina o espaço ocupado ou anexado para a realização das festas que acompanham as romarias, bem como a própria festa em si. Designa simultaneamente um espaço e a intensa socialização festiva que nele se desenrola.105 Antes de chegar à nossa própria definição, passemos em revista algumas formas pré-urbanas em outros contextos históricos e culturais. Segundo Leopold von Wiese, na Alemanha «é sobretudo o Dorf (e, em segundo plano: a propriedade rural) o elemento de socialização no campo».106 A importância social, econômica e simbólica dos pueblos a nível local foi claramente demonstrada por Reboredo num estudo realizado na Galícia.107 Examinando a formação dos villages («simples regroupements autour d’une chapelle ou d’un moulin») no Québec dos séculos XVIII e XIX, Courville considera-os pontos de cristalização da população no espaço.108 Encontramos mais ou menos a mesma configuração básica nos tiaia, 1976, p. 110. 104 Leloup, Les villes du Minas Gerais, p. 205; Garcez, «Arraial». In: Silva, M. B. N.

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da (org.) Dicionário da História..., p. 71; Lima Júnior, As primeiras vilas do ouro, p. 34. Sanchis, Pierre. Arraial: festa de um povo. As romarias portuguesas. Lisboa: Dom Quixote, 1992 (1983), pp. 142-143. Wiese, Leopold von. «Die Problematik einer Soziologie des Dorfes». In: Wiese, L. v. (Hrsg.) Das Dorf als soziales Gebilde. München: Duncker & Humblot, 1928, p. 3. Reboredo, Jose M. G. «Notas antropologicas sobre la importancia del ‹pueblo› en la Galicia oriental». In: Cuadernos de Estudios Gallegos 35 (100) 1984-1985: 529546, p. 532. Courville, Serge. «Esquisse du développement villageois au Québec: le cas de l’aire seigneuriale entre 1760 et 1854». In: Cahiers de Géographie du Québec 28 (73-74) 1984: 9-46, p. 12-13.

51 «bairros

rurais» pioneiramente estudados por Antônio Cândido. Segundo ele, o bairro rural é «o agrupamento mais ou menos disperso de vizinhança, cujos limites se definem pela participação dos moradores nos festejos religiosos locais».109 Pereira de Queiróz observa que o bairro rural costuma ter como centro uma capela, e que no Paraná ele recebe as denominações «capela» ou «patrimônio»,110 esta última também comum no leste mineiro. A partir de uma extensa literatura no campo da Europäische Ethnologie, Paul Hugger propõe o seguinte tipo ideal do povoado: «o povoado é um assentamento rural formado de alguns estabelecimentos de camponeses e artesãos que proporcionam uma manutenção solidária da existência (...). Na maior parte dos casos, o povoado possui instituições comunitárias como igreja, escola, etc. A estrutura interna é simples, a delimitação em relação ao mundo exterior é clara. Um sistema normativo regula a vida pública e [se extende] à vida privada. Isso gera um forte controle mútuo, sobretudo na vizinhança – que, como elemento estrutural básico, é, ao mesmo tempo, grupo de apoio».111 Em face dos dados referentes aos nossos arraiais (a serem analisados de forma pormenorizada na seção 3.3), a definição acima está longe de ser aplicável à Minas antiga. Nem sempre o arraial é o palco principal da vida cotidiana. Via de regra, a igreja se faz presente; mas a escola é uma instituição rara. Ao contrário dos seus congêneres europeus, o arraial não estabelece uma separação nítida entre o espaço interno e o «exterior». Finalmente, nele não existe qualquer instância política comunal. Ao percorrer o território de Minas em meados da década de 1820, o cônsul russo Grigorij Ivanovič Langsdorff escreveu que «a explicação para a forma incompreensível com que se administra aqui um arraial ou aldeia é a total inexistência de governo e de assistência jurídica ou policial».112 A partir do exposto acima, e como ainda teremos a oportunidade de demonstrar, o típico embrião de cidade mineiro pode ser definido como um ponto de cristalização, um espaço não-racionalizado de convívio coletivo.113 O arraial é a expressão das necessidades econômicas, religiosas e lúdicas de um grupo de vizinhança.

109 Cândido, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José Olympio,

1964, p. 51. 110 Pereira de Queiróz, M. I. «O catolicismo rústico no Brasil». In: RIEB (5) 1968:

103-123, p. 110. 111 Hugger, Paul. «Volkskundliche Gemeinde- und Stadtforschung». In: Brednich, Rolf

(Hrsg.) Grundriß der Volkskunde. Berlin: Dietrich Reimer, 2001, p. 291. 112 Da Silva, Danuzio G. B. (org.) Os diários de Langsdorff. Campinas/Rio de Janeiro:

Associação Internacional Langsdorff/Fiocruz, 1997, vol. I, p. 264. 113 Entenda-se aqui o termo «não-racionalizado» numa perspectiva weberiana: a orga-

nização deste espaço não é formalmente regulada por uma instância ou um código legal pré-existente.

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2.3.

Religião

Um dos erros de Max Weber foi o de ter apostado na tese do «desencantamento do mundo». A experiência do sagrado encontrou sempre novas formas de expressão social, de maneira que nenhum analista atento se negaria a reconhecer que o homem contemporâneo vive num universo tão «encantado» quanto o dos seus antepassados. A crença generalizada na astrologia, o sucesso da chamada literatura de auto-ajuda, a proliferação de cursos de motivação («Motivationstraining») ou a revalorização da mística oriental são apenas algumas das formas por meio das quais indivíduos ou grupos vivenciam atualmente aquilo que em outras épocas – a nível cognitivo, normativo, associativo ou emocional – era gerenciado quase que exclusivamente por seitas ou Igrejas. Isso nos leva a uma primeira observação, qual seja, a de que o estudo da religião não se confunde necessariamente com o estudo da história e do funcionamento das instituições religiosas. No início da década de 1960, Berger e Luckmann criticavam a sociologia da religião por ter se ocupado mais com o estudo de instituições que com o fenômeno religioso propriamente dito.114 Que as Igrejas sejam instituições que se estruturam e sobrevivem à custa de um dado universo de crenças, é ponto pacífico. Mas que o estudo das mesmas seja capaz de nos dar um retrato satisfatório do campo religioso de uma sociedade, é um absurdo. A crítica de Berger e Luckmann vale para outras disciplinas que se ocupam com a religião, em especial a historiografia. Durante muito tempo não houve no Brasil uma história da religião digna deste nome. Os historiadores permaneciam presos a uma concepção institucionalista e anti-pluralista dos processos sócio-culturais. Da mesma forma que a «história do Brasil» deveria ser uma história da evolução política do país, nossa «história da religião» limitava-se à história da Igreja Católica. Tudo o mais (protestantismo, espiritismo, religiões afro-brasileiras, religiões indígenas, catolicismo popular, etc) podia ser facilmente agregado sob os rótulos «seita», «ignorância religiosa» ou «superstição», e assim imediatamente excluído do campo da «religião». A superação deste estado de coisas começou a se manifestar gradativamente a partir das décadas de 1980-1990. Os livros de Eduardo Hoornaert e de outros membros da CEHILA (Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina) demonstraram como a história da Igreja foi capaz de redirecionar o foco de sua atenção – especialmente no que diz respeito à «religião dos pobres».115 A história social da religião, por sua vez, viveu um momento importante em 1986 com a publicação dos livros de Caio César Boschi sobre as irmandades leigas mi114 Berger, Peter and Luckmann, Thomas. «Sociology of religion and sociology of

knowledge». In: Social Research. (47) 1963: 417-427. 115 Beozzo, Oscar (et alii). Para uma história da Igreja na América Latina. O debate metodológico. Petrópolis: Vozes, 1986; Hoornaert, Eduardo (org.) História da Igreja na América na América Latina e no Caribe (1945-1995). O debate metodológico. Petrópolis: Vozes, 1995.

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neiras e de Laura de Mello e Souza sobre feitiçaria e práticas mágicas no Brasil Colônia.116 Enquanto Boschi estudou minuciosamente a religiosidade leiga e a rede de sociabilidades e solidariedades consubstanciada nas irmandades e ordens terceiras, Mello e Souza utilizou-se de documentos inquisitoriais de forma a lançar luz sobre formas heterodoxas de religiosidade às quais até então pouquíssima atenção tinha sido dada. Em 1987 aparece o ensaio de fenomenologia histórica da «cristandade colonial» feito por Riolando Azzi.117 Obras sob temas pouco explorados vieram à luz nos anos seguintes, como foi o caso dos ritos fúnebres em A morte é uma festa, de Reis, e do milenarismo em A heresia dos índios, de Vainfas.118 Esse movimento de renovação não implica que determinados problemas tenham sido completamente superados. Tomemos o caso da nova história da Igreja, tal como a praticada pelo grupo da CEHILA. Seu viés epistemológico tende a expressar, ao nível historiográfico, os princípios da Teologia da Libertação. Significa dizer – embora seja esta a sua grande originalidade – que se trata de uma história da Igreja que se auto-compreende como uma disciplina auxiliar da teologia, e que num certo sentido não deixou de ser uma ciência legitimante desta última. A discussão promovida por autores como Hans-Jürgen Prien, Elisa Alcaide, Jean Delumeau e Edith Sauer a respeito do caráter «teológico» ou «secular» da história da Igreja ainda parece longe de produzir algum consenso.119 Porém não se deve exagerar os efeitos da existência de um pano de fundo teológico. Este, por si só, não implica que se deva manter o historiador da Igreja sob suspeita. Afirmar que o laço umbilical entre teologia e história da Igreja coloca em questão a validade dos resultados obtidos seria o mesmo que dizer que a inclinação natural de historiadores marxistas por temas como o banditismo social, resistência escrava ou a formação da classe operária implica, necessariamente, numa perda do nível de cientificidade da pesquisa. Os dilemas fundamentais situam-se num outro plano: o fato da história da Igreja se ocupar, predominantemente, com o estudo das estruturas eclesiásticas ou para-eclesiásticas (demonstrando como o 116 Boschi, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora

em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; Souza, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1995 (1986). 117 Azzi, Riolando. A cristandade colonial. Mito e ideologia. Petrópolis: Vozes, 1987. 118 Reis, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1991; Vainfas, Ronaldo. A heresia dos índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1995. 119 Prien, Hans-Jürgen. «Consideraciones acerca de una eclesiología ecuménica como punto de partida para una historiografía ecuménica del cristianismo en América Latina». In: Prien, H-J. (Hrsg.) Religiosidad e historiografía. Frankfurt: Vervuert, 1998, pp. 83-91; Alcaide, Elisa L. «El debate epistemológico sobre la historia de la iglesia». In: EIA 2(24) 1998: 205-216; Delumeau, Jean (ed.) L’historien et la foi. Paris: Fayard, 1996; e Sauer, Edith. «Kirchengeschichte als historische Disziplin?» In: Engel-Janosi, F., Klingenstein, G. und Lutz, H. (Hrsg.) Denken über die Geschichte. Wien: Verlag für Geschichte und Politik, 1974, pp. 157-169.

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modelo eclesiológico do «corpo místico» continua majoritário em relação ao do «povo de Deus»); ou ainda sua posição pouco clara em relação à metodologia e ao aparato conceitual desenvolvidos por outras disciplinas.120 Voltemos agora nosso olhar para a outra linha de pesquisa a que nos referimos acima. O entusiasmo com o boom da história da religião/das mentalidades nos últimos anos deve ser avaliado com um pouco mais de cuidado. Não resta dúvida que o diálogo com as ciências sociais da religião aumentou a olhos vistos. O problema reside, ao nosso ver, no fato de que este diálogo não tem sido instaurado com a radicalidade necessária.121 Este déficit se manifesta, por exemplo, na resistência de alguns representantes da nossa história das mentalidades a uma noção-chave como a de sincretismo. A crítica a esta noção tomou forma a partir de meados da década de 1990. Vainfas122 acreditou ser possível substituí-la pelo conceito de circularidade cultural, sem se aperceber que tais conceitos designam processos aparentados mas de forma alguma idênticos entre si. O sincretismo se refere a sínteses resultantes do contato entre culturas de diferentes matrizes, enquanto que a categoria de circularidade cultural123 privilegia o jogo de influências recíprocas entre diferentes estratos sociais no interior de uma mesma sociedade. Esse mal-entendido parece ter encontrado sua expressão máxima em Plínio Freire Gomes, que escreve: «Refletir a questão das trocas simbólicas numa perspectiva sincrética (...) acaba por invalidar a hipótese segundo a qual os diferentes sistemas cognitivos correspodem a totalidades dotadas de características próprias em favor da impressão confusa e inarticulada de um amálgama, na qual os diversos elementos se fundem por mero acaso.»124

Diante destas palavras, há que dar razão a Baroja quando ele afirma que o problema do sincretismo «se plantea en las obras de grandes historiadores de las religiones desde hace muchos anos, con perdón de algún flamante professor moderno que declara no saber qué uso se puede dar a la palabra ‹sincretismo›, porque la encuentra falta de rigor».125 Ainda assim, Jacqueline Hermann reforçou recentemente a crítica de Vainfas e Gomes, sob o argumento que o conceito de 120 Ver Da Mata, Sérgio. Resenha do livro de Hoornaert, Eduardo. Os anjos de Canu121 122 123

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dos. Uma revisão histórica. In: EIA 2 (24) 1998: 353-359. Da Mata, Sérgio. «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas Colonial». In: RH (136) 1997: 41-57. Vainfas, A heresia dos índios, p. 159. Princípio, aliás, conhecido dos folcloristas desde o início do século XX: Hoffmann-Krayer, Eduard. «Die Volkskunde als Wissenschaft». In: Lutz, G. (Hrsg.) Volkskunde. Ein Handbuch zur Geschichte ihrer Probleme. Berlin: Erich Schmidt, 1958, pp. 47-49. O texto de Hoffmann-Krayer foi originalmente publicado em 1902. Freire, Plínio Gomes. Um herege vai ao paraíso. Cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (1680-1744). São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 25-26. Baroja, Julio Caro. «Sobre el sincretismo religioso». In: RDTP (34) 1978: 3-22, p. 6.

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sincretismo foi «muito criticado por antropólogos e historiadores a partir dos anos 1980».126 Considerar que o termo sincretismo induz a uma «impressão confusa e inarticulada de um amálgama, na qual os diversos elementos se fundem por mero acaso» significa admitir desconhecimento do intenso debate teórico-metodológico que se desenvolve neste campo de pesquisas. Os especialistas em ciência da religião,127 antropologia128 e história da Igreja129 vêem no sincretismo um fenômeno dinâmico, multifacetado, que se processa seja a nível dos sistemas religiosos seja a nível de elementos isolados, e no qual interferem diretamente as relações de força que se estabelecem entre as tradições religiosas em contato. O conceito que Hermann crê em declínio é hoje, na verdade, cada vez mais empregado pelos estudiosos.130 Quanto mais porque se têm constatado a tendência eminentemente sincrética de algumas das principais expressões de religiosidade do homem contemporâneo – como por exemplo os assim chamados Novos Movimentos Religiosos.131 O que causa impressão é que a idéia de que a categoria sincretismo esteja «superada» possa adquirir força num país como o nosso.132 Basta lançar um olhar 126 Hermann, Jacqueline. «Sincretismo». In: Vainfas, R. (dir.) Dicionário do Brasil

Colonial, p. 534. 127 Mensching, Gustav. «Syncretismus ». In: RGG³, 6. Band, pp. 563-564; Berner, Ul-

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rich. «Der Begriff ‹Synkretismus› – ein Instrument historischer Erkenntnis?». In: Saeculum (30) 1979: 68-85. Bastide, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1971, pp. 374, 376, 390-391; Ferreti, Sérgio F. Repensando o sincretismo. São Paulo/São Luís: Edusp/Fapema, 1995; Ferreti, Sérgio F. «Notas sobre o sincretismo religioso no Brasil – modelos, limitações, possibilidades». In: Tempo 6 (11) 2001: 13-26. Hoornaert, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro. 1500-1800. Petrópolis: Vozes, 1991 (1974), pp. 22-30; Prien, Hans-Jürgen. «Von der Alten Kirche bis zur Kirche in Lateinamerika heute. Synkretismus als kirchengeschichtliches Problem». In: Prien, H.-J. Das Evangelium im Abendland und in der Neuen Welt. Frankfurt: Vervuert, 2000. Otávio Velho constata um «reaparecimento de noções como hibridismo e sincretismo (...) até há pouco banidas por uma espécie de padrão estético naturalizado da antropologia mais prestigiada». Velho, Otávio. «Globalização: antropologia e religião». In: Mana 3 (1) 1997: 133-154, p. 140. O mesmo ocorre no campo dos estudos literários: Balme, Christopher. «Inventive syncretism. The concept of the syncretic in intercultural discourse». In: Stummer, P. O. and Balme, C. (eds.) Fusion of cultures? Amsterdam: Rodopi, 1996, pp. 9-18. Berger und Luckmann, Modernität, Pluralismus und Sinnkrise, pp. 57-58. Perguntado recentemente numa entrevista se considera viável o uso da noção de «catolicismo africano » para a melhor compreensão das sínteses religiosas afro-brasileiras, João José Reis afirmou: «(...) Não vejo problema. Representava o modo negro de ser católico. Isso não significa dizer que se tratasse de sincretismo no sentido de representar uma terceira via. (...) Há no entanto certas formações religiosas que institucionalizaram ritualmente as aproximações entre as tradições católicas, africanas e o espiritismo, como em certas expressões da Umbanda. Neste caso,

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atento sobre o cotidiano para se aperceber, como diz Flusser, que «o conceito de ‹síntese› tem muito a ver com o Brasil».133 Num trecho bem conhecido da obra de Guimarães Rosa, o herói Riobaldo revela: «Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito

de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue.»134

Os cientistas sociais confirmam a percepção dos literatos. Pierre Verger afirmou ter conhecido na Bahia um negro que praticava, simultaneamente, catolicismo e islamismo.135 E Sanchis demonstra, numa perspectiva histórico-comparada, que essa peculiaridade brasileira, que é ter desenvolvido um campo religioso dominado «pela lógica da porosidade de identidades e pelo sincretismo», é fundamental para a compreensão da nossa história.136 A redescobreta de temas como o sincretismo, o milenarismo/messianismo ou o catolicismo popular tem tido, em todo o caso, o aspecto altamente positivo de incrementar o diálogo entre historiografia e ciências da religião. Estranha-nos apenas o fato de que este diálogo nem sempre seja empreendido de forma conseqüente. O prestígio de que goza atualmente um autor como Luiz Mott, entre inúmeros historiadores brasileiros, é um dos mais claros indícios nesse sentido. Não há dúvida que seus estudos sobre religiosidade na Colônia baseiam-se num

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talvez possamos falar de sincretismo, ou pelo menos de hibridismo, no centro nervoso da religião». [Tempo 6 (11) 2001: 257-258; grifos nossos]. Nota-se, entre os historiadores, uma dificuldade em se perceber o sincretismo como um processo com distintos níveis de concretização. Sem sentido nos parece, ademais, a oposição entre «sincretismo » e «hibridismo», uma vez que ambas as palavras têm, basicamente, o mesmo significado. Ver Canevacci, Massimo. Sincretismos. Uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996. Flusser, Brasilien oder die Suche..., p. 35. Esta «inclinação» pela síntese pode ser bem percebida no microcosmo das práticas culinárias brasileiras, como mostra Da Matta, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2000 (1984), pp. 56 e 63. Rosa, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986 (1956), p. 15. «J’ai fort bien connu un certain Manuel Nascimento do Santo Silva, descendant de Yoruba de Ifé, qui faisait partie de la confrérie, portant un cierge à la main et allant régulièrement à la messe. Son père avait été iman à Bahia, aussi était-il également mulsuman, il faisait ses salam et récitait ses prières en arabe». Verger, Pierre. «Les religions traditionnelles africaines sont-elles compatibles avec les formes actuelles de l’existence?». In: Paulme, Denise et alii. Les religions africaines traditionnelles. Paris: Éditions du Seuil, 1965, p. 101. Sanchis, Pierre. «Sincretismo e jogo das categorias: a propósito do Brasil, de Portugal e do Catolicismo». In: Textos de Sociologia e Antropologia (44) Mestrado em Sociologia da UFMG, 1993; Sanchis, P. «Pra não dizer que não falei de sincretismo». In: Comunicações do ISER (13) 1994: 4-11; Sanchis, P. «As tramas sincréticas da história». In: RBCS (28) 1995:123-138.

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trabalho empírico vigoroso e numa documentação bastante original. Entretanto, a ninguém parece ter incomodado – ao menos publicamente – que Mott se dedique ao estudo das mentalidades e da religiosidade popular por meio de um esquema interpretativo absolutamente superado. A ininterrupta militância anti-religiosa e o retorno a uma concepção positivista de história são as características básicas dos seus escritos.137 Mott vê a si mesmo como um Aufklärer: «crendeirice do povo», «paranóia», «obcessão generalizada», «comportamento sacrílego», «religiosidade acrítica e emocional», «engodo» e «primarismo acrítico» são alguns dos termos dos quais ele volta e meia lança mão para se referir ao universo religioso popular. Para qualquer pesquisador familiarizado com o estudo científico das religiões é difícil saber onde termina o historiador e onde começa o inquisidor. Mott considera a religião nos termos de Marx e Freud – ela se basearia na «ilusão», e sua função social seria o entorpecimento das massas. Daí que os especialistas do sagrado (feiticeiros, advinhos, sacerdotes) mereçam de sua pena qualificações como «lobos travestidos de carneiros» e «charlatães». Para Mott, o cristianismo, os cultos afro-brasileiros setecentistas «e suas congêneres contemporâneas baseiam-se e se fundam na mistificação, no autoritarismo, nos falsos milagres e profecias mentirosas».138 A linha de pensamento que lhe serve de guia foi claramente assumida. Mais de uma vez, Mott cita a seguinte frase de Buffon em seus estudos: La seule et vrai science est la connaissance des faits. Nada poderia resumir melhor a persistência do (ou o retorno ao) «realismo ingênuo» que Weber diagnosticava em amplos setores da comunidade científica.139 Mas a tentação do positivismo está longe de ser o aspecto mais questionável em Mott. Como imaginar que um pesquisador tão comprometido com o discurso 137 Alguns exemplos: Mott, Luiz. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São

Paulo: Ícone, 1988; Mott, L. «Santos e santas no Brasil Colonial». In: VH (13) 1994: 44-66; Mott, L. «O calundu-angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739». In: Revista do IFAC 2(1-2) 1994: 73-82; Mott, L. «Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu». In: Souza, L. de M. e. História da vida privada no Brasil, pp. 155-220. 138 Mott, L. Escravidão, homossexualidade..., p. 114. Vem-nos à mente a oportuna observação de Vernant, de que «existe muitas vezes, no próprio ateísmo, uma dimensão polêmica e sacrílega que não é o contrário da atitude religiosa. (...) É preciso tanta crença para combater uma religião quanto para serví-la». Vernant, Jean-Pierre. «Para que servem as religiões ». In: Religião e Sociedade (9) 1983: 65-70, p. 65. 139 Weber, Max. «Ueber einige Kategorien der verstehenden Soziologie». In: Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, p. 437. Cassirer mostrou que «não existem fatos ‹puros› (‹nackte› Fakten), fatos que não levem em consideração determinados pressupostos conceituais e que sejam comprováveis sem o auxílio destes pressupostos». Cassirer, Ernst. Zur Logik der Kulturwissenschaften. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994 (1942), p. 17. Como bem assinalou Habermas, há algo de fetichismo na relação que o positivista estabelece com os «fatos». Habermas, Zur Logik der Sozialwissenschaften, p. 45.

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anti-religioso – quase íamos dizendo: com o proselitismo anti-religioso – possa realizar uma análise equilibrada do papel da religião na história? Fiquemos, por hora, num único exemplo. A Serra da Piedade viria a ser marcada no início do século XIX pela figura da famosa Irmã Germana, cujos prolongados e repetidos êxtases tornariam o eremitério ali situado um dos mais concorridos centros de peregrinação de Minas Gerais. Germana alimentava-se com extrema frugalidade e vivia um estilo «heróico» de religiosidade. Depois de obter permissão para morar no referido eremitério, ela manifesta uma forma peculiar de êxtase, assim descrito por Saint-Hilaire: «seus braços endureceram e estenderam-se em forma de cruz; seus pés cruzaram-se igualmente e ela se manteve nessa atitude durante 48 horas. À época de minha viagem havia 4 anos que esse fenômeno se dera pela primeira vez e daí por diante ele se repetira semanalmente».140 A notícia se espalhou, e logo Germana passou a ser considerada «santa». Uma declaração feita por dois cirurgiões locais, atestando a causa «sobrenatural» do estado de Germana contribuiu para reforçar a crença em sua santidade. Entretanto, continua Saint-Hilaire, este primeiro atestado foi contestado por Antônio Gonçalves Gomide, um médico «muito culto» que «achou-se no dever de refutar a declaração dos dois cirurgiões». Gomide publica em 1814, anonimamente, uma brochura «cheia de ciência e lógica» na qual sustenta que Germana sofria de catalepsia.141 Referindo-se ao caso em questão, Mott afirma ter sido aquela «a primeira vez que um cientista brasileiro, lançando mão de erudita biblio-

grafia e argumentação impecável, desmascara senão o engodo, quando menos o primarismo acrítico dos místicos e fabricadores de pseudo-santos e pseudo-milagres. É um caso exemplar de como as luzes da Ciência descobrem a verdade e explicam acertadamente os pretensos fenômenos preternaturais, substituindo a alienação e fantasmagorias místicas por interpretações baseadas tão somente em fatos naturais.»142

O diagnóstico da catalepsia seria, ao seu ver, «cabalmente justificado». O que causa estranheza é que Mott, mesmo tendo se baseado parcialmente em SaintHilaire, deixe de mencionar um dado fundamental: Gomide refutou o primeiro diagnóstico sem se dar ao trabalho de examinar a paciente.143 Impossível falar, nessas condições, em «argumentação impecável» ou em «luzes da ciência». Quando se omitem deficiências metodológicas dessa magnitude num estudo que se apresenta ao leitor como exemplar, corre-se o risco de levá-lo 140 Saint-Hilaire, Augusto de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil.

São Paulo: Cia Editora Nacional, 1941, p. 118. 141 Idem, ibidem, p. 119. 142 Mott, «Santos e santas no Brasil Colonial», pp. 64-65. 143 Saint-Hilaire, que esteve na presença da «santa», escreve que seu confessor «dese-

java, segundo me disse, que os homens competentes estudassem o estado de Germana, e a única censura que fez ao Dr. Gomide foi de ter escrito seu opúsculo sem se ter dado ao trabalho de vir ver a enferma». Saint-Hilaire, op. cit, p. 121.

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a confundir rigor científico com diletantismo (o que não quer dizer que o primeiro atestado a respeito dos transes de Germana não tenha sido vítima de procedimentos igualmente questionáveis144). Poder-se-ia dizer ainda que ao assumir tão incondicionalmente as conclusões do «arguto cientista» Gomide, Mott demonstra que o cientificismo materialista pode ser tão acrítico em relação aos seus pressupostos quanto a própria religião.145 As contradições e os limites do projeto intelectual (iluminista) que Mott parece tardiamente querer representar foram exaustivamente analisados por Hans-Georg Gadamer. Uma das contradições básicas do iluminismo foi a de, em que pese sua tentativa de «superar todos os preconceitos», rejeitar radicalmante a possibilidade de valer-se da produtividade hermenêutica da tradição. A exploração consciente não só da tradição mas também da própria subjetividade – e dos próprios preconceitos –, não se coloca no horizonte das preocupações do iluminismo.146 Com isso não se pretende afirmar que um historiador crente esteja em melhores condições de analisar um sistema ou fenômeno religioso que seu colega ateu. Tanto um quanto outro prestarão serviços à ciência desde que sejam capazes de «situaremse» num plano intermediário entre a intimidade e o estranhamento em relação ao seu objeto. Desde que sejam capazes, enfim, de contemplá-lo «com outros olhos».147 Todo aquele que se ocupa com o estudo científico das religiões148 acha-se inevitavelmente confrontado com tais questões. Disposição para observar de forma rigorosa as condições mínimas de objetividade da análise149 e para refletir criti144 Sobre as práticas médicas na Minas oitocentista, ver Figueiredo, Betânia Gonçal-

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ves. «Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX». In: História, Ciências, Saúde 6 (2) 1999: 277-291. Soeffner observa que «os cientistas sociais se ocupam sempre, e de bom grado, com as ‹ideologias› e ‹mitos do cotidiano› mas raramente se questionam em que medida seus próprios mitos se apoiam precisamente sobre os mitos do cotidiano, se derivam destes ou (...) se e em que medida se diferenciam, do ponto de vista estrutural ou analítico-formal, do pensamento quase-mitológico». Soeffner, HansGeorg. «Verstehende Soziologie und sozialwissenschaftliche Hermeneutik ». In: Hitzler, R., Reichertz, J. und Schröer, N. (Hrsg.) Hermeneutische Wissenssoziologie. Konstanz: UVK, 1999, p. 43. Gadamer, Hans-Georg. Wahrheit und Methode. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1960, pp. 256-261 e 267. Plessner, Helmuth. Mit anderen Augen. Stuttgart: Reclam, 1982, pp. 168-171; Gadamer, op. cit, p. 279. Conferir as esclarecedoras reflexões de Simmel, Georg. «Vom Wesen des historischen Verstehens ». In: Geschichtliche Abende im Zentralinstitut für Erziehung und Unterricht. Berlin, 1918. Barker, Eileen. «The scientific study of religion? You must be joking!» In: Journal for the Scientific Study of Religion 34 (3) 1995: 287-310. Vogt, Edvard. «Über das Problem der Objektivität in der religionssoziologischen Forschung». In: Goldschmidt, D. und Matthes, J. (Hrsg.) Probleme der Religionssoziologie. Köln: Westdeutscher Verlag, 1962, p. 220; Byrne, Peter. «The study of religion: neutral, scientific, or neither?» In: MTSR 9 (4) 1997: 339-351.

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camente sobre o campo de influências que afetam, de «fora», a análise das representações e práticas religiosas:150 eis aí outros pressupostos metodológicos básicos que muitas vezes têm faltado à história da religião brasileira. Diante de tais exigências, deve-se ressaltar um outro ponto. Uma história da religião que se orienta unicamente pelos postulados das ciências sociais não se arrisca a oferecer uma visão estreita de seu objeto? Este risco efetivamente existe. Por vezes, quando se lêem alguns estudos, tem-se a impressão de que a experiência do sagrado não é, para o pesquisador, a base, mas sim um epifenômeno de fenômeno religioso. Por esta razão a teologia não deve ser, a priori, posta de lado. A fala do crente, tanto quanto a daqueles que, como os teólogos, «racionalizam» a crença, deve ser levada em conta (no sentido de constituir um importante subsídio) pelo historiador das religiões. Na França, onde a cesura entre «ciência» e «fé» assumiu e parece ainda manter ares de dogma, o diálogo entre ciências sociais da religião e teologia não parece ter avançado muito. Defendendo uma posição que está longe de ser unicamente sua, Pierre Bourdieu afirma que ao utilizar «conceitos religiosos para falar sobre a religião» a ciência da religião corre o risco de tornar-se uma «religião científica».151 Em outros países a opinião a respeito não é a mesma. O exemplo mais notável é sem dúvida o de Weber, que – ao contrário do que defende Bourdieu – se utilizou de categorias advindas da teologia, como é o caso do conceito mesmo de Charisma.152 A possibilidade de um intercâmbio, que encontrou na pessoa de Ernst Troeltsch a sua expressão mais brilhante, tem sido encarada de forma desapaixonada nos dias de hoje.153 Teologia e ciências sociais da religião podem dialogar entre si sem que, necessariamente, uma tenha de sa150 Bourdieu, Pierre. «Sociologues de la croyance et croyances de sociologues ». In:

Bourdieu, P. Choses dites. Paris: Minuit, 1987, pp. 106-111. 151 Bourdieu und Raphael, «Über die Beziehungen zwischen Geschichte und Soziolo-

gie...», p. ‹religion›

77. Posição idêntica é defendida por Fitzgerald, Timothy. «A critique of as a cross-cultural category». In: MTSR 9 (2) 1997: 91-110. As dificuldades neste campo, como bem apontou Tenbruck, não se devem apenas a diferenças de método e de pressupostos, mas também ao fato de que sociologia da religião e teologia são construções secundárias da realidade concorrentes entre si. Tenbruck, Friedrich. «Die Theologie aus der Sicht der Soziologie». In: ThQ (157) 1977: 217-218. Esta concorrência atesta, por outro lado, a existência de uma homologia entre ambas. Daí o fato paradoxal de que, em alguns casos específicos (como o das religiões afro-brasileiras ou dos Novos Movimentos Religiosos) a sociologia da religião possa assumir uma função análoga à da teologia. Ver Barker, «The scientific study of religion? »; e Motta, Roberto. «La gestion sociologique du religieux: la formation de la théologie afro-brésilienne». In: Most. Journal on Multicultural Societies 1(2) 1999 (www.unesco.org/most/v11n2mot.htm). 152 Seu primeiro sistematizador foi Rudolf Sohm. Sobre as relações de Weber com a teologia liberal alemã, ver Honigsheim, Paul. «Max Weber in Heidelberg», pp. 261263. 153 Gadamer, Hans-Georg. «Reflexionen über das Verhältnis von Religion und Wissenschaft». In: Gadamer, H-G. Gesammelte Werke. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1993 (Band 8), pp. 156-162.

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crificar à outra o tipo de problematização que lhe é peculiar. Aquele que fala de fora sobre o fenômeno religioso não consegue percebê-lo em toda a sua complexidade se julga que os que o vivenciam por dentro nada têm a lhe dizer. A questão foi bem resumida pelo filósofo japonês Kitaro Nishida: «Eu não pretendo compreender a religião em termos puramente racionais e imanentes, pois na pura imanência não há religião.»154

O historiador, portanto, deverá estar atento tanto às diversas expressões possíveis dos fenômenos religiosos quanto ao imponderável psicológico – e em certa medida «anárquico» e não-instrumentalizável – que é a experiência do numinoso.155 Por outro lado, dar a devida importância à contribuição de disciplinas como a ciência/fenomenologia da religião ou a teologia não implica que a história da religião (tal como a concebemos) não se distancie delas num ponto fundamental. Para o historiador a questão da existência ou não de uma dimensão extra-humana subjacente ao seu objeto de estudo não se coloca. Não é sua tarefa tentar responder tal questão. O historiador da religião se ocupa com as manifestações psicológicas, sociais e espaciais dos fenômenos religiosos. Para tanto ele adota uma postura que diversos pesquisadores classificam como agnosticismo metodológico.156 Um último exemplo, à guisa de conclusão. Gilberto Freyre conta no prefácio de um de seus livros que, em 1929, época em que dirigia um jornal de Recife, foi procurado por um dos mais distintos assinantes daquela publicação. Um homem que lhe fazia um pedido singular: que Freyre intercedesse junto ao chefe de polícia para que se desse cabo das «assombrações» que existiam em sua casa.157 O mestre pernambucano se permite uma pequena ironia, ao lembrar que eram os tempos em que se dizia, no Brasil, que «a questão social é um caso de polícia». O que lhe causara espanto não fora a simples possibilidade da crença em espíritos, mas sim que «a questão do sobrenatural» também pudesse ser vista como um caso de polícia. Diante de fenômenos como este, a problemática que se coloca diante do historiador não é emitir um juízo qualquer sobre a «validade» de tal crença, mas sim mostrar de que forma ela pode adquirir um tal nível de inquestionabili-

154 Nishida, Kitaro. «Ortlogik und religiöse Weltanschauung». In: Nishida, K. Logik

des Ortes. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999, p. 280. 155 Otto, Rudolf. Das Heilige. Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und

sein Verhältnis zum Rationalen. München: C. H. Beck, 1997 (1917); Colpe, Carsten (Hrsg.) Die Diskussion um das «Heilige». Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1977. 156 Para uma exposição suscinta a respeito, ver Knoblauch, Hubert. Religionssoziologie. Berlin: Walter de Gruyter, 1999, pp. 14-16. Luhmann prefere falar em «ateísmo metodológico ». Luhmann, Niklas. Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 2000, p. 278. 157 Freyre, Gilberto. Assombrações do Recife velho. Rio de Janeiro: Condé, 1955.

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dade para os indivíduos e, antes de tudo, como chega a condicionar determinadas ações sociais.

2.3.1. Religião popular O problema da religião popular está no cerne das nossas preocupações neste trabalho. Não por se tratar de uma temática retomada pela historiografia, mas pura e simplesmente porque o estudo sistemático do nosso objeto assim o exige. Quase sempre a formação de um arraial a partir de um patrimônio doado a um santo esteve regida por concepções religiosas cuja lógica era muito distinta da dos representantes da «religião oficial». Não seria um exagero afirmar que o estudo das formas elementares do espaço urbano pode abrir uma outra perspectiva para a análise histórico-sociológica da religião popular. Muito pouco se sabe ainda das formas de religiosidade «rurais» ou «semi-rurais» nos séculos XVIII e XIX. Se pesquisas sobre irmandades (estas formas para-institucionais de organização religiosa/mutualista) nos dizem relativamente pouco a respeito da religião popular, parece-nos igualmente duvidoso que os trabalhos que lançam mão de fontes inquisitoriais sejam capazes de fazê-lo. No primeiro caso o historiador se limita às formas «enquadradas» e oficialmente sancionadas de religiosidade leiga158; no segundo toma-se o extremo oposto – religiosidades periféricas ou explicitamente heterodoxas. Uma larga faixa da população, provavelmente a grande maioria, ocupava um amplo gradiente de posições entre esses dois pólos. Como chegar a elas, às suas expressões religiosas próprias? Uma história da produção do espaço pré-urbano em torno das capelas primitivas pode vir a ser uma contribuição neste sentido. Deve-se também ressaltar – como fez Wolfgang Schieder em mais de uma oportunidade159 – a necessidade de se integrar à história da religião os avanços realizados no âmbito da folclorística. Completamente marginalizada no Brasil, onde se viu excluída do conjunto das ciências «sérias» com direito a cadeiras universitárias,160 a folclorística teve destino bem diferente na Espanha, nos Estados 158 Não há como concordar com Reis quando ele afirma que as irmandades foram, «pelo

menos até o Brasil-Império, os principais veículos do catolicismo popular». Reis, A morte é uma festa, p. 59. Num artigo que não recebeu à época de sua publicação a atenção que efetivamente merecia, Beozzo mostrou que as irmandades eram «muito mais [um] fenômeno da vila e da cidade, com estatutos aprovados pela Mesa de Consciência e Ordens de Lisboa e pelo Bispo e, em se tratando de Ordens Terceiras, com aprovação também de Roma. Apesar pois de leigas, estavam submetidas a um poderoso controle eclesiástico e governamental». Beozzo, José Oscar. «Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada». In: REB 37(148) 1977: 741-758, p. 756. 159 Schieder, Wolfgang. «Religionsgeschichte als Sozialgeschichte». In: GG, 3. Jahrgang, 1977: 291-298; Schieder, W. «Religion in der Sozialgeschichte». In: Schieder und Sellin (Hrsg.), Sozialgeschichte in Deutschland, 3. Band, pp. 9-31. 160 Vilhena, Luís Rodolfo. Projeto e missão. O movimento folclórico brasileiro. 1947-

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Unidos, na Alemanha, na Romênia e nos países escandinavos. Que um contato mais intenso entre folclorística e história social/religiosa pode dar bons frutos, provam-no de forma cabal os trabalhos de Jean-Claude Schmitt e Julio Caro Baroja. No Brasil há sinais de que este intercâmbio vem sendo retomado, como demonstra o livro de Martha Abreu sobre as festas do Divino Espírito Santo no Rio de Janeiro do século XIX.161 A essa altura o leitor provavelmente se perguntará se, uma vez que resolvemos, por nossa própria conta e risco, abrir a caixa de Pandora dos problemas metodológicos, não seria preciso que nos defrontássemos com o(s) conceito(s) de religião. Neste ponto o historiador se vê diante de um problema tão ou mais complexo que o da formulação do conceito de «cidade». As tentativas de se definir «religião» foram tão numerosas quanto divergentes entre si; a ponto de se poder afirmar com relativa tranqüilidade que um consenso a respeito é virtualmente impossível de ser atingido.162 Ao longo da primeira metade da década de 1990, os especialistas deram-se conta de um aspecto que até então não despertara maior discussão: até que ponto a palavra latina religio pode servir de base ao estudo científico das «religiões»? O folclorista Petzoldt,163 os historiadores Pye e Rudolph164 e os sociólogos Matthes, Tenbruck e Knoblauch165 foram unânimes em ressaltar o caráter etnocêntrico do termo «religião», bem como a necessidade de se adotar um conceito mais amplo, capaz de integrar as experiências «religiosas» de diferentes estratos sociais, culturas e períodos históricos. Ao mesmo tempo, e pelos motivos já expostos no início deste capítulo, não há como deixarmos de adotar uma determinada definição de «religião» como ponto de partida. Eis aí o inevitável paradoxo com que se defronta o pesquisador: embora esteja consciente dos limites da categoria «religião», ele não tem como ope1964. Rio de Janeiro: FGV/Funarte, 1997. 161 Abreu, Martha. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de

Janeiro. 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 162 Wagner, Falk. Was ist Religion? Studien zu ihrem Begriff und Thema in Geschichte

und Gegenwart. Gütersloh: Mohn, 1991; Lambert, Yves. «La ‹Tour de Babel› des définitions de la religion». In: Social Compass 38 (1) 1991: 73-85. 163 Petzoldt, Leander. «Magie und Religion». In: Dinzelbacher, P. und Bauer, D. R. (Hrsg.) Volksreligion im hohen und späten Mittelalter. Paderborn: Ferdinand Schöningh, 1990, pp. 467-485. 164 Pye, Michael. «What is ‹religion› in east Asia?» e Rudolph, Kurt. «Inwieweit ist der Begriff ‹Religion› eurozentrisch?» In: Bianchi, Ugo (ed.) The notion of «Religion» in comparative research. Roma: «L’Erma» di Bretschneider, 1994, pp. 115-122; 131-139. 165 Matthes, Joachim. «Was ist anders an anderen Religionen? » e Tenbruck, Friedrich. «Die Religion im Maelstrom der Reflexion». In: Bergmann, J., Hahn, A. und Luckmann, T. (Hrsg.) Religion und Kultur. Köln: Westdeutscher Verlag, 1993, pp. 1667; Knoblauch, Hubert. «Für einen weiten Religionsbegriff». In: Ethik und Sozialwissenschaften 6 (4) 1995: 468-470.

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racionalizar sua análise sem uma visão minimamente clara do que ela poderia vir a ser. Na medida do possível, tal definição deve resistir à tentação de se confundir a estrutura do fenômeno «religioso» com as distintas formas sociais através das quais ele se concretiza historicamente. Somente desta maneira se torna possível superar algumas falsas dicotomias (sagrado/profano, religião/magia) e admitir que manifestações de tipo extra-institucional ou mesmo anti-institucional («superstições», feitiçaria) só artificialmente podem vir a ser destacadas do campo da «religião». Nesse sentido, os estudos de Luckmann166 parecem-nos oferecer a alternativa mais interessante. Por «religião» entende ele a organização social das relações com a transcendência. Este último termo não deve ser entendido apenas num sentido convencional (como um sinônimo de «além») uma vez que, para Luckmann, qualquer forma de experiência extra-cotidiana constitui uma transcendência. Não deixaremos de falar em religio, é certo – porém o leitor deve estar consciente de que as aspas estarão implícitas todas as vezes em que o termo for invocado. Se a religião pode ser definida como a organização social das relações com a transcendência, nossa próxima tarefa será identificar como tal gerenciamento se processa no caso da religião popular. O tipo ideal do catolicismo popular poderia ser descrito como se segue:167 do ponto de vista organizacional, ele se caracteriza por uma presença muito débil – senão ausência – da mediação eclesiástica. Isso explica porque seu locus tende a ser o meio rural ou semi-rural. Quanto ao culto, ele se direciona sobretudo a Ma166 Luckmann, Thomas. «Über die Funktion der Religion». In: Koslowski, P. (Hrsg.)

Die religiöse Dimension der Gesellschaft: Religion und ihre Theorien. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1985; Luckmann, T. «Religion – Gesellschaft – Transzendenz». In: Höhn, Hans-Joachim (Hrsg.) Krise der Immanenz. Religion an den Grenzen der Moderne. Frankfurt: Fischer, 1996. 167 Baseamo-nos aqui em: Weber, Max. Wirtschaft und Gesellschaft, pp. 240-241; Vale, Edênio. «Aspectos psico-grupais do comportamento religioso-popular ». In: Cadernos. Studium Theologicum (6) 1977: 73-96; Boglioni, Pierre. «Some methodological reflections on the study of the medieval popular religion». In: JPC (3) 1977: 697-705; Süss, Günther Paulo. Catolicismo popular no Brasil. São Paulo: Loyola, 1979; Frijhoff, W. Th. M. «Official and popular religion in Christianity. The late Middle-Ages and Early Modern Times (13th – 18th centuries)». In: Vrijhof, P. H. and Waardenburg, J. (ed.) Official and popular religion. The Hague: Mouton, 1979; Prien, Hans-Jürgen. La historia del cristianismo en America Latina. Salamanca: Sígueme, 1985 (1978), pp. 292-305; Schieder, Wolfgang. «Einleitung». In: Schieder, W. (Hrsg.) Volksreligiosität in der modernen Sozialgeschichte. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1986; Vovelle, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987; Künzel, Rudi. «Paganisme, syncrétisme et culture religieuse populaire au haut Moyen Age». In: Annales (4-5) 1992: 10551069; Schieder, W. «Volksfrömmigkeit, Volksreligiosität». In: Evangelisches Kirchenlexikon. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996; Daxelmüller, Christoph. «Volksfrömmigkeit ». In: Brednich, Rolf. (Hrsg.) Grundriß der Volkskunde. Berlin: Dietrich Reimer, 2001.

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ria e aos santos; Jesus normalmente assume uma importância secundária. A débil presença da hierarquia eclesiástica relaciona-se dialeticamente a um outro aspecto, este por assim dizer próprio da lógica interna da religião popular (embora não seja exclusivo dela): a relação direta com o sagrado. Tal relação é normalmente regida pelo princípio do ut des. Há um tempo social em que a fé popular como que se adensa e dá a ver toda sua complexidade; é o tempo da festa. O regime da oralidade precede o da escrita, e não necessarimente devido aos níveis de analfabetismo. Fixar uma tradição em textos, como mostrou Gurjewitsch, «teria significado conferir-lhe uma forma definitiva e inalterável; seria portanto um ataque à sua forma de existência momentânea – enquanto organismo vivo e dinâmico. Uma fixação por meio de escritos teria levado a uma espécie de ‹alienação› da tradição popular em relação àqueles que são dela portadores».168 Entre os diversos autores há consenso quanto a um último aspecto, qual seja, o de que as inter-influências recíprocas («circularidade») entre catolicismo popular e catolicismo oficial não devem ser subestimadas. Todavia uma categorização continua oportuna uma vez que se trata de duas modalidades distintas de prática e, muito possivelmente, de experiência religiosa. Para Urs Altermatt, «catolicismo popular significa oral – em oposição a escrito; espontâneo – em oposição a prescrito; emocional – em oposição a racional».169 Entendido nesses termos, o catolicismo popular não se confunde com os assim chamados «catolicismo rústico» e «catolicismo patriarcal». A tese do «catolicismo rústico» foi defendida por Pereira de Queiróz. Sua opção pelo termo latino rusticus (do campo, rude, inculto, grosseiro, tosco) é, em si, reveladora. Depois de analisar o cotidiano das populações rurais do centro-sul brasileiro, Queiróz afirma que, se a função socializadora do catolicismo parece-lhe evidente, «é preciso um certo esforço para se perceber objetivos morais ou espirituais, que não existem como valores em si mesmos, e sim como valores auxiliares do valor social». Sua conclusão: «a religião rústica brasileira tem, pois, um papel antes de mais nada social».170 O calcanhar-de-Aquiles da hipótese de Queiróz (vimos que algo semelhante ocorre em Mott) é sem dúvida a ausência em sua análise daquela operação mental à qual todo estudioso do social deveria se submeter – a epoché (έποχή). Tal operação implica uma suspensão do juízo em relação à realidade. O pesquisador deve «colocar em parênteses» sua atitude natural diante do mundo a fim de se entregar à análise dos fenômenos em si mesmos.171 Para Queiróz o catolicismo «rústico» é pura e simplesmente destituído de con168 Gurjewitsch, A. «Probleme der Volkskultur und der Religiosität im Mittelalter ». In:

Gurjewitsch, A. Das Weltbild des mittelterlichen Menschen, p. 357. 169 Altermatt, Urs. «Prolegomena zu einer Alltagsgeschichte der katholischen Le-

benswelt». In: ThQ 4 (173) 1993: 259-271, p. 266. 170 Pereira de Queiróz, «O catolicismo rústico no Brasil», pp. 118-119. Grifo nosso. 171 Husserl, Edmund. Die phänomenologische Methode. Ausgewählte Texte. Stuttgart: Reclam, 1985, pp. 201-202.

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teúdo ético-religioso. Numa palavra: ele se resume a um ateísmo prático. Eis aí a conseqüência direta daquilo que Evans-Pritchard criticava com a expressão metafísica sociológica. Segundo o antropólogo britânico, «os sociólogos (...) freqüentemente trataram as concepções religiosas como uma projeção da ordem social, uma vez que elas se referem àquilo que não pode ser experimentado pelos sentidos. Isso é inadmissível».172 Já a tese segundo a qual teria havido um «catolicismo patriarcal» no Brasil se inspira na obra de Gilberto Freyre, muito embora ele de forma alguma a tenha apresentado de forma sistemática. O «catolicismo de família», para Freyre, teria como traços básicos um caráter doméstico e a subordinação do capelão à figura do pai de família.173 A tese do «catolicismo patriarcal» encontrou, em meados da década de 1970, o seu principal sistematizador em Eduardo Hoornaert. Em seu Formação do Catolicismo Brasileiro, Hoornaert afirma que «o catolicismo patriarcal se baseia (...) na exploração da religiosidade popular a serviço da manutenção de uma sociedade de ordens».174 Ele diagnostica ainda a existência de uma «dupla moral»: este catolicismo deveria simultaneamente legitimar o assistencialismo dos senhores e a submissão dos escravos. Só se poderia falar em catolicismo popular como um sinônimo de catolicismo «dos pobres». As posições Queiroz e Hoornaert são algo próximas uma da outra. Se para a primeira o catolicismo do povo é reduzido à sua dimensão social global (melhor dizendo: às necessidades objetivas imediatas dos grupos de vizinhança rurais), em Hoornaert ele é subordinado aos interesses de uma determinada classe. É porém questionável que o catolicismo «doméstico» ou «patriarcal» tenha constituído um outro tipo sociológico, como teremos oportunidade de demonstrar neste trabalho (ver seção 4.3.4). A documentação pesquisada revela, de fato, que as relações de classe permeiam a vivência da religião nos arraiais nascentes; o que não significa que seja possível traçar uma linha delimitando religião dos senhores (catolicismo «patriarcal») e religião dos pobres (catolicismo «popular», na acepção de Hoornaert). Tudo indica que se trata aqui de uma categorização que corresponde ao modelo eclesiológico/teológico do pesquisador e não à auto-compreensão dos atores históricos. Na Minas Gerais dos séculos XVIII-XIX não se pode falar numa polarização religiosa entre elite e massa, mas no máximo numa oposição entre religião oficial e religião popular. Por fim, deve ser lembrado que o mesmo sistema religioso pode desenvolver tendências antagônicas em relação ao mundo. Esta ambigüidade «política» que Troeltsch demonstrou ser uma constante na história do cristianismo175, não teria como estar ausente no catolicismo popular.176 172 Evans-Pritchard, E.E. Nuer Religion. Oxford: Clarendon, 1956, pp. 313 e 320. 173 Freyre, Casa-grande & senzala, pp. liii, 195 e 355. 174 Hoornaert, Formação do catolicismo brasileiro, pp. 76, 83, 98-99. O mesmo ponto

de vista foi posteriormente adotado por Prien, La historia del cristianismo en America Latina, pp. 285-292. 175 Troeltsch, Ernst. Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen. Tübin-

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2.3.2. Sagrado/profano A longa e inconclusiva discussão travada a respeito da natureza do sagrado não nos interessa aqui. Para uns o sagrado é uma categoria a priori, enquanto que para outros a sociedade diviniza a si mesma por meio da religião. Substancialismo de um lado, metafísica sociológica do outro. Optar por uma das duas teorias significaria abdicar do agnosticismo metodológico que defendemos há pouco. Fundamental é a constatação de que o sagrado/numinoso é efetivamente experimentado coletiva ou individualmente pelos homens: nihil est in fide, quod non ante fuerit in sensu (Max Müller).177 Seria mais frutífero demonstrar como uma contraposição rígida entre sagrado e profano é antes exceção que regra. De uma maneira geral, os historiadores partem ainda do pressuposto de que o mundo se divide em dois campos claramente delimitados e opostos entre si (sagrado/profano). No que não estão sozinhos. A existência desta dicotomia foi defendida por autores como Émile Durkheim178, Robert Herz179, Ernst Cassirer180, Mircea Eliade181 e Günter Dux.182 Tendo por pano de fundo tal dicotomia, as análises da religião popular no Brasil setecentista e oitocentista quase sempre sustentam que o brasileiro comum «misturava» pólos opostos e que, em tese, seriam incompatíveis um com o outro. Tomemos o exemplo da festa em homenagem a um santo. Tudo o que se manifesta à margem dos seus momentos explicitamente religiosos, que aparentemente não tem qualquer ligação com o sagrado, é imediatamente classificado como «profano». Como a festa popular não dissocia tais momentos, conclui-se que haveria «mistura». A ló-

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gen: J. C. B. Mohr, 1994 (1912). Abordamos esta questão em Da Mata, Sérgio. «Sacralização da política, politização do sagrado (quando a Igreja se descortina)». In: VH (16) 1996: 142-157. Oliveira, Pedro A. Ribeiro de. «A ambivalência política da religião popular». In: REB (54) 1994: 413-426; Droogers, André and Siebers, Hans. «Popular religion and power in Latin America: an introduction». In: Droogers, A., Huizer, G. and Siebers, H. (eds.) Popular power in Latin American religions. Saarbrücken: Breitenbach, 1991, pp. 1-25. Nos termos de Balandier: «Le sacré ne se laisse pas facilement saisir par la pensée, et encore moins par le savoir positiv – il se ‹vit› plus qu’il ne se laisse définir». Balandier, Georges. «Le sacré par le détour des sociétés de la tradition». In: Cahiers Internationaux de Sociologie (100) 1996: 5-12, p. 5. Durkheim, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989 (1912). Hertz, Robert. «Prééminence de la main droite». In: Hertz, R. Mélanges de sociologie religieuse et folklore. Paris: Félix Alcan, 1928. Cassirer, Ernst. Philosophie der symbolischen Formen, 2. Band, pp. 106, 118. Eliade, Mircea. The sacred and the profane. New York: Harper, 1961; Eliade, M. Die Religionen und das Heilige. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976. Dux, Günther. «Ursprung, Funktion und Gehalt der Religion». In: IJRS (8) 1973, pp. 6-67.

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gica parece apoiar tal constatação, uma vez que é difícil ao pesquisador conceber que excessos alcoólicos, danças ou jogatina possam ser colocados no mesmo plano do sagrado. Neste ponto a visão do historiador coincide plenamente com a da autoridade eclesiástica. A questão merece ser analisada com mais cuidado. Utilizar as palavras «sagrado» e «profano» nos faz tributários da tradição romana. Quando temos em vista o sentido com que elas eram empregadas, damos-nos conta de algo surpreendente. Ambas têm uma acepção claramente espacial: sacrum designa tudo aquilo relacionado ao local onde se realiza um rito e que, por assim dizer, pertence a um deus. Já profanum se refere ao que está diante da área do templo. Originalmente, profanare significa trazer a vítima de dentro do templo para o espaço situado diante dele (fanum).183 Significa dizer que não estamos lidando aqui com duas dimensões absolutamente opostas, mas complementares. Há, em outras palavras, um continuum entre «sagrado» e «profano». Assim, um Tito Lívio pôde escrever, a respeito de Roma, que «não há um lugar nesta cidade que não esteja impregnado de religião e que não esteja ocupado por alguma divindade».184 A indistinção entre sagrado e profano também foi observada em inúmeras sociedades de tipo «arcaico» e «tradicional». É o que Vernant constata na Grécia185, Klimkeit no Egito e na Índia186, Evans-Pritchard entre os Azande187, Goody entre os LoDagaa188, Granet na China189 e Leach na Birmânia.190 Segundo Laura de Mello e Souza, no Brasil Colônia «a indistinção era (...) mais característica do que a dicotomia».191 Desnecessário dizer que o mesmo foi observado em estudos sobre a religiosidade camponesa. Simon ressalta, a respeito, que «a diferenciação entre profano e sagrado é puramente formal».192 Willems insiste que nas festas em dias de santos «não há dissociação concebível [entre sagrado e profano] na mente dos participantes».193 Em seu estudo sobre as 183 184 185 186

187 188 189 190 191 192 193

Colpe, Carsten. «Das Heilige». In: HrwG, 3. Band, pp. 80-99, p. 93. Citado por Fustel de Coulanges. La cité antique, p. 160. Vernant, Jean-Pierre. «Para que servem as religiões». Klimkeit, Hans-Joachim. «Das Phänomen der Grenze im mythischen Denken». In: Benz, E. (Hrsg.) Die Grenze der machbaren Welt. Leiden: E. J. Brill, 1975, pp. 105, 107, 109. Evans-Pritchard, E. E. Theories of primitive religion. Oxford: Claredon, 1965, pp. 64-65. Goody, Jack. «Religion and ritual: the definitional problem». In: British Journal of Sociology (12) 1961: 142-164, pp. 148, 155. Granet, Marcel. Études sociologiques sur la Chine. Paris: Presses Universitaires de France, 1953, p. 257. Leach, Edmund. Sistemas políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Edusp, 1995 (1954), pp. 75-76. Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 149. Simon, Franz. «Sakral-Profan ». In: Liedtke, Max (Hrsg.) Aberglaube – Magie – Religion. Graz: Austria Medien Service, 1995, p. 109. Willems, Uma vila brasileira, p. 174.

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romarias em Portugal, Sanchis chega à conclusão que «Isolar alguns dos elementos que a compõem [a romaria] e declará-los exclu-

sivos uns em relação aos outros, indica uma problemática imposta, uma análise desagregadora do vivido, a criação de um sentido exógeno. (...) Ora, é forçoso aqui constatar – e todas as entrevistas de romeiros o confirmam – que quanto mais nos afastamos das gerações jovens e das categorias marcadas seja por uma instrução escolar seja pela freqüência assídua da igreja, menos repercussão suscita a distinção entre ‹religioso› e ‹profano› no seio da romaria.»194

Uma contraposição clara entre sacrum e profanum não constitui regra, mas exceção. Ela corresponde a uma rigidificação tipicamente cristã, ou, mais especificamente, a uma rigidificação típica do cristianismo das elites eclesiásticas, dos teólogos e das classes letradas. A religião popular permaneceu e permanece alheia a tal dicotomia – não por ignorá-la, mas simplesmente porque ela não corresponde à sua visão de mundo e de além-mundo. Não nos parece que devamos com isso abandonar tais categorias em nome de uma outra, como quis Marcel Mauss ao propor o uso da noção melanésia de mana. Substituir a noção ocidental por uma oriental implicaria uma mera inversão, não uma superação do problema (se é que se pode superá-lo completamente). Desde que se tenha em mente o continuum entre sagrado e profano, desde que estejamos conscientes da impossibilidade de se estender indiscriminadamente o seu uso a culturas alheias ao universo judaicocristão, não há porque abandonar estes conceitos. O nível crescente de complexidade de uma sociedade relaciona-se diretamente com a forma por meio da qual ela gerencia suas relações com a transcendência. Em sociedades arcaicas toda a vida do grupo está indissociavelmente ligada à religião (Frobenius sobre a África: «tudo era sagrado»). O extra-cotidiano e o cotidiano não constituem campos distintos: um está imerso no outro. Trata-se daquilo que Max Lüthi, em seu clássico sobre o conto popular europeu, denominou «unidimensionalidade».195 A emergência de formações sociais cada vez mais segmentadas e hierarquizadas leva a uma progressiva diferenciação entre as duas esferas. O mundo da natureza tende a ser desencantado, e as relações com o «além» passam a ser rigidamente normatizadas e monopolizadas por um corpo de especialistas. Por fim, o campo religioso apresenta-se como claramente delimitado.196 Porém a normatização, especialização e burocratização das relações com a transcendência não se processa historicamente de maneira uniforme. A religião popular parece ser fruto da incapacidade desse novo modelo se extender de forma homogênea por todo o corpo social; ela existe precisamente ali onde o modelo «oficial» não pôde ou não conseguiu se impor. 194 Sanchis, Arraial: festa de um povo, p. 142. 195 Lüthi, Max. Das europäische Volksmärchen. Tübingen: Francke, 1997 (1947), pp.

11-12. 196 Luckmann, «Über die Funktion der Religion», pp. 36-37.

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Conseqüentemente, pode-se dizer que duas boas palavras para definir o catolicismo popular são indiferenciação e ambivalência. Indiferenciação no que diz respeito à sua concepção de mundo, ambivalência no que concerne à sua relação com o mundo. Resta acrescentar que o catolicismo popular não concebe a si próprio sem a intermediação da hierarquia eclesiástica. Suas práticas, suas crenças, suas tradições, encontram-se numa relação dialética – e por vezes tensa – com os termos da religião oficial. O ambiente rural/pré-urbano compõe o quadro social típico (mas não o único) que o produz e que ele contribui para reproduzir.

2.3.3. «Superstição» Pode-se dizer que um único problema nos ocupou até agora neste estudo: o problema da linguagem. Não é preciso que nos justifiquemos. A ciência só começa onde termina o uso indiscriminado das palavras. Na literatura, não são poucos os que qualificam determinadas práticas ou formas de crença popular como «superstições». O que, afinal, significa isto? Aquele que fala em «superstição» inevitavelmente desqualifica tais práticas como expressão religiosa legítima. Elas seriam uma comprovação da «ignorância religiosa» em que vive o povo. Felizmente, nem todos utilizaram o termo num sentido tão explicitamente pejorativo. Por «superstição» entendia Câmara Cascudo «a sobrevivência de um rito desaparecido».197 É louvável que o maior estudioso da cultura popular brasileira tenha se utilizado de uma definição não-valorativa, entretanto o termo está de tal forma carregado de negatividade que o mais sensato seria sem dúvida abandoná-lo. «Superstição», diz Baroja, é uma palavra «equívoca desde que se comienza a usar y sigue siéndolo hoy». Mary O’Neil afirma que «o uso do termo superstição é, inevitavelmente, antes pejorativo que descritivo e analítico». Sanchis vai mais longe e observa que o termo em questão «é inteiramente relativo ao veredito dos grupos que, em dada sociedade e etapa da existência social, regulam a realização da ciência por um lado e, por outro, do sagrado».198 Conscientes de tais problemas, os folcloristas Röhrich, Petzoldt e Blehr propuseram que se adotasse o conceito neutro de «crença popular».199 O melhor trabalho sobre a evolução histórica da palavra superstitio é da autoria de Dieter Harmening. Superstitiosus originalmente significava «vidente», «profeta», «profético». Desenvolve-se então uma interessante duplicidade: de um lado, 197 Cascudo, Luis da Câmara. Superstição no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Ita-

tiaia/Edusp, 1985, p. 178. 198 Baroja, Julio Caro. De la superstición al ateísmo. Meditaciones antropológicas.

Madrid: Taurus, 1974, p. 151; O’Neil, Mary R. «Superstition». In: ER, vol. 14, p. 163; Sanchis, Pierre. Arraial: festa de um povo, p. 243. 199 Röhrich, Lutz. «Aberglaube». In: RGG³, 1. Band, p. 54; Petzoldt, «Magie und Religion», p. 477; Blehr, Otto. «Folk-belief as a religious phenomenon». In: Moser, Dietz-Rüdiger (Hrsg.) Glaube im Abseits. Beiträge zur Erforschung des Aberglaubens. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1992.

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superstitio denota uma elogiável observância das prescrições rituais. De outro, e já numa acepção negativa, superstitio se liga ao sentido do grego deisidaimonía – «temor exagerado» e mesquinho diante dos Deuses; assim como passa a ser utilizado para se referir a toda forma de religiosidade «vulgar» e não-romana. Com a consolidação do cristianismo a palavra é empregada, e cada vez mais, na sua vertente negativa: superstitiosi ergo qui multos ac falsos deos colunt, nos autem religiosi qui uni et uero deo supplicamus (Lactâncio). A teologia cristã se apropria da palavra, e dá-lhe finalmente seus contornos definitivos. Harmening conclui: «Na medida em que o conceito de superstitio é explicitado, (...) ele não de-

signa características objetivas de objetos ou relações, mas um valor, ou melhor dizendo uma ausência de valor, que se atribui a uma manifestação da vida religiosa. Onde o fervor está em ação, tal como em nossa palavra ‹Aberglaube› [‹superstição›], ela expressa indignação, ou, onde a mesma não se manifesta, uma crítica à desrazão e à tolice.»200

Não chega a causar surpresa que representantes tanto do proselitismo religioso quanto do anti-religioso falem uma mesma e única linguagem quando o tema em questão são essas formas difusas, não oficialmente sancionadas, de crença popular. Dos dois lados continua-se a condenar, ou pelo menos a ironizar, o «ignorância religiosa» e a «crendeirice do povo». Ambos os lados lançam mão de uma linguagem que, no fundo, é a da intolerância, não a da ciência. Os historiadores que relutam em renunciar ao termo «superstição» (e a lista é extensa), não fazem senão contribuir para a perpetuação de um equívoco.

2.4.

Por uma síntese das abordagens

2.4.1. A contribuição da ciência da religião Ao contrário do que se verifica em outras disciplinas, a ciência da religião coloca o pesquisador diante de uma desconfortável diversidade terminológica. Enquanto que em português optou-se por uma tradução literal do alemão Religionswissenschaft, em francês fala-se em histoire des religions, e, em inglês, comparative study of religions ou religious studies. Quando empregamos, mais acima, a expressão «ciências da religião», no plural, nossa intenção obviamente não era a de contribuir para que a confusão aumentasse ainda mais. Nossa distinção entre «ciência» e «ciências» da religião é simples. Em outra oportunidade, já havíamos adiantado que o uso do plural designa todo o conjunto de disciplinas que têm o fenômeno religioso por objeto de estudo.201 A ciência da religião, desde que Max 200 Harmening, Dieter. Superstitio. Überlieferungs- und theoriegeschichtliche Unter-

suchungen zur kirchlich-theologischen Aberglaubensliteratur des Mittelalters. Berlin: Erich Schmidt, 1979, pp. 40-41. 201 Da Mata, «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas Colonial», p. 42.

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Müller cunhou o termo, constitui uma tradição própria. Trata-se daquela tendência representada por autores que desenvolveram estudos dos sistemas religiosos numa perspectiva filológica, histórica e comparada.202 Mais especificamente, pretende-se ressaltar aqui a importância de um dos conceitos-chave desenvolvidos por esta escola: o de espaço sagrado. Ele permite-nos analisar de forma mais precisa os processos resultantes da interação entre as duas dimensões fundamentais com as quais lidamos até agora, quais sejam, «espaço» e «religião». Van der Leeuw definiu espaço sagrado como um «lugar no qual o efeito do poder se repete e é repetido pelo homem».203 Eliade desenvolve uma argumentação semelhante. Para ele o espaço sagrado é produto de uma hierofania, isto é, de uma manifestação do sagrado.204 Ressalte-se uma vez mais que a natureza daquilo que estes autores entendem por «poder» e «sagrado» – o numinoso de Rudolf Otto – não está em questão para nós. Importa ressaltar em que o conceito de espaço sagrado pode ser útil ao historiador da religião. E ele o é na medida em que confirma aquela distinção por nós observada anteriormente: a de que o espaço nunca é concebido pelos homens de forma homogênea. Há setores ou pontos no espaço que são qualitativamente distintos dos demais. Trata-se de espaços «superiores», com «poder» e por vezes interditos.205 Outro importante aspecto ressaltado pelos fenomenólogos é o parentesco estrutural entre templo, casa e cidade. Na casa realizam-se os cultos domésticos, e ela está repleta (em alguns casos, dos alicerces ao telhado) de símbolos religiosos. De modo que também ela constitui um espaço sagrado. O templo obedece à mesma lógica e, por assim dizer, apenas a radicaliza – ele é a «casa de Deus». A cidade, já foi observado, é erigida após um rito. Após a consagração que transfigura o topos em temenos. Este parentesco mais profundo entre casa, templo e cidade não nos deve passar desapercebido. Ele será explorado em detalhes mais tarde. A fenomenologia da religião mostra também que não se pode conceber separadamente espaço e tempo sagrados. A uma dada concepção de espaço corresponde necessariamente uma forma de representação do tempo. A existência do espaço sagrado atesta como nossa percepção da extensão é marcada pela heterogeneidade. O mesmo pode ser dito do tempo. Há, bem sabemos, um espaço matemático e um tempo cronológico; mas não são estes o espaço e o tempo da vida. Tal como a extensão é experimentada como um «espaço vivido» (Bollnow), a duração 202 Wach, Joachim. The comparative study of religions. New York: Columbia Univer-

sity Press, 1958, pp. 3-26. 203 Van der Leeuw, Gerardus. Phänomenologie der Religion. Tübingen: J. C. B. Mohr,

1933, p. 369. 204 Eliade, Die Religionen und das Heilige, pp. 415-418. 205 Ver Bauer, Dieter R. «Heiligkeit des Landes: ein Beispiel für die Prägekraft der Volksreligiosität». In: Dinzelbacher, P. und Bauer, D. R. (Hrsg.) Volksreligion..., pp. 41-55.

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se decompõe em porções distintas entre si. O tempo da festa se distingue por constituir uma espécie de nódulo, de adensamento, de foco qualitativamente distinto e «superior». Mas em um ponto a contribuição de Eliade merece ser questionada. Como ele entende a oposição entre sagrado e profano em termos rígidos, a dicotomia entre espaço sagrado e espaço profano parece-lhe igualmente clara e bem definida. Esta delimitação assumiria, por exemplo, a forma material da muralha que envolve a cidade ou da cerca que delimita o túmulo de um santo.206 No entanto vimos que a concepção dicotômica do par sagrado/profano é típica do cristianismo dos hierocratas e das classes letradas. Nada de semelhante se passa na mentalidade popular, na qual a solução de continuidade é a mais freqüente. Portanto, a idéia de Eliade segundo a qual o espaço é sagrado ou profano, é percebido como Cosmos ou como Caos, deve ser posta de lado. Embora Durkheim tenha desenvolvido uma teoria do sagrado igualmente dicotômica, ele percebeu que «não se pode perder de vista que há coisas sagradas de todo grau».207 O que equivale a dizer que também o espaço comporta diferentes níveis de sacralidade. O grande interesse que o estudo das peregrinações despertou nos últimos anos demonstra o quanto os pesquisadores têm centrado sua atenção nas formas mais «espetaculares» de espaço sagrado.208 Outras, menos impressionantes, não têm recebido o mesmo tratamento. O estudo histórico da constituição e dinâmica dos arraiais mineiros será uma maneira de contribuir para o melhor conhecimento das formas menos radicais (diríamos: mais cotidianas) de espaço sagrado. Por hora, é preciso que tenhamos em vista um aspecto fundamental e que se poderia formular da seguinte maneira: a religião, numa sociedade tradicional, não constitui apenas – como sugeriu Febvre – «o ar mesmo que se respira».209 Ela é o próprio chão que se pisa.

2.4.2. A contribuição da geografia da religião Sabemos da importância da religião no surgimento da cidade. A polis antiga, a cidade africana ou oriental, a «Nova Zion» dos Mórmons no oeste dos EUA, as «Vilas Santas» do movimento messiânico do Contestado ou o Arraial de Canudos 206 Eliade, Die Religionen und das Heilige, p. 419. 207 Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, p. 69. 208 Alguns exemplos: Ranger, Terence. «Taking places of the land: holy places and

pilgrimages in twentieth-century Zimbabwe». In: Past and Present (117) 1987: 158-194; Theilmann, John. «Medieval pilgrims and the origins of tourism». In: JPC (4) 1987: 93-102; Schieder, Wolfgang. Religion und Revolution. Die Trierer Wallfahrt von 1844. Vierow: SH-Verlag, 1996; Moerman, David. «The ideology of landscape and the theather of the state. Insei pilgrimage to Kumano (1090-1220)». In: Japanese Journal of Religious Studies 24(3-4) 1997: 347-374. e 209 Febvre, Lucien. Le problème de l’incroyance au 16 siècle. Paris: Albin Michel, 1988 (1942), p. 308.

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– todos casos por demais evidentes para serem ignorados. A lista de processos sociais nos quais religião e espaço se articulam é contudo bem mais extensa. Pense-se, a despeito de todos os aspectos político-econômicos ou geopolíticos, no substrato religioso subjacente à criação do estado de Israel, assim como nos graves conflitos daí resultantes. Pense-se na dimensão por vezes gigantesca de algumas peregrinações religiosas. Antes da descoberta do petróleo, a maior fonte de renda da Arábia Saudita baseava-se nos ganhos advindos do hadsch a Meca. Na Índia, a cada 12 anos, realiza-se às margens do Ganges a grande festa do Kumbh Mela. Em seu momento culminante, a multidão atinge a astronômica cifra de 30 milhões de pessoas. Pense-se nas implicações espaciais e econômicas de determinadas prescrições religiosas, como aquela que faz dos mongóis um povo particularmente avesso à agricultura. Toda essa gama de fenômenos demandava a formação de uma nova disciplina que se dedicasse a analisá-los de forma sistemática. De fato, este campo de pesquisas já vinha tomando forma desde o fim da Segunda Grande Guerra. Num texto de 1945, Gabriel Le Bras advogava uma géographie religieuse que se concentrasse no estudo dos laços entre o grupo religioso e o seu chão, descrevendo «os aspectos religiosos da paisagem urbana e rural».210 Uma primeira tentativa de síntese é publicada dois anos mais tarde por Deffontaines. Nessa primeira fase, a geografia da religião é compreendida como um sub-ramo da geografia humana; seu objeto limitando-se ao estudo do impacto das idéias religiosas sobre o meio.211 O esforço pioneiro de Le Bras e Deffontaines não teve continuidade na França, de modo que este país ocupa hoje uma posição secundária no que diz respeito à geografia da religião.212 Na década de 1960, os trabalhos de Erich Isaac e David Sopher representam uma virada importante em termos metodológicos. Isaac adota o conceito de espaço sagrado e insiste na necessidade do geógrafo se aprofundar no estudo dos sistemas religiosos cuja eficácia espacial pretende mensurar.213 Em 1967 Sopher publica seu influente Geography of Religions.214 Nesta obra, o autor americano sugere que a geografia da religião não deve se limitar a constatar a eficácia espacial da religião, mas deve também analisar os possíveis efeitos do meio sobre 210 Le Bras, Gabriel. «Un programme. La géographie religieuse». In: Le Bras, G.

211

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Études de sociologie religieuse. Paris: Presses Universitaires de France, 1956 (tome II), pp. 491 e 523. Deffontaines, Pierre. Géographie et Religions. Paris: Gallimard, 1948 (1947), pp. 8-10; Deffontaines, P. «Wert und Grenzen der religiösen Erklärung in der Geographie des Menschen». In: Diogène (2) 1953: 199-213. Ver os números especiais de Social Compass 40 (2) 1993 e dos Annales de Géographie (588) 1996, ambos dedicados à nova disciplina. Sobre a importância de Isaac, ver Sopher, David. «Geography and religions». In: PHG (5) 1981: 510-524, p. 512; Kong, Lily. «Geography and religion: trends and prospects». In: PHG 14 (3) 1990: 355-371, p. 360. Sopher, David. Geography of religions. Prentice-Hall: Englewood Cliffs, 1967.

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os sistemas religiosos. Vê-se que Sopher não descarta a validade do que já fora afirmado anteriormente por Ratzel. Não por mera coincidência, surgia exatamente naquele momento, e em estreito diálogo com a obra de Julian Steward, a ecologia da religião.215 Outro aspecto importante da nova agenda estabelecida por Sopher: a dialética entre sistemas de idéias de tipo não explicitamente religioso (como as ideologias) e o espaço deveria ser objeto da atenção do geógrafo da religião. Com Manfred Büttner e o chamado «modelo de Bochum» esta tendência se consolida definitivamente.216 Para Büttner não é possível dissociar a influência da religião sobre o espaço (Umweltprägungslehre) da influência do espaço sobre a religião (Religionsprägungslehre). Ambas as dimensões influenciam-se mutuamente, numa dialética necessariamente intermediada pelo grupo social (Religionskörper). Três níveis simultâneos de análise, portanto: representações religiosas, relações sociais e estruturas espaciais. Os dois últimos compõem aquilo que, de uma forma geral, se designa com o termo «ambiente». Em seu período de formação, toda religião está particularmente sensível às influências advindas do meio. Da mesma forma, o meio sofre o impacto das representações e práticas religiosas. Num determinando momento, chega-se a um equilíbrio e o sistema como um todo se estabiliza. Caso novos impusos surjam, seja por inovações no plano religioso seja por alterações no ambiente (social/espacial), alterações sucessivas ocorrem de lado a lado até que um novo estado de equilíbrio seja atingido. Do contrário, o grupo religioso pode simplesmente dissolver-se. O modelo foi posto à prova por Büttner num estudo sobre pequenas comunidades religiosas. Enquanto os waldenses demonstraram-se capazes de reformular sua «atitude espiritual» num ambiente cada vez mais afetado pela realidade do mundo industrializado, o rigorismo religioso dos menonitas tende a colocar a comunidade diante de um impasse e mesmo de uma possível desagregação. Posteriormente, Kurt Rudolf aplicou com sucesso este modelo em suas pesquisas sobre comunidades batistas no Irã e Iraque.217 Para Büttner os três pólos (religioso, social e espacial) devem ser tratados como vetores dinâmicos, isto é, históricos. Esta incorporação da dinâmica tempo215 Hultkranz, Ǻke. «Ecology of religion: its scope and methodology». In: Honko,

Lauri (ed.). Science of Religion. Studies in methodology. The Hague: Mounton, 1979, p. 229. 216 Büttner, Manfred. «Geosophie, geographisches Denken und Entdeckungsgeschichte, Religionsgeographie und Geographie der Geisteshaltung». In: Die Erde (111)1980: 37-55; Büttner, M. «On the history and philosophy of the geography of religion in Germany ». In: Religion (10) 1980: 86-119; Büttner, M. «Zur Geschichte und Sytematik der Religionsgeographie». In: Geographia Religionum (1) 1985: 13121. 217 Rudolf, Kurt. «Religionswissenschaftliche Überlegungen zur Religionsgeographie». In: Kreisel, Werner (Hrsg.) Geisteshaltung und Umwelt. Aachen: Alano, 1988, pp. 415-425.

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ral no trabalho do geógrafo da religião também foi ressaltada por Karl Hoheisel.218 No limite, e como resultado da «secularização», a geografia da religião deveria assumir um estatuto mais amplo e tornar-se uma «geografia das atitudes mentais» (Geographie der Geisteshaltungen). É justamente neste ponto que reside nossa ressalva em relação a Büttner e seus discípulos. Repercutindo uma idéia difundida tanto na sociologia quanto na teologia da época em que elaborou seu modelo, Büttner acredita que o mundo contemporâneo seria marcado por «uma modificação ou mesmo uma dissolução das religiões».219 A tese da «secularização» tornara-se amplamente aceita na Alemanha; a moderna geografia da religião incorporou-a como parte integrante de seu modelo. Assim se entende por que, num mundo dito «pós-religioso», esta disciplina deveria se tornar uma geografia das mentalidades ou das ideologias. Outros pesquisadores direta ou indiretamente ligados a Büttner mantiveram posição similar. Rinschede chegou a dedicar toda uma seção de sua Religionsgeographie ao «surgimento e difusão do secularismo».220 Tomaremos uma reveladora contradição por ponto de partida. Büttner propõe uma geografia das atitudes mentais porque, em virtude da «secularização», a geografia da religião correria o risco de tornar-se uma ciência sem objeto. Mas observou que «o método de pesquisa é e continua o mesmo».221 Se é assim, é legítimo supor que o objeto, em última análise, continua o mesmo. Hoheisel e Rinschede, num interessante artigo,222 demonstraram que a lógica das relações entre religião e espaço não difere da que se observa entre ideologia e espaço. Os autores fazem uma distinção entre «sistemas de orientação religiosos» e «sistemas de orientação seculares» que, ao nosso ver, não satisfaz. O ponto fraco do modelo reside na sua adesão incondicional à tese da inevitabilidade da «secularização». Não cabe aqui alongarmo-nos na análise, já desenvolvida em outro lugar,223 sobre o caráter enganador do termo «secularização». Mas é sem dúvida irônico que, justamente na época em que o paradigma do «desencantamento do mundo» mais fazia adeptos, Ernst Benz atestava a força do movimento pentecostal nos Estados Unidos, América Latina, África e Indonésia. Enquanto as páginas dos periódicos especializados eram preenchidas com estudos sobre a «secularização» ou 218 Hoheisel, Karl. «Religionsgeographie». In: HrwG, 1988, 1. Band, pp. 108-120. 219 Büttner, «On the history...», p. 101. 220 Rischede, Gilbert. Religionsgeographie. Braunschweig: Westermann, 1999, pp.

60-68. 221 Büttner, Manfred. «Religionsgeographie bzw. Geographie der Geisteshaltung, ein Teilbereich der (Sozial-) Geographie, und/oder...?». In: Büttner, M. (Hrsg.) Wissenschaften und Musik unter dem Einfluß einer sich ändernden Geisteshaltung. Bochum: Brockmeyer, 1992, p. 339. 222 Hoheisel, K. und Rinschede, G. «Raumwirksamkeit von Religionen und Ideologien». In: Praxis Geographie 19 (9) 1989: 6-11. 223 Da Mata, Sérgio. «Passado e presente da religião civil». In: VH (23) 2000: 180204, pp. 185-190.

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sobre o crescente engajamento político da Igreja Católica na América Latina, uma impressionante renovação religiosa se processava fora do campo de preocupação dos especialistas. Em 1974, cinco anos antes da Revolução Islâmica no Irã (que suscitou entre alguns sociólogos a idéia, igualmente enganosa, de um «retorno do sagrado»), escrevia Benz: «Esta tese [da ‹secularização›] não é correta, e estou convicto do contrário

não por motivos apologéticos, mas porque a coisa simplesmente não confere. (...) Tal fenômeno [pentecostal] praticamente não chegou ao conhecimento dos estudos de história eclesiástica, sobretudo porque esta nova onda carismática se propagou primeiramente em camadas às quais a pesquisa acadêmica quase não deu atenção – nas camadas sociais mais baixas, entre os pobres do Terceiro Mundo, junto aos trabalhadores dos centros industriais.»224

Em 1978, Hans-Jürgen Prien dedicava nada menos que 18 páginas de sua História do cristianismo na América Latina ao fenômeno pentecostal.225 Aparentemente, em vão. A grande maioria dos analistas continuava ainda convencida da irreversibilidade da «eclipse do sagrado». Num ensaio considerado hoje um clássico, Luckmann demonstrou que a religião não pode simplesmente «acabar». Pois as visões de mundo seriam, ao seu ver, uma forma elementar de religião. Na medida em que a identidade passa a expressar (em virtude do processo de socialização) a visão de mundo a nível pessoal, daí se conclui que a identidade pessoal seria «uma forma universal de religiosidade individual».226 Este estrato individual constituiria uma constante antropológica subjacente a toda forma histórica de religião. Para Luckmann a tese da «secularização» não passaria de um mito moderno.227 Uma forma específica de religião, a religião de Igreja, tende a tornar-se incompatível com as complexas estruturas do mundo contemporâneo. O que está em declínio são as grandes organizações religiosas tradicionais, diz ele, não a religião. Liberta dos constrangimentos institucionais aos quais estava submetida, a religião adquire uma feição cada vez mais individualizada. A transformação pela qual passa o homem religioso caracteriza-se por uma desclericalização (Entkirchlichung) de um lado, e pela individualização do outro. Se de fato Luckmann retrata com precisão a transformação do campo religioso da Europa ocidental, é importante relativizar suas conclusões quando nosso olhar se dirige para outros contextos. Em países marcados por uma maior estratificação sócio-econômica, como o Brasil, individualização religiosa e eclesiogênese po224 Benz, Ernst. «Norm und Heiliger Geist in der Geschichte das Christentums ». In:

Eranos Jahrbuch (43) 1977: 137-182, p. 137 e 138. 225 Prien, Historia del cristianismo en America Latina, pp. 822-839. 226 Luckmann, Thomas. The invisible religion. The problem of religion in modern so-

ciety. New York: Macmillan, 1967, p. 70. 227 Luckmann, Thomas. «Säkularisierung – ein moderner Mythos». In: Luckmann, T.

Lebenswelt und Gesellschaft. Paderborn: Schöningh, 1980.

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dem ocorrer simultaneamente – a depender da camada social em questão. Grosso modo, lógicas opostas se verificam nos pólos opostos da pirâmide social: entre as camadas sociais médias e elevadas, individualização; junto aos mais pobres, esfervescência religiosa e eclesiogênese. Em que pesem tais diferenças entre Luckmann e Benz, o que nos cabe apreender a partir de seus estudos é que a tese da «secularização» há muito se inviabilizou.228 Trata-se, enfim, de uma «profecia desmentida».229 Voltando ao nosso tema, conclui-se que ao propor a passagem a uma geografia das atitudes mentais, Büttner não estava de fato mudando de objeto. Quer se fale, como Sopher,230 numa geografia das «quase-religiões» (expressão que, francamente, não nos diz nada), ou, como Hoheisel e Rinschede, numa geografia das ideologias, o tema de estudo continua sendo – é preciso que se insista – «religião». Pois vemo-nos diante de duas alternativas. A primeira implica em admitir a unidade antropológica do gênero humano (e, por conseguinte, todos têm alguma forma de religião). A segunda alternativa nos induz a um duplo equívoco: supor que o homem «primitivo» não tinha ainda religião, e que o homem contemporâneo não a tem mais. Por quê afinal o historiador interessado em geografia da religião deve se precaver contra a tentação de se confundir desclericalização com «secularização»? O motivo relaciona-se diretamente com a trajetória do espaço pré-urbano e urbano mineiro. Em princípio, a inauguração de Belo Horizonte em 1897 corresponderia à tese do progressivo declínio da religião. Nada parece mais oposto à relativa espontaneidade da organização espacial de um arraial que a racionalidade do plano da nova capital do estado. Dois modelos distintos, não há dúvida. Mas este exemplo servirá mesmo de apoio à tese de Murillo Marx, segundo a qual «o espaço urbano público no Brasil evoluiu lentamente do sagrado ao profano»?231 228 E contudo, não são poucos os que, de uma forma ou de outra, se mantém fiéis a

ela. Com todos os problemas de direito, mas sobretudo: a única forma de salvar o termo «secularização» consiste pura e simplesmente em insistir na «utilidade» do signo lingüístico, de vez que seu sentido não nos diz mais nada. Habermas tem utilizado a expressão «sociedade pós-secular». Habermas, Jürgen. «Glaube, Wissen – Öffnung». In: Süddeutsche Zeitung, 15.10.2001. Pierucci propõe a volta ao sentido «original» da palavra. Pierucci, Antônio F. «Secularização em Max Weber». In: RBCS 13 (37) 1998. A solução encontrada por Luhmann foi no mínimo curiosa: para ele «secularização não significa perda da função ou do significado da religião». Secularização seria um fenômeno que expressa o processo de evolução rumo a uma progressiva diferenciação e autonomização dos sub-sistemas que compõem a sociedade. Ou seja, para Luhmann a «secularização » existe desde que compreendida nos seus termos. Luhmann, Die Religion der Gesellschaft, pp. 300301. Algo parecido acontece com Gauchet e sua tese sobre a «saída da religião». Gauchet, Marcel. Le désenchantement du monde. Paris: Gallimard, 1985. 229 Sanchis, Pierre. «A profecia desmentida ». In: Folha de São Paulo, 20.04.1997. 230 Sopher, Geography of religions, pp. 112-113. 231 Marx, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano, p. 7.

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Não: a nova visão de mundo a que aderem as elites políticas republicanas, o racionalismo positivista, também pode ser considerada uma forma social de religião.232 A trajetória de Augusto Comte bem o demonstra. O termo «racionalismo», acrescente-se, não denota um tipo de procedimento mental radicalmente alheio ao universo da fé. Um dos aspectos mais inovadores da obra de Weber foi sabidamente o de ter demonstrado a origem religiosa do racionalismo moderno.233 Tais ressalvas de forma alguma representam um questionamento do modelo de Bochum como um todo, mas apenas de um dos elementos que o compõem. A geografia da religião abriu e continua a abrir novos horizontes para o historiador e para o cientista social, como demonstram as considerações de Rinschede sobre a ética ambiental (Umweltethik) dos diversos sistemas religiosos, ou ainda a tipologia dos centros de peregrinação proposta por Rosendahl.234 De resto, a incorporação da perspectiva luckmanniana significaria uma abertura para novas questões, tais como: qual é o tipo de interação específico que a religião invisível estabelece com o espaço? A religião individualizada dos dias de hoje produz efeitos espaciais necessariamente «difusos»? A «re-sacralização» da natureza nas últimas décadas e a expansão do movimento ecológico devem ser consideradas um tema da geografia da religião?235 Deve-se, pois, assinalar a importância da contribuição desta nova disciplina. Ela abre perspectivas de análise que nos permitem explicar de forma mais consistente o processo por meio do qual a religião se relacionou com a produção das formas elementares do espaço urbano na Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. Como se processou historicamente esta dialética entre dinâmica religiosa e dinâmica espacial, é o que se vai explorar nos próximos capítulos.

232 Partindo da conhecida definição de religião de Tylor («crença em seres espiritu-

ais»), Firth argumenta que o que permite diferenciar religião e ideologia é que a primeira se orienta para o «transcendente», enquanto que a segunda se orienta para a «imanência». Firth, Raymond. Religion. A humanist interpretation. London: Routledge, 1996, p. 158-159. Veremos adiante como a análise histórica do catolicismo popular permite colocar em questão o simplismo dualista que é o pano de fundo de tais concepções a respeito do fenômeno religioso. 233 Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, 1. Band, pp. 11-12, 265-267, 270-273. 234 Rinschede, Religionsgeographie, pp. 91-102; Rosendahl, Zeny. Espaço e religião. Uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996, pp. 71-80. Para uma visão geral das tendências de pesquisa na última década, ver Kong, Lily. «Mapping ‹new› geographies of religion: politics and poetics in modernity». In: PHG 25 (2) 2001: 211-233. 235 Ver Soares, Luiz E. «Religioso por natureza». In: Soares, L. E. O rigor da indisciplina. Ensaios de antropologia interpretativa. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

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3.

O sagrado e as formas elementares do espaço

3.1

Religião popular em Minas nos séculos XVIII e XIX

Qualquer tentativa de oferecer um painel monolítico da vida religiosa em Minas ao longo do setecentos e do oitocentos seria sem dúvida inaceitável. Durante muito tempo o mito da «Minas católica» encobriu o papel que ali tiveram as expressões religiosas indígenas, de origem africana e mesmo protestante. Não é nossa intenção reforçar esta imagem, mas não há como negar que nos encontramos diante de um caso singular. O nível de pluralização verificado no campo religioso mineiro foi, pelo menos até meados do século XX, bem menor que o de outros estados brasileiros. O sincretismo (afro-católico ou católico-indígena) nunca se desenvolveu em Minas no mesmo nível e com a mesma intensidade que – para citar um exemplo cômodo – na Bahia. De grandes surtos messiânicos como os de Canudos e do Contestado não se tem notícia, apesar da presença comprovada de muitos sebastianistas no seu território.1 Era de se esperar também que um grupo com características tão especiais como o dos cristãos-novos não tivesse contribuído de forma significativa na constituição do universo religioso mineiro.2 Neste sentido, o mito de Minas como «o estado mais católico do Brasil» teve a sua dose de verdade. São diversas as razões desta especificidade. De um lado, o caráter «insular» da região onde se fizeram as primeiras descobertas de ouro. A virtual inexistência de um sistema viário adequado, carência que sabidamente se estenderia ao longo do século XIX, tornava o acesso às Minas um empreendimento dos mais penosos. De outro lado, o controle imposto pela Coroa portuguesa aos que pretendiam ali chegar acentuava este isolamento relativo. Se não se pode superestimar a força de tais obstáculos, dada a dimensão atingida pela imigração desencadeada após as primeiras descobertas de ouro em fins do século XVII, não se deve esquecer de que o gold rush teria atingido proporções bem maiores caso as dificuldades de acesso (topográficas e administrativas) não tivessem sido as mesmas. O caráter marcadamente lusitano da religião e da cultura do povo mineiro tem suas raízes na corrida do ouro setecentista. Calcula-se entre 8.000 e 10.000 o número de aventureiros que embarcavam anualmente do Reino para as Minas, razão pela qual medidas restrivas foram tomadas já a partir de 1709.3 «Daí – constata 1

2 3

Luccock, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975, pp. 295-296; Spix, Johann Baptist v. e Martius, Carl Friedrich Philipp v. Viagem pelo Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1976, vol. I, p. 218 e vol. II, p. 53. Sobre o sebastianismo em Portugal, ver Hermann, Jacqueline. No reino do desejado. A construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1998. Ver Novinsky, Anita. «Ser marrano em Minas Colonial». In: RBH 21(40) 2001: 161-176. Godinho, Vitorino Magalhães. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971, pp. 44, 149-150.

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Oliveira Vianna – serem os mineiros, dentre os vários grupos regionais das nossas populações, talvez aquele em que mais se conservam os aspectos lusitanos da nossa cultura».4 Como e porque Minas manteve durante tanto tempo este perfil, a despeito da presença de brasileiros vindos de outras capitanias bem como um percentual elevado de escravos e negros livres? Um primeiro marco no processo de auto-definição da cultura mineira se deu provavelmente por ocasião das escaramuças travadas entre paulistas e «emboabas»5 pelo controle da mineração no Rio das Mortes em 1709. A derrota dos paulistas, cujo próprio nome era tido por seus opositores como sinônimo de «horrendo, fero, ingente e temeroso»,6 parece assinalar a afirmação do modelo civilizacional lusitano nos momentos iniciais da história da capitania. Quanto à proveniência dos portugueses, sabe-se que a grande maioria adveio de províncias do norte do Reino como Douro, Trás-os-Montes e Minho – onde, desde os primórdios da formação da nacionalidade portuguesa, desenvolveu-se um catolicismo profundamente marcado pela experiência da guerra de Reconquista. Um catolicismo, portanto, inclinado à rejeição de qualquer forma de alteridade religiosa. Pouco permeável simbolicamente. O perfil tradicionalista do homem mineiro deve muito a estas raízes norte-portuguesas, algo que o relativo isolamento geográfico tendeu a reforçar e a sedimentar. No que diz respeito à realidade dos séculos XVIII e XIX, isto significou que o espaço concedido às manifestações religiosas africanas foi bem mais estreito que em outras regiões do Brasil. Um outro importante aspecto foi a proibição, em 1711, da entrada de ordens religiosas no território de Minas. De uma forma geral a historiografia não deu a devida atenção às implicações desta medida, mesmo sabendo-se que ela contradizia o desejo expresso da Coroa em «civilizar» aquelas populações. De sua parte, as autoridades portuguesas alegavam que os religiosos regulares «eram responsáveis pelo extravio de ouro, e por insuflar a população ao não pagamento de impostos».7 A proibição das ordens sem dúvida visava fortalecer a saúde financeira do Estado português, mas não pelos motivos oficialmente alegados. Em Portugal a Igreja detinha um enorme poder econômico, e que por vezes ameaçava sobrepujar o da própria Coroa. Numa sociedade em que a maior preocupação em vida era (ou deveria ser) a salvação após a morte, uma gigantesca quantidade de bens acabava por reverter-se à Igreja, administradora que é dos «bens de salvação». As ordens religiosas eram alvo privilegiado das doações dos fiéis, de modo que ainda 4 5 6 7

Vianna, Oliveira. Pequenos estudos de psycologia social. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia, 1923, p. 52. A palavra «emboaba», cunhada pelos paulistas, designava pejorativamente tanto «reinóis » (portugueses) quanto brasileiros oriundos de outras regiões. Códice Costa Matoso (CCM). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, p. 277. Boschi, Os leigos e o poder, p. 3.

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em 1832 elas tinham rendimentos da ordem de 1.162 contos, enquanto que a arrecadação do Estado com impostos somava 1.600 contos.8 A conseqüência da proibição da entrada das ordens é evidente: a presença institucional da Igreja permaneceu extremamente débil em Minas Gerais. Mesmo a instalação do bispado de Mariana em 1748 não alteraria substancialmente este quadro. De uma forma geral, o perfil do clero secular não se afastava daquele predominante no geral da população. A disciplinarização do clero e a chamada «romanização» do catolicismo são um fenômeno deflagrado somente a partir da segunda metade do século XIX por Dom Antônio Ferreira Viçoso, sétimo bispo de Mariana. Isolamento, fragilidade da estrutura eclesiástica, escassez de sacerdotes, exígüa expansão da rede escolar: nestas condições é fácil entender que o tipo de religiosidade predominante em Minas Gerais ao longo dos séculos XVIII e XIX estava longe de corresponder aos cânones do catolicismo oficial. De forma que o catolicismo mineiro foi forjado sobretudo pelos leigos. Todavia, isso não o tornou mais «maleável». Em Minas o catolicismo manteve, até bem pouco tempo, um caráter marcadamente tradicionalista.9 Curiosamente, a relação entre desenvolvimento do espaço urbano e a dinâmica das visões de mundo assumia um caráter oposto ao que se verifica na sociedade moderna. O desenvolvimento capitalista, a democratização do ensino, o surgimento dos meios de comunicação de massa e a rápida urbanização são determinantes estruturais do pluralismo.10 Nada semelhante pode ser observado em Minas durante o século XVIII e maior parte do XIX. Ao invés de servir de locus privilegiado do pluralismo, a cidade pré-moderna era um «ponto de rotação» (Simmel) e de transmissão de um único ideal civilizatório. No período que aqui nos ocupa, a cidade funcionava sobretudo como um pólo de disciplinarização social e cultural. Ela tendia a produzir não o pluralismo, mas «monolitismo» e enquadramento nos termos da religião oficial. Era nas fazendas e sítios, nos arraiais nascentes ou no sertão, longe das instâncias de poder civil e eclesiástico, que as distintas visões de mundo e de além podiam conviver de forma um pouco mais harmônica. Era longe dos grandes aglomerados urbanos que as expressões tradicionais da religião popular brasileira adquiriram seus contornos característicos. Deve-se, pois, relativizar as implicações das afirmações de Weber e Troeltsch a respeito do «caráter urbano» do cristianismo, uma vez que o que está em questão para eles é evidentemente uma das formas de cristianismo.11 Quem quiser estudar 8 9

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Godinho, A estrutura na antiga..., p. 71. Na acepção de Mauss: a «potência e a impotência de uma tradição» pode ser medida, diz ele, pelo nível de facilidade (ou dificuldade) de estabelecer empréstimos culturais, pelo nível de permeabilidade (ou impermeabilidade) de um dado universo mental. Mauss, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 117. Berger, Peter, Berger, Brigitte and Kellner, Hansfried. The homeless mind. Harmondsworth: Penguin Books, 1974, pp. 64-65. Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, I, p. 240; Weber, Wirtschaft

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a história do catolicismo popular brasileiro deve procurá-lo no seu próprio espaço vital. Contudo é preciso algo mais. É hora de se abandonar algumas idéias correntes em nossa historiografia, como a que caracteriza a religião luso-brasileira (e particularmente a mineira) como «exteriorista». Mais uma vez, não se trata de uma mera questão de vocabulário. Tal como «superstição», o termo «exteriorismo» nem sequer chega a ser um conceito: ele é a expressão de um anacronismo, de um etnocentrismo e, em última análise, de uma ilusão. Um equívoco que, no âmbito da historiografia brasileira, remonta pelo menos a Sérgio Buarque de Holanda. Para ele o brasileiro vive uma «religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade».12 Ninguém parece ter se dado conta de que a palavra «exteriorismo» só aparece no discurso elaborado pelas elites (eclesiásticas, intelectuais) sobre a religião do povo, mas nunca na fala do próprio povo. Como demonstramos em outra ocasião, a tese do «exteriorismo» não se sustenta porque toma por pressuposto a idéia de que determinadas práticas religiosas são marcadas pela escassez e mesmo ausência de conteúdo.13 Maffesoli escreveu nos últimos anos verdadeiros libelos contra esta desconfiança generalizada em relação ao signo, ao «exterior», como se este constituísse uma dimensão de segunda classe em tudo o que diz respeito à vida social. «Não parece mais pertinente manter uma dicotomia radical entre a forma e o fundo». Pois «a forma é formadora» – ela é dotada de «caráter ontológico».14 Uma leitura crítica da crítica à «exterioridade» revelaria, ademais, seu verdadeiro pano-de-fundo: a tendência anti-ritualista que marca o pensamento moderno. Tal tendência se confronta com um dilema revelador. Precisamente em algumas das expressões religiosas onde o anti-ritualismo foi levado mais longe (por exemplo no pietismo) produziu-se um imenso vazio no plano emocional, cuja contraface é uma «ânsia por segurança e calor» à qual estes mesmos cultos não se mostram capazes de responder de forma eficaz.15 Demonstra-o a observação preciosa de Burton, após assistir ao enterro de uma compatriota em Minas: «Depois de passar muitos anos sem ouvir os serviços religiosos da Igreja da Inglaterra, fiquei impressionado com a frieza e insensibilidade do rito».16 Mas

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15 16

und Gesellschaft, pp. 269-270; Troeltsch, Die Soziallehre der christlichen Kirchen und Gruppen, pp. 250-251. Holanda, Raízes do Brasil, p. 111 (grifo nosso). Da Mata, «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas colonial», pp. 49-51. Maffesoli, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996 (1990), pp. 138, 127 e 158. Ver também Maffesoli, M. «La dynamique de l’apparence». In: L’Homme et la Société (59-62) 1981: 3-10. Soeffner, Hans-Georg. Gesellschaft ohne Baldachin. Weilerswist: Velbrück, 2000, pp. 148. Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 286.

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o anti-ritualismo é, em si mesmo, também uma ilusão. Basta olhar com atenção à nossa volta para nos apercebermos que nosso tempo não expulsou o ritualismo – deu-se-lhe apenas uma nova face. Esta paradoxal inclinação pela negação de um aspecto fundamental da vida social foi classificada por Soeffner como «ritualismo não-assumido».17

3.1.1 Homo ludens, habitus nômade e religião A relação básica que se estabelecia entre o homem e o espaço nem sempre era a do enraizamento. A bem da verdade, a lógica do movimento constituiu um dos elementos definidores do estilo de vida do homem mineiro. Os testemunhos que chegaram até nós atestam a força daquilo que Sérgio Buarque considerou ser uma «concepção espaçosa do mundo», e que Pierre Sanchis prefere chamar habitus nômade.18 A expressão por assim dizer paradigmática desta inclinação pelo movimento foi por certo o bandeirante, mas é possível detectá-la por toda a parte. Em 1677 se dizia dos lavradores paulistas que «os fregueses de Cutia que dista desta cidade [de São Paulo] sete léguas, são já hoje fregueses de Sorocaba que dista da dita Cutia vinte léguas». Populações inteiras que, tal como o indígena, só sabiam «correr trás do mato virgem, mudando e estabelecendo o seu domicílio por onde o há».19 Com o surto da mineração e mesmo com a formação das primeiras vilas esta tendência não se altera. São conhecidas as palavras de Antonil a respeito daquelas «freguesias móveis de um lugar para o outro, como os filhos de Israel no deserto».20 O Conde de Assumar decidiu, em 1720, povoar Pitangui com reinóis pois até então só moravam ali paulistas «cujas habitações sempre têm pouca forma, porque a sua vida e a natural propensão que têm de andarem pelos matos faz que as suas povoações não sejam persistentes».21 Em 1747, um funcionário da Coroa chamava a atenção do Conselho Ultramarino para o «modo de vida do dilatado terreno das Minas», marcado pelas «repetidas mudanças dos moradores, que hoje se achavam naquela vila,

amanhã no Sabará e no outro dia não apareciam; hoje eram mineiros e lavravam nesta paragem, amanhã em outra, e no outro dia iam para a roça, e no outro para o povoado (...)».22

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Soeffner, Hans-Georg. Die Ordnung der Rituale. Frankfurt: Suhrkamp, 1995 (1992), p. 103. Holanda, Raízes do Brasil, p. 13; Sanchis, Pierre. «Topos, raízes, identidade. Um enfoque sobre o Brasil». Mimeografado, 1997. Citado por Sanchis, «Topos, raízes...», p. 7-8. Antonil, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Melhoramentos, 1976 (1711), p. 168. Citado por Freyre, Gilberto. Sobrados e mucambos. Lisboa: Livros do Brasil, s/d [1936], vol. I, p. 93. CCM, p. 437.

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Em sua «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», datada de 1780, José João Teixeira Coelho atribui o pouco desenvolvimento da produção de gêneros alimentícios à facilidade com que se obtinham novas sesmarias da Coroa. E conclui: «Aquela facilidade faz com que os bens da capitania de Minas não sejam es-

táveis; porque os roceiros, como se lhes não dificulta a concessão de novas terras, não fazem benfeitorias atendíveis nas que possuem, e as abandonam por quaisquer motivos de conveniências fantásticas».23

A mesma lógica continua a vigorar no século XIX. Depois de falar a um lavrador da fertilidade das terras no Vale do Jequitinhonha, Saint-Hilaire se espanta com o fato de vê-lo imediatamente disposto a mudar-se para aquela região da província.24 Ao deparar-se com o arraial de Pedras de Baixo, que, a despeito das condições privilegiadas de seu sítio encontrava-se praticamente vazio, escreve o mesmo autor: «Como é possível que se tenha abandonado esse local encantador?». Para ele o habitante de Minas «jamais está contente em sua terra».25 Eschwege, outro a constatar a força deste habitus nômade, não esconde sua perplexidade diante de «arraiais em ruínas sem que pessoa alguma se proponha a reconstruí-los, ou, pelo menos, a reparar os estragos».26 E prossegue, referindo-se ao arraial de Bambuí: «Entristeço-me em conhecer locais em que as casas parecem apenas coladas no solo nu, inculto, sem uma árvore sequer, plantada pelos moços, que possa recordar aos velhos a sua mocidade perdida, sem uma praça enfeitada que os faça amar o torrão natal. Daí a ausência de sentimentos, o pouco relacionamento entre as famílias, as emigrações contínuas que lembram os nômades. Nada os liga à terra natal, a não ser os interesses materiais. Tão logo estes não possam mais ser satisfeitos de maneira fácil, abandonam os lares em ruínas, para recomeçar a vida em outras bandas.»27

É fácil entender que ao observador alemão – tão marcado à época por este profundo senso de pertencimento ao seu «lugar antropológico» de origem (a Heimat) – o tipo de comportamento acima descrito tenha parecido exótico. Mas o habitus nômade não passou desapercebido a outros viajantes. Ao chegar à povoação do Pomba, Langsdorff encontrou-a «em franca decadência». As poucas e miseráveis casas estavam «quase todas abandonadas pelos seus habitantes, que estão todos em Descoberta Nova», um arraial nascente não distante dali, no qual se encon23 24 25 26 27

Coelho, José João Teixeira. «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais (1780)». In: RIHGB 15 (7) 1852, p. 452. Saint-Hilaire, Auguste de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Gerais. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1938, vol. I, p. 177. Saint-Hilaire, op. cit., vol II, p. 326-327. Eschwege, Wilhelm L. v. Brasil, novo mundo. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1996, p. 65. Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 93. Grifo nosso.

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trara ouro.28 «Tudo se movimenta», diz Richard Burton já na segunda metade do século XIX, pois no mineiro «o instinto nômade ainda está muito forte».29 Até mesmo nas primeiras décadas do século XX Monbeig constatava a permanência em paulistas e mineiros de uma «espécie de instinto que os impele sempre para adiante, para além da civilização».30 Seja-nos permitido examinar a questão um pouco mais de perto, uma vez que ela pode nos dizer algo de importante sobre a psicologia dos antigos mineiros. Para os observadores europeus esta inclinação ao movimento era fruto da «indolência», da resistência ao serviço militar e da fuga do rigor da justiça, da facilidade de obtenção de novas terras e do escasso amor à terra natal.31 A questão da «indolência» é das mais complexas, e exigiria de nós, antes de mais nada, um questionamento das bases a partir das quais a idéia mesma de «indolência» pôde se constituir.32 De um suposto pouco apego à terra natal não parece dar prova a civilização luso-brasileira – fiel que foi e é ao sentimento da saudade. Num certo sentido, pode-se dizer que o homem daquele período vive ainda sob o jugo da Natureza. Ele se desloca abruptamente para os locais nos quais se diz haver ouro; vê-se expulso de seu chão por força de secas prolongadas ou de surtos epidêmicos (as temidas sezões); descarta de antemão a simples idéia de ter que trabalhar suas terras quando há tantas outras ainda desocupadas. Daí porque o arraial foi a forma de povoação típica do homem mineiro. A condição de transitoriedade que o próprio termo traduz não poderia ser mais representativa. Às vezes o arraial assenta raízes, às vezes não – e só então se descobre que, ao invés de constituir um embrião de cidade, ele não passara de simples acampamento. Mas, enfim, que terá sido aquela «força» que impelia os homens para adiante? Em grande parte foi a força do mito. O mito do Eldorado, antes de tudo.33 Duas 28 29 30 31

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Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 72. Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, pp. 145 e 325. Monbeig, Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, p. 122. Saint-Hilaire, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco e pela província de Goiás. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1944, vol. I, p. 123; Pohl, João Emanuel. Viagem no interior do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1951, vol. II, p. 301; Eschwege, op. cit., p. 86-87. Antônio Cândido, que infelizmente não chegou tão longe, atribuiu o «desamor ao trabalho» do homem rural do sudeste brasileiro à «desnecessidade de trabalhar, condicionada pela falta de estímulos prementes, a técnica sumária, e, em muitos casos, a espoliação eventual da terra obtida por posse ou concessão». Cândido, A. Os parceiros do Rio Bonito, p. 65. Alguns elementos para uma interpretação culturalista podem ser encontrados no artigo de Eisenstadt, S. N. «Culture, religions and development in North American and Latin American civilizations». In: International Social Science Journal (134) 1992: 593-606. Ver, entre outros: Ricardo, Cassiano. Marcha para oeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939; Pouyllau, Michel. «Une géographie de l’Eldorado». In: Découvertes et explorateurs. Actes du Colloque International. Bordeaux: L’Harmattan, 1994, pp. 451-463.

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de suas variantes adquiriram notoriedade na Minas colonial: a Serra do Sabarabuçu e a Lagoa Dourada. Os bandeirantes imaginavam a primeira coberta de prata, enquanto que a Lagoa Dourada, situada em algum ponto das cabeceiras do rio São Francisco, era procurada – diz um documento escrito em 1809 – «pela grande riqueza que se julga ter; assim como um campo vizinho, a que dão o nome de Campo da Riqueza».34 Mais tarde, descoberto o ouro, fantásticas histórias chegavam ao Reino e a outras regiões da Colônia. Dizia-se que nas Minas bastava arrancar-se um punhado de mato com as mãos e sacodí-lo para obter o precioso metal.35 Na segunda metade do século XIX o mito da Lagoa Dourada era ainda corrente em Minas, e não apenas nos estratos inferiores da pirâmide social. Tschudi afirma que mesmo «homens extremamente cultos» não duvidavam de sua existência: «poder-se-ia até acreditar que eles mesmos a tinham visto, e no entanto baseavam-se unicamente na tradição». Quando de sua passagem pela província, acreditava-se que a Lagoa Dourada estaria localizada na região das florestas ainda pouco conhecidas que se extendiam entre os vales do Rio Mucuri e do Rio Belmonte.36 Os pioneiros não têm a ilusão de que em Minas os espera uma terra sem mal. Sabe-se bem que ali campeia a desordem e o crime. Mas não há como resistir ao apelo irresistível das lavras. Quem as procura aspira a uma salvação no hic et nunc. A estrutura desta «salvação» no plano da imanência não obedece ao princípio da justiça divina, mas sim ao imperativo da «sorte»: o mineiro é antes de tudo um jogador. Sob este prisma, pode-se entender melhor o problema do habitus nômade. Pois a lógica do homem que se desloca ao sabor da última descoberta de ouro ou da busca de um novo chão não é outra senão a do jogo. Movimentar-se, nos séculos XVIII e XIX, é antes de tudo uma outra forma de «fazer uma aposta». É curioso que até agora este traço fundamental da vida mineira não tenha sido devidamente ressaltado, já que testemunhos não faltaram. O retrato que Nuno Marques Pereira faz daqueles que seguem para as «minas do ouro» em seu Compêndio Narrativo do Peregrino da América (1728) é aliás contundente: homens que abandonam tudo em nome da sede de riqueza, pouco inclinados à observância do ideal católico segundo o qual a suprema virtude estava em ausentar-se do «mundo». Naquele tempo – relata um dos personagens do livro – «chegou à minha pátria a notícia dos grandes haveres, que se havia descoberto neste Estado do Brasil nas minas do ouro, por cuja razão me deliberei embarcar em uma frota, que fazia viagem para o Rio de Janeiro, sem mais cabedais, que a ferramenta do meu ofício.»37 Por volta de 1750, o paulista Bento Fernandes Furtado fala-nos do 34 35 36 37

Leite, Mário. Paulistas e mineiros. Plantadores de cidades, p. 88; Ribeiro, Joaquim. Folklore dos bandeirantes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946, p. 50. Konetzke, Richard. Die Indianerkulturen Altamerikas und die spanisch-portugiesische Kolonialherrschaft. Frankfurt: Fischer, 1995 (1956), p. 304. Tschudi, Johann Jacob v. Reisen durch Südamerika, Stuttgart: Brockhaus, 1971 (1866), 2. Band, p. 255. Pereira, Nuno Marques. Compêndio narrativo do peregrino da América. Rio de

89 «inumerável povo de várias partes do Brasil e em maior quantidade Portugal» que tinha vindo às minas, «os mais deles, pobres».38

filhos de

Quem toma o caminho das minas é um aventureiro39: um jogador, um homo ludens portanto. Quando Sérgio Buarque caracteriza o aventureiro como o tipo humano «que ignora as fronteiras» e que é marcado por essa «ânsia de prosperidade sem custo (...) tão notoriamente característica da gente de nossa terra»,40 não é da essência mesma do jogador que se está a falar? Simmel, em seu ensaio Das Abenteuer, já percebera claramente o paralelismo entre jogo e aventura.41 Consta que, antes de se dirigir às minas, Bartolomeu Bueno tinha sido banido da vila de São Paulo «por haver perdido todo o seu cabedal a jogos de parar».42 O século XVIII foi definido por Carrato como «o século da jogatina»,43 e, de fato, esta prática se alastrara desde as primeiras décadas daquele século. Por duas vezes, em 1729, as autoridades civis proibiram a realização de rifas.44 Foram comuns as denúncias feitas pelos visitadores diocesanos, como a que se faz em 1733 contra João Afonso Barbosa, morador de Caeté, «admoestado a não mais tornar a admitir em sua casa jogos ou dar tabulagens».45 Embora o quadro geral da sociedade no século seguinte seja em muito diferente daquele em que viveram os pioneiros, o fascínio exercido pelo jogo não arrefeceu. Referindo-se aos habitantes do sertão norte de Minas, Spix e Martius constatam sua inclinação pelo jogo de cartas e dados.46 Durante sua longa estadia em Congonhas, Hermann Burmeister pôde observar a relação do mineiro com o jogo de cartas: «Ninguém imagina a paixão com que os homens se dedicam a este jogo.

Começavam pela manhã, às 10 ou mesmo antes, ao meio dia fazem um pequeno intervalo, após o qual continuam a tarde toda e a noite adentro. (...) Não fazia ele [o hospedeiro de Burmeister] segredo do fato de jogar como profissional, dando-me como exemplo um fazendeiro vizinho, que adquirira

38 39

40 41 42 43 44 45 46

Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1988 (1728), vol. II, p. 228. CCM, p. 184. O termo já era corrente no século XVIII. Martinho de Mello e Castro escreve em 1788 que «os primeiros habitantes d’aquella capitania [de Minas] foram uns aventureiros da capitania de S. Paulo (...). Com a notícia d’estes descobrimentos sahiram do Rio de Janeiro, e de diversas partes, outros semelhantes aventureiros». Castro, Martinho de Mello e. «Instrução para o Visconde de Barbacena». In: RIHGB (21) 1844: 3-59, p. 14. Holanda, Raízes do Brasil, pp. 13 e 15. Simmel, Georg. «Das Abenteuer». In: Simmel, G. Philosophische Kultur. Leipzig: Alfred Kröner, 1919, pp. 7-24. CCM, p. 170. Carrato, José Ferreira. «A crise dos custumes nas Minas Gerais do século XVIII». In: Revista de Letras (Assis) (3) 1962: 218-248, p. 244. CCM, pp. 361 e 368. Carrato, «A crise dos costumes...», p. 245. Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 66.

90 casa, terras e culturas por meio do jogo»47

A dimensão «salvífica» do jogo no Brasil foi, de resto, bem diagnosticada por Stefan Zweig. Para ele, «a riqueza é algo com que se sonha; ela deve vir do céu, e no Brasil a função deste céu é substituída pela loteria».48 O proletário brasileiro, diz por sua vez Flusser, «nunca vive para o seu trabalho e sua situação econômica, social e política, mas sempre vive, fundamentalmente, para o jogo».49 Seja sob a forma do assim chamado «jogo de azar», seja sob a forma de habitus nômade, o que está em questão é um claro anseio de promoção social. É bem isso que a linguagem cotidiana revela por meio da expressão tentar a sorte em outro lugar. Numa sociedade pós-estamental como a brasileira, profundamente marcada pela desigualdade, em que as perspectivas reais de ascensão à custa do empenho e do valor individuais são mínimas, em que a economia das oportunidades é regida pela lógica da raça, do parentesco e/ou das «boas» relações, em tal sociedade as possibilidades (sejam elas fulgazes ou não) de promoção social se colocam acima de tudo na esfera do lúdico.50 Festa, jogo e «nomadismo» situam-se assim num mesmo plano simbólico e, quem sabe mesmo, existencial. Na Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX, possivelmente ainda hoje, o homo ludens é a necessária contraface do homo hierarchicus. Esta íntima relação entre estrutura social e habitus nômade (que sabemos agora constituir apenas uma outra modalidade de jogo) não passou despercebida a Guimarães Rosa: «Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago das gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas.»51 Seria assim inexato afirmar, como o fazem Simmel, Huizinga e Flusser, que o jogo não se relaciona com uma aspiração no plano propriamente material, ou que é o ato de jogar em si que dá sentido à vida do apostador.52 Para uma compreensão deste problema, nada melhor que recorrer ao romance O jogador, de Dostoievski.53 Escrito em 1866, ele já mostrava em que medida a tese levantada pelos autores acima mencionados só se aplica às camadas sociais dominantes. Nosso 47 48 49

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51 52 53

Burmeister, Hermann. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, pp. 251-252. Grifo nosso. Zweig, Stefan. Brasilien. Ein Land der Zukunft. Leipzig: Insel, 1994, p. 151. Ver Flusser, Vilém. Fenomenologia do brasileiro. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998, p. 104. Cita-se aqui a versão brasileira uma vez que na edição alemã este trecho foi excluído. Estamos em evidente débito, neste ponto, com o pensamento de Da Matta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990 (1979); Da Matta, R. Explorações. Ensaios de sociologia interpretativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. Rosa, Grande sertão, p. 39. Simmel, «Das Abenteuer», p. 20; Huizinga, Johan. Homo ludens. Köln: Pantheon, s/d (1938), pp. 80-81; Flusser, Vilém. Brasilien oder die Suche..., p. 96. Dostojewski, Fjodor. Der Spieler. Späte Prosa. Berlin: Aufbau-Verlag, 1990, pp. 348-530.

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interesse por esta obra não se justifica apenas pelo caráter pioneiro das reflexões que contém; o que nos parece fundamental é o fato de que em O jogador o discurso dominante sobre os «jogos de azar» e seus adeptos é pela primeira vez confrontado criticamente com a lógica predominante num universo cultural situado às margens do mundo dito «civilizado» da época. Ao dar-se conta da existência de um contra-discurso, a análise histórica pode então deixar de constituir-se unilateralmente; isto é, apenas a partir da crítica européia à «indolência» dos brasileiros.54 Com a autoridade de quem freqüentou casas de jogos no sul da Alemanha e na Suíça por uma década, Dostoievski constata a existência de uma nítida distinção entre os jogos da «plebe» e os da elite. Ao jogar, o aristocrata «de forma alguma deve se interessar pelo próprio ganho». Num cassino, «um verdadeiro gentlemen não deve demonstrar qualquer perturbação nem mesmo quando perde todos os seus bens». Os jogos dos pobres, por sua vez, têm no ganho o seu único e verdadeiro fim. As palavras de Alexei Ivanovitch, personagem principal de O jogador, bem poderiam estar na boca de qualquer aventureiro na Minas antiga (basta que, por meio de um simples exercício de imaginação, se substitua a palavra «russo» por «mineiro»): «Um russo não é apenas incapaz de adquirir capitais; ele os dissipa sem razão e desregradamente. Todavia também nós, russos, precisamos de dinheiro, de modo que somos extremamente propensos a – e mesmo ávidos por – métodos como a roleta, que podem fazer a alguém rico em duas horas, sem que seja necessário se esforçar demais». Esta constatação não implica um elogio da ética capitalista. Pelo contrário: Ivanovitch declara preferir «viver como um nômade numa tenda» a aderir à «forma alemã de acumular riquezas». Depois de descrever ironicamente a ética econômica protestante, ele conclui: «Como eu me inclino, antes, à forma russa, tendo preferencialmente a adquirir riqueza à custa da roleta. Eu não quero ser Hoppe & Cia. em cinco gerações. O dinheiro, eu preciso para mim mesmo, e longe de mim ver todo o meu Ser como um acessório do capital».55 Na psicologia do mineiro, o jogo – e por decorrência a «sorte» – exercem um papel fundamental enquanto meio de «salvação». O que evidentemente não quer dizer que a dimensão lúdica simplesmente substitua a religiosa. Na prática, as crenças religiosas são integradas e, por assim dizer, adaptadas às necessidades vitais do homo ludens. Não nos esqueçamos de que um dos traços característicos da religiosidade popular luso-brasileira é precisamente este colocar (e por vezes em alto grau) a transcendência a serviço da imanência. Tal mentalidade foi particularmente bem descrita no romance O garimpeiro, de Bernardo Guimarães. O herói Elias ambiciona casar-se com Lúcia, filha de um abastado fazendeiro, mas 54

55

Ver Bendocchi Alves, Débora. «A imagem do Brasil para os emigrantes alemães através do ‹Illustrierte Zeitung› de Leipzig: 1844-1869 ». In: Zeuske, Michael y Schmieder, Ulrike (eds). Regiones europeas y Latinoamérica (siglos XVIII y XIX). Frankfurt: Vervuert, 1999, pp. 257-269. Dostojewski, Der Spieler, pp. 362-363, 376, 376-377, 378-379.

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vê em sua condição social inferior uma barreira intransponível. «Ah! Se eu fosse rico!... Por que não quis a sorte, que eu possuísse um pouco de dinheiro?», pergunta-se ele. Elias decide então empregar suas parcas economias na mineração; todavia a tão esperada riqueza não vem de imediato. «Nem assim – explica a certa altura o narrador – perdera a fé em que estava de que do chão havia de lhe brotar a riqueza e a felicidade». Em sua desolação, o protagonista põe às claras a homologia que perseguimos aqui: Só o jogo, o testamento ou o garimpo nos podem tornar ricos de um dia para o outro.

Seu ajudante, o velho Simão, procura animá-lo: «Já fiz uma promessa a Nossa Senhora do Patrocínio, e ela há de nos valer».56 Não foi outro o quadro encontrado por Langsdorff em Minas. A sede de ouro era tal que as pessoas «continuam a investir contra as partes ainda intocadas dos morros, revolvendo e escavando a terra a esmo. Elas jogam na loteria». E justifica em seguida a sua comparação: «Encontrei o proprietário de uma fazenda dando ordens para dois negros – mais do que isso ele não tinha. Ele se aproximava deles dizendo as seguintes palavras: ‹Deus dê prosperidade e bom êxito ao seu trabalho!›. Depois de explicar-lhes onde e a que distância deveriam conduzir a água para empurrar a terra, revolvê-la ou arrastá-la, ele voltava passeando para casa e dizendo: ‹Deus dê prosperidade ao seu trabalho!›. A todas as objeções que eu lhe fazia, ele respondia sempre com o argumento de que tinha esperança de poder ganhar muito dinheiro com pouco trabalho».57 Para muitos a ereção de uma igreja era concebida inclusive como uma forma de gozar das bênçãos do santo (à qual a mesma era dedicada) sobre os trabalhos de mineração.58 Se as crenças populares relacionam-se estreitamente com o estilo de vida e a mentalidade do homo ludens, é preciso dizer que nem sempre elas confirmam a eficácia do sagrado católico. Curiosamente, é preciso por vezes afastar-se de forma direta ou indireta dos símbolos cristãos para se alcançar o sucesso desejado. Nuno Marques afirma que tinha difundido-se pelas minas a crença de que «toda pessoa que trouxesse contas [rosários] consigo, e por elas rezasse, e se encomendasse a Deus, e à Santíssima Virgem Nossa Senhora, não havia de achar ouro».59 Que tais concepções se manteriam ainda por muito tempo, mostra-o um exemplo retirado do manuscrito de uma Geografia e História do Gongo. Escrita pelo vigário do lugar em 1912, ela oferece um painel da trajetória daquele que foi um dos nossos mais importantes centros de mineração no século XIX. Segundo o manuscrito atribuía-se ao «negro pagão» mais facilidade para encontrar ouro. Por esta razão mantinha-se em toda lavra um escravo africano não batizado, ou então 56 57 58 59

Guimarães, Bernardo. O garimpeiro. São Paulo: Melhoramentos, 1962, pp. 41, 129, 48 e 153. Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 39-40. Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, p. 53. Pereira, Compêndio narrativo..., vol. II, p. 174.

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um «molecote» que só se vinha a batizar após os dezoito ou vinte anos de idade. É justamente o pagão – por definição aquele que está excluído da comunidade dos crentes – o veículo da «graça». O mesmo documento fala-nos na crença no Menino-de-Ouro. Dava-se este nome a toda pepita cuja forma sugeria uma aparência humana. Sua descoberta anunciava o declínio iminente daquela lavra. O autor do manuscrito reproduz o que ouvira da velha negra Maria Cândida sobre a razão do fim da Companhia de Mineração do Gongo Sôco. «Com o tom mais crente», dissera ela: «Nhonhô vigário, a Companhia fechou porque um negro achou um Menino-

de-Ouro, e Seu João Blema mandô o Menino pra Inglaterra. Toda gente dizia que não mandasse o menino que o ouro parava. Mas ele mandou o menino assim mesmo e o ouro logo fugiu».60

A persistência destas formas de crença popular relaciona-se também com os problemas relativos à presença e formação do clero em Minas Gerais. Dois tipos de sacerdotes predominam nos momentos iniciais da nossa história: de um lado, os capelães; de outro, uma grande quantidade de clérigos e frades irregularmente estabelecidos na região. Os capelães, com seus altares portáteis, celebravam missas e ministravam os sacramentos ao longo dos tortuosos caminhos que levavam às minas ou a lugares delas afastados. A idéia de partirem rumo ao desconhecido sem a garantia das bênçãos diárias de um capelão parecia absurda aos bandeirantes. Nos primeiros anos do século XVIII, Salvador Fernandes Furtado de Mendonça conseguira autorização episcopal «para poder armar altar portátil em qualquer parte e erigir capelas onde quer que fosse necessário para se administrar todos os sacramentos aos católicos que o procurassem naqueles desertos, que então o eram pelo capelão que consigo trazia».61 Vê-se que este tipo de capelão não está a serviço exclusivo do bandeirante, uma vez que, na medida do possível, deve dar assistência às populações das regiões que percorre. Mas não resta dúvida de que a obrigação primeira daqueles sacerdotes é para com seus patrocinadores. Quando, em 1700, José de Camargo Pimentel se encontra enfermo e às vésperas do «descanso prometido aos bons», o capelão que o acompanha roga-lhe que prepare seu testamento, se confesse e sacramente-se. A princípio o velho Pimentel não lhe dá ouvidos. Finalmente, num dia de sábado, ao romper do dia, manda que chamem o capelão e que seja rezada missa. «E mandou armar altar no mesmo aposento onde disse missa, e a ouviu o enfermo de joelhos, e recebeu o sacramento». Pouco depois «entrou em agonia, acabando a vida com graves demonstrações de predestinado».62 Em sua expedição empreendida sessenta e nove anos mais tarde pelo sertão oeste da Capitania, Inácio Correia Pamplona fez-se também acompanhar de um sacerdote. Pamplona assistia ao sacrifício da missa «sem que falhasse um 60 61 62

AEAM, armário 24, caixa 5. Grifo nosso. CCM, p. 181. CCM, pp. 175-176.

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só dia, por mais forçoso impedimento que se oferecesse».63 Mas nem todos servem a um bandeirante. Entre 1703 e 1710 dois sacerdotes, com a devida autorização episcopal, percorrem a região de Catas Altas, Antônio Pereira e São João del-Rei «armando altar portátil onde lhes era necessário administrar os sacramentos».64 Os capelães foram portanto os primeiros especialistas do sagrado cristão a se estabelecerem em Minas Gerais. Sua contribuição à formação da religiosidade mineira não deve, porém, ser superestimada: tal como o bandeirante, o capelão é um nômade. E havia os outros. Um aluvião de sacerdotes seculares e mesmo de religiosos entravam indevidamente no território mineiro. Pelo menos desde 1702, as autoridades não se cansam de denunciá-los e exigir sua expulsão.65 Daqueles eclesiásticos dizia-se tudo – que vieram às Minas exclusivamente movidos pela ganância, que tomavam parte ativa em levantes e no contrabando, etc. Ao longo de toda a primeira metade do século XVIII sucedem-se acusações de igual teor.66 Hoje sabe-se bem quão longe estava a situação moral do clero da época de corresponder aos rígidos princípios tridentinos.67 Um Nuno Marques Pereira, por exemplo, ressaltava a «pouca devoção» dos padres e a «pressa» e «distração» com que eles celebravam o culto. Não poucos missionários «costumam ir às minas e a esses sertões, mais levados dos interesses do ouro e cabedais, que do zelo de servir a Deus, e ao bem das almas».68 O bispo do Rio de Janeiro, Dom Lourenço de Almeida, reclama em 1733 dos clérigos que «vêm parar a estas Minas, aonde muitos vivem licenciosamente e mais destraídos do que os seculares mais perversos (...). Parece coisa incrível a multidão que há deles, e sem embargo que o Reverendo Bispo tem mandado suspender das Ordens a todo o clérigo que veio para estas Minas sem licença sua, nada basta para que eles deixem de estar nelas». O mesmo se passa com os frades, «a maior parte deles maus religiosos e para o serem basta só o não quererem estar nos seus conventos».69 Determina-se, uma vez mais, sua expulsão. Entretanto uma carta do governador Gomes Freire de Andrada, datada 63

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68 69

«Notícia

diária e individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jornada que fez o Senhor Mestre de Campo, Regente e Guarda-mor Inácio Correia Pamplona, desde que saiu de sua casa e fazenda do Capote às conquistas do Sertão, até se tornar a recolher à mesma sua dita fazenda do Capote etc. etc. etc.». In: Anais da Biblioteca Nacional (108) 1988: 53-113, p. 65. CCM, p. 263. Diniz, Sílvio Gabriel. «Primeiras freguesias nas Minas de Ouro». In: RIHGMG (8) 1961: 173-183, p. 176. CCM, pp. 347, 367-368, 390. Mott, Luiz. «Modelos de santidade para um clero devasso: a propósito das pinturas do Cabildo de Mariana, 1760». In: Revista do Departamento de História da UFMG (9) 1989: 96-120; Lima, Lana Lage da Gama. «A reforma tridentina do clero no Brasil Colonial». In: Congresso Internacional Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas – Actas. Braga, 1993, pp. 531-549. Pereira, Compêndio narrativo..., vol. I, pp. 366-367, p. 370. APM, SC-32, folhas 104-104v.

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de 25 de outubro de 1742, revela possíveis efeitos negativos do rigor excessivo de tais medidas. Entre os expulsos encontravam-se vigários, funcionários da burocracia eclesiástica, «clérigos [que] se ocupam uns em capelas particulares de pessoas a quem a distância não permite (...) o irem à matriz da freguesia ouvir missa nos dias de preceito, outros em capelas de irmandades». Os prejuízos não se verificavam apenas no que diz respeito à esfera religiosa. Alguns sacerdotes, acrescenta Andrada, «têm grossas lavras e bastantes escravos, e seria em prejuízo da Fazenda Real exterminarem-se estes perdendo-se o estabelecimento e escravos com que se acham».70 A posse em 1748 do primeiro bispo de Mariana, Dom Frei Manuel da Cruz, assinala o início de uma outra estratégia visando alterar este quadro. Prova disso é a criação do Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte em 1750. Entretanto, após a morte de Dom Frei Manuel (ocorrida em 1764), o bispado permaneceria nada menos que 16 anos sem titular. Quanto à formação de sacerdotes, o Seminário sofre forte concorrência das chamadas «Aulas Régias» patrocinadas pela Coroa. Um estudo de Barbara Fadel mostrou que apenas 21% dos novos padres ordenados no Seminário da Boa Morte no período colonial tinham efetivamente estudado ali.71 Tal como outros estabelecimentos religiosos da época, ele era freqüentado sobretudo por uma elite: os candidatos deveriam dispor de um rendimento anual mínimo de 25.000 réis. A grande maioria dos seminaristas era possuidora de terras, e a quarta parte deles detinha escravos. Ainda assim, por falta de recursos e certamente de vocações72 o Seminário da Boa Morte é fechado em 1811. Sua reabertura só viria a ocorrer em 1820 com Dom Frei José da Santíssima Trindade. Diante de um clero com este perfil («nada é tão comum quanto padres fazendeiros», dirá Saint-Hilaire),73 é fácil entender a existência nas camadas menos privilegiadas da população daquilo que poderíamos chamar de anticlericalismo popular.74 É Eschwege quem fala, num trecho repleto de implicações: no sertão leste mineiro os padres «são geralmente pouco estimados. O povo os vê, igualmente, como um mal necessário. Diz-se, por isso mesmo, que os padres são bons apenas para rezar a missa e ouvir a confissão. Fora disso a opinião geral é de que: 70 71 72

73 74

APM, SC-45, folhas 53v-54. Fadel, Barbara. Clero e sociedade: Minas Gerais, 1745-1817. São Paulo: tese de doutorado em História, USP, 1994, pp. 59-60. «O edital de Dom Frei Cipriano, de 1798, convocando para o Seminário os candidatos ao sacerdócio, precisou ser renovado por duas vezes e, mesmo assim, sem chegar a grandes resultados. O Cônego Trindade relata que, de 1806 a 1811, ainda havia seminaristas, mas logo esses escassearam». Fadel, op. cit., p. 57. Saint-Hilaire, A. Viagem às nascentes..., vol. I, p. 127. Para Baroja este fenômeno pode ser facilmente observado nos séculos XVI e XVII, e traduziria «una desilusión con respecto a las actuaciones, públicas y privadas, de los hombres de la Iglesia». Baroja, Julio Caro. «Santos y campesinos». In: Baroja, J. C. Ensayos sobre la cultura popular española. Madrid: Dosbe, 1979, pp. 169182, p. 176.

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nos livre da companhia dos padres!›».75 Vê-se como o caráter ambígüo do status do sacerdote permeia estruturalmente a religião popular. A relatividade que nela assume a noção de «poder» contraria a idéia simplista segundo a qual o hierocrata exerce um controle quase absoluto sobre os fiéis. O padre é indispensável; afinal só ele pode ministrar os sacramentos. Mas que ele pretenda extender sua autoridade além de um determinado raio de ação, isso já é uma coisa totalmente diferente. Para as populações rurais e semi-rurais, o passar do tempo não abalou a convicção (nem sempre explicitada) de que «a igreja é do povo»76, e de que por vezes «são os padres que acabam com a religião».77 Na Vila de Piedade dos Gerais, o texto de uma das mensagens que se acredita terem sido enviadas por Nossa Senhora é explícito: «Os padres gostam de ser os primeiros, serão os últimos. Às vezes são grandes pecadores.»78 Um interessantíssimo episódio ocorrido na vila de São João Nepomuceno mostra que alguns sacerdotes realmente faziam jus a esta má fama. Em correspondência enviada às autoridades eclesiásticas em 5 de julho de 1892, um paroquiano informa sobre «o triste espetáculo que aqui se deu no dia 3 do corrente: às 11 horas do dia, depois de uma ausência de um mês e tanto, aqui entrou o Sr. Pe. Antônio Teixeira, escoltado por cerca de cento e tantos capangas todos de cor preta na maior parte, entre eles, muitos assassinos, e armados dos pés à cabeça. Dando tiros e pedindo sangue; e nesse gosto insultando as autoridades e nada respeitando; sendo a missa só assistida pelos mesmos capangas, ficando grande parte deles escoltando as portas da igreja e fazendo bramir suas armas! Com custo pude conter o povo da freguesia que quiseram [sic] desafrontar-se de tamanha afronta, senão fora o que, seria a nossa freguesia teatro de cenas de mortes! Em nome de Nosso Bom Deus e de Nossa Santa Religião, eu vos peço compadecer-se de nós, oficiando e implorando ao Exmo. Sr. Bispo a nomeação de um outro pároco para esta freguesia».79 Na percepção popular a virtude precede sempre o status institucional. Não se deve supor que estilo de vida nômade e virtude necessariamente contradigam um ao outro. Um outro tipo de sacerdote desperta nas populações rurais um profundo sentimento de admiração e respeito: são os «padres missionários», que percorrem o interior brasileiro a partir do século XIX pregando o Evangelho. Apesar das diversas referências que lhes fazem os escritores mineiros80, a ação dos missioná‹Deus

75 76 77 78 79 80

Eschwege, W. Brasil, novo mundo, p. 81. Grifo nosso. Citado por Willems, E. Uma vila brasileira, p. 85. Citado por Espírito Santo, Moisés. A religião popular portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990 (1984), p. 200. Citado por Ferreira, As aparições em Piedade dos Gerais, p. 78. AEDC, cx. 3, pasta «Cidade de São João Nepomuceno ». Os grifos estão no original. Guimarães, Bernardo. O seminarista. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969, p. 141; Rosa, Guimarães. «Grande Gedeão». In: Rosa, G. Tutaméia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979, p. 77; Lanza, Jovelino. Minha Sete Lagoas. Belo Horizonte: Armazém de Idéias, 1999, p. 228-229.

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rios infelizmente não foi ainda explorada pela historiografia. O melhor retrato nos foi pintado sem dúvida por Rosa: «foi tempo de missão, e chegaram no arraial os missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, p’ra fortes e de caras coradas, bradando sermão forte, com forte voz, com fé brava. De manhã à noite, durado de três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e aconselhando (...). A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde como virtude».81 O entusiasmo com que essas figuras eram recebidas é atestado por um pedido de provisão feito por moradores de Baependi em 1899: «Os abaixo assinados desejam construir na explanada da serra oriental desta

cidade uma capela de pedra decente para o santo sacrifício e atos do culto divino sob a invocação do Senhor Bom Jesus do Calvário, com o fim principal de recordar a primeira procissão do aniversário da Santa Missão, na qual cerca de 4000 fiéis carregaram a braço cerca de 25 carros de pedra para o patamar da santa cruz deixada pelos missionários; e que realizou-se a 24 de maio deste ano, 1° jubileu da missão.»82

O sentimento de que o monopólio sobre os meios de salvação nem sempre torna o clero «melhor» é um dos fatores que explicam a difusão da chamada devotio moderna. Para Weiler este movimento surgiu do desejo das pessoas comuns em ter acesso às formas e aos conteúdos de uma espiritualidade até então limitada aos mosteiros.83 Enfim: da necessidade de santificar-se mesmo não se ausentando completamente do «mundo». Hoornaert julga que a devotio criou «o clima religioso típico do Brasil Colônia»,84 o que parece ser particularmente verdadeiro no caso de Minas Gerais, apesar (ou justamente por causa) das grandes limitações ali impostas pela burocracia eclesiástica e civil. Os ermitães oferecem-nos um exemplo típico. Homens vestidos à maneira de frades, que deixavam cabelos e barba crescerem e percorriam as estradas com imagens de santos que davam a beijar em troca de esmolas. O dinheiro devia destinar-se a uma irmandade, uma capela em construção ou a outras obras pias. Ao pedirem em 1783 autorização para erigir capela no lugar chamado Ribeirão de São Francisco do Turvo, Maria Lopes e Francisco Martins rogam também que lhes seja permitido dotar a mesma de um ermitão «que com caixinha possa vagar por esta capitania, e por outra qualquer, tirando esmolas pelos fiéis, para as suas obras».85 Algumas capelas chegavam a ter dois e mesmo três ermitães, e seu número girava em torno de 400 81 82 83

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Rosa, Grande sertão, p. 209. AEDC, cx. 1, pasta «Cidade de Baependi». O despacho anotado à margem da folha é datado de 19.10.1899. Weiler, Anton G. «Soziale und sozial-psychologische Aspekte der Devotio Moderna». In: Schreiner, Klaus (Hrsg.) Laienfrömmigkeit im späten Mittelalter. München: R. Oldenburg, 1992, pp. 191-201. Hoornaert, Eduardo. «A Igreja no Brasil». In: Dussel, E. (org.) Historia liberationis: 500 anos da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 309. APM, SC-19, folhas 73-73v.

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em meados do século XVIII.86 Ao dirigir-se para Vila Rica em 1811, Eschwege se encontra com uma destas figuras: «O que cruzou conosco desceu do cavalo e nos deu o santo para que o beijássemos. Como em muitas coisas, também aqui dá-se origem a inúmeros abusos, pois vários destes ermitães levam esse tipo de vida para se sustentarem à custa de outros ou então consomem o dinheiro com bebida na primeira taverna. Eles têm a especial infelicidade, apesar da proteção do santo, de serem freqüentemente assaltados e por essa razão andam normalmente muito bem armados. Há algumas semanas um [deles] foi morto nas imediações de Vila Rica».87 Também Saint-Hilaire nos fala, rapidamente, do seu encontro com um «um desses frades ermitães que vão mendigar e escandalizar os fiéis».88 O retrato pintado pelos viajantes não é dos mais lisonjeiros, e as autoridades civis não pareciam ter opinião muito distinta a respeito. Para o Conselho Ultramarino «os ermitães são prejudiciais; não só porque usam mal das esmolas, mas porque vivem em uma ociosidade tal que se precipitam em vícios que obrigam a serem castigados».89 A visão popular é entretanto diversa, em que pesem os eventuais abusos. O ermitão é um homem que se santifica pela sua abnegação e pela radicalidade com que se devota à causa da religião. Acredita-se que sua condição resulta de uma promessa; voto feito em virtude de um grande pecado anteriormente cometido. Como se negar uma esmola a tais homens? Pode ser que se trate de um simples aproveitador, mas pode ser também que aquele ermitão seja um Feliciano Mendes, um Irmão Lourenço ou um Antônio da Silva Bracarena. Melhor abafar no peito toda dúvida, já que a própria dúvida configuraria um ato de impiedade. Neste ponto as obras de Tomás Antônio Gonzaga,90 Bernardo Guimarães91 e José de Alencar92 seguramente se aproximam bem mais do universo religioso popular que o ceticismo ilustrado dos viajantes europeus ou o cálculo frio dos burocratas. Isto nos leva a uma última porém decisiva modalidade de intercessão entre religião e movimento na Minas Gerais dos dois primeiros séculos: a romaria.93 Assumindo uma feição típica no universo religioso luso-brasileiro, elas permitemnos visualizar algumas das formas através das quais as camadas sociais inferiores 86 87 88 89

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CCM, p. 710. Eschwege, Wilhelm L. Journal von Brasilien. Weimar, 1818, II, pp. 95-96. Saint-Hilaire, A. Viagem às nascentes..., vol. I, p. 92. Citado por Aguiar, Marcos M. de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil Colonial. São Paulo: tese de doutorado em História, USP, 1999, p. 314. Gonzaga, Tomás Antônio. Cartas chilenas. São Paulo: Cia das Letras, 1996, pp. 108-112. Guimarães, Bernardo. O ermitão do Muquém. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1964. Alencar, José de. «O ermitão da Glória». In: Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958. Não nos ocuparemos aqui com a questão das grandes procissões, por se tratar de um dispositivo ritual típico dos espaços especificamente urbanos da época.

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se relacionam com o sagrado. Quando ao fascínio pelo movimento se soma a possibilidade de maximizar a experiência do numinoso, tem-se por resultado um tipo de prática religiosa cujo poder de atração foi muito bem caracterizado por Carrato: «Nada mais agradável àquela gente semi-nômade das Gerais do que essas romarias, tão ao gosto da nossa gente, que ainda não ancorou na terra».94 Limitemo-nos aqui a apontar alguns casos mais importantes e evocar um ou dois aspectos que nos parecem essenciais à elucidação das relações entre religião e espaço. O homem mineiro fazia suas romarias seja para os dois santuários de Bom Jesus do Matosinhos (em Congonhas do Campo e em Conceição do Mato Dentro) ou eremitérios da Serra do Caraça e da Serra da Piedade, seja para centros mais simples como as capelas de Nossa Senhora da Lapa (nas proximidades do Arraial de Antônio Pereira) e de Santana (em Mariana) ou a mística gruta de São Tomé das Letras, seja ainda para santuários situados a maior distância, como Nossa Senhora da Abadia do Muquém (em Goiás). Congonhas do Campo e o Caraça atraíam romeiros de regiões distantes, como o registro do Rio Paraibuna ou do termo de Minas Novas, e mesmo de capitanias vizinhas como Mato Grosso, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás.95 O santuário pode ser definido como a forma superior de espaço sagrado. Isto significa que a percepção de uma diferença qualitativa em relação ao espaço do cotidiano é levada ali ao seu ponto máximo. O santuário situa-se, diz Alphonse Dupront, «nestes confins misteriosos mas reais onde imanência e transcendência se comunicam».96 Como um dos traços estruturais do sagrado reside no fato de que ele tende a cercar-se de interdições, o santuário normalmente surge em locais à parte, de difícil acesso (penhascos, grutas, montanhas) ou simplesmente distantes dos centros povoados. Acorre-se àquele lugar porque ali se encontram relíquias de um santo, porque ali descobriu-se alguma imagem milagrosa, porque ali se erigiu um templo em razão de uma graça obtida, porque ali teve-se uma visão. Na Serra da Piedade viveu nossa já conhecida Irmã Germana.97 Em 1757, em Congonhas do Campo, Feliciano Mendes atribui a recuperação de uma grave doença de que padecia à cruz que fez levantar no Morro do Maranhão. Naquele lugar decide ele construir capela e ermida. Em 1780 tem início a tradição do jubileu anual do Santuário do Senhor Bom Jesus do Matosinhos, devoção aliás tipicamente portuguesa. A respeito da origem da capela com o mesmo orago em Conceição do Mato Dentro, há duas versões opostas. Para uns, ela foi construída por um certo José Correia Porto, em conseqüência de uma promessa que fizera para 94 95

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Carrato, José Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1963, p. 212. Carrato, José Ferreira. «Medievalidades mineiras nos tempos da Inconfidência: hospícios e romarias ». In: Revista do Departamento de História da UFMG (9) 1989: 121-129, p. 126. Dupront, Alphonse. Du sacré. Croisades et pèlegrinages, images et langages. Paris: Gallimard, 1987, p. 44. Saint-Hilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes..., pp. 117-123.

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curar-se de uma doença. Para outros o protagonista foi um escravo, que teria achado uma imagem do Cristo Cruxificado. Por ocasião de uma seca a imagem foi levada em procissão, e com sucesso: logo depois caía a chuva. Decide-se então erguer a igrejinha do Senhor Bom Jesus, o que efetivamente acontece em 16 de junho de 1743.98 Sobre a capela de Nossa Senhora da Lapa, sabemos por meio do testemunho de Dom Frei José da Santíssima Trindade que ela se situava «em uma gruta debaixo de um monte» e que era «admirável, e por isso muito devota».99 A capela de Senhora Santana, em Mariana, entrara em declínio em meados do setecentos. Segundo o Códice Matoso, havia ao seu redor «casas de romagem, em que antigamente se recolhiam infinitos devotos, que de partes muito distantes vinham antigamente de romaria a visitar a mesma santa».100 O arraial de São Tomé das Letras deve sua formação à descoberta de enigmáticas inscrições feitas nas paredes de uma gruta ali situada. Em conformidade com crença difundida no Brasil Colônia, as mesmas foram atribuídas a São Tomé, apóstolo que teria percorrido a América catequisando os índios nos primeiros tempos do cristianismo. Uma cópia das inscrições, feita por ordem do governador Gomes Freire de Andrade em 1738, foi «analisada» pelo padre José Mascarenhas nove anos depois. Mascarenhas confirma a versão popular da origem dos sinais e chega mesmo a datá-las do ano 54 da nossa era.101 A cura milagrosa por intermédio de uma promessa, as evidências da passagem de um apóstolo, a existência de uma mulher cuja santidade ninguém ousa questionar, a descoberta de uma imagem, visões da Virgem Santa: a irrupção espontânea do sagrado é uma constante na religião popular. Nela o numinoso nunca está completamente «rotinizado». Por outro lado, e como as romarias inevitavelmente assumem uma dimensão festiva, a fronteira entre sagrado e profano está longe de corresponder às espectativas do clero e das classes letradas. O que explica o desconforto e a desconfiança da autoridade eclesiástica face às romarias. Tanto quanto possível procura-se domesticá-las, pois acredita-se, como Jean Gerson (1363-1428), que «nada há de mais perigoso do que a devoção ignorante».102 Por vezes este esforço disciplinador assume uma forma autoritária, como se viu no período em que Dom Frei Cipriano de São José esteve à frente do bispado de Mariana (1798-1817). Sobre o Caraça, afirmou ele que «é para se notar que as gentes Guimarães, Alphonsus de. «Jubileu em Conceição do Serro». In: Guimarães, A. de. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960, p. 485; Dias, Maria Vitória. Mato Dentro: viagem através dos tempos e contratempos da história de Conceição. Belo Horizonte, 1994, p. 51. 99 Trindade, Dom Frei José da Santíssima. Visitas pastorais (1821-1825). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998, p. 110. 100 CCM, p. 254. 101 CCM, 374-382; DHGMG, 331-332; Weckmann, Luis. La herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, pp. 169-170. 102 Citado por Huizinga, Johan. O declínio da Idade Média. Lisboa: Ulisséia, s/d [1919], p. 119. 98

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que sobem com tanto trabalho a Serra para lucrar indulgências, nem cuidam, nem se apressam para entrar nas suas respectivas freguesias, onde sem maior incômodo, confessando-se, e comungando podem lucrar as que os Sumos Pontífices concedem a todos os fiéis em todos os dias do ano (...). Donde se pode inferir sem escrúpulo que o divertimento, e a curiosidade, a romagem, e a mistura de um, e outro sexo é todo o móvel de semelhantes devoções.»103 Se os bens de salvação podem ser obtidos por meio do sacrifício da missa e do sacerdote que o celebra, por que razão, pergunta-se o bispo, empreender cansativas peregrinações? A resposta lhe parece óbvia: as causas que levam tantos romeiros aos santuários não seriam de natureza religiosa, mas «profana». O prelado marianense critica duramente a «confusão», o «descomposto» e o «tumulto» do Santuário de Congonhas e chega mesmo a proibir a realização de missas na Serra da Piedade quando ali se encontrava Irmã Germana. A reação popular não tarda. Como o bispo havia imposto sua proibição sob o pretexto de que aquele culto não tivera autorização do rei, os fiéis solicitam e obtém a dita permissão.104 O fenômeno peregrino constitui hoje um dos mais importantes campos de pesquisa no âmbito das ciências das religiões, e obviamente não temos a pretensão de analisá-lo extensamente aqui. Interessa-nos ressaltar apenas um dos seus aspectos, qual seja, o da relação que se estabelece entre peregrinação e «realidade». Victor Turner julga que as peregrinações obedecem a uma lógica próxima da de um rito de iniciação. Por seu intermédio um grupo institui um espaço-tempo no qual a estrutura do dia-a-dia é abolida, em que os laços sociais são reforçados por meio do sentimento de communitas. Este desejo coletivo de contrapor uma «antiestrutura» à estrutura cotidiana explica, no entender de Turner, porque as peregrinações muitas vezes assumem uma dimensão «anárquica» e mesmo «anticlerical».105 Pierre Sanchis partilha de um ponto de vista próximo, e identifica homologias entre romaria e utopia.106 E Klaus Guth considera a peregrinação «uma evasão do mundo cotidiano, geralmente sob uma forma comunitária».107 Todavia não parece factível a idéia de Turner de que o contato com uma outra realidade só se efetiva no momento em que o peregrino atinge seu objetivo. Pôrse a caminho já implica numa primeira ruptura com o mundo da vida.108 Bollnow 103 Citado por Carrato, José Ferreira. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. 104 105 106 107 108

São Paulo: Cia Editora Nacional, 1968, p. 38. Grifo nosso. Carrato, As Minas Gerais..., p. 191; Saint-Hilaire, Viagens pelo distrito..., pp. 119120. Turner, Victor & Tuner, Edith. Image und pilgrimage in Christian culture. Oxford: Blackwell, 1978, pp. 1-39. Sanchis, P. Arraial: festa de um povo, p. 141. Guth, Klaus. «Die Wallfahrt – Ausdruck religiöser Volkskultur. Eine vergleichende phänomenologische Untersuchung». In: Ethnologia Europea (16) 1986: 59-82. O conceito de «mundo da vida» (Lebenswelt) não deve ser entendido como um mero sinônimo de «cotidiano» (Alltag). Ele denota não o mundo social pré-constituído com o qual nos defrontamos, mas o complexo de «províncias de significado » (Sinnbereiche) que compõem a «realidade primordial» (ausgezeichnete Wirklich-

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mostrou como esta forma elementar de peregrinação que é o simples passeio resulta de um anseio de «libertação das fadigas e preocupações do dia-a-dia». O efeito psicológico ao fim de um passeio é o de um «rejuvenescimento».109 Não é outra a natureza do sentimento que invade os romeiros ao fim de sua longa jornada. Alphonsus de Guimarães nos fala de homens e mulheres que retornam para casa «com os corações aliviados de culpas e de pecados» depois de terem participado do jubileu em Conceição do Mato Dentro.110 Talvez isto nos dê uma pista a mais para entender por que o centro de peregrinação é, por definição, um lugar distante ou de difícil acesso. As palavras romaria («ir a Roma») e peregrinus («estrangeiro», «que viaja no estrangeiro») dizem muito por si mesmas: há algo de fascinante não apenas no sítio onde repousa o santuário, mas no ato mesmo de deslocar-se até ele. Para Dupront111 a peregrinação cristã se distingue da praticada em outros sistemas religiosos pelo fato de investir maior carga simbólica na dinâmica do ato em si (aller à) que no encontro com o espaço sagrado. A distância, ou antes, a «virtude purgativa» do espaço percorrido, é que garante a obtenção das graças almejadas. Os versos do mais conhecido poeta mineiro bem o mostram: Os romeiros sobem a ladeira cheia de espinhos, cheia de pedras sobem a ladeira que leva a Deus e vão deixando culpas no caminho.112

Colocar-se em movimento significa nestes casos transportar-se para uma outra realidade, transcender o mundo da vida. Assim se entende também porque a romaria/peregrinação muitas vezes se confunde com a festa. Ao contrário do que supunha o severo Dom Cipriano, o lúdico e o sagrado eram, para a imensa maioria dos mineiros do seu tempo, apenas as duas faces de uma mesma moeda. A forte inclinação pelas «formas provisórias de existência» (Laura de Mello e Souza) e o surgimento de diversos centros de romaria na Minas Gerais dos dois primeiros séculos sugere, talvez, a existência de uma espécie de nostalgia coletiva em relação ao modo de vida nômade, uma vez que a fixação num determinado espaço se confronta com uma das duas alternativas: ou tal fixação não chega a se efetivar (por ser conscientemente concebida como um impecílio à «salvação» na imanência) ou, caso haja de fato uma sedentarização, sua aparente irreversibilidade deve ser periodicamente amenizada pelo deslocamento a um espaço sagrado.

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keit) da nossa existência. Da extensa literatura a respeito, conferir Schütz, «On multiple realities », pp. 208-229; e Grathoff, Milieu und Lebenswelt, pp. 91-121. Bollnow, Mensch und Raum, pp. 114, 120. Guimarães, «Jubileu em Conceição do Serro», p. 487. Dupront, Du sacré, p. 371. Andrade, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, p. 34.

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3.1.2 A religião e o mundo da vida Se fosse preciso resumir, numa palavra, o modo pelo qual o cotidiano se apresentava à consciência do homem mineiro, esta palavra bem poderia ser «monotonia». O dia-a-dia era regido por um regime temporal específico – o da lentidão. Imersos nas suas obrigações cotidianas, os atores sociais não se dão conta deste fato. Vimos que a festa e a romaria, por sua vez, têm em comum o fato de representarem uma superação momentânea do mundo da vida, e são precisamente eventos deste tipo que nos permitem perceber o que é o seu «reverso». Em outros termos, uma consciência clara da realidade do cotidiano só aflora sob o efeito do choque que é o instante de retorno a ele. Instante em que a povoação volta à sua «monotonia habitual, ao seu sossego triste», à sua «paz melancólica».113 Acabada a festa, diz Bernardo Guimarães, «tudo caiu na tristeza e monotonia (...) pois contrastava horrivelmente com a alegria e festivo alvoroto dos dias que acabavam de escoar-se, e dos quais somente restavam saudades».114 Na maior parte do tempo, o arraial é um lugar «sem aconteceres».115 Mesmo numa sede episcopal como Mariana, a estrutura do cotidiano não se apresentava de outra forma, conforme mostra Richard Burton: «O negociante debruça-se, com os cotovelos no balcão, e olha vagamente

para a rua, ou medita e fuma, juntamente com um amigo ou amigos, sentados em tamboretes, mais perto da porta. Os negrinhos andam pelas ruas ou provocam porcos e cães vadios, que, segundo parece, constituem a maior parte da população (...). Pretas velhas erravam, arrastando molambos (...) o tempo é artigo que não tem valor aqui, e pontualidade é sinônimo de impossível».116

Mas perguntar-se sobre o papel da religião no cotidiano não implica cair num contrasenso? «Religião» e «cotidiano» não se excluem mutuamente? Não necessariamente. Vimos no capítulo anterior como há muito caiu por terra a visão dicotômica das relações entre sagrado e profano. Outras dicotomias ainda comuns nos estudos sobre religião têm sido alvo de profundo questionamento, como é o caso do par religião/magia.117 Em contextos outros que não a Europa cristã (e não toda ela!), tais antíteses simplesmente não fazem sentido ou devem, ao menos, ser relativizadas. A forma social por meio da qual um grupo intermedia suas relações com a transcendência varia cultural e historicamente. O que torna algumas situações particularmente interessantes é que distintas formas sociais de religião podem coexistir sem que uma delas se imponha completamente sobre as demais. Trata-se, sim, de pluralismo; mas de um tipo distinto do que ocorre no mundo 113 114 115 116 117

Guimarães, Aphonsus de. «Jubileu...», pp. 486-487. Guimarães, Bernardo. O garimpeiro, p. 32. Rosa, Guimarães. «Arroio-das-Antas». In: Rosa, Tutaméia, p. 17. Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 273. Luckmann, «Über die Funktion der Religion», p. 34; Matthes, «Was ist anders an anderen Religionen?», p. 23.

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moderno. Este último é, por assim dizer, sociologicamente condicionado; aquele parece ser «existencial». Na antiga Minas Gerais, ora se manipulam forças superiores por meio de uma simples simpatia, ora se recorre ao poder de cura (ou de malefício) de um especialista, ora é na doutrina e nos ritos controlados pela Igreja Católica que se busca – como se dizia então – o «pasto espiritual». A maioria das pessoas simplesmente não concebia estes diferentes códigos e níveis de institucionalização de relação com a transcendência como mutuamente excludentes entre si. Significa dizer: um complexo de práticas e representações, distribuídas segundo níveis variados de institucionalização e racionalização, e que só por arbitrariedade nos negaríamos a agregar sob o termo «religião». Quem cruza com um negro pelos caminhos dificilmente deixa de ouvir dele um Louvado («Louvado seja Nossa Senhora e Jesus Cristo»).118 Após uma refeição, os convivas se levantam, dão-se as mãos e fazem o sinal da cruz.119 Acredita-se que problemas de ordem estritamente prática – dar cabo em uma praga de formigas, curar uma mula vítima de diarréia ou uma pessoa picada por cobra – podem ser resolvidos através de promessas, benzeções e simpatias.120 O prestígio dos curadores em casos de picadas de cobras é tanto que «o povo tem mais confiança neles do que em qualquer médico», dizem Spix e Martius. Os curadores determinavam um período de 60 dias, no qual o doente deveria observar tabus de contato (evitar mulheres menstruadas), cósmicos (deitar-se sempre que caísse a noite) e alimentares. A maioria dos curadores era composta de negros libertos e mamelucos, o que de alguma forma evidencia a continuidade de tradições religiosas ameríndias e/ou africanas. Spix e Martius estranharam que não houvesse mulheres entre os curadores, justo elas que «em questões de medicina são ouvidas em primeiro lugar». A resposta que lhes dá um mulato é a de que mulheres só podem tornar-se curadoras após os 50 anos, pois até esta idade «elas próprias são venenosas».121 Este procedimento sem dúvida assenta em arquétipos antiqüíssimos. Se mulheres e serpentes são «venenosas» é porque se acredita que ambas partilham de uma mesma natureza. Langsdorff diz ter ouvido que «os índios envenenam suas flechas besuntando-as com a menstruação das mulheres e levandoas ao fogo».122 Bernardo Guimarães descreve num trecho de O seminarista uma simpatia para imobilizar cobras, comum às «roceiras» do seu tempo: «talvez o leitor não creia nessas cousas que chamam abusões do povo; mas o certo é que, desde o momento em que a senhora Antunes pregou os olhos na cobra e começou a arrochar a saia na cintura, a bicha parou imediatamente».123 118 Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, pp. 107-108. 119 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol I, p. 188. 120 Luccock, Notas sobre..., p. 347; Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 82; Da Silva,

Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 221-222. 121 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. I, pp. 164-165. 122 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 24. 123 Guimarães, Bernardo, O seminarista, p. 32. Barbosa também faz menção a esta prática. Ver Barbosa, Waldemar de Almeida. A decadência das Minas e a fuga da

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Tal como a vida constitui uma trajetória cujos marcos divisores são ritos de passagem como o batismo, matrimônio e exéquias, também um dia comum decompõe-se em diferentes momentos. À noite, ao deitar-se, o cristão faz suas orações. Diz Gonzaga em suas Cartas Chilenas: E mal estendendo nos lencóis o corpo, Dou um sopro na vela, os olhos fecho, E pelos dedos, rezo a muitos santos, Por ver se chega mais depressa o sono; Conselho que me deram sábias velhas.124

O espaço não se subdividia em porções matematicamente uniformes, mas em extensões de distinto valor. Seguindo o mesmo princípio, as horas do dia distinguiam-se qualitativamente umas das outras. Toda diferenciação encontra na história sagrada a sua justificativa: o meio-dia, hora em que se inicia a agonia de Cristo – assim como seu reverso, a meia-noite –; as 15:00h, quando Ele expira no Calvário («E desde a hora sexta houve trevas sobre toda a terra, até a hora nona»; Mt 27, 45); as 18:00h, hora da Anunciação. Especialmente esta última, também chamada hora da Ave Maria ou do Ângelus, despertou a atenção dos viajantes. Saint-Hilaire conta que em toda Minas «quando o sino vibra todos param, descobrem-se, juntam as mãos e rezam».125 Chegando ao anoitecer no Arraial do Inficionado, Spix e Martius depararam-se com boa parte dos habitantes «reunidos diante de imagens de Nossa Senhora iluminadas».126 Os ritos religiosos deviam realizar-se sempre entre a aurora e o crepúsculo. A Igreja determinava que «nem uma pessoa, de qualquer estado, e qualidade que seja, poderá ser enterrada antes de nascer o sol». À exceção da procissão da Quinta-Feira de Endoenças, nenhuma outra poderia realizar-se «das Ave Marias por diante», por ter mostrado a experiência «que nas procissões de noite pode haver, e há muitas ofensas a Deus nosso Senhor, as quais, diz o Apóstolo, são obras das trevas, de que é Príncipe o demônio».127 Por todos os cantos, no cume de cada morro, em estradas, pontes e especialmente nas encruzilhadas, erguem-se cruzes. «À sombra desse símbolo – diz Bernardo Guimarães – toda a terra é sagrada».128 Desde muito cedo na história do

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mineração. Belo Horizonte: UFMG, 1971, p. 259. Gonzaga, Cartas chilenas, p. 66. Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, p. 214-215. Compare-se essa passagem de Bernardo Guimarães n’O garimpeiro: «Daí a pouco ouvia-se a sineta da casa chamando a família e os escravos para a reza da Ave Maria, e ao som dessa reza (...) a paz e a bênção do céu desciam nas asas cinzentas do crepúsculo sobre aquelas tranqüilas solidões» (p. 16). Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. I, p. 217. CAB, livro IV, título XLV, 818; livro III, título XV, 492. Guimarães, Bernardo. «A filha do fazendeiro». In: Guimarães, B. História e tradições da província de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p. 134.

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cristianismo, atribui-se à «árvore bendita», à «sagrada árvore da Cruz»129 duas virtudes principais: ela é símbolo de vitória e garantia de proteção contra forças adversas.130 Para Nuno Marques Pereira o «santo lenho» deve ser venerado pois é «estandarte da glória, instrumento da nossa redenção, símbolo da Fé, chave do paraíso, divino arco-íris da paz entre Deus e os homens, terror do inferno, espanto dos demônios, timbre dos católicos, esforço dos fracos, escudo dos fortes justificados na graça de Deus».131 Nenhuma esfera da vida deixa de se beneficiar com a sua presença. Até mesmo um recorde de produção na Fábrica de Ferro de Gaspar Soares foi comemorado com a colocação de uma cruz de ferro em frente à fundição.132 Nos locais onde se cometem assassinatos, ou onde se punem seus autores, colocam-se cruzes – estas mesmas que assinalam as casas em que moram as parteiras.133 Em 1811, no caminho para Minas, Eschwege depara-se com centenas de cruzes de diversos tamanhos no alto de um morro, «que a superstição dos tropeiros ainda ergue diariamente por causa das dificuldades superadas». Poucos anos depois, Saint-Hilaire observa que «essas cruzes são plantadas pelos que transitam por este caminho pela primeira vez, e temem não voltar se deixarem de cumprir tão importante dever».134 Ainda na primeira metade do século passado, a força de tais práticas podia ser testemunhada em Itaipava. Quem passa diante de uma cruz à beira de um caminho tira o chapéu, benze-se, e diz: Deus te salve cruz consagrada que guarda a alma de um crente levai-me em paz e salvamente.135

Estas palavras demonstram que um espaço primordial a ser santificado e protegido é, evidentemente, o próprio corpo. Quem é cristão benze-se sempre, e benzer-se significa fazer o sinal da cruz. Assim se exprime a esperança na Cruz do Salvador e na proteção que dela emana.136 Para Nuno Marques «todo cristão está obrigado a fazer estas três cruzes, na testa, na boca e coração». A eficácia de tal gesto é de tal ordem que permite «nos livrarmos de nossos inimigos visíveis e in129 CCM, p. 275; CAB, livro IV, título XXI, 702. 130 Benz, Ernst. Beschreibung das Christentums. Eine historische Phänomenologie.

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München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1975, p. 140-141; Harmening, Superstitio, p. 237-238. Pereira, Compêndio narrativo..., vol. I, p. 106. Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. II, p. 371. Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 115; Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 114; Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol II, p. 227; Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 85. Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 100; Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, p. 97. Willems, Uma vila brasileira, p. 136. Jungmann, Josef A. Symbolik der Katholischen Kirche. Stuttgart: Anton Hiersemann, 1960, p. 17.

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visíveis».137 Passando por um local onde sabia encontrar-se um bando de malfeitores, Gonzaga segue em frente «rezando sempre o credo, e por cautela/ fazendo muitas cruzes sobre o peito».138 Há espaços (em especial os limites ou fronteiras) cuja natureza ambivalente exige daqueles que por eles transitam a realização de determinados ritos. Um interessante exemplo são as cerimônias ainda hoje chamadas «bota-fora». Ao sair do povoado do Desemboque, Eschwege escreve que «conforme o costume da terra, uma multidão de cavaleiros acompanhou-me durante um percurso de meia hora».139 Como o movimento inverso segue o mesmo princípio, ele deve ser acompanhado por um rito idêntico. O autor do diário da expedição de Inácio Correia Pamplona ao sertão oeste da capitania de Minas relata que no dia 25 de agosto de 1769 «fomos dormir a um sítio chamado Barbosa, digo Manoel Barbosa, o qual veio esperar[-nos] com outros sujeitos uma légua antes de chegarmos a sua casa».140 No século seguinte Pohl presenciaria algo semelhante no Morro de Gaspar Soares, quando dois filhos de um capitão-mor voltavam após um período de estudos: «jovens de quinze a dezesseis anos que, em companhia do vigário de Inficionado, voltavam daquele lugar. Todos os moradores do arraial, festivamente vestidos, a maioria a cavalo, foram ao seu encontro a uma légua de distância.»141 Tais cerimônias constituem aquilo que van Gennep, em estudo clássico, chamou de «ritos de separação» e «ritos de incorporação».142 Os rios são espaços liminares por excelência. Se a água é, dos elementos, o que mais estreitamente se liga ao princípio da vida, é natural que na maior parte das culturas ela esteja estreitamente vinculada ao sagrado.143 Este caráter numinoso da água se soma, nos rios, à sua qualidade de marco delimitador. Quando Drusus se dispõe a atravessar o Elba, limite oriental do Império Romano, surge diante dele uma mulher de tamanho colossal: «Retornes! Pois é chegado o término dos teus feitos e da tua vida!»144 O Lima, na Lusitânia, extremo oposto do Império, era chamado fluvius Oblivionis («rio do esquecimento»). Os legionários de Brutus negaram-se a atravessá-lo e, assim, adentrar no reino dos mortos.145 O território que se inicia na margem oposta é envolto portanto em mistérios nos quais poucos têm a coragem de penetrar (como aquele personagem de Rosa que pretendia «atravessar o rio, como quem enfim abre os olhos»).146 A persistência de tais ar137 138 139 140 141 142 143 144 145 146

Pereira, Compêndio narrativo..., vol. II, p. 253. Gonzaga, Cartas chilenas, p. 216. Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 133. «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...», p. 57. Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. II, p. 372. Van Gennep, Arnold. The rites of passage. Chicago: University of Chicago Press, 1960 (1908), p. 23. Eliade, Die Religionen und das Heilige, pp. 217-246. Schmidt, Leopold. Volksglaube und Volksbrauch. Berlin: Erich Schmidt, 1966, p. 64. Deffontaines, Géographie et religions, p. 104. Rosa, Guimarães, «Ripuária». In: Rosa, G. Tutaméia, p. 135.

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quétipos verificava-se até há bem pouco em Minas. Em Sete Lagoas, no início do século XX, dizia-se que «as águas do Córrego do Matadouro, à meia-noite em ponto, dormem e somente acordam e reiniciam seu curso quando os galos cantam a primeira vez».147 Não há povoação possível sem acesso farto a um manancial de água. Esta dependência se colocava de forma tão evidente que os nomes de boa parte dos arraiais mineiros adveio dos cursos d’água nas proximidades dos quais se localizavam. Ao se aproximar de um córrego «de águas límpidas e cristalinas», Langsdorff se espanta ao notar a ausência de moradias às suas margens. «Afinal, é a existência de água que determina o estabelecimento das pessoas nos lugares».148 No plano religioso, tal dependência se manifesta por meio do fenômeno das águas santas. Mentelle conta num livro publicado em 1784 que em certo lugar de Trás-os-Montes, na véspera do dia de São João, uma multidão banhava-se num rio sobre o qual acreditava-se surgir o Espírito Santo à meia-noite para lhe benzer as águas. Voltando de uma caçada, o Marquês Manuel D’Almeida parou ali, disposto a descobrir o motivo daquele ajuntamento. «Por volta da meia-noite – narra Mentelle – de fato apareceu um pássaro e voou. Todos gritaram milagre e glória ao Espírito Santo. O Marquês acreditou que esclareceria os espíritos, tornandolhes sensível a causa de seu erro; ele atirou no pássaro e o matou. O povo (...) não viu neste pássaro morto a convicção de sua falsa credulidade; ele sentiu apenas um movimento de indignação contra o homem que ousara afrontar a divindade» e «se sublevou com furor».149 Se o efeito benfazejo dos banhos santos se manteve após esta «profanação», não o sabemos. Cabe-nos ressaltar, antes, a unidimensionalidade que marca a mentalidade popular: inexiste delimitação clara entre este mundo e o «além». Os rios, fontes e lagoas representam focos onde se dá o que Dupront chamou de «transbordamento do sagrado».150 O peso da herança portuguesa na Minas antiga é atestada pelos versos de Gonzaga: Não viste, Doroteu, quando arrebenta Ao pé de alguma ermida a fonte santa, Que a fama logo corre; e todo o povo Concebe, que ela cura as graves queixas?151

Todavia as águas não são dotadas da mesma força que santuários assentados sobre a rocha. Um simples ato de impiedade e o extraordinário esvanece. O já citado manuscrito da História e Geografia do Gongo contém um interessante relato

147 Lanza, Minha Sete Lagoas, p. 78. 148 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 234. 149 Mentelle, M. Géographie comparée; ou Analyse de la géographie ancienne et mo-

derne des peuples de tous les pays et de tous les âges. Portugal moderne. Paris, 1784, pp. 195-196. 150 Dupront, Du sacré, p. 42. 151 Gonzaga, Cartas chilenas, p. 74.

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a respeito. Uma testemunha explica ao seu autor por que não lhe agradava fazer passeios à Lagoa das Antas na companhia dos ingleses que então dirigiam a mina: «Eu ia sempre com muito pesar, porque antes daqueles pagãos se meterem a

tomar banho na lagoa, quando ia chegando o meio-dia a gente via uma cruzinha de prata vir subindo do fundo da água, e ir crescendo, crescendo até ficar uma cruz grande e muito brilhante na flor da lagoa, quando era meio-dia em ponto; e depois a cruz ia diminuindo e abaixando até desaparecer. Desde o dia que os pagãos do Gongo começaram a se banhar na lagoa ninguém não viu mais nada.»152

A tradição oral ainda guarda exemplos parecidos, como o que ouvimos na Pontinha (um povoado pertencente ao município de Paraopeba, composto quase que exclusivamente de negros) alguns anos atrás. Conta-se que a bela lagoa ali existente, chamada aliás Lagoa Dourada, era encantada. «No tempo dos antigos» um cavalo aparecia cavalgando nas águas, com parte do corpo submersa. Desde que um homem do lugar atirou no misterioso animal este não aparecera mais.153 Diga-se de passagem que a crença em seres mágicos que habitam o fundo das águas é uma constante em Minas. Caso contrariados, eles viram barcos, perseguem barqueiros ou ordenam aos peixes que fujam. Há pescadores mesmo que lhes fazem oferendas, depositando presentes ou alimento à beira dos rios.154 As águas nunca deixam de suscitar um sentimento de mysterium tremendum (Otto), em especial quando dotadas de poderes curativos. A fama de Lagoa Santa era de tal ordem, na primeira metade do setecentos, que chegaram-se a embarcar barris com sua água para Portugal.155 Em meados da década de 1820, após visitar o arraial, Langsdorff escreveu: «Há mais de 100 anos (...) pessoas que sofriam de gota ou pessoas entrevadas eram trazidas até da Bahia para cá e daqui saíam totalmente curadas». Corriam histórias de que «em seu centro, há abismos insondáveis; e que, nesse mesmo lugar, há um redemoinho ou turbilhão que atrai para ele e engole tudo que dele se aproxime».156 Rios e lagoas são locais privilegiados, superiores – neles parece haver sempre uma «terceira margem».157 Em resumo, pode-se dizer que nos arraiais mineiros setecentistas e oitocentistas o extraordiário fazia parte do cotidiano. Isso de forma alguma significa que a modalidade de pensamento vigente fosse «pré-lógica», para usar os termos da velha tese de Lévy-Bruhl (basta dizer que ele próprio viria a renegar sua teoria no 152 AEAM, armário 24, caixa 5. 153 Esta saga demonológica foi recolhida na Pontinha quando ali estivemos, em 1994,

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com um grupo de alunos (a fundamentação do uso do termo «saga» e a apresentação dos seus tipos básicos será feita na seção 4.3.2). Gomes, Núbia Pereira de Magalhães. Crendices e superstições do pescador mineiro. [Juiz de Fora?], s/d. , pp. 31-32. DHGMG, p. 182. Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 180-181. Rosa, Guimarães. «A terceira margem do rio». In: Rosa, G. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, pp. 32-37.

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fim da vida). Significa apenas que, numa época e num meio ainda não dominados pela ciência e técnica modernas, a religião é o manancial fundamental de sentido. Oposições binárias rígidas do tipo «natural»/»sobrenatural» são estranhas à visão de mundo popular.158 Em sociedades tradicionais como a que estudamos aqui, ora o numinoso é domesticado pela Igreja, ora escapa ao controle eclesiástico e se dá a experimentar por intermédio de curandeiros ou feiticeiros, ora toda intermediação perde sua razão de ser e o sagrado manifesta-se anárquica e diretamente nas suas diversas modalidades: carisma, visões, «assombrações». Típico de sociedades onde o «sagrado selvagem» (Bastide) não foi completamente marginalizado do mundo da vida é a crença em seres fantásticos. Alguns deles limitados ao universo infantil, fruto de um esforço pedagógico que – reveladoramente – só parece dotado de eficácia porque legitimado ao nível da transcendência. Gonzaga nos fala dos «chorosos meninos, que emudecem,/ quando as amas lhes dizem: ‹Cala, cala/ que lá vem o tutu, que papa gente!›»159 Os adultos tinham seus próprios fantasmas, como os que geraram pânico entre os moradores de Vila Rica nos tempos do Conde de Assumar. Vultos sinistros, vindos das montanhas que cercam a povoação, percorriam suas vielas durante a noite. Houve até quem lhes atribuísse características tipicamente demoníacas, como chifres, asas e pés-de-pato.160 A princípio a reação da população é comunicar as autoridades, pois, como foi visto no capítulo anterior, até um passado não muito distante a questão do além também era um «caso de polícia». O governador determina em 13 de julho de 1720 que «para evitar todo o gênero de desassossêgo que têm com os mascarados, se atirem contra estes e os matem, por serem perturbadores do sossêgo público... e se lhes declara que não ficarão incursos em crime algum os que matarem os ditos mascarados, antes sim se lhes dará um prêmio de cem oitavas de ouro a todo aquele quem constar que matou algum mascarado que apareça no morro ou na Vila a qualquer hora da noite.»161 e 158 Febvre percebeu bem que «les hommes du XVI siècle ne possédaient notre notion

du naturel s’opposant au surnaturel. Ou plutôt, pour eux, la communication demeure normale et incessante entre le naturel et le surnaturel». Febvre, Le problème de l’incroyance au 16e siècle, p. 407. Para uma crítica da validade da contraposição entre «natural» e «sobrenatural», ver Luckmann, Thomas. Comment on «Malinovski magic: the riddle of the empty cell», by Karl E. Rosengreen. In: Current Anthropology (17) 1976: 678-679. 159 Gonzaga, Cartas chilenas, p. 121. Sobre este tema, ver as páginas notáveis de Freyre, Casa-grande & senzala, pp. 128-131, 328-330. 160 Guimarães Rosa se refere pelo menos duas vezes ao Diabo com a expressão «Péde-Pato». Rosa, Grande sertão, pp. 37 e 282. Esta característica encontra a seguinte explicação popular: como a maior parte das pontes eram dotadas de cruzes, o Diabo via-se obrigado a evitá-las, tendo conseqüentemente de atravessar os rios. Daí os pés-de-pato. Dornas Filho, João. Achegas de etnografia e folclore. Belo Horizonte: Imprensa Publicações, 1972, p. 189. 161 Citado por Dornas Filho, op. cit., p. 120.

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Note-se que Assumar, homem ilustrado, refere-se aos vultos como simples «mascarados». Ao seu ver tudo não passa de uma ação de criminosos, quilombolas talvez, interessados em apavorar os crédulos vila-riquenses. Mas as severas medidas repressivas por ele determinadas mostram-se inócuas. A população muda então de estratégia e pede autorização ao bispo do Rio de Janeiro para instalar altares em lugares estratégicos como as entradas da vila e os cruzamentos. O povo passou a ajuntar-se ali, todas as tardes, para rezar; e somente assim deu-se cabo das demoníacas figuras.162 No verdadeiro tratado de etnografia sertaneja que é Sagarana, Rosa enumera lugares e circunstâncias em que os seres fantásticos costumam aparecer: «todo pau-d’óleo; todas as cruzes; todos os pontos onde os levadores de defunto, por qualquer causa, fizeram estância, depondo o esquife no chão; todas as encruzilhadas – mas somente à meia-noite; todos os caminhos: na quaresma – com os lobisomens e as mulas-sem-cabeça, e o cramondongue, que é um carro-de-bois que roda à disparada, sem precisar de boi nenhum para puxar».163 A mula-semcabeça sai em «todas as noites de sexta-feira para sábado» por becos e cemitérios para assombrar as pessoas.164 Outra interessante crença do período colonial, a do João-do-Campo, só conhecemos por intermédio de Saint-Hilaire: «‹João do Campo› é um ser imaginário representativo das regiões descobertas. Quando se entra nos campos é em casa de ‹João do Campo› que se entra, e, quando o viajante dorme ao relento é ‹João do Campo› que o hospeda.»165 Durante sua passagem pelas proximidades de Rio Manso, Tschudi ouve «fabulosas histórias da getiranabóia, que mataria seres humanos e animais, à distância e num piscar de olhos, com suas setas. Consideram-na o mais terrível bicho do Brasil».166 A existência de lobisomens era crença tão difundida no sertão oeste de Minas que «muitos vão até a ponto de tratar de heréticos os que se recusam a acreditar nisso».167 O fato de que um Dom Viçoso tenha dedicado um contundente trecho do seu Catecismo de Mariana às «superstições» evidencia, por si só, a persistência das práticas e representações populares de que falamos acima: P. Em que consiste a superstição? R. Consiste: 1°, em servir, no culto de Deus, de práticas vãs, e não autorizadas pela Igreja; 2°, em pôr a confiança em certas palavras, em observâncias que a Igreja não aprova. 162 Menezes, Furtado de. Igrejas e irmandades de Ouro Preto. Belo Horizonte: IE-

PHA, 1975, p. 111. 163 Rosa, Guimarães. «Minha gente». In: Rosa, G. Sagarana. Rio de Janeiro: José

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Olympio, 1983, p. 181. Ver ainda o poema «Assombramento» em Rosa, Guimarães. Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, pp. 123-124. Guimarães, Bernardo. O seminarista., p. 83. Saint-Hilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes..., pp. 224-225. Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, p. 174. Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 122.

112 P. Será superstição consultar os mágicos e os advinhadores? R. É superstição; porque é pedir ao demônio o que só Deus pode nos dar.168

Uma evidência a mais de que o numinoso não se reduzia à sua expressão eclesiástica é a ocorrência de um tipo muito particular de hierofania: a visão. A visão costuma ser um evento espontâneo (quando não «único») e que eventualmente desencadeia uma intensa transformação a nível pessoal e/ou coletivo. Ao nível da vida individual a visão funciona como um marco; ela tem um caráter «iniciatório». Uma visão dá início à carreira da curandeira e advinha africana Luíza Pinta, um caso já bem explorado pela historiografia.169 É depois de ter uma visão que Feliciano Mendes decide levantar a ermida que deu origem ao santuário de Congonhas do Campo. De caminho para o Rio de Janeiro, para onde viajava a fim de obter licença eclesiástica para a sua capela, ele vê um frade «de hábito branco, escapulário e manto azul, barbas crescidas e chapéu caído para as costas, e logo lhe pareceu ser o estado para que Deus o chamava, e logo fez menção de se vestir do mesmo hábito, e lhe tirou o chapéu dizendo, fico de acordo como quem aceitava o aviso e logo desapareceu o tal ermitão».170

No local onde o ermitão Antônio Bracarena ergueu a capela da Serra da Piedade, Nossa Senhora teria aparecido a uma menina muda. Ao ter a visão da Virgem com Jesus nos braços, a garota teria subitamente recuperado o dom da fala.171 O local onde se dá uma hierofania transmuta-se em espaço sagrado, e deve ser assinalado seja com um templo seja com uma simples cruz. Saint-Hilaire relata a história de uma dessas cruzes, nas redondezas de São João do Morro Grande: «Um homem, viajando nessa região, acreditou ter visto almas do purgatório, que volteavam ao redor do seu cavalo, sob a forma de pombos, pedindo-lhe preces. Em memória dessa aparição ele fez erguer uma cruz; a história que venho a relatar acha-se gravada ao pé da mesma».172 Outras espécies de aparição, como as «assombrações», obviamente não gozam do mesmo status. Burton conta a história do padre Antônio Farias, falecido proprietário de uma casa no Morro Velho, que «na quaresma ainda visita o seu lar mundano, e, sem constrangimento, tira do armário o que quer. ‹Seu› Pedro, seu escravo de barba grisalha, com a simples fé 168 Viçoso, Dom Antônio Ferreira. Catecismo de Mariana. Paris: Garnier, sem data, p.

49 169 Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, pp. 352-357; Mott, Luiz, «O calundu-an-

gola de Luzia Pinta...», pp. 74-75; Ramos, Donald. «A ‹voz popular› e a cultura popular no Brasil do século XVIII». In: Silva, Maria B. N. da. Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, pp. 144-146. 170 Citado por Algranti, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da Colônia. Condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. Brasília/Rio de Janeiro: Edunb/José Olympio, 1999 (1993), p. 93. 171 Carrato, As Minas Gerais e os primórdios do Caraça, p. 219. 172 Saint-Hilaire, Viagem pelo distrito dos Diamantes..., pp. 105-106.

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fetichista dos africanos, põe a carne na mesa e muitas vezes vê o ‹fantasma› passando, de aposento em aposento».173 Em Minas as assombrações se manifestam geralmente no espaço da casa, e, mais precisamente, na cozinha.174 Veremos adiante (seção 3.2.3) porquê. Alguns têm visões daquilo que espera os homens após a morte. Nuno Marques Pereira reproduz os elementos típicos da tradição cristã no seu retrato do inferno: «O lugar é o mais infame, e mais baixo que pode haver, pois é o mesmo centro da terra, e por isso ali se vão ajuntar todas as imundícies, geradas daquela putrefação, como serpentes, escorpiões, víboras, lagartos, sapos, e toda a mais casta de bichos venenosos. Além das mais horrendas e espantosas vistas de tantos demônios, e condenados.» Contudo a obra de Pereira é expressão de um um estilo de pensamento erudito, e prova disso é sua preocupação em conferir precisão aritmética à sua descrição. O inferno seria um lugar «tão apertado, que dizem os autores, e mais peritos matemáticos, que não tem largura e circuito que de duas, ou três léguas».175 Para que tenhamos uma idéia das representações que o homem comum tinha a respeito, parece ser mais representativo o caso do funcionário João Alves de Carvalho, morador da Mariana dos primeiros anos do século XIX. Em correspondência endereçada ao então governador da Capitania de Minas, ele requere sua manutenção no posto de porteiro. Afirma ser velho, pobre e reponsável pela esposa incapacitada para o trabalho; seu ofício é sua única fonte de renda. Mas assegura ser «homem temente a Deus», «beato» e ter «voto jurado», uma vez que é casado mas «não usa do matrimônio». Por estas razões teria Deus levado «a alma do suplicante ao fogo do purgatório, aonde esteve dois minutos ar-

dendo nele, foi levado aos céus aonde esteve dois minutos e viu tudo como estava, foi levado ao inferno entre os condenados, e também viu lá o inferno dos padres, e viu como o fogo abrasava neles, e a gritaria desordenada que faziam, também foi ao purgatório das mulheres aonde viu todas assentadas 173 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 196. O renomado folclorista

finlandês Lauri Honko diz serem três as características básicas das «assombrações»: elas são seres empíricos (nunca se questiona, no universo popular, a realidade de uma aparição), são seres solitários e têm sempre um caráter local. Honko, Lauri. Geisterglaube in Ingermanland. Helsinki: Academia Scientiarum Fennica, 1962, pp. 67-68. 174 Laterza Filho, Moacyr. «A plausibilidade dos fantasmas». In: Em Tese 2(2) 1998: 151-158. 175 Pereira, Compêndio narrativo..., vol. II, p. 298 (grifo nosso). Colocar o saber matemático à serviço da fé – eis aí um recurso que foi comum às elites eclesiásticas da era moderna. Vimos um Pe. José Mascarenhas atestando que a autoria das inscrições de São Tomé das Letras se deviam ao referido apóstolo, e datando-as de 54 d.c. Martinus Borrhaus, um autor protestante do século XVI, aventurou-se até a calcular o número total de demônios existentes: 2.665.866.746.664! Ver Roskoff, Gustav. Geschichte des Teufels. Eine kulturhistorische Satanologie von den Anfängen bis ins 18. Jahrhundert. Nördlingen: Greno, 1987 (1869), 2. Band, p. 380.

114 em um campo aonde conheceu várias, e teve a dita de falar com Deus cinco vezes, aonde o Senhor lhe disse que estava nos céus e que lá era o seu lugar, e também viu Nossa Senhora por cinco vezes, e também viu os anjos cantarem e os cortezãos cantarem e dançarem, e outras coisas muito mais: e porque soube com certeza que Vossa Excelência ficava cego rogou a Nossa Senhora para lhe dar vista. Aditou-lhe a Senhora que o suplicante fizesse a novena da paixão, a qual a fez (...).»176

Eduardo Paiva observa corretamente que tais descrições «não são criações de João Alves, mas formas que povoavam o imaginário social».177 Seja-nos permitido acrescentar algo ao seu comentário. Tão importante quanto o retrato que João Alves pinta do além-túmulo é obviamente aquele que ele oferece de si mesmo: vivendo na pobreza, na castidade («não usa do matrimônio»), vivendo para a religião, o autor do documento oferece um exemplo notável daquele desejo de santidade no mundo que está no cerne mesmo da devotio moderna. Além do mais, numa sociedade em que o anonimato era virtualmente impossível, como naquelas pequenas cidades em que «todos-sabem-de-todos», é difícil imaginar que se pudesse dirigir uma correspondência a uma alta autoridade distorcendo radicalmente a realidade dos fatos relativos à sua própria pessoa. O fato de João Alves observar tão estreitamente a religião tende a exercer um efeito legitimador sobre o seu relato (se aquele homem experimentou de fato tais visões, é algo que o historiador não está em condições de sentenciar). Mas o que está em questão é uma demanda muito terrena: a sua manutenção no posto de porteiro. Ver a Deus e Nossa Senhora, os anjos e os condenados, para garantir um emprego? Deparamonos aqui, mais uma vez, com esta típica propensão da religião popular que é a de colocar transcendência em função da imanência. Mais: numa «sociedade relacional» (Da Matta) como a brasileira, é importante demonstrar que os laços entre as pessoas não se limitam à vida terrena. Note-se que, embora seja «casado com uma mulher doente há mais de dez anos que não sai à rua por ser entrevada», é pela saúde do governador (que «ficava cego») que João Alves roga à Virgem. Esta contradição não implica necessariamente que nosso personagem limitara-se a inventar sua visão, guiando-se por um tosco oportunismo. O importante é perceber que nos termos da mentalidade da época tal relato adquiria – ou deveria adquirir – um acento de verdade. Ao fim de seu monumental estudo sobre as visões no interior da tradição cristã, Benz escreve que todo aquele que passa por esta experiência «é tomado pela consciência irrefutável de que esta realidade do alémmundo por ele experimentada é a verdadeira realidade, face à qual toda realidade terrena esvanece e perde seu valor».178 Pouco importa que o relato de João Alves 176 Transcrito e analizado em Paiva, Eduardo França. «A viagem insólita de um cristão

das Minas Gerais: um documento e um mergulho no imaginário colonial». In: RBH 16(31-32) 1996: 353-363; p. 355. Optamos aqui por atualizar a grafia original. 177 Idem, ibidem, p. 359. 178 Benz, Ernst. Die Vision. Erfahrungsformen und Bilderwelt. Stuttgart: Ernst Klett, 1969, p. 641. A uma conclusão semelhante chega Hahn, Alois. «Unendliches Ende:

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pareça inverossímil aos olhos de quem o lê hoje ou mesmo a alguns de seus contemporâneos. Lembremo-nos da fórmula luminosa de Weber: não há vida religiosa plena sem «sacrifício do intelecto».179 Há, finalmente, o culto aos santos. Eles oferecem proteção, concedem graças, servem de veículo à identidade de um grupo ou coletividade. Santos, enfim, que os fiéis tratam como se fosse um parente próximo. Como bem mostrou Freyre, «impossível conceber-se um cristianismo português ou luso-brasileiro sem essa intimidade entre o devoto e o santo».180 Se se concebe o panteão católico como um gradiente de forças ou entidades que se dispõem numa ordem crescente de sacralidade, não há dúvida que os santos situam-se no pólo oposto do da figura de Deus pai. Enquanto a função deste último quase que se resume a dar coerência ao modelo cosmogônico cristão, um Deus distante e que aparentemente não mais se ocupa com o destino dos homens, o santo – é Sanchis quem observa – participa «no mundo do ‹sagrado› e do poder, sem ter por isso abandonado todos os traços da humana psicologia».181 Só assim se entende como um agricultor alentejano pôde dizer: «Deus, não sabemos se ele existe. Mas não podemos negar que esta santa aqui faz muitos milagres.»182

Estas palavras mostram que o culto aos santos ocupa o ponto central no catolicismo popular.183 O cotidiano é estruturalmente marcado pela devoção a eles. Do indivíduo à coletividade, do espaço da casa ao do arraial, para cada doença, cada imprevisto da vida e cada profissão há o respectivo santo. Recorre-se a São Libório (problemas renais), São Brás (problemas na garganta), São Bento (contra o veneno de cobras), São Jerônimo e Santa Bárbara (contra perigos em tempestades), Santa Luzia (pela saúde dos olhos), São Sebastião (contra pragas nas lavouras e rebanhos), São Roque (contra a lepra e epidemias), São Lourenço e São Manuel (pelo dom da paciência), São Miguel Arcanjo (contra embustes e ciladas do demônio). Santa Cecília é protetora dos músicos, Santo Ivo dos advogados, São José dos carpinteiros, São Jorge dos ofícios ligados ao fogo, Santa Joana

179 180 181 182 183

Höllenvorstellungen in soziologischer Perspektive». In: Stierle, K. und Warning, R. (Hrsg.) Das Ende. Figuren einer Denkform. München: Wilhelm Fink, 1996, p. 166. Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, I, p. 566. Freyre, Casa-grande & senzala, p. 225. Sanchis, Arraial: festa de um povo, p. 56. Citado por Sanchis, ibidem, p. 41-42. Harnack considera este aspecto um desvio. Para ele o culto aos santos seria uma «religião de segunda ordem». Harnack, Adolf v. Dogmengeschichte. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1991 (1889-1891), p. 274. É curioso observar que Durkheim, numa formulação algo confusa, se aproximou muito do que dissera o historiador e teólogo alemão: «Nas religiões populares, como nas religiões inferiores, estão em primeiro plano seres espirituais de segunda ordem». Durkheim, As formas elementares..., p. 106.

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d’Arc dos militares.184 A lista poderia alongar-se indefinidamente, mas seria incompleta se deixássemos de mencionar Santo Antônio de Pádua (ao qual se recorre para reaver objetos perdidos e arranjar casamento). Saint-Hilaire pôde ver o prestígio deste santo quando esteve na Serra da Ibitipoca. Num rochedo haviamse formado manchas pretas que o pesquisador atribuiu a líquens, e uma delas lembrava a figura de um monge segurando um livro. «Dele fizeram um Santo Antônio e é objeto de veneração em toda a zona. Todos quantos perderam animais na serra vão rezar o terço diante da imagem e os encontram infalivelmente. Outros há que, em romaria e de vela em punho, visitam o rochedo onde está representado o santo e ali fazem penitência».185 A forma básica de relação entre devoto e santo é, como se vê, a oração. Existe uma convicção generalizada de que tal relação é regida pelo princípio da troca. No Portugal setecentista costumava-se oferecer uma refeição a São Francisco de Paula porque as orações não eram consideradas suficientes por si mesmas.186 Quando se almeja alcançar uma «graça» especial, lança-se mão da promessa. Caso atendido, o devoto deverá «pagar» ao santo. Pagar uma promessa significa, por exemplo, impor-se um sacrifício, fazer uma romaria, submeter-se a um tabu alimentar ou comportamental. O mecanismo da promessa lembra o do sacrifício, com uma diferença: desta vez a situação de subordinação do fiel em relação à divindade não é mais tão clara.187 Em 1828, no Caraça, uma romeira com os braços abertos, segurando uma vela em cada mão, sobe de joelhos toda a escada do santuário, atravessa o patamar fronteiro à igreja, entra na mesma e segue até o altar, onde finalmente deposita sua oferenda.188 As modalidades de «pagamento» incluem ainda construir uma 184 Gaio Sobrinho, Antônio. «Devoções coloniais mineiras a partir de São João del-

Rei». Mimeografado, 1997, p. 3. 185 Saint-Hilaire, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a

São Paulo. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974, pp. 33-34. 186 Mentelle, Géographie comparée, p. 193. 187 Heiler escreve a respeito: «nos primórdios, o homem faz uma oferenda quando, su-

plicante, eleva suas mãos para o deus a fim de obter dele o que deseja. Mas nem sempre ele tem a sorte de ver seu desejo realizado. Ele fica ‹escaldado› (gewitzt); e não mais confia totalmente na divindade. Por essa razão ele se recusa a assumir despesas em vão; ele quer obter primeiramente a ajuda do deus e, somente então, (...) realizar sua oferenda». Heiler, Friedrich. Das Gebet. Eine religionsgeschichtliche und religionspsychologische Untersuchung. München: Ernst Reinhardt, 1920, p. 78. 188 Carrato, «Medievalidades mineiras...», p. 127. Não raro a promessa é motivada por uma doença grave ou mal tido como incurável, e no entanto seu «pagamento » envolve, ou tende freqüentemente a envolver, alguma forma de provação corporal. No universo religioso popular a mortificação não visa a domesticação do (e/ou combate ao) próprio corpo, mas sim uma compensação pelo reestabelecimento do seu equilíbrio. Ver Hahn, Alois. «Religiöse Dimension der Leiblichkeit». In: Hahn, A. Konstruktionen des Selbst, der Welt und der Geschichte. Frankfurt: Suhrkamp, 2000, pp. 387-403.

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capela, e mesmo, no sentido mais literal do termo, pagar ao santo. Encontramos no Arquivo Público Mineiro um interessante exemplo. Trata-se de três promessas feitas a Santo Antônio respectivamente em 1848, 1860 e 1883, todas com o intuito de recuperar escravos fugidos. Elas foram redigidas em pequenas folhas de papel de formato retangular – os chamados «requerimentos»189 –, com cerca de 18 x 14 cm. Os textos estão escritos não em linhas sobrepostas umas às outras, mas sim acompanhando o formato da folha, e de fora para dentro (da seguinte forma: ). «Devo que pagarei ao glorioso Padre Santo Antônio a quantia de quarenta

réis procedidos de uma promessa que fiz para que faça com que apareça, seja preso e entregue a seu Sr. o escravo por nome Afonso e por clareza passei este por mim feito consignado e obrigo os meus bens presentes e futuros. Fazenda da Cachoeira 15 de outubro de 1848. P.G.» «Devo que pagarei ao glorioso Padre Santo Antônio a quantia de quarenta réis precedidos de uma promessa que fiz para que faça com que apareça ou seja preso, entregue a seu senhor o escravo por nome Ricardo e por clareza passei este por mim feito e assinado e obrigo os meus bens presentes e futuros. Fazenda da Posse 22 de maio de 1860. Valentim José de Gouveia.» «Devo que pagarei ao glorioso Padre Santo Antônio a quantia de quarenta

réis precedidos de uma promessa que fiz para que faça com que apareça ou seja preso ou entregue a seu senhor o escravo por nome José e por clareza passo este por mim feito e assinado e obrigo os meus bens presentes e futuros. Fazenda da Cachoeira 12 de novembro de 1883 [a assinatura foi rasurada].»190

Trinta e cinco anos se passam entre a primeira e a terceira promessa sem qualquer alteração significativa a nível formal, e até mesmo a quantia a ser dada continua a mesma. Isso indica que os devotos simplesmente seguiam um modelo pré-existente, muito provavelmente colocado à disposição na própria capela ou santuário a que recorreram. O fato de os textos estarem escritos de forma a descrever círculos em torno de um eixo central não é desprovido de interesse. Para a mentalidade popular o movimento circular possui uma espécie de propriedade mágica que maximiza a eficácia de inúmeros tipos de invocação.191 Mas o essencial para nós é perceber que, numa época em que já se publicavam anúncios nas grandes cidades do litoral prometendo recompensa a quem prendesse escravos fugidos,192 o recurso ao além com o mesmo fim continuasse comum em Minas Gerais. O uso da escrita também chama a atenção (em outras ocasiões, os «requerimentos» ao 189 190 191 192

Espírito Santo, M. A religião popular portuguesa, p. 133. APM, SP, Cx. 21 [69]. Cascudo, Superstição no Brasil, pp. 414-416. Conrad, Robert E. (ed.) Children of God’s fire. A documentary history of black slavery in Brazil. Priceton: Priceton University Press, 1983, p. 367.

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santo eram queimados e suas cinzas atiradas ao vento)193, e quem sabe se possa considerá-lo uma forma mais «sofisticada» de contato com o transcendente, uma vez que a maior parte da população era composta de analfabetos, e, portanto, só podia fazer sua promessa verbal ou mentalmente. Outro ponto a ser ressaltado é o perfil social dos devotos, ao que parece todos pertencentes à elite. Seria excessivo caracterizar Santo Antônio como um «santo dos ricos», mas não há como ignorar que as tensões sociais de alguma forma reverberavam no plano religioso. Talvez nesse sentido se possam ler estes versos populares: Santo Antônio é milagroso, mas, santo traidor. Santo Antônio amarra negro pra levar pra seu senhor.194

Uma boa parte daquilo que nos dizem os breviários sobre o que deve ou deveria ser o catolicismo simplesmente não se aplica ao universo popular. Um negro vê a imagem da Virgem aproximar-se em procissão e diz: «Lá vem o meu parente».195 Uma intimidade que pode se extender à figura do próprio demônio e fazer dele, momentaneamente, algo bem distinto do «pai da mentira» de que falam as escrituras. Em Portugal, no santuário de São João de Arga, os romeiros levam esmolas ao Senhor Diabo, o mesmo Diabo ao qual a aldeia de São Bartolomeu atribui a sua fundação.196 Em Lavras Novas, um antigo distrito de Ouro Preto, conta-se que a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres foi edificada num terreno onde antes morara uma velha feiticeira que havia feito um pacto com o demônio.197 Percebe-se afinal que os princípios que regem esta modalidade de relação com o sagrado são os da afetividade, da intimidade e da troca. Não a despeito destas características mas justamente por causa delas é que por vezes se concebe que o santo pode ser coagido a satisfazer a vontade do devoto. As fontes inquisitoriais fazem referência a casos como a da negra forra Rosa Gomes, ocorrido em Sabará, no ano de 1762. Desesperada por ver que os santos não intercediam em seu favor, ela «partiu a facão as imagens de Nossa Senhora, Santo Antônio, inclusive o menino Jesus, decepando-lhes a cabeça e arrancando-lhes os braços».198 Estas e muitas outras formas cotidianas de coação do sagrado não eram contudo consideradas de maior gravidade pela Igreja, e prova disso é que o Santo Ofício limitou193 Expilly, Charles. Mulheres e costumes do Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional, 194 195 196

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1935, pp. 168-169. Dornas Filho, Achegas de etnografia e folclore, p. 112. Kidder, D. P. e Fletcher, J. C. O Brasil e os brasileiros. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1941, vol. I, p. 167 Leitão, Rubem Alfredo. «Páginas de casa». In: Mourão-Ferreira, David e Seixo, Maria Alzira (orgs). Portugal. A terra e o homem. Lisboa: Calouste Gulbekian, vol. II, 1980, p. 149; Espírito Santo, M. A religião popular portuguesa, p. 36. Dornas Filho, Achegas de etnografia e folclore, p. 187-188. Citado por Mott, Escravidão, homossexualidade e demonologia, p. 96.

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se apenas a repreender Rosa Gomes pelo seu ato. De fato, a documentação oficial fala-nos pouco a respeito exatamente por se tratar de uma prática bastante difundida e que, desde que não se estendesse a símbolos situados num patamar mais elevado de sacralidade, nada tinha de sacrílega. Que tais ritos eram comuns tanto no reino quanto na colônia, mostram-no as referências a respeito nas Constituições do Arcebispado de Évora (1534) e nas Constituições do Arcebispado da Bahia (1707).199 Há casos especiais, como aquele de que Alphosus de Guimarães diz ter sido «testemunha quase ocular» no século XIX: um médico e um padre, empenhados em vencerem as eleições num «remoto e pacato município mineiro», e dispostos a evitar qualquer reviravolta de última hora, fizeram para os eleitores «uma enorme panelada, e na hora em que esta fervia, atiraram o Santo [Antônio] no meio dos legumes e das postas de carne».200 Diante deste exemplo, não há como evitar a impressão de que um determinado «limite» foi ultrapassado. Dois fatores, portanto, determinam tanto aos olhos do devoto comum quanto da hierarquia eclesiástica a gravidade ou não destes procedimentos: (a) qual das figuras do panteão católico é «castigada»; e (b) com que finalidade o rito é empregado. Todos no Brasil sabem que Santo Antônio ainda é «castigado» por moças que desejam casar-se, e a ninguém ocorre taxar tal ação de «feitiçaria».201 Como se recorre aos santos para solucionar problemas da vida cotidiana, tanto a nível individual quanto coletivo, a «coação» pode se dar em ambos os níveis. Em épocas de seca prolongada a população dos arraiais mineiros de Chapada e São João da Chapada trocavam entre si seus santos padroeiros. Os santos só eram reconduzidos às suas respectivas igrejas depois que chovesse.202 No nordeste bra199 Silva, Rebello da. História de Portugal. Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa

Nacional, 1971 (1861-1871), p. 537; CAB, livro V, título III, 901. 200 Guimarães, Alphosus de. «Bruxos e médicos». In: Obra completa, p. 466. 201 «Quando demora em atender aos pedidos, as raparigas arrancam-lhes dos braços o

Menino Jesus e deitam-no de cabeça para baixo no fundo de um poço, até que se opere o milagre». Arinos, Affonso. Lendas e tradições brasileiras. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia, 1937, pp. 147-148. A continuidade e a força destas tradições é mais que evidente. Um familiar nos explicava há pouco tempo que Santo Antônio é tido como «pirracento». Quando um pedido a ele não é realizado, pode-se «pedir por mal». Amarra-se sua imagem, em meio a orações, e enterra-se a mesma de cabeça para baixo num vaso. Ou então tranca-se o santo, colocando-o em lugares fechados, pois «santo não pode ficar em lugar fechado ». O mesmo familiar nos narrou o seguinte caso: em Belo Horizonte, certa mulher enterrou Santo Antônio num vaso com o intuito de conseguir um marido. Teve sucesso; porém temeu que, uma vez desenterrada a imagem, seu casamento se arruinasse. Dentro em pouco seu esposo tornou-se alcoólatra, e num dia, em meio a uma briga, deu-lhe justamente com o tal vaso na cabeça. A mulher morreu e Santo Antônio «se vingou». Este relato demonstra que no imaginário popular, embora o santo possa ser coagido, ele nunca está completamente à mercê do devoto. 202 Machado Filho, Aires da Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943, p. 47.

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sileiro, segundo Gonçalves Fernandes, assim teria se dirigido um certo fazendeiro às imagens que tinha em seu altar doméstico: «bem, meus senhores: tenho muito dinheiro empregado em vocês para me socorrerem nessas ocasiões. Há muito que peço com amor: não querem me atender? Amanhã, se não amanhecer chovendo, quem for de madeira vai cozinhar feijão e quem for de barro entra no cacete!»203 A antigüidade destes ritos de inversão é evidente. Numa obra de Jacobus de Voraigne, escrita no século XIII, conta-se a história de um judeu que colocou suas posses sob a proteção de uma imagem de São Nicolau. No entanto, durante sua ausência, ladrões levam tudo o que de valioso possuía, à excessão da referida imagem. Ao regressar, e vendo o que ocorrera, o judeu insulta o santo e cobre-o de pancadas. São Nicolau aparece aos ladrões, mostra-lhes as marcas dos golpes que recebera e os convence a devolver o produto do roubo.204 Formas homólogas de coação do sagrado observaram-se até mesmo nos mosteiros medievais de Cluny e Tours.205 Isto posto, não há como levar a sério a hipótese de Mott de que este fenômeno era fruto de uma «vingança» por parte daqueles que tinham sido obrigados a adotar o catolicismo.206 Laura de Mello e Souza afirmou que os «desacatos» aos santos no âmbito do catolicismo luso-brasileiro diferenciaram-se sobremaneira dos que se verificaram em outras partes da Europa, o que não corresponde às evidências.207 Se nosso escopo de referência se alarga, vemos que algo semelhante se passa também em outros sistemas religiosos. O jesuíta Matteo Ricci observou no século XVI que os chineses «adoram alguns ídolos, mas quando estes não lhes concedem o que pedem, os golpeiam com força e depois fazem as pazes com eles».208 Na Birmânia o culto dos espíritos ancestrais em altares domésticos se dá de forma bastante pes203 Fernandes, Gonçalves. Religião, crença e atitude. Recife: Instituto Joaquim Na204 205 206

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buco, 1963, pp. 45-46. Ver também Cascudo, Superstição no Brasil, pp.439-440. Schmitt, Jean-Claude. Heidenspaß und Höllenangst. Aberglaube im Mittelalter. Campus: Frankfurt/Paris: Campus/Maison des Sciences de l’Homme, 1993, p. 118. Geary, Patrick. «L’humiliation des saints». In. Annales (34) 1979: 27-42. Mott, Luiz, «Cotidiano e vivência religiosa...», p. 188. A avaliação ligeira de Weber, de que tais ritos são fruto de um «naturalismo pré-animista» também não acrescenta muita coisa à discussão. Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, p. 228. O mesmo se pode dizer de Thales de Azevedo, para quem a coação dos santos «assimila esse culto a uma idolatria». Azevedo, Thales de. O catolicismo no Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1955, p. 29. Igualmente etnocêntrica é a afirmativa de Lima Jr., de que as multidões que afluíram para Minas eram dominadas por um «falso conceito da Divindade». Lima Júnior, A capitania das Minas Gerais, p. 91. Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 115. Para a França, ver Sébillot, Paul. Le folk-lore de France. Paris: E. Guilmoto, 1907, tome IVe, p. 166-169 e Burke, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 197. Para a Alemanha, conferir o verbete «Bild und Bildzauber», em: HdA, 1. Band, p. 1291 e Petzoldt, «Magie und Religion», p. 481. Citado por Gernet, Jacques. Primeras reacciones chinas al cristianismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1989, p. 106.

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soal; tanto se pode censurá-los quanto fazer-lhes pedidos.209 O próprio Durkheim havia notado que «diante dos seus deuses, o homem não está sempre em estado tão evidente de inferioridade; pois pode acontecer, muitas vezes, que exerça sobre eles verdadeira coerção física para obter deles aquilo que deseja».210 A ocorrência dos ritos de inversão evidentemente aumenta à medida em que o indivíduo coloca-se em relação com as «divindades» ou «forças» situadas nos níveis inferiores do panteão, já que é a estas que normalmente se recorre face aos problemas imediatos do cotidiano. O culto à Virgem Maria assemelha-se ao culto aos santos, mas encontra-se incontestavelmente num patamar distinto. Maria está acima deles e mesmo, na praxis do catolicismo popular, acima do próprio Cristo.211 Se a primeira pessoa da Santíssima Trindade se limita à sua função cosmogônica, a segunda não parece menos distante. Jesus incorpora um anseio de redenção futura, vale dizer: de algo que não se coloca no horizonte do dia-a-dia do católico – salvo quando eclodem movimentos messiânicos (que Lanternari considera, com toda a razão, «expressões heterodoxas da religiosidade popular»). A importância do culto mariano pode ser facilmente verificada através da toponímia. Dos 289 municípios mineiros cujos nomes ainda fazem menção ao panteão católico, nada menos que 74 contêm uma das invocações de Maria. No segundo posto vem Santo Antônio (22 cidades), enquanto que a figura de Jesus só aparece em sexto lugar (14 cidades).212 Maria é «mãe de misericórdia», «advogada nossa», «porta do céu», «saúde dos enfermos», «consoladora dos aflitos», etc. Ela é a mãe perfeita, arquetípica. Tradições populares difundidas por todo o mundo cristão falam de sua infinita misericórdia para com os homens. Uma dessas tocantes narrativas é reproduzida por Câmara Cascudo: «Antes da Ascenção, Nosso Senhor, apanhando um leve punhado de areia, disse aos discípulos: – Até mil e pouco! E atirou-o ao vento. Nossa Senhora, apiedada da brevidade do prazo concedido, encheu a santa mãozinha de areia e jogando-a também ao ar, suplicou: E mais estes, meu filho!».213 209 Leach, Sistemas políticos da Alta Birmânia, p. 226. 210 Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, p. 69. As palavras suposta-

mente ditas pela Virgem em uma de suas «aparições » em Piedade dos Gerais são emblemáticas: «Deus é forte mas o povo precisa ajudá-lo». Citado por Ferreira, As aparições em Piedade dos Gerais, p. 19. 211 «She does not remain sublimely distant, to be approached only with trepidation; she comes close to the beliver», escreve Heiler, Friedrich. «The Madonna as religious symbol». In: Campbell, J. (ed.) The mystic vision. Papers from the Eranos Yearbooks. Princeton: Princeton University Press, 1968, p. 367. A mesma «preferência» por Maria se observa na Romênia. Ver o verbete «Marie» em Taloş, Ion. Petit dictionnaire de mythologie populaire roumaine. Traduit par Claude Lecouteux. Paris, no prelo, p. 263. 212 Costa, Joaquim Ribeiro. Toponímia de Minas Gerais. Belo Horizonte: BDMG, 1997, p. 69. 213 Cascudo, Superstição no Brasil, p. 364.

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Contabilizaram-se nada menos que 94 diferentes invocações de Maria no período colonial. Em especial em Minas Gerais a devoção à Virgem parece ter sido particularmente intensa no século XVIII.214 A mais difundida destas invocações foi sabidamente a de Nossa Senhora da Conceição, que desde 1646 gozava do status de «Padroeira e Defensora dos Reinos e Senhorios de Portugal». A segunda invocação mais importante de Maria foi a de Nossa Senhora do Rosário. Como é bem sabido, no Brasil ela popularizou-se antes de tudo entre os negros. A razão desta preferência chama a atenção pois havia santos negros, como São Benedito e Santa Efigênia, que – em tese – se prestavam a uma identificação mais imediata a nível «étnico» que a branca Senhora do Rosário. A realidade pode ter sido bem outra em regiões em que a religião oficial ainda não se impusera. Em Chapada e outros arraiais do Vale do Jequitinhonha a sua imagem era sempre negra, afirma Saint-Hilaire.215 Fato é que tão logo um arraial se formava e, por assim dizer, se estabilizava, a segunda capela erigida geralmente tinha por orago Nossa Senhora do Rosário – os escravos tinham necessidade de erigir, o quanto antes, o seu próprio local de culto. Mas por que precisamente sob esta invocação? A dificuldade de se chegar a uma solução satisfatória desta questão foi ressaltada há tempos por Julita Scarano.216 Tudo indica que a confluência de representações e práticas religiosas africanas com o cosmos sagrado cristão foi, desde o início, facilitado por semelhanças a nível morfológico e estrutural. Em algumas sociedades africanas ocidentais existiam «rainhas mães» que, por vezes, chegavam a assumir o trono.217 Por outro lado, custa-nos crer que a devoção a Nossa Senhora do Rosário no Brasil escravista fosse interpretada da mesma forma que no seu continente de origem, e que os escravos e negros livres celebrassem por meio dela a própria conversão.218 É possível que parte da solução para o problema esteja no rosário em si: trata-se de uma forma de oração que, diferentemente de outras tantas orações cristãs, tem uma dimensão eminentemente comunitária. Construir uma nova identidade coletiva era uma demanda fundamental das populações africanas transplantadas à força para o Novo Mundo, e não resta dúvida que as 214 Souza, Maria Beatriz de Mello e. «O culto mariano no Brasil Colonial. Caracteri-

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zação tipológica das invocações (1500-1822)». In: Congresso Internacional Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas – Actas. Braga, 1993, tomo III, pp. 337 e 344. Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, p. 76. Scarano, Julita. Devoção e escravidão. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1978, p. 39. Baumann, Hermann et Westermann, Diedrich. Les peuples et les civilizations de l’Afrique. Paris: Payot, 1970, p. 360. «A fim de imortalizar o triunfo das forças cristãs [sobre os Albigenses], Pio V instituiu a festa de Nossa Senhora das Vitórias, cujo nome foi mudado para Nossa Senhora do Rosário pelo seu sucessor, o papa Gregório XIII, que reconheceu no rosário a arma da vitória». Megale, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 431.

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práticas cristãs prestaram-se a este papel (sobretudo em Minas). Finalmente, o uso do rosário como amuleto foi outro ponto de convergência entre catolicismo popular e as religiões africanas tradicionais. Na Minas do século XIX tanto homens quanto mulheres andavam sempre com rosários no pescoço. Saint-Hilaire afirma ser um «uso dos mineiros», e Pohl interessa-se tanto por tal costume que faz menção a ele quatro vezes.219 A vitalidade destas práticas é atestada por um verso recolhido por van der Poel no Vale do Jequitinhonha: Coitado daquele homem Que o demônio queria Por não ter no pescoço O rosário de Maria220

O que não causa admiração quando se sabe que na Europa seiscentista e setecentista acreditava-se que bastava jogar um rosário sobre um fantasma para que o mesmo desaparecesse; que seu uso protegia mulheres grávidas e recém-nascidos contra feitiços; que facilitava o trabalho de parto, ajudava a curar dores de cabeça e até doenças.221 O hábito de trazer amuletos desta maneira também era difundido na África. Consta que após receber do papa uma bula com indulgências, Dom Diogo (1545-1561), rei convertido do Congo, meteu-a numa bolsa e pendurou-a no pescoço.222 Qualquer semelhança com o uso das chamadas «bolsas de mandinga» analisadas por Laura de Mello e Souza no Brasil Colônia certamente não será mera coincidência.223 Entre os escravos mulçumanos que promoveram a famosa Revolta dos Malês na Bahia (1835), encontraram-se saquinhos de couro contendo inscrições do Alcorão. Saquinhos que, segundo Pierre Verger, eram usados como talismãs.224 Por vezes surgem amuletos muito mais simples, como se viessem à tona estratos profundos de crenças pré-cristãs. Pohl diz ter encontrado no Córrego Fundo «cubos soltos de hematita vermelha do tamanho de uma polegada e também menores, que chamam pedra de Santana e que, encastoada em prata e pendurada ao pescoço por um cordão de seda, é usada como talismã contra dor de cabeça e outras doenças».225 Por configurar-se numa espécie de emblema total, Maria se adequa tanto às demandas do cotidiano dos nossos arraiais quanto às exigências da religião oficial. Até mesmo o Tribunal do Santo Ofício permitiu, numa sessão realizada em 29 de julho de 1903, que parvas imagines 219 Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 138; Pohl, Viagem no interior do

Brasil, vol. I, pp. 193, 222, 234; Vol. II, p. 442. 220 Van der Poel, Frei Francisco. O rosário dos homens pretos. Belo Horizonte: Im-

prensa Oficial, 1981, p. 77. 221 Brauneck, Manfred. Religiöse Volkskunst. Köln: DuMont, 1978, pp. 250 e 253. 222 Brásio, Pe. Antônio. «O problema da coroação dos reis do Congo». In: Revista

Portuguesa de História (12) 1969: 351-381, p. 363. 223 Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, pp. 210-226. 224 Verger, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos. São Paulo: Currupio, 1987, p. 343. 225 Pohl, Viagem ao interior do Brasil, vol. I, p. 225.

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chartaceas Beatae Mariae Virginis in aqua liquefactas vel ad modum pillulae involutas ad sanitatem impetrandam deglutire.226

3.2

Casa

3.2.1 Microcosmo Tönnies foi provavelmente o primeiro autor a ressaltar que à forma básica de socialização (a família) corresponde um espaço específico: a casa. «O estudo da casa é o estudo da comunidade, tal como o estudo da célula orgânica é o estudo da vida», escreveu.227 Suas análises a respeito limitaram-se a considerações no plano teórico, até porque seu empreendimento em Gemeinschaft und Gesellschaft foi o de estabalecer o que ele considerava serem os conceitos básicos da análise sociológica. Foi preciso esperar por um Gilberto Freyre para que os primeiros estudos da casa numa perspectiva histórico-sociológica fossem levados a cabo. Assim definiu Freyre o seu projeto: «o centro de interesse para o nosso estudo de choques entre raças, entre culturas, entre idades, entre cores, entre os dois sexos, não é nenhum campo sensacional de batalha (...). O centro de interesse para o nosso estudo desses antagonismos e das acomodações que lhes atenuavam as durezas continua a ser a casa.»228 Basta que comparemos este programa de pesquisa com o que se escrevia em sociologia ou história naquela época para nos darmos conta do caráter excepcional da obra de Freyre. Nada mais natural, pois, num estudo que visa identificar as relações entre religião e espaço, que a casa deva ser considerada o ponto de partida. Qualquer análise não-formalista da vida social necessariamente se depara com o fato de que a casa nunca é simplesmente um abrigo. Desde muito cedo na história da humanidade, esta função elementar foi investida de um sentido que faz da casa um espaço distinto, superior, sagrado. A casa é o espaço primordial. Ela é «o primeiro mundo do ser humano», «o grande berço».229 Ao mesmo tempo, toda casa constitui um microcosmo da sociedade. Através dela é possível esquadrinhar não só o todo das relações entre os homens mas também a forma por meio da qual estes homens se relacionam com a transcendência. Ela reproduz, em miniatura – e mesmo quando o faz de forma invertida – a lógica que predomina «lá fora».230

226 HdA, 1. Band, p. 1290. 227 Tönnies, Ferdinand. Gemeinschaft und Gesellschaft. Grundbegriffe der reinen So-

ziologie. Berlin: Karl Kurtius, 1926 (1887), p. 25-26. 228 Freyre, Sobrados e mucambos, vol. I, p. 9. 229 Bachelard, A poética do espaço, p. 113. 230 Trata-se de um traço típico daquilo que Cassirer chama «espaço estrutural», onde «reencontramos

em cada parte a forma e a estrutura do todo». Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen, 2. Band, p. 110. Durkheim explica que «na perspectiva

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Uma abordagem funcionalista tradicional, como a que propôs Robert Merton231, nada acrescenta à nossa pesquisa. O mesmo se deve dizer da perspectiva marxista de um Henri Lefebvre. Este considera que a análise fenomenológica e etnológica da casa é a simples expressão de uma «nostalgia» do homem contemporâneo. Para Lefebvre tais estudos em nada servem à compreensão da modernidade; dar-lhes atenção significa «evitar a realidade, sabotar a procura pelo conhecimento».232 O desenvolvimento capitalista teria feito da casa um mero resíduo – um tema irrelevante, ao seu ver. As coletividades que se devem investigar são as classes, não as famílias. Os espaços sociais em que a realidade é efetivamente vivida e reproduzida são os da fábrica, não os da casa. Não é preciso muita perspicácia para se perceber a que simplismos a análise marxista do espaço (pelo menos quando conduzida nestes termos) pôde chegar. A doutrina de Lefebvre mostra que o materialismo dá as costas ao fato de que as realidades sociais nunca se resumem à sua dimensão empírica, ao fato de que só nos relacionamos uns com os outros e com o mundo por meio de um intrincado jogo de simbolismos. Por outro lado, quem há de negar – e nem mesmo um autor politicamente «conservador» como Freyre o fez – que as relações de poder e hierarquia que atravessam o corpo social encontram seus correspondentes no âmbito da casa? Mas este é um ponto a ser discutido mais adiante. No início da história de Minas, a rigor, não há «casas». Por volta de 1704, os fundadores de São João del-Rei levantaram ali seus primeiros ranchos, «ditas assim as casas de vivenda por serem levantadas de taipa de mão com cobertura de palha».233 Este quadro não se alterou substancialmente mesmo após sua elevação a vila. Diz um relato de 1717 que em São João del-Rei «quase todas as casas [são] de palha».234 Dir-se-á que a precariedade daquelas habitações se devia à carência de ferramentas e de artesãos, o que sem dúvida pode ter sido verdade em muitos casos. Todavia deve-se levar em conta que o estilo predominante de construção é também expressão direta do estilo de vida daquelas populações. Um estilo que, como vimos, era profundamente marcado pelo habitus nômade. Um outro documento atesta que os pioneiros «não se ocupavam na eleição dos aposentos nem na melhoria dos sítios, porque, como o seu desígnio só era a extração do ouro onde ele se descobria, ali fabricavam os seus ranchos ou choças de beira no chão, feitos de palha de palmito, onde eles e os negros se recolhiam para, com mais facili-

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do pensamento religioso, a parte vale o todo». Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, p. 286. Merton, Robert K. «Zur Sozialpsychologie des Wohnens ». In: Atteslander, P. und Hamm, Bernd (Hrsg.) Materialien zur Siedlungssoziologie. Köln: Kieperheuer & Witsch, 1974, pp. 164-182. Lefebvre, The production of space, pp. 120-123. CCM, p. 231. «Diário da jornada, que fez o Exmo. Senhor Dom Pedro desde o Rio de Janeiro até a cidade de São Paulo, e desta até as Minas no ano 1717». In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (3) 1939: 295-316, p. 313.

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dade, se permutarem para diferentes paragens».235 Fato que, diga-se de passagem, não passou desapercebido a Freyre. Para ele a casa-grande e a choça de palha correspondem a dois modelos civilizacionais opostos entre si (ainda que, acrescenta, «complementares»): um sedentário e outro móvel.236 Nosso homo ludens, em sua avidez de riqueza, constrói suas moradas tão perto das lavras que «hoje se fazem, amanhã as botam em terra para trabalhar».237 Daí a opção pelo uso de materiais mais rústicos, menos duradouros. Conseqüentemente, a casa nem sempre ofereceu em Minas – ao contrário do que escreveu Le Loup238 – um indício visível da condição social daqueles que a habitavam. E não só em princípios de século XVIII. Em 1816, nas redondezas de Dores do Indaiá, Eschwege observa que «as poucas fazendas que se vêem nem merecem esse nome, pois constam de choças miseráveis».239 Os moradores da Comarca de Paracatu, diz Saint-Hilaire, «ocupam choupanas pequenas e escuras, e mesmo quando a fazenda tem alguma importância, a casa do proprietário não se distingue das dos seus negros». Na fazenda de Dona Tomásia, entre Piuí e a Serra da Canastra, «a proprietária habitava uma miserável cabana».240 Numa fazenda goiana próxima da fronteira com Minas, Spix e Martius notam que «as cabanas de negros, feitas de ripas, rebocadas de barro e cobertas de palha de milho ou com as folhas de palmeira, são amiúde construídas como as da África».241 Desloquemos agora nosso olhar para o extremo oposto da província, para as densas florestas que antes cobriam os vales do Rio Doce, do Mucuri e a Zona da Mata. Veremos ali uma realidade distinta. Em áreas povoadas por inúmeros povos indígenas, a habitação assumia por vezes uma feição que em nada lembra a casagrande ou o simplório pau-a-pique. Os índios Coroados enterravam seus mortos sob suas cabanas. Quando se tratava de um adulto, a casa era abandonada porque tinha-se medo do seu fantasma. A casa dos vivos transmutava-se em casa dos mortos.242 Outro aspecto interessante foi ressaltado por Luccock, que, nas proximidades do arraial do Chapéu d’Uvas, encontrou uma casa de dimensões e características incomuns: «Todos os homens que dela faziam parte tinham ido para o mato, o que não impedia que ainda houvesse perto de trinta pessoas na casa, de todas as tonalidades, desde o preto de azeviche até a branca tez da dona (...). A 235 236 237 238

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CCM, p. 251. Freyre, Gilberto. A casa brasileira. Rio de Janeiro: Grifo, 1971, p. 37. «Diário da jornada... », p. 313. «Les formes d’habitat temporaire et rudimentaire qui prédominaient dans l’arraial primitiv, sont restées celles des classes pauvres ». Le Loup, Les villes du Minas Gerais, p. 100. Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 97. Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 206. Grifo nosso. Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 102. Este dado mostra que a afirmativa de Lemos segundo a qual «o escravo negro não contribuiu na definição da casa nacional» deveria ser avaliada com mais cuidado. Lemos, Carlos. História da casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989, p. 11. Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. I, p. 206.

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residência dessa numerosa família consistia num quarto enorme, exatamente como um celeiro na Inglaterra. Tinha as paredes de barro, o forro de sapé e o piso de terra, sem qualquer divisão, nem teto, revestimento ou caiação alguma. Ao centro, viam-se vestígios de recente fogueira, cercada de pedras para sustentáculo do aparelho culinário. Dos lados e estendidas sobre tábuas havia umas esteiras onde dormiam as pessoas. Estas, com mais dois ou três armários em que se continham as miudezas, uma mesa velha e umas poucas pedras e blocos de madeira que serviam de assento, constituíam o mobiliário todo.»243 A utilização de uma técnica de construção mista e a existência de mobília não esconde o aspecto fundamental, e que atesta a clara influência indígena: a coabitação de várias famílias na mesma casa – o communism of living de que falava Morgan.244 De que forma o sagrado está representado nas moradias das camadas sociais inferiores? Os viajantes calam a respeito. Podemos porém afirmar com alguma certeza que pelo menos um elemento era comum às habitações dos mineiros dos séculos XVIII e XIX: o pequeno altar doméstico. Nuno Marques Pereira diz ter conhecido «um preto casado, por nome Manoel, em certa vila, o qual, sendo cativo, tinha sua casa na fazenda de seu senhor, muito limpa e asseada; e na varanda tinha um nicho feito, e nele um altar, onde estava colocada uma imagem de Cristo e outra da Senhora do Rosário, com outros santos. E todos os dias cantava o terço de Nossa Senhora com sua mulher e filhos».245 Euclides da Cunha dá notícia da existência de rústicos altares nos casebres do arraial de Canudos.246 À medida em que subimos na hierarquia social, como aliás ocorre sempre quando se estuda a história, as informações crescem em número. Escolhe-se o local da construção: como no caso do arraial, a casa não deve afastar-se demasiadamente de um curso d’água.247 Fazem-se então as fundações, o alicerce. A casa é um espelho do mundo, de modo que ao iniciar sua construção o homem «repete» simbolicamente a criação do universo. Trata-se, pois, de um empreendimento sagrado. No passado, em muitas sociedades, toda obra importante era marcada por um sacrifício de construção (Bauopfer). Paul Sartori demonstrou, num estudo que marcou época, que a realização de sacrifícios humanos visava dotar edifícios, pontes ou muralhas de um espírito protetor que era a garantia de sua força e durabilidade. Com o passar do tempo, as vítimas – criminosos, escravos, prisioneiros de guerra, crianças – foram progressivamente substituídas por animais ou simplesmente por determinados emblemas depositados nas fundações.248 243 Luccock, Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais..., pp. 287-288. 244 Morgan, Lewis H. Houses and house-life of the American aborigines. Chicago: 245 246 247 248

The University of Chicago Press, 1965 (1881). Pereira, Compêndio narrativo, vol. I, p. 175. Cunha, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d (1902), p. 119. Holanda, Caminhos e fronteiras, p. 41; Rosa, Sagarana, p. 182. Sartori, Paul. «Ueber das Bauopfer ». In: Zeitschrift für Ethnologie (30) 1898: 1-54, pp. 5, 10, 28, 32 e 44. Eliade resume bem a questão: «Para durar, uma construção (...) deve ser animada, ou seja, deve receber simultaneamente uma vida e uma

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Gilberto Freyre faz menção a um único caso, transmitido pela tradição oral, de um senhor de engenho que «mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces da casa».249 No período colonial parece ter sido comum a bênção dos alicerces por um sacerdote.250 Conclui-se que o solo é depositário de forças a serem vencidas ou, pelo menos, neutralizadas. Vale dizer: o espaço sobre o qual se constrói nunca é neutro, nunca é «profano». O Bauopfer ou a bênção do alicerce não sacralizam o espaço; o que estes ritos visam, na verdade, é operar uma substituição – por meio da qual o «sagrado fasto» se sobrepõe ao «sagrado nefasto» preexistente.251 Pode-se também lançar mão de um outro mecanismo para se evitar o contato direto com as forças nefastas. Saint-Hilaire nota que em Minas era «costume geral» edificar as casas de fazenda sobre estacas.252 O pólo oposto não desempenha função menos importante. É bem possível que Flusser esteja com a razão quando considera o teto o elemento fundamental. Sua função se confunde com a da própria casa – palavras como sem-teto ou obdachlos indicam em que medida a casa é a extensão lógica da sua cobertura.253 Quem percorre as cidades do ciclo do ouro vê em inúmeros telhados figuras de pombas, evidente representação do Espírito Santo. E ainda é comum que as laterais dos telhados mineiros recebam um arremate conhecido como «peito de pombo». A morada dos homens incorpora simbolismos estreitamente vinculados à morada dos deuses (Tertuliano, no segundo século na nossa era, referia-se às igrejas como domus columbae). As homologias entre casa e templo não param aí. Saint-Hilaire e Langsdorff relatam que era bastante comum a colocação de cruzes nas áreas defronte das habitações.254 Finalmente, era no espaço da casa que se realizavam os ritos funerários sem os quais a alma do defunto não podia ser adequadamente in-

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alma. A ‹transferência› da alma só é possível por meio de um sacrifício». Eliade, Mircea. De Zalmoxis à Gengis-Khan. Paris: Payot, 1970, p. 178. Ver ainda Taloş, Petit dictionnaire de mythologie populaire roumaine, pp. 362-363. Freyre, Casa-grande & senzala, (prefácio à primeira edição) lvii. Mott, «Cotidiano e vivência religiosa...», p. 164. Ver Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, pp. 488-490; bem como o interessante livro de Lecouteux, Claude. Démons et génies du terroir au Moyen Âge. Paris: Imago, 1995, pp. 100-107. Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol I, p. 251. Examinando este fenômeno, Deffontaines sugere que a terra «era vista como um lugar de infortúnio reservada às forças inimigas e à morte». Deffontaines, «Wert und Grenzen der religiösen Erklärung...», p. 211. Flusser, «Häuser entwerfen ». In: Vom Subjekt zum Projekt, p. 63. Pode-se verificar a justeza da tese de Flusser por meio da «festa da cumeeira», que continua tradicional no interior de Minas. No dia em que a lage de uma casa em construção é concluída, o proprietário deve oferecer uma pequena festa aos pedreiros e/ou às pessoas que o ajudam. A fase de acabamento é entendida como secundária pois a casa, no que tem de essencial, está pronta: o proprietário já tem um teto. Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, p. 24; Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 318.

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corporada ao reino dos mortos.255 Este conjunto de evidências vai de encontro à tese de van der Leeuw, de que «casa e templo são, na essência, um só».256 Esta sobreposição casa/templo expressa-se de forma particularmente evidente em muitas «casas de fazenda». Da inevitável tendência à especialização que se verifica no espaço interno das moradias das elites rurais nascem os «quartos dos santos» (aposentos onde se colocava o altar doméstico) e, por fim, a capela – então chamada oratório257 ou ermida. Luiz Mott atribuiu este fenômeno à existência de um suposto «apartheid religioso»: «os mais esnobes e elitistas (...) construíam seus próprios locais de culto – capelas, ermidas e até igrejas, no interior ou anexas às suas moradias, evitando assim o indesejado convívio com os fiéis de outras raças ou de estratos inferiores».258 Esta afirmação não encontra qualquer respaldo na documentação. A autorização eclesiástica para a realização de celebrações em ermidas era dada, na esmagadora maioria dos casos, sob a condição de que as mesmas fossem franqueadas a todo católico. Um regimento feito por Dom Frei Manoel da Cruz em 26 de abril de 1757 esclarecia aos vigários da vara259 as condições a serem observadas antes da sagração: «Informar-se-ão se as ermidas estão decentemente fabricadas com paredes seguras, e portas que se fizerem sem que possam servir para outro ministério profano, emendarão tudo o que for possível nesta matéria por reverência de Deus, e edificação dos fiéis, advertindo, que todas quantas concedemos são públicas, e devem estar em parte pública».260 Uma sistematização das normas a respeito só veio a ocorrer em 1888. Fica estabelecido, quanto aos oratórios, que o vigário deveria certificar-se pessoalmente: «1, se o oratório (...) é conveniente e redunda em aumento do culto; 2, se está decente e separado de todo o uso doméstico; 3, se sobre ele há, ou não, dormitório; 4, se está provido de todos os objetos necessários à celebração da missa».261 Em255 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 102; Willems, Uma vila brasileira, pp.

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160-161; Rosa, Guimarães. «Os irmãos Dagobé». In: Primeiras estórias, pp. 26-30. Conferir ainda o útil levantamento de Stubbe, Hannes. «Tod, Trauer und Verwitwung in der brasilianischen Folklore». In: Staden-Jahrbuch (34-35) 1986-1987: 11-29. Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 372. Para que o oratório-ermida não seja confundido com os pequenos altares de madeira portáteis, nos quais se colocavam os santos de devoção da família (também denominados «oratórios»), usaremos para estes o termo altar doméstico. Sobre os «quartos de santos», ver Lima Júnior, Augusto de. A capitania das Minas Gerais. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978 (1940), p. 115. Mott, «Cotidiano e vivência religiosa...», p. 161. Título dado aos sacerdotes que estavam à frente das cabeças de comarca. AEDC, Livro do Tombo de Aiuruoca (1730-1822); grifo nosso. Actas e constituições do primeiro sínodo diocesano fortalexiense celebrado na respectiva igreja catedral em os dias 31 de janeiro, 1° e 2 de fevereiro de 1888; sendo bispo desta diocese o Exmo e Rvmo Snr Dom Joaquim José Vieira, do Conselho de S. Magestade o Imperador, comendador da Ordem de Cristo, etc, etc. Ceará: Typographia Economica, 1888, p. 229.

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bora a existência de ermidas privadas («dentro da habitação de algum particular, e comumente para seu uso; sem ingresso e egresso livre, nem porta – in via publica – que seja franca para todos»)262 estivesse formalmente prevista, as autorizações eram raríssimas uma vez que deveriam ser obtidas junto à Santa Sé. O que equivale a dizer que, na prática, todo local de culto oficialmente reconhecido é público. Um futuro bispo de Mariana escrevia entre fins de 1886 e princípios de 1887: «Os oratórios em fazendas, com entradas francas para todos, têm sido considerados sempre como públicos, e suprimem a falta de capelas. A única condição que lhes falta para o rigor de públicos é que têm saída para terras particulares, e não para terrenos públicos, condição esta difícil de ser observada no Brasil. Estes oratórios são o remédio e meio de conservar a fé e piedade no povo simples religioso de nossos interiores, que ali ouvem missa, [e] confessam-se em grande número».263

Os pedidos de provisão enviados à autoridade eclesiástica permitem-nos visualizar melhor a questão. Por volta de 1713, Ambrósio Caldeira Brantes, morador da região de São João del-Rei, escreve ao bispo do Rio de Janeiro dando conta de sua intenção em erguer uma ermida. Sendo «forasteiro» e, conseqüentemente, alvo da inimizade de muitos (o choque entre paulistas e emboabas tivera fim apenas cinco anos antes), ele afirma que «tem sua morada e a faz fora dos arraiais, e concursos dos moradores assim

por se livrar de ocasiões de encontros com os naturais, [que] pela sublevação passada ficaram com errônea indissimulável aos forasteiros, como para com menos investimento tratar das suas lavras, causa por onde fica sempre desviado da Igreja, e não vai a ela a missa por evitar a sua perdição, de sua família e de seus amigos; o que vendo o Rev. Padre Francisco Barreto de Menezes com olhos desapaixonados, enquanto não andou com ele suplicante em litígio, lhe disse [que caso] tivesse missa em casa, que ele o tiraria a paz, e a salvo do que nisso houvesse, e depois o Rev. Vigário da Vara (...) lhe licenciou o consentimento.»

Como o Padre Menezes não tivera sucesso em seu litígio com Caldeira Brantes, estaria então empenhado a anular a permissão para a construção da ermida. Brantes vê-se sem saída, pois «achando-se com os perigos referidos para o poder lograr [o bem espiritual]

na igreja, e precisa de passar o ano sem missa, e com os escândalos, que nisso necessariamente há de ter, quando a sua devoção o move a tê-la à sua custa, portanto.» 262 Idem, ibidem, p. 228. 263 Dom Silvério Gomes Pimenta, citado por Trindade, Cônego Raimundo. Archidio-

cese de Mariana. Subsídios para a sua história. São Paulo: Escolas Profissionais do Lyceu Coração de Jesus, 1928, vol. I, p. 505.

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Dom Francisco de São Jerônimo, bispo do Rio, expede sua autorização em 29 de março de 1713: «(...) concedemos licença para em uma das casas de sua habitação, qual ele-

ger, levantar oratório com porta para fora em que se diga missa, e a ouvirem o suplicante e sua família e pessoas que aí haverem [sic] em sua casa.»264

O controle eclesiástico sobre a ereção de lugares de culto sempre foi intenso. Numa carta pastoral escrita em 3 de novembro de 1727 durante uma estadia em São João del-Rei, Dom Antônio de Guadalupe determina que «nenhuma pessoa consinta que em uma sua casa se levante altar portátil para nele se dizer missa exceto os párocos ou quem fizer as suas vezes».265 Em maio de 1821, os moradores do lugar denominado Água Fria, distante «légua e meia a duas» da freguesia de São José da Barra Longa, escrevem ao bispo de Mariana pedindo-lhe permissão para assistirem missa na ermida da fazendeira Maria Caetano de Almeida, «que dista daquela matriz uma légua e lhe[s] é mais cômodo para suas famílias e escravatura». Os suplicantes afirmam que «nas circunstâncias de procurarem a igreja matriz encontram duas pontes ou o rio caudaloso que corre à frente da mesma matriz e uma das ditas pontes muito arruinada». A outra ponte, «do uso particular de herdeiros do falecido Sargento-Mor Manoel Joaquim de Almeida (...) que por benignos facultam passar em horas competentes do dia, e outras vezes impedem com duas chaves que têm».266 Os pedidos de provisão feitos na segunda metade do século XIX seguem o mesmo princípio básico. Tomemos um exemplo: «João Vieira Marques, fazendeiro, residente na freguesia de São Domingos

do Prata, tendo uma numerosa família composta de filhos e escravos, e morando a légua e meia da igreja matriz, não pode mover-se facilmente com sua família para ali cumprir o preceito da missa aos domingos e dias santos; por isso pede a V. Exma Rma licença para que qualquer sacerdote aprovado no bispado possa celebrar missa e administrar os mais sacramentos em sua ermida, que está decente e tem os ornamentos necessários.»

No atestado dado pelo vigário de São Domingos do Prata em 30 de agosto de 1877, lê-se: «tem lugar decente, separado de todo uso doméstico, exclusivamente destinada ao culto divino uma ermida com altar fixo e porta para o público, livre e franca aos fiéis».267 Em 1887, José Ferreira da Costa, habitante da freguesia de São Gonçalo de Contagem, assegura que o oratório de sua fazenda é dotado de todos os ornamentos e tem «ingresso franco para a varanda». Caetano Pedro Cotta, morador da freguesia do Inficionado, afirma ter «no fundo da varanda de sua fazenda de São 264 265 266 267

AEAM, pasta 24, gaveta 1; grifos nossos. AEAM, 1° livro de pastorais e provisões de bispos visitadores, p. 9. AEAM, pasta 33, gaveta 4; grifo nosso. AEAM, ibidem. Grifos nossos.

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José um oratório decente e paramentado, cuja porta é fronteira à da entrada da dita varanda (...). O suplicante tem família numerosa, e dista sua fazenda da matriz cinco léguas». Vicente Pedro Cotta, que afirma viver a quatro léguas da mesma sede paroquial e ser «chefe de numerosa família», tem duas ermidas nas duas fazendas de sua propriedade e requere o privilégio de nelas se poder rezar missa. Em 19 de agosto de 1879, depois de certificar-se que ambos os oratórios têm «entrada pública» e são «exclusivamente reservados ao culto divino», Dom Viçoso dá permissão de celebração. O capitão Luís Antônio de Oliveira e Castro, que fez ermida na sua fazenda do Pirapora, freguesia de Santa Ana do Guaraciaba, afirma ser a mesma «há largos anos consagrada ao culto divino, (...) situada à entrada da varanda e com ingresso franco a todos». Distante duas léguas da matriz de Venda Nova, a propriedade de Adolfo da Silva é dotada de «oratório público». Ao pedir provisão ao bispo, ele acrescenta: «Há na circunvizinhança muitos habitantes que espiritualmente muito lucrarão com a concessão da graça requerida». O documento é datado de 13 de julho de 1890.268 Morador da freguesia de Santa Quitéria, o comendador Manuel Pereira Mello Viana preferiu recorrer diretamente ao internúncio apostólico para usufruir do direito de celebrar em sua ermida. Eis o teor da resposta de Dom Francisco Spolverini: Delecto nobis in Christo Illmo Dne Commendatori Emmanueli Pereira de Mello Vianna, Diocesis Marianensis (...) supplicationes tuo nomine vobis datae, ut in Sacello, quod in praedio tuo ‹Fazenda de Santo Antônio› nuncupato existit, Missae celebrationem permitteremus (...). Quae Missae non solum tibi, sed tuis etiam cosanguineis, affinibus, hospitibus, et omnibus adstantibus in praecepti ad implementum, dictus festis, suffragetur. (...) Civitate Petropolitana die 27 Decembris 1887. Franciscus Spolverini, Internuntius Apostolicus.269

Como o teor e a forma dos pedidos em questão é sempre o mesmo,270 a mera alusão a outros casos não acrescentaria muito ao que se expôs acima. Houve de fato uma «exclusão» dos escravos? O máximo que se poderia dizer é que tal exclusão foi relativa. Pois os senhores não tinham como se furtar à obrigação de permitir (e mesmo, se necessário fosse, coagir) a sua participação nos cultos. As Constituições do Arcebispado da Bahia eram bem claras: «mandamos a 268 AEABH, caixas 37 e 813; AEAM, pasta 33, gaveta 4. 269 AEABH, caixa 838. 270 Para o mesmo período, há referências a ermidas nas fazendas Floresta (freguesia

de Rio Branco), Turvo (?), Bonfim (freguesia do Pomba), Fragas (freguesia de Paulo Moreira) e Chácara (freguesia de São José da Barra Longa). AEAM, pasta 33, gaveta 4. Segundo relatório do vigário de Piedade do Paraopeba enviado a Mariana em 23 de fevereiro de 1855, naquela freguesia havia celebração constante ou esporadicamente nas ermidas das fazendas do Bananal, Bom Jardim, Martins, Contenda, Pouso Alegre, Tejuco, Ponte Alta, Caveira e Serra. APM, SP, Cx. 16 [65]. Há ainda, em 1893, notícia de oratório na fazenda do Jardim, freguesia de São Tomé das Letras. AEDC, caixa 4.

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nossos súditos que ouçam missa conventual nos domingos e dias santos de guarda (...) e a ela façam ir seus filhos, criados, escravos e todas as mais pessoas que tiverem a seu cargo».271 Ribeyrolles assistiu uma dessas celebrações. Os sacerdotes, diz ele, «chegam no sábado à noite. Rezam na capela, ao passo que os negros cantam. No outro dia, é o grande ofício, o mistério da óstia. Os escravos, de joelhos, cantam como na véspera. Os senhores assistem com suas famílias ao sacrifício simbólico, e por vezes, uma prática religiosa encerra o serviço divino».272 Não há como negar que o lugar reservado aos escravos nas celebrações refletia sua condição de párias. Isto ajuda a explicar por que os negros erigiam, tão logo estivessem em condições, a sua própria capela. Porém não se deve esquecer que a existência de gradações no interior do espaço sagrado católico é anterior ao problema do status do negro, e obedecia já a outras clivagens; como as existentes entre sacredotes/leigos e homens/mulheres. Por outro lado: o fato de os oratórios serem construídos contigüamente às varandas demonstra, por si só, o seu caráter público. Observemos que a ermida deveria ser separada «de todo espaço doméstico». As evidências aparentemente o contradizem. Nas plantas de sedes de fazendas dos séculos XVIII e XIX reproduzidas por Helena Martins,273 vê-se claramente que a ermida é dotada não só de uma porta principal para a varanda mas também de uma passagem para a sala de visitas. Mas a contradição é, insista-se, apenas aparente. Se há uma ligação direta entre ermida e sala, é porque esta última não era percebida como um espaço «doméstico» stricto sensu. Os pedidos de provisão de ermidas domésticas em nada se diferenciam, no que têm de essencial, dos pedidos de ereção de capelas. Por detrás de ambos, a mesma intensa demanda pelo sacrifício da missa e pelos sacramentos, as mesmas dificuldades de deslocamento, o mesmo peso imposto pelas distâncias. E, mais importante: o mesmo caráter coletivo e (não tenhamos medo do termo) interétnico do culto católico. A diferença entre o culto realizado numa ermida e um culto celebrado numa igreja paroquial é portanto de escala, não de natureza. Nada nos permite falar na existência de um «catolicismo patriarcal» e muito menos de um «apartheid religioso» na Minas antiga. * * * A percepção do espaço se divide em dois campos básicos e, por assim dizer, opostos: a casa e a rua. A contraposição entre estes dois planos é de tal ordem que Freyre chegou a considerá-los «inimigos».274 Enquanto a rua é vista como um «domínio semidesconhecido e semicontrolado, povoado de personagens perigo271 CAB, livro II, título XI, 367. 272 Ribeyrolles, Charles. Brasil pitoresco. São Paulo: Martins, 1976, vol. II, p. 34-35. 273 Martins, Helena Teixeira. Sedes de fazendas mineiras. Campos das Vertentes. Sé-

culos XVIII e XIX. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 1998, pp. 53, 78, 87, 116, 124, 147 e 193. 274 Freyre, Sobrados e mucambos, vol. I, p. 109.

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sos»,275 a casa constitui um mundo à parte, um refúgio onde as ameaças ou as duras hierarquias da realidade «lá fora» não devem vigorar. Que a casa é um espaço sagrado, demonstra-o ainda o fato de que ela é envolta em interdições (cuja expressão material é a cerca ou muro): o acesso a ela é regulado por uma etiqueta que deve ser rigorosamente observada. Consta que um dos incidentes que antecedeu a «Guerra dos Emboabas» foi deflagrado pela invasão de uma casa: «E sendo em junho de 1707, em antevésperas de São Pedro, o levou [o paulista José Machado] o destino à casa de um Domingos Ribeiro, a quem, depois do atrevimento de entrar nela ousadamente, o descompôs».276 Durante os três meses e meio em que permaneceu em Congonhas, Burmeister pôde notar como «Nem pela porta aberta se passa sem autorização do dono da casa; costuma-

se bater palmas, até aparecer alguém que convide a entrar, ou então grita-se ‹ó de casa› para chamar a atenção dos seus moradores. Quem for introduzido

numa casa brasileira sem ser convidado terá uma recepção fria, expondo-se até a ser posto para fora, pois ninguém suporta tal ofensa à boa educação sem severa recriminação.»277

Terminemos esta seção com duas rápidas observações. A primeira diz respeito a uma tese defendida por Roberto da Matta. Para ele a vida social no Brasil se distribui por três diferentes esferas: a casa, a rua e o «outro mundo». Esta última esfera seria a da transcendência, «da renúncia ritualizada deste mundo com seus sofrimentos e suas contradições». O contato com o «outro mundo» se daria na rua, mais precisamente nas festas religiosas por meio das quais «a sociedade se junta pelo lado do espaço da renúncia e do abandono do mundo».278 Esta formulação já não nos parece satisfatória. Da Matta parte do esquema de Freyre, mas deixa de lado um aspecto que não passara desapercebido ao mestre pernambucano: o «outro mundo», o numinoso, não está destacado do espaço doméstico. De fato, este é o refúgio primordial – é antes de tudo na casa que o indivíduo se ausenta da realidade do mundo da vida. Veremos dentro em pouco que os espaços privilegiados de renúncia podem ser considerados meras expressões radicalizadas da casa enquanto temenos. A segunda observação relaciona-se intimamente com a anterior. Será mesmo possível sustentar a idéia de que nas sociedades industriais e pós-industriais «a casa tornou-se uma instituição puramente secular»?279 Não o cremos. A habitação moderna – mesmo depois de ter sido despojada dos antigos ritos e simbolismos religiosos que marcavam sua construção, mesmo depois de ser reificada a ponto de aparentemente tornar-se uma «máquina de morar» – continua a Da Matta, Carnavais, malandros e heróis, p. 75. CCM, p. 232. Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 246. Da Matta, Roberto. A casa e a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, pp. 68 e 67. 279 Rabuzzi, Kathryn A. «Home». In: ER, vol. 6, pp. 438-442, p. 441. 275 276 277 278

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exercer este papel de refúgio280, de garantia de segurança e privacidade. É por isso, como bem notou Flusser, que o sentimento do estar-em-casa pode ser considerado, em última análise, um sentimento de tipo religioso.281

3.2.2

«Segregação»

da mulher

Não é nosso objetivo tratar da história da mulher em Minas, um campo de pesquisas bem explorado por outros autores. Reservaremo-nos apenas o direito de sublinhar alguns aspectos que parecem apontar para uma interessante confluência entre sagrado, espaço e relações de gênero. Dizer, depois de uma leitura ligeira dos relatos dos viajantes, que a típica mulher mineira vivia reclusa, seria sem dúvida distorcer os fatos. Há uma clara relação entre estrato social, grupo étnico e nível de «segregação». A mulher confinada à esfera do «lar» é, na maioria dos casos, a mulher branca, de origem portuguesa ou pertencente a um grupo familiar no qual o código moral tradicional português domina. Nas camadas sociais inferiores o padrão de comportamento feminino dos setores médios e das elites nunca foi observado. E não poderia ser de outra forma. Paiva mostrou como as estratégias cotidianas de resistência das escravas incluíam o recurso da sexualidade como forma de desfrutar de um melhor tratamento por parte dos senhores.282 A prostituição era corrente em praticamente todos os lugares de Minas, dos arraiais nascentes às vilas. Em 2 de dezembro de 1733 o Conde das Galveias expedia ordem no sentido de coibir «os pecados públicos, que com tanta soltura correm desenfreadamente no Arraial do Tejuco, pelo grande número de mulheres desonestas que habitam no mesmo arraial, com vida tão dissoluta e escandalosa (...).»283 Langsdorff legou-nos uma viva descrição a respeito: «Em todas as vendas, havia prostitutas. Quando se lhes pergunta que tipo de atividade fazem, elas respondem, sem rodeios, que estão ali para entreter os viajantes. À noite, seja na venda ou entre os tropeiros, ouvem-se sempre pessoas tocando vi280 Durand, Yves. «À propos du symbolisme du refuge – realités de l’image et trans-

formations du sens». In: Circé. Cahiers du Centre de Recherche sur l’Imaginaire (2) 1970: 179-219. 281 Flusser, Vilém. Dinge und Undinge. Phänomenologische Skizzen. München: Carl Hanser, 1993, p. 31. A uma conclusão idêntica chega Bollnow, Mensch und Raum, p. 140. Ver também Leiris, Michel. «Le sacré dans la vie quotidienne». In: Hollier, Denis. Le Collège de Sociologie (1937-1939). Paris: Gallimard, 1995, pp. 94-118. 282 Paiva, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII. São Paulo: Anna Blume, 1996. 283 Citado por Carrato, «A crise dos costumes...», p. 232. Conferir os estudos de Souza, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982, pp. 180-185; e Figueiredo, Luciano R. de A. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/Edunb, 1993. Para o século XIX, ver SaintHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, p. 119, vol. II, p. 355; Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 78.

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olão (...). Enquanto isso, aquelas moças, na sua atividade profissional, tentam seduzir os viajantes. Elas dançam danças obscenas, cantam canções de baixo calão, deixam que se lhes sirva vinho ou cachaça, fumam tabaco, para, logo em seguida, através de outro talento, se mostrarem simpáticas e prestativas.»284 Havia ainda mulheres cuja atividade profissional ou poder econômico proporcionava um nível de autonomia surpreendente. Pohl encontrou determinado dia «uma tropa de burros, cujo dono era acompanhado por uma mulata, que montava garbosamente à moda masculina e sabia fazer uso das esporas de suas grandes botas».285 Algumas proprietárias de fazendas, por vezes velhas matriarcas, aparecem aqui e ali nos relatos. Contudo não foram estas as que chamaram a atenção dos viajantes. O que dominou o olhar do estrangeiro foi, antes de tudo, a questão da «segregação» feminina. Este estranhamento não é difícil de se entender uma vez que, ao contrário de Portugal, em vários países europeus os contatos entre os sexos já não eram mais regidos por tantos tabus. Um escritor italiano anônimo do século XVI surpreendeu-se ao ver que os portugueses mantinham as mulheres «na maior sujeição que pode haver, guardando-as sem confiar nem nos parentes nem em quaisquer outros. (...) Jantar e cear em conjunto, como noutras partes se faz, seria aqui considerado desonra».286 Na mais lusitana das províncias brasileiras, é natural que a reclusão de inúmeras mulheres no espaço da casa fosse relativamente comum. A maioria dos viajantes que percorreram Minas no século XIX nunca pôs seus olhos, senão acidentalmente, sobre as mulheres ou filhas daqueles que os acolhiam. Segundo Burmeister, «é caso raríssimo» um estranho ser apresentado logo de início às mulheres da casa. Elas «nunca se mostram; ficam fora do círculo masculino, olhando furtivamente pelas portas ou pelas janelas».287 Langsdorff afirma que «em Barbacena, onde reina grande degradação moral e indolência, as mulheres e moças ficam trancadas o dia todo dentro das casas, não aparecem nem à janela». Na fazenda do Pau de Cheiro, o mesmo autor observa que as mulheres «não apareceram na casa, embora também não tenham se escondido, como acontece em outros lugares».288 De sua experiência na fazenda dos Troncos, nas proximidades do Arraial do Desemboque, diz Eschwege: «Para que o jantar não chegasse frio à nossa mesa, a dona da casa e as filhas, sempre às escondidas, aproximaram-se dos fundos do moinho para entregarem, através de um furo na 284 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 21-22. 285 Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. II, p. 442. 286 «Retrato e reverso do Reino de Portugal». In: Nova História (1) 1984: 83-143, p.

134. 287 Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 246. Bernardo Guimarães diz o mesmo: «Quan-

do lhes aparece em casa alguma pessoa mais bem trajada e de maneiras mais polidas apenas animam-se a espiar por trás das portas». Guimarães, O garimpeiro, pp. 32-33. 288 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 86 e 194.

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parede, as panelas. Pela mesma via, recebemos, no dia seguinte, o desjejum.»289 Vê-se que este padrão era mais freqüente nos arraiais e propriedades rurais. Nas vilas as possibilidades de contato pareciam ser maiores, como atesta Tschudi, que afirma ter sido sempre apresentado às mulheres dos seus convivas.290 Mas há evidências de que os antigos costumes resistiram por muito tempo. Na década de 1940, no Vale do Paraíba, Emílio Willems identifica «um padrão de ‹recato› que limita a esfera de influência da mulher casada ao lar. Quando o marido recebe hóspedes, ela raramente aparece e nas refeições ela serve os convidados sem tomar lugar à mesa».291 Pierson observou o mesmo fenômeno em Cruz das Almas, uma povoação não distante da fronteira com Minas.292 Quanto às filhas, convém acrescentar que a «segregação» provavelmente desempenhou um importante papel no que se refere as estratégias matrimoniais. Ao fim de um longo período hospedado em casa de um fazendeiro, Saint-Hilaire ouve dele a seguinte confissão: «Está surpreso, sem dúvida, meu amigo, de que minhas filhas não se tenham jamais mostrado ao senhor; detesto o costume que me obriga a afastá-las, mas não poderia subtrair-me a ele sem prejudicar-lhes o casamento».293 Que tenha havido mulheres submetidas a uma limitação tão brutal do seu espaço vital, não deveria causar-nos surpresa. Com base num amplo levantamento histórico e etnográfico, Dux mostra que esta «segregação» espacial da mulher esteve por toda a parte relacionada aos cuidados com os filhos e à preparação das refeições. O homem, por seu turno, devia garantir o sustento e a proteção da família. Instala-se uma dicotomia entre casa e rua que corresponde, primordialmente, às diferentes atribuições de homens e mulheres. Com o desenvolvimento da agricultura e a formação do aparato estatal, os homens se valem de sua supremacia no mundo «da rua» reforçando seu domínio e consagrando-o cultural e legalmente.294 O trabalho dos etnólogos têm mostrado que esta divisão de papéis, de poder e, conseqüentemente, de espaços, não arrefeceu em várias regiões de Portugal.295 Em culturas tradicionais e mesmo em países como a Alemanha contemporânea as disparidades entre os sexos podem ser «medidas» nas diferentes Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 116. Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, p. 278. Willems, Uma vila brasileira, p. 63. «When a stranger enters the house of a local resident, he is never presented to either the wife or daughters ». Pierson, Cruz das Almas, p. 136. 293 Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 80. 294 Dux, Günter. Die Spur der Macht im Verhältnis der Geschlechter. Frankfurt: Suhrkamp, 1997 (1992), pp. 164-179, 306, 363. 295 No Entre-Douro-e-Minho a casa continua «o espaço feminino por excelência». Almeida, Carlos A. F. de. «Território paroquial no Entre-Douro-e-Minho. Sua sacralização». In: Nova Renascença 2(1) 1981: 202-212, p. 205. Particularmente útil é o estudo de Dracklé, Dorle. «‹Die Frau gehört ins Haus und der Mann auf die Straße›. Zur kulturellen Konstruktion von Geschlechterdifferenz im Alentejo (Portugal)». In: Hauser-Schäublin, B. und Röttger-Rössler, B. (Hrsg.) Differenz und Geschlecht. Berlin: Dietrich Reimer, 1998, pp. 107-135. 289 290 291 292

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relações que homens e mulheres estabelecem com o espaço doméstico e urbano.296 Preocupar-se com o estudo da casa de forma alguma implica, como supunha Lefebvre, em despender tempo e forças com um tema «nostálgico». Damo-nos conta então de um fato sumamente interessante. Onde predominou o sistema de reclusão feminina, como foi o caso de tantas fazendas e arraiais mineiros, o espaço da mulher tendia a restringir-se à casa e à igreja, ou seja, aos dois pólos sagrados básicos do cotidiano. Sim, porque as mulheres de que falamos aqui só se ausentavam de suas casas aos domingos, quando tinham de assistir à missa. E sob que vigilância! Acompanhadas, sempre, elas percorriam discretamente ruas e caminhos – espaços ilícitos, para elas – sem sequer se atrever a levantar os olhos.297 O importante a perceber é que este tipo de «segregação» feminina não se distingue significativamente das interdições que se levantam em torno de tudo que é sagrado. Veja-se que os únicos espaços femininos alternativos à casa e à igreja constituíam uma síntese de ambos: os recolhimentos e conventos. Recolhimentos eram instituições femininas inspiradas no modelo monástico, fundadas por leigos (a Coroa foi sabidamente hostil à criação de conventos na Colônia), e que desempenhavam também atividades de caráter caritativo e educacional. Os mais importantes recolhimentos mineiros setecentistas, como Macaúbas e a Casa de Oração do Vale de Lágrimas, foram bem estudados por Carrato e outros.298 Não é preciso que nos concentremos nos exemplos mais famosos para nos darmos conta da essência do fenômeno. Em 1824 Langsdorff conheceu o pequeno recolhimento da fazenda Jacuara, uma grande propriedade situada entre Lagoa Santa e Curvelo: «Um estabelecimento em particular, o convento, merece um comentário em

especial. Todas as moças a partir de 12 anos, bem como as esposas birrentas e briguentas são trancadas numa casa isolada, que serve ou como casa de trabalhos forçados ou como casa de correção. As jovens moças, para serem educadas para o trabalho e para aprender a fiar e tecer; as outras, para não fazerem besteira. O capataz afirma que, dessa forma, as jovens se casam mais cedo (...). Elas só podem sair da instituição aos domingos, para ir à missa.»299

Burmeister revela uma outra função da segregação feminina em Minas: «querendo alguém ver-se livre de sua mulher por certo tempo, basta recorrer à polícia, 296 Spain, Daphne. «Räumliche Geschlechtersegregation und Status der Frau». In:

Ethnologica (22) 1997: 31-40; e Löw, Raumsoziologie, pp. 246-254. 297 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, pp. 118-119; Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. I, p. 200; Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 166. 298 Carrato, As Minas Gerais e os primórdios do Caraça, pp. 193-204. Ver também Algranti, Honradas e devotas: mulheres da Colônia; e Nunes, Maria J. R. «Freiras no Brasil». In: Del Priore, Mary (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. 299 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol I, p. 187.

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que a manda levar para um convento (...). A mulher não opõe resistência: o homem manda e ela obedece. Durante esse tempo, o marido atira-se a uma vida folgada e de prazeres».300 Em suma, recolhimentos e conventos eram um misto de refúgio, escola e prisão. Eles ofereciam mesmo, somos tentados a dizer, uma imagem invertida daquela Urstiftung tão comum às sociedades tradicionais que é a «casa dos homens». E, em todo o caso: formas supremas de segregação feminina na Minas dos séculos XVIII e XIX, eles nada mais eram que a expressão paroxística da própria casa.

3.2.3 Janus e Vesta Argumentamos há pouco que a casa é um espaço sagrado atravessado por um eixo vertical. O telhado, elemento que «resume» simbolicamente o todo, elevando-se em direção ao céu, deve ser considerado o pólo positivo. No pólo oposto, as fundações. O contato direto com o solo e com o sagrado nefasto de que ele é portador tem de ser neutralizado, seja por meio de um rito (um sacerdote deve benzer o alicerce), seja por meio da construção da casa sobre estacas. Ao analisarmos a casa com mais cuidado, veremos que um segundo eixo a atravessa. Desta vez, um eixo longitudinal cujos extremos se localizam respectivamente na sala e na cozinha. Onde predominou o modelo civilizacional português, o tipo ideal de casa se resume a três espaços básicos: sala, quarto(s) e cozinha. Desnecessário dizer que não há como estabelecer aqui limites rígidos, pois, como mostrou Da Matta, o espaço da casa sempre é percebido como um continuum.301 Se a porta é de fato um limite entre a rua e a casa, ela é um limite relativo.302 Por esta razão Janus, antigo deus romano da porta, era representado como um homem de duas faces. Um deus que simbolizava tempos (o primeiro mês do ano leva ainda o seu nome) e espaços fronteiriços, ambígüos. É, efetivamente, o caso da sala de visitas. A lógica masculina do mundo «lá fora» se extende até ela. Saint-Hilaire escreve: «Nas casas dos pobres, assim como nas dos ricos, existe sempre uma peça denominada sala, que dá para o exterior. É sempre ali que se recebem os estranhos, e se fazem as refeições, sentados em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida».303 Tal como a rua, a sala é o espaço da ritualização, do cerimonialismo, e não é mera coincidência que o altar doméstico normalmente esteja associado a ela.304 Diríamos ser este o pólo masculino da casa. 300 Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 247. 301 Da Matta, Carnavais, malandros e heróis, p. 74. 302 Para uma análise do significado sociológico da porta, ver Simmel, Georg. «Brücke

und Tür». In: Simmel, G. Brücke und Tür. Stuttgart: K. F. Koeller, 1957, pp. 1-7. 303 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., p. 186. 304 «Às vezes, em lugar de um santo só, compra-se um grupo inteiro em pequenas vitrinas envernizadas estilo Renascença. Tais vitrinas, de dois pés de altura, apre-

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Nos fundos fica a cozinha, e, mais especificamente, o fogão. Que a mulher esteja diretamente associada a ele, é para nós um fato altamente significativo. Em Roma era este o local mais sagrado da habitação, altar mesmo de Vesta, a deusa do fogão e – por extensão – da própria casa. Aliás o nome de Vesta entre os gregos era Hestia, literalmente: fogão. Outras divindades e espíritos tutelares, como os penates e os lares, tinham também no fogão o seu «altar».305 Engana-se quem pensa que trata-se aqui de um complexo de representações limitado à Antigüidade. Em seu conhecido livro sobre a aldeia de Montaillou, Le Roy Ladurie mostra que «a parte essencial do domus é a cozinha ou foganha», também chamada «casa dentro da casa».306 Em Itaipava, segundo Willems, «no sábado de Aleluia, o padre vai de casa em casa, benze todas elas, principalmente, porém, o fogão».307 Há regiões de Portugal onde o fogão continua sendo chamado de «lar».308 Reciprocamente, «fogão» foi palavra comumente usada na Minas dos séculos XVIII-XIX como um sinônimo de «habitação». Em outros termos: o fogão resume a casa tal como a casa resume o mundo. Que nos dizem os viajantes? Saint-Hilaire: «O interior das casas, reservado às mulheres, é um santuário em que o estranho nunca penetra, e pessoas que me demonstravam a maior confiança jamais permitiram que meu criado entrasse na cozinha para secar o papel necessário à conservação de minhas plantas».309 Burton, sobre a fazenda da Fábrica da Ilha: «Era a habitação comum do interior, um terreiro usado pelos negros e animais, uma escada de madeira levando à ‹sala› (...) e, por trás, o gineceu ou cozinha, que são os lugares interditos, a ‹sancta› da Dona».310 De Courcy, em plena noite de São João: «Em uma noite explêndida (...) todas as choupanas acenderam seu fogão, em torno do qual a família, os amigos reunidos dançam, assam a cana-de-acúcar e a mandioca para a refeição da noite».311 O fogão, também na Minas Gerais antiga, é «o núcleo e a essência da casa» (Tönnies), «o símbolo de sua força» (van der Leeuw). Não admira que a pessoa da

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sentavam as imagens de Cristo Crucificado, Maria e João e custavam 100.000 réis. O artista informou que os fazendeiros ricos gostavam de comprá-las para colocálas em frente à porta da sala-de-estar». Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 228. Wissowa, Georg. Religion und Kultus der Römer. München: C. H. Beck, 1912, pp. 156-174. Le Roy Ladurie, Emmanuel. Montaillou, village occitain de 1294 à 1324. Paris: Gallimard, 1982, pp. 61, 69-70. Willems, Uma vila brasileira, p. 156. Fiedler, Hermann. «Bausteine zur Wohnkultur in Portugal». In: Aufsätze zur portugiesischen Kulturgeschichte (1) 1960: 166-182, p. 172. Cascudo, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972, p. 379; Almeida, «Território paroquial no Entre-Douro-e-Minho...», p. 210. Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., p. 186. Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 259. De Courcy, Ernest. Seis semanas nas Minas de Ouro do Brasil. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1997, p. 94.

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família que mais diretamente se associava a ele tenha sido cercada de tantos interditos. Bourdieu constata o mesmíssimo fenômeno no seu estudo sobre as casas dos bérberes na Argélia. Lá, como em Minas, pode-se dizer que à reclusão da mulher corresponde, na mesma medida, uma exclusão do homem (ao menos durante o dia) do universo da casa.312 Chega-se assim a uma conclusão algo desconcertante: a «segregação» da mulher no espaço doméstico e, em especial, na cozinha, sugere que é sobretudo ela que está ligada ao sagrado.313 Eis porque parece ser algo mais que uma bela metáfora a imagem utilizada por Bernardo Guimarães num de seus romances: «O Major tinha contruído uma bonita e asseada casinha no laçante de uma colina à margem direita do ribeirão, algum tanto isolada do resto da povoação. Era um templozinho, de que Lúcia era a deusa tutelar».314 Nas moradas das elites a situação é mais complexa. À primeira vista, a presença e a localização da ermida colocaria por terra a supremacia do princípio feminino na casa. Foi visto que a continuidade existente entre ermida e sala demonstra que se trata – principalmente no caso da última – de porções ambivalentes. Projeção do mundo da rua na casa, elas compõem um espaço intermediário e, ao menos tendencialmente, sob o raio de influência do homem. Quanto mais porque a ermida é a expressão de um sagrado católico oficial, estritamente definido e regulamentado. Conseqüentemente, e haja vista a «afinidade eletiva» entre ambos: expressão de um sagrado dominado pelo princípio masculino. A existência da ermida seria então a evidência da vitória final de Janus sobre Vesta? Conquistado, enfim, o último bastião? A linguagem utilizada nos documentos eclesiásticos é reveladora. Em hipótese alguma a ermida deve misturar-se com o espaço «doméstico». De modo que o domínio público (ermida) e semi-público (sala) contrapõe-se ao «resto». Paradoxalmente, é no «doméstico» que se esconde aquilo que o domus tem de mais valioso. E é precisamente neste domínio que a mulher, mesmo aquela pertecente às elites rurais, continua a gozar de preeminência.

3.3

Arraial

Recapitulemos: o arraial é um ponto de cristalização, um espaço não-racionalizado de convívio coletivo. Ele é a expressão das necessidades econômicas, religiosas e lúdicas de um grupo de vizinhança. Primeiramente examinaremos o arraial mineiro numa perspectiva morfológica. É preciso saber, afinal, como eram 312 Bourdieu, Pierre. «La maison ou le monde renversé». In: Bourdieu, P. Le sens

pratique. Paris: Minuit, 1980, pp. 448-451. Claro está que não compartilhamos da posição de Lemos, segundo a qual no Brasil o fogão não teria ocupado o centro simbólico da casa. Lemos, História da casa brasileira, p. 13. 313 Para Luhmann «o sagrado é representado como mistério, portanto como proibição ou impossibilidade de comunicação ». Luhmann, Die Religion der Gesellschaft, p. 81. 314 Guimarães, Bernardo, O garimpeiro, p. 57.

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aqueles embriões de cidades. Apesar de ainda não ser a hora de nos ocuparmos a fundo com a questão das origens, será necessário introduzir alguns exemplos preliminares para que possamos visualizar o processo de proto-urbanização como um todo. Poderemos assim identificar os seus componentes básicos e, em especial, mostrar de que forma a religião esteve presente em cada um deles. Uma diferenciação clara se impõe entre os arraiais que cresceram à margem da mineração e os que se formaram em áreas ou fases em que predominou a agropecuária. O primeiro tipo teve normalmente por origem um ou mais acampamentos de mineradores, e era marcado nos seus primórdios por um rápido aumento do efetivo populacional. Procedia-se então à construção de uma tosca capela. Ela podia, eventualmente, conferir alguma estabilidade ao assentamento, mas a sorte do arraial minerador era obviamente determinada pelas perspectivas de ganho na mineração. O segundo tipo de arraial não tinha por centelha um local onde se explorava ouro («descoberto»), mas pura e simplesmente a capela. O processo de proto-urbanização processava-se aí muito mais lentamente. Uma das dificuldades com as quais lidamos reside na polissemia do termo «arraial», aspecto para o qual já se chamou a atenção. A palavra denotava no seu uso cotidiano: (a) o simples acampamento, e (b) pequenos agregados de casas que se formavam seja (b.1) ao longo do leito dos riachos e grupiaras315 – por vezes utilizava-se o termo «bairro» –, seja (b.2) em torno de uma capela. Quando se lê em antigos relatos que os primeiros descobridores das minas «levantaram arraial» ou «fizeram arraial», isso significa basicamente o estabelecimento de acampamentos. Num momento posterior, especialmente a partir de meados do setecentos, «fazer um arraial» significa levantar casas em torno de uma capela pré-existente. Contudo não se pode dizer que tenha havido uma solução de continuidade histórica entre estes dois modelos. Eles coexistiram tanto no século XVIII quanto no seguinte. Em parte por terem estado pouco atentos a esta variação semântica e tipológica é que vários autores defenderam a hipótese de que os povoados de Minas Gerais nasceram, via de regra, como fruto direto do gold rush e do comércio.316 Dois exemplos nos darão uma idéia mais precisa dos dois tipos de embrião de cidade. Situada na Zona da Mata, a atual cidade de Guaraciaba começou a formar-se por volta da metade do século XVIII. A provisão para a construção da capela de Santana dos Ferros data de 28 de novembro de 1749.317 Eschwege, escrevendo pouco mais de cinqüenta anos depois, usa precisamente o exemplo do então ar315 Grupiara: «Ocorrência de ouro ou diamantes em camadas argilosas sob o solo, nas

encostas dos morros, junto a rios e córregos» (Maria Verônica Campos). 316 Em especial: D’Assumpção, Lívia Romanelli. «Considerações sobre a formação do

espaço urbano setecentista nas Minas». In: Revista do Departamento de História da UFMG (9) 1989: 130-140. Em Lima Jr. o problema é formulado ambigüamente. Ora ele atribui – sem apresentar exemplos – a formação dos arraiais ao comércio, ora ao «motivo religioso». Lima Júnior, A capitania das Minas Gerais, pp. 38 e 90. 317 DHGMG, p. 144.

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raial de Santana dos Ferros para dar sua explicação do processo de urbanização em Minas: «A origem destes arraiais, assim como das vilas em Minas, foram as escavações de ouro. (...) A primeira coisa que se fazia era erigir uma pequena capela para o serviço religioso, e cercas; aquele que tinha meios, construía uma grande casa a partir de uma frágil cabana inicial. Conforme se achava mais ou menos ouro, crescia ou decrescia o bem-estar e o luxo nestes lugares. (...) Também o arraial aqui citado [Santana dos Ferros] deve sua origem à exploração de ouro nas margens do rio Piranga.»318 Algo totalmente diferente ocorreu na gênese de Nazareno, um ex-distrito de São João del-Rei. Embora a capela de Nossa Senhora do Nazaré existisse desde 1734, até princípios do século XIX o arraial ainda não surgira. Como se explica isso? Uma carta dos moradores do lugar ao rei de Portugal, datada de 3 de março de 1802, esclarece a questão: «Ela [a capela] é situada em uma larga e dilatada campina e é bastantemente

grande e suntuosa, bem aparamentada e suprida à custa dos povos da aplicação, mas sofrendo estes o desgosto de que o terreno da mesma está situado em terras de terceiro, o qual não consente que se façam casas, cômodos ou ranchos de que tanto se precisam para os suplicantes que das suas fazendas e lavras vem distantes léguas a satisfazerem os divinos preceitos, não tendo onde mudem os vestuários para decentemente assistirem no templo homens, mulheres, nem parte onde possam recolher suas montadas. Esta falta (...) reconhecem que a ser aquele terreno livre aos suplicantes com os seus logradouros, avaliado tudo (...) e satisfazendo os suplicantes o seu valor ao dono das terras, se faria um perfeito arraial e dos melhores da comarca, não só pelos muitos e nobres edifícios como pelo comércio iria em aumento a população e os direitos régios (...). As distâncias, soberano senhor, de muitos dos suplicantes, os campos e o mais justificam o indigente estado em que chegam para a indispensável obrigação da lei, e entram na casa de oração. Logo é justa a graça que os suplicantes imploram, as suas cavalgaduras, posses ou dispensas, que perturbação não causam, exposto tudo aos acasos e à inconstância dos tempos.»319

O documento acima contém alguns dados fundamentais. Mais de meio século após a construção da capela não havia ainda arraial porque o proprietário das terras em que a mesma fora erigida não permitia a construção de casas. Não era um procedimento comum. Note-se que a função das casas não era a de servir de moradia àquelas pessoas – que, afastadas dali, viviam em suas «fazendas e lavras» – mas sim a de servir de local onde elas pudessem guardar seus pertences e vestirse condignamente para assistir às celebrações. Os aplicados de Nossa Senhora do Nazareno dispõem-se a comprar o terreno em torno da capela, e para isso pedem a intervenção do rei. Sua argumentação 318 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 54. 319 APM (AHU), cx. 162, doc. 9.

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extrapola o plano especificamente religioso: a configuração do lugar era perfeita, e certamente formar-se-ia um belo arraial. Futuramente, com o desenvolvimento do comércio, também a Coroa se beneficiaria com a quantidade crescente de impostos arrecadados. Ao que parece os autores do requerimento tiveram sucesso, pois em 1841 a referida capela era elevada a paróquia, o que comprova o crescimento do arraial. Segundo Barbosa, Nossa Senhora do Nazaré, «era lugar próspero e com bastante comércio».320 A situação é distinta em Santana dos Ferros. Não resta dúvida que a mineração explica o enorme afluxo de aventureiros às margens deste ou daquele rio. Nos núcleos mineradores a capela não é causa, mas sim conseqüência deste movimento. Além do mais, ela não pode sequer ser tomada como indício seguro de «sedentarização». A formação de uma multidão não implica necessariamente fixação, o estabelecimento de um senso de coletividade, de comunidade. As multidões são agregados demasiado voláteis, ajuntam-se tão rapidamente quanto se dispersam. Que o templo, ou antes, os sentimentos religiosos que ele representa no plano material, nem sempre eram capazes de sobrepujar a tendência à instabilidade típica destes agregados humanos, demonstram-no os casos de capelas e arraiais abandonados em virtude da queda da produção aurífera, à dificuldade de abastecimento ou à insegurança. Ao lado do problema propriamente sociológico, há o espacial. O sistema de concessão de terrenos para a mineração (as datas) tendia a diluir a ocupação do sítio, já que os mesmos se localizavam normalmente ao longo dos cursos d’água. Murillo Marx afirma que, respeitadas as limitações impostas por este sistema, não haveria espaço disponível para levantar a povoação. Ao seu ver é nas terras pertencentes às capelas (nos patrimônios) que este espaço «público» originalmente se formava.321 Marx incide em pelo menos um sério erro metodológico ao analisar conjuntamente arraiais mineradores e arraiais originados em patrimônios religiosos. A solução para o problema do espaço a ser ocupado pelo povoado não foi a mesma nos dois casos. É preciso diferenciar os dois tipos de urbanogênese, uma vez que eles têm um caráter distinto. Para resumir as diferenças entre estes tipos no que eles têm talvez de fundamental, pode-se afirmar que enquanto o arraial baseado na mineração tem a sua capela, nos inúmeros embriões de cidade com que nos ocupamos neste estudo dá-se algo inverso e sem dúvida original: é a capela que «tem» um arraial. Uma ressalva que se poderia fazer ao importante trabalho de Cláudia Fonseca sobre a evolução do espaço cultural de Mariana é a sua incorporação do modelo de Marx. Os próprios mapas por ela reproduzidos mostram que a primeira onda de ocupações dos terrenos nos arraiais mineradores tendia a espalhar-se às mar320 DHGMG, p. 218. 321 Marx, Murillo. «Arraiais mineiros: relendo Sylvio de Vasconcellos». In: Barroco

(15) 1992: 389-393.

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gens dos córregos.322 Nas datas, portanto, e não ao redor das primeiras capelas. Diogo de Vasconcellos foi bastante claro a respeito: «O chão, as casas, as benfeitorias compreenderam-se nestas datas».323 Comprova-o ainda o caso de São João del-Rei, e isso quatro anos após a criação da vila, onde os mineiros ainda têm quase todas as casas de palha, e umas mui separadas das outras e juntamente pelas lavras de ouro, que ficam tão perto delas, que hoje se fazem, amanhã as botam em terra para trabalhar.324

No que diz respeito à ocupação do solo, não se deve ignorar o fato de que havia pelo menos uma alternativa para a multidão de aventureiros recém-chegados às minas. As margens das estradas e dos cursos d’água não podiam ser apropriados por particulares; o detentor de uma data ou sesmaria não tinha como vedar o acesso a estes espaços tidos como públicos.325 Tudo indica – e o caso de Mariana parece-nos exemplar – que a ocupação irregular destes terrenos garantiu um chão a boa parte dos pioneiros antes mesmo da formação das vilas.326 Se nosso interesse está centrado no papel «urbanizador» exercido pela religião, em todo o caso é essencial perceber que existiram modelos alternativos e mesmo concorrentes de proto-urbanização. Deixemos de lado, momentaneamente, o arraial minerador e o tipo humano (o homo ludens) que ele espelha. É hora de nos debruçarmos sobre a questão dos patrimônios a fim de entender como e onde se formavam os outros arraiais de Minas.

3.3.1 Patrimônio Logo nas primeiras linhas de sua obra sobre a história de Sabará, Zoroastro Passos escreve que «o alto espírito de religiosidade portuguesa adotava, como norma invariável de conduta nas suas descobertas, ter, como núcleo da povoação que se devia formar, uma capela. Em torno dessa capela (...) se iam construindo as mo322 Fonseca, «O espaço urbano de Mariana», pp. 57-59. 323 Vasconcellos, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Im-

prensa Oficial, 1904, p. 108. 324 «Diário da jornada... », p. 313. 325 Porto, Costa. O sistema sesmarial no Brasil. Brasília: Edunb, s/d (1965), pp. 122-

123. 326 A respeito de Mariana, diz Vasconcellos (História antiga..., p. 392) que «a conse-

qüência do concurso de adventícios assim atraídos [pelo ouro] não se fez esperar. Os antigos moradores recompuzeram suas casas abandonadas no primitivo assento, e os recém-chegados derramaram-se pela margem do rio, invadindo sem respeito nem considerações as terras por Antônio Pereira compradas a Manoel da Cunha». Todavia sua afirmativa de que o povoado tornou a crescer em torno da capela de Nossa Sra. da Conceição não é confirmada pelos mapas reproduzidos por Damasceno. O que sugere fortemente (como demonstram diversos casos que ainda teremos a oportunidade de analisar) que o patrimônio das duas primeiras capelas de Mariana não fora constituído em terras, mas em dinheiro.

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radas de que a capela cobrava foros».327 Assim, conclui ele, a história das capelas permitiria conhecer a história de nossas cidades. O que é certo, até certo ponto. Porque a pergunta seguinte naturalmente é a de saber por que se deveriam pagar foros a uma capela. Isso ocorria pelo fato de que o terreno sobre o qual se levantavam as casas pertencia ao templo, ou antes, era «patrimônio do santo».328 Os geógrafos perceberam que era preciso identificar a origem deste chão em que surgia o arraial. A eles devemos a descoberta da importância dos patrimônios enquanto espaço primordial onde se formou uma parcela significativa dos embriões de cidades brasileiros. As Constituições do Arcebispado da Bahia determinavam que todo templo que se quisesse edificar deveria ser dotado de uma renda mínima capaz de garantir sua conservação. Tal quantia era estipulada em 6.000 réis anuais.329 Este «fundo» era o patrimônio da capela. Porém, e na maioria dos casos, prevaleceu uma outra modalidade: a doação de uma porção de terra (igualmente chamada patrimônio) «ao santo». Via de regra, a capela era ali erigida. Quem pretendesse construir uma casa no referido patrimônio estava obrigado a pagar uma taxa anual (foro) a um administrador (fabriqueiro).330 Em tese, este sistema garantia a consecução dos mesmos objetivos que a doação em dinheiro. O predomínio dos patrimônios em terras demonstra que os doadores estavam certos de que em torno da capela surgiriam casas. Do contrário é difícil imaginar que a autoridade eclesiástica aceitasse tal prática. Percebe-se que a separação entre patrimônio e templo é artificial, já que um existe em função do outro. Apenas por razões de ordem puramente metodológica é que nossa análise momentaneamente procede a esta separação. Trata-se de verificar em que medida a incorporação pela historiografia dos avanços feitos nos estudos de Moraes, Deffontaines, Monbeig e Azevedo331 nos fornece um meio privilegiado de compreender as íntimas relações entre religião e produção do espaço na história do Brasil. Waldemar Barbosa pode ser considerado o único historiador que se debruçou com seriedade sobre este tema, e praticamente todos os verbetes do seu Dicioná327 Passos, Zoroastro Vianna. Em torno da história de Sabará. Rio de Janeiro, 1940, p. 1. 328 Dorn observa que desde a Antigüidade tardia o santo escolhido para orago dos

mosteiros ou capelas era considerado o legítimo «proprietário » dos mesmos. Dorn, Johann. «Beiträge zur Patrozinienforschung». In: AfKG (13) 1917: 9-49, p. 36. 329 CAB, livro IV, título XIX, 692. 330 A cobrança de taxas àqueles desejosos de construir nas terras pertencentes a um templo também era prática comum nos antigos povoados chineses. Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, I, p. 382. 331 Moraes, «Contribuição para a história do povoamento em São Paulo até fins do século XVIII» (1935); Deffontaines, «Como se constituiu no Brasil a rede de cidades» (1938); Monbeig, «O estudo geográfico das cidades » (1940); Monbeig, Pioneiros e fazendeiros de São Paulo (1952); Azevedo, «Embriões de cidades brasileiras» (1956).

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rio dão prova da importância dos patrimônios. O que temos a fazer é aprofundar este esforço, e isso num sentido qualitativo. Para tanto, é preciso enfocar a questão sob uma perspectiva ligeiramente distinta. Barbosa limitou-se a citar o nome dos doadores, a data de constituição do patrimônio da primeira capela, e, quando muito, a extensão do mesmo. Ele deixa de lado um tipo de documento que vimos ser fundamental: os pedidos de provisão à autoridade eclesiástica ou civil. Tais documentos geralmente dão-nos um retrato da «pré-história» do povoado, e permitem às vezes visualizar se, além das motivações especificamente religiosas, havia razões de ordem prática para se dar início a um arraial. Além disso, Barbosa peca ao nosso ver por desprezar a tradição oral. A Enciclopédia dos Municípios Brasileiros felizmente não se prendeu a este rigorismo objetivista. Seus verbetes muitas vezes reproduzem sagas e mitos de origem que, evidentemente, são para nós de grande interesse. A dimensão dos patrimônios variava muito. Em São João Evangelista o patrimônio da capela media 2 alqueires (9,68 ha).332 Em Marliéria e Matipó, 3 alqueires (14,4 ha). Em Pains e Estiva, respectivamente 12 e 14 ha. Em Mosenhor Paulo, 60 alqueires (288 ha). Alguns eram enormes, como o doado à primitiva capela de Alpinópolis: meia légua quadrada, ou seja, 1.905 ha. O de Campo Florido tinha uma légua quadrada (3.810 ha).333 De forma geral, pode-se dizer que o tamanho dos patrimônios tendia a variar na razão inversa do grau de ocupação e povoamento de uma dada região. No Vale do Rio Doce e na Zona da Mata, seja devido à topografia, seja por causa das densas florestas e da presença de tribos indígenas hostis à presença do «civilizado», a ocupação do território não foi tão simples quanto no oeste mineiro. Na comarca de Paracatu, apesar dos inúmeros quilombos, o perfil geográfico favorecia uma ocupação mais «espalhada», e o tamanho médio das propriedades – portanto dos patrimônios – sempre foi maior. As doações eram feitas por indivíduos isolados, casais ou mesmo um conjunto de moradores. Em Miraí nada menos que 53 pessoas adquiriram em 1852 uma parte da fazenda de Salustiano José Fernandes a fim de constituir o patrimônio de uma capela a ser erigida em honra a Santo Antônio.334 Casos como os de Andradas e de Santo Antônio do Grama mostram ainda que doações iniciais de dimensões consideradas insuficientes podiam ser complementadas por doações posteriores, feitas por outros proprietários.335 A importância deste sistema de produção do espaço coletivo pode ser atestada pelo fato de que a criação das vilas funcionava segundo o mesmo princípio. Também elas deveriam ter seu patrimônio. Este patrimônio fundiário era dividido em duas partes. Uma, chamada logradouro público ou rossio, era reservada ao uso comum dos habitantes, especialmente à pastagem de animais e à extração de ma332 1 alqueire = 4,8 ha. 1 ha = 10.000 m². 333 EMB, vol. 27, p. 235; EMB, vol. 26, pp. 57, 70 e 239; EMB, vol. 25 p. 100;

AHCMG, p. 950; EMB, vol. 24 pp. 61-62 e 321. 334 EMB, vol. 26, p. 104. 335 DHGMG, p. 24; EMB, vol. 27, p. 176.

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deira. A outra parte, destinada às novas edificações, era aforada a fim de dotar a Câmara de recursos.336 O patrimônio da Câmara de Mariana media meia légua quadrada, o da de Vila Rica uma, e o da de São João del-Rei duas léguas quadradas.337 Para que se tenha uma idéia da importância para a municipalidade dos terrenos aforáveis, basta dizer que a cobrança de foros das casas perfazia, em 1777, a segunda maior fonte de renda das Câmaras de Vila Rica, Mariana, Sabará e Pitangui, e a terceira da Câmara de São João del-Rei.338 Um útil documento para que se possa visualizar as fases iniciais deste processo é o da constituição do patrimônio da Vila de Barbacena. Em 1792, ano seguinte à sua elevação a vila, escrevia o então governador da Capitania de Minas, Visconde de Barbacena: «(...) me foi apresentado que para o estabelecimento da mesma vila, necessitam que eu, em nome de Sua Majestade, lhe concedesse uma légua de terra em quadra, para seu patrimônio». O terreno da vila situava-se na fazenda da Caveira, que pertencera a nada mais nada menos que Joaquim Silvério dos Reis e José Alves de Freitas Bello. Segundo o governador, «a dita fazenda fora seqüestrada com os bens daqueles devedores fiscais». No ato da demarcação, continua ele, «devem ser ouvidos os interessados e confrontantes, examinados seus títulos, e acautelado todo o prejuízo injusto de terceiro». O patrimônio deverá ter «uma légua em quadra, fazendo pião na mesma vila onde mais conviniente for, (...) a qual sesmaria ficará servindo de patrimônio e rendimento da dita Câmara com os aforamentos que tiverem lugar na forma que serem concedidos [sic]; e costumado a respeito das vilas mais velhas, e para logradouros e usos comuns dos seus moradores, com declaração porém que serão os ditos oficiais da Câmara obrigados a demarcar judicialmente a referida sesmaria dentro em um ano que se contará da data desta [17 de março], sendo para esse efeito notificados os vizinhos interessados e ditos sesmeiros confrontantes (...) e não poderão [os oficiais] por virtude dela proibir a repartição dos descobrimentos de terras e minerais que no tal sítio hajam ou possam haver, nem os caminhos e serventias públicas que houver (...) nem farão aforamento algum das terras desta sesmaria a religiões, igrejas ou eclesiásticos, e acontecendo fazê-los será com encargo de

336 A confusão que reina na literatura a respeito é grande. Tanto Caio Prado Júnior

(Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1957, pp. 314-315) quanto Reis Filho (Evolução urbana do Brasil, pp. 112-113) e Marx (Cidade no Brasil, p. 68) enganaram-se ao dizer que rossio e patrimônio da câmara são, basicamente, a mesma coisa. Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol. XXVI, p. 265) lê-se que o rossio é um «terreno que era rocado ou usufruído em comum pelo povo; logradouro público ». A bipartição do patrimônio das Câmaras em terras comunais (o rossio) e terras aforáveis foi claramente demonstrada em Porto, O sistema sesmarial no Brasil, pp. 128-129 e Ramos, A social history of Ouro Preto, pp. 134-135. 337 CCM, p. 253; Ramos, A social history of Ouro Preto, pp. 134-135; AEAM, pasta 33, gaveta 2, arq. 1. 338 Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», pp. 262-278.

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pagarem delas dízimos como quaisquer seculares».339 A documentação sobre os patrimônios religiosos em que se formaram os arraiais setecentistas é rara. Pedidos de provisão aos bispos e «livros do tombo» (que contém os dados referentes à história do templo) se perderam. Daí os pífios resultados do esforço de Dom Viçoso em obter das freguesias do bispado de Mariana informações sobre os patrimônios das capelas e matrizes. O levantamento fora feito a pedido da Presidência da Província, porque, como se sabe, sob o regime de padroado, o Estado deveria concorrer financeiramente com a manutenção dos templos. Era preciso saber se as capelas e igrejas dispunham de alguma renda própria. Em 13 de junho de 1851, praticamente um ano após o pedido da autoridade civil, Dom Viçoso entrega os resultados do levantamento em questão: das 65 matrizes listadas, somente umas poucas declaram ter patrimônio em terras. Evidentemente todas tiveram algum tipo de patrimônio, já que do contrário elas sequer poderiam ter sido oficialmente reconhecidas. Porém a esmagadora maioria não tinha mais como comprová-lo. A precariedade do aparato eclesiástico e o estilo de vida nômade tanto dos fiéis quanto dos sacerdotes seguramente contribuiu para que pouca atenção fosse dada à importância de se preservar estes documentos a partir das fases iniciais do século XVIII. À época em que foi feito o referido levantamento, os dois terrenos do patrimônio da matriz de Santa Rita do Turvo (atual Viçosa) se encontravam ocupados por casas. Seus moradores pagavam ao fabriqueiro respectivamente 80 e 40 réis anuais por braça [1 braça = 4,84 m²]. Na freguesia da Prata «tem a matriz terreno de 4 alqueires de planta, em que está edificado o arraial». Em São Sebastião dos Correntes (atual Sabinópolis) a matriz detinha 2,5 alqueires. De Nepomuneco diz o relatório que «a matriz tem por patrimônio o terreno em que está a vila, que terá um quarto (cuido que quarto quer dizer = quarta parte de uma sesmaria), doado por José Furtado de Mendonça». Em Conceição do Rio Verde o patrimônio da matriz media 500 braças.340 Estes casos demonstram que em meados do século XIX ainda havia localidades antigas nas quais a instituição dos patrimônios religiosos, bem ou mal, se mantinha. As informações prestadas pelos vigários demonstram que algumas comunidades tinham plena consciência de que o arraial ou vila cresceu sobre terras pertencentes à igreja. Esta consciência pode ser medida ainda por meio da correspondência da Câmara de Passos ao Ministério dos Negócios do Império em 1857. Aquela informa que «não possui terreno algum de seu patrimônio, e que o mesmo em que se acha a Câmara e Cadeia edificada pertence, por doações de populares, ao patrimônio do Senhor Bom Jesus dos Passos, cuja possessão lhe foi conferida segundo a regra estabelecida de conceder-se posses para edificação de pré-

339 AEAM, pasta 33, gaveta 2, arq. 1. 340 APM, SP, PP1/9, cx. 13, pasta 5. Grifos nossos.

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dios particulares no território do patrimônio do Senhor dos Passos».341 Vê-se que nem sempre a criação de uma vila implicava na existência de um patrimônio da Câmara. Mesmo 26 anos após sua elevação a vila, Diamantina não dispunha ainda do seu. Numa carta datada de 28 de outubro de 1857, a Câmara explica que «nenhumas terras formam o seu patrimônio neste município, pois que o decreto de 13 de outubro de 1831 que elevou esta povoação à categoria de vila não as concedeu (...). A área de que carece esta municipalidade deve ser de uma légua quadrada de três mil braças a exemplo do que antigamente se praticava, a fim de que a Câmara tenha cômodo para permitir as edificações, abertura de novas ruas, praças e logradouros».342 Se a municipalidade não dispunha de terras próprias, em que chãos tinha ela se formado? A resposta é óbvia: no patrimônio da primeira capela – posteriormente elevada, na maioria dos casos, a matriz –, e isso mesmo quando não se dispunha de documentos capazes de comprovar que o rossio se estabelecera sobre as «terras do santo».

3.3.2 Capela e praça A capela é o centro do arraial. Ela é o edifício mais imponente, orgulho dos moradores do lugar. Muito freqüentemente, é no terreno que lhe foi doado como patrimônio que erguem-se as primeiras casas, onde surge uma praça, onde pouco a pouco delineia-se o traçado das primeiras ruas. Esta configuração espacial básica corresponde, por sua vez, a uma representação que acompanha a história das religiões desde há muito: o templo constitui o eixo simbólico de uma povoação. Aí se administram os «bens de salvação» sem os quais o cristão não pode viver nem morrer em paz. Ele é a «casa de Deus»343, o espaço sagrado onde imanência e transcendência se comunicam regularmente. Seu entorno, a praça, é o espaço de socialização no qual os habitantes do arraial e os que vêm das redondezas travam contato, fazem as festas do padroeiro e desfilam processionalmente. Referindo-se a Minas Gerais, Saint-Hilaire afirmou que «na maioria dos povoados, as igrejas se erguem isoladas e em praças públicas».344 O papel destas capelas enquanto locus privilegiado do catolicismo popular foi pioneiramente ressaltado por Beozzo. Dizia ele: «muitos estudiosos do catolicismo brasileiro deram a entender que o fundamental da religião do povo é uma religião privatizada, entre o devoto e o seu santo, vivida no recôndito de sua casa (...). Parece-nos um erro porém, pois mesmo a nível mais local a religião não se 341 APM, SC-657. Grifo nosso. 342 APM, SC-657. 343 Trecho de um dos cânticos entoados no ato de consagração de uma igreja: terribilis

est locus iste/ hic domus Dei est et porta coeli/ et vocabitur aula Dei. Citado por Jungmann, Symbolik der Katholischen Kirche, pp. 61-62. 344 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., II, p. 83.

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reduz simplesmente ao culto doméstico. (...) Para entender esta religião, não podemos buscar o seu cerne na matriz das vilas e cidades, com seu vigário e conventos. Ela se enraíza longe da matriz, em torno de capelas, pequenas igrejas e cruzeiros, mui raramente servidas por um padre.»345 Se as festas podem ser consideradas os nódulos temporais em que a fé do povo periodicamente se «condensa», não resta dúvida que as capelas, muito mais freqüentemente que os santuários, «foram o repositório apropriado para a religiosidade popular»346 dos antigos mineiros. Das primeiras rústicas capelas, feitas para durar tão pouco quanto as choças dos bandeirantes, passou-se, num segundo momento, a erigir construções mais estáveis. Sinal evidente de que os arraiais criavam raízes. Usavam-se então a madeira, o adobe, por vezes a pedra. Por si só, uma capela feita para durar não significava que o instinto de segregação e as necessidades religiosas inevitavelmente subjulgavam o habitus nômade, mas ela era sempre um primeiro passo. Havia normas rígidas quanto à orientação do templo. Ele devia ser construído de forma tal que «o sacerdote no altar fique com o rosto no oriente, e não podendo ser, fique para o meio dia, mas nunca para o norte, nem para o ocidente».347 A fachada da capela deveria, portanto, ser voltada para o leste ou sul. Como se pode notar, os pontos cardeais não eram percebidos como meras referências destituídas de valor. Para entendermos a razão disto, temos de insistir novamente no seguinte aspecto: uma coisa é o espaço matemático representado (e, em larga medida, construído) por uma visão racionalista do mundo; outra, bem diferente, é o espaço vivido no cotidiano. Desde a Antigüidade o oriente é tido como a direção sagrada por excelência. Do leste vem a luz, fonte de toda vida. Verifica-se aqui uma lógica binária simples determinada pela associação primária entre luz e sagrado. Se nos orientamos para o nascer do sol, o sul fica à nossa direita. É bem sabido como a valorização da direita em detrimento da esquerda é um fenômeno presente num grande número de culturas.348 Definem-se assim os dois pólos positivos (leste e sul); e, por oposição, os negativos (oeste e norte). Já presentes entre egípcios, gregos e romanos,349 estas representações foram incorporadas pelo cristianismo antigo –– com a associação do sul ao Espírito Santo, e do norte à renúncia de Deus, da luz e da fé. A criança a ser batizada é voltada para o ocidente, para renunciar ao diabo e suas obras (renuntiatio satanae), e en345 Beozzo, «Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada», p. 754. 346 Torres-Lodoño, Fernando. «Paróquia e comunidade na representação do sagrado na

Colônia». In: Torres-Lodoño, F. (org.) Paróquia e comunidade no Brasil. Perspectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997, p. 54. 347 CAB, livro IV, título XVII, 688. 348 O estudo clássico a respeito continua sendo o de Hertz, «Prééminence de la main droite». 349 Müller, Werner. Die heilige Stadt. Roma quadrata, himmlisches Jerusalem und die Mythe vom Weltnabel. Stuttgart: Kohlhammer, 1961, pp. 36-45; Deffontaines, Géographie et religions, p. 82; Tuan, Espaço e lugar, pp. 106-108.

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tão voltada para o leste, a região do paraíso, a fim de abraçar a crença em Cristo.350 As melhores descrições dos arraiais mineiros foram feitas pelos viajantes na primeira metade do século XIX. O padrão básico de organização espacial destas formas elementares de espaço urbano fica evidente quando se passam em revista alguns exemplos. No Arraial de Formigas (atual Montes Claros), Saint-Hilaire observa que «a maioria das casas é construída ao redor de uma praça irregular que forma um quadrilátero alongado, e, por sua extensão, seria digna das maiores cidades. (...) A igreja está situada no fundo da praça (...). Além da praça de que acabo de falar, há ainda em Formigas algumas ruas paralelas a dois dos lados da própria praça. As casas são quase todas pequenas, baixas e cobertas de telhas. Três ou quatro têm sobrado; algumas são construídas de adobes, as outras de barro e varas cruzadas. (...) Vêem-se na povoação uma hospedaria, várias vendas, e enfim, algumas lojas em que se vendem fazendas e quinquilharias».351 Tapera, por sua vez, resumia-se a cerca de 70 moradas destribuídas ao longo de «uma só rua, à extremidade da qual fica a igreja».352 O pequeno arraial de Santo Antônio compreendia «apenas um pequeno número de casas em mau estado (...). A vista da parte da aldeia onde se encontra a igreja é muito agradável. Esse edifício foi construído à beira de um rio, em uma pequena praça coberta de grama e cercada de morros. As casas são esparsas, cá e lá, ao redor da praça».353 Cataguases, que no tempo em que por ali passou Burmeister ainda se chamava Santa Rita de Meia Pataca, formava «um retângulo em cujo meio se encontra uma igreja (...). As casas eram todas de aspecto agradável e emolduradas por faixas brancas de cal. Havia, pelo menos, umas 30, inclusive uma farmácia na grande praça onde estava a igreja».354 O mesmo viajante descreve ainda sua rápida passagem por Ouro Branco: «Logo ao sair da estrada de acesso, entramos numa grande praça aberta, onde encontramos a igreja e alguns dos melhores sobrados. Atravessando esta praça, entramos, do outro lado, na continuação da estrada, marginada por mais casas e que leva para fora da localidade. Na praça, há, ainda, num belo grupo de macaúbas, um crucifixo.»355 Por vezes a configuração do sítio inviabilizava o desenvolvimento da praça ao redor da igreja, como em Oliveira: «O Arraial de Nossa Senhora da Oliveira consta de umas 200 choupanas de barro, que formam uma rua única, larga, inteiramente escavada pelas chuvas, e fica sobre uma colina, cujo topo é ornado por uma igreja não concluída.»356 As cerca de 80 casas que formavam Bonfim (hoje Bocaiúva) formavam «uma grande praça e uma larga 350 Jungmann, Symbolik der Katholischen Kirche, pp. 57-58; Cassirer, Philosophie der 351 352 353 354 355 356

symbolischen Formen, 2. Band, p. 126. Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 290-291. Saint-Hilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes..., p. 74. Idem, ibidem, p. 141. Burmeister, Viagem ao Brasil, p. 169. Idem, ibidem, p. 271. Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. I, p. 219.

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rua e ficam situadas na encosta de uma grande colina. No meio da praça acha-se a igreja bastante grande, com duas torres baixas».357 Em Barreiras (Carbonita) havia algo em torno de quarenta fogos, que «formam uma rua que se estende rio acima, na direção de oeste para leste e se abre, no alto, numa praça bastante grande, em cujo centro se acha a igreja ainda não inteiramente construída do Santíssimo Coração de Jesus».358 Em Camargos havia aproximadamente 60 moradas «mal construídas e muito mal conservadas, distribuídas numa rua torta, em solo muito desigual. O melhor edifício do lugar é a igreja, construída de pedra e que fica numa elevação a que conduz uma larga escada, na qual se acha um grande cruzeiro de pedra sabão.»359 Após uma apreciação ligeira dos relatos dos viajantes seríamos tentados a crer que todo arraial tinha a sua capela ou igreja; porém o estudo da relação entre patrimônio religioso e proto-urbanização demonstra que, para um número não desprezível de casos, o contrário parece estar mais próximo da verdade. É a capela que «tem» um arraial. Dom Frei José da Santíssima Trindade foi aliás explícito a esse respeito, como demonstram os casos de diversos templos do arcebispado de Mariana por ele citados em seu livro de visitas pastorais: a capela de Santo Amaro do Brumado, filial da freguesia de Santa Bárbara («no arraial da capela...»); a capela de Nossa Senhora do Rosário da Itabira, na mesma freguesia («tem arraial público e populoso»); a freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Congonhas de Sabará («no arraial da matriz...»); em Conceição do Airuoca («a igreja matriz... tem pequeno arraial»); a capela do Carmo em Pouso Alto («está a capela em bom lugar com seu arraial vistoso»); a capela dos Santíssimos Corações do Rio Verde, filial da matriz de Campanha («esta capela é de madeira e está colocada em bom local, com seu arraial que se vai povoando»); a freguesia de Nossa Senhora das Dores («a igreja é de madeira e pequena... Tem bom adro e bom arraial»).360 A gênese de Ubá foi praticamente antecipada por Dom Frei José, que escreveu ainda: «A capela do Ubá está por acabar e tem uma boa imagem de São Januário, bispo e mártir; o seu local é muito melhor que o da igreja matriz e com proporções para se fazer um bonito arraial». O mesmo vale para a capela de Santa Rita, filial do Pomba. Trata-se do embrião da atual cidade de Viçosa: «[a capela] está em um bom local erigida e pode ter um bonito arraial, fazendo-lhe os moradores e fregueses suas casas, o que ficou providenciado».361 Um dos aspectos mais interessantes do padrão de organização espacial dos nossos antigos povoados diz respeito aos seus limites. Se a capela é o centro simbólico do arraial, e o patrimônio no qual ela está construída pode ser definido como um espaço sagrado sobre o qual se desenvolve o embrião de cidade, como 357 358 359 360 361

Idem, ibidem, vol. II, p. 286. Idem, ibidem, vol. II, pp. 292-293. Idem, ibidem, vol. II, p. 386. Trindade, Visitas pastorais (1821-1825), pp. 107-108, 119, 203, 211, 222 e 272. Idem, ibidem, pp. 170 e 174. Grifos nossos.

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o homem mineiro dos séculos XVIII e XIX concebe a fronteira além da qual o espaço deixa de manifestar este caráter numinoso? Não houve em Minas arraiais cercados por muros ou paliçadas. Paliçadas ou muros, que no plano estritamente funcional visam garantir a segurança dos moradores, adquirem no plano simbólico-religioso uma dimensão fundamental: eles impedem que substâncias ou pessoas de qualidade distintas se misturem. A dimensão sagrada da muralha fica evidente quando se sabe que inúmeras vezes ela só é considerada concluída após a realização de um rito de construção.362 Diz o mito da criação de Roma que Rômulo, após fundar o mundus e erigir o altar, traçou o sulco que definia os limites da cidade. Sobre o mesmo se construíram as muralhas sagradas (ninguém podia tocá-las sem a permissão dos sacerdotes). Na China o caminho é oposto. A construção da cidade começa pelas muralhas sagradas; só depois é erigido o templo dos antepassados. Ambas, a cidade chinesa e a romana, são pensadas simultaneamente a partir do centro irradiador e de um nítido limite em relação ao espaço exterior. Ora, no patrimônio religioso encontramos apenas o ponto de rotação central – a capela. Daí que mais de uma vez se tenha observado que o povoado brasileiro não estabelece uma demarcação nítida em relação ao mundo «lá fora», ou de que ele seria uma mera «extensão do campo». Caio Prado Júnior afirmou em Formação do Brasil contemporâneo que nossos antigos centros urbanos eram um mero «apêndice rural, um puro reflexo do campo».363 Um amplo levantamento geográfico do Vale do Jequitinhonha chegou à conclusão de que «sente-se mais a presença da atividade agrária, na paisagem das cidades, que os reflexos de funções urbanas no meio rural. (...) Por tudo isso, as cidades são um prolongamento do campo».364 Leloup constata o mesmo: «fora de uma pequena zona central, o aspecto da cidade é muito pouco ‹urbano›».365 Evidente que o arraial – este espaço não-racionalizado de convívio gerado pelas necessidades econômicas, religiosas e lúdicas de um grupo de vizinhança – não se diferenciava de forma radical do «campo», e a ausência de um muro sem dúvida contribuiu para isso. Tal como nos bairros rurais paulistas, o espaço do arraial «tende a parecer ‹difuso›, sem contornos precisos».366 Pode-se dizer que a percepção de uma rígida dicotomia cidade-campo é muito mais expressão de uma visão racionalista do espaço que um fenômeno que possa ser observado no universo mental da maioria dos mineiros do setecentos e oitocentos.367 O que gosta362 Sartori, «Ueber das Bauopfer »; Eliade, Die Religionen und das Heilige, p. 420;

Eliade, The sacred and the profane, p. 49. 363 Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo, p. 290. 364 Guimarães, Alisson (coord.) Estudo geográfico do Vale do Jequitinhonha. Belo

Horizonte: Grupo de Trabalho para a Pecuária, 1960, p. 86. 365 Leloup, Les villes du Minas Gerais, p. 35. 366 Pereira de Queiróz, M. I. «O sitiante tradicional e a percepção do espaço». In: RIEB (15) 1974: 79-96, p. 90. 367 Para uma crítica do esquematismo cidade-campo, ver Baroja, Júlio Caro. «La ciu-

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ríamos de ressaltar é que entre o espaço sagrado do complexo capela-patrimônioarraial e o espaço «profano» que o circunda não parece haver ruptura, mas sim uma certa continuidade: uma semantização que obedece a um critério de progressividade, não de cortes. Este continuum muito provavelmente expressa no plano espacial aquela inexistência de fronteiras claras entre sagrado e «profano» que vimos ser típica do catolicismo popular. Tal critério de progressividade se observa no próprio espaço sagrado. Este poderia ser graficamente representado por três círculos concêntricos no interior dos quais se situa a capela. Ao seu redor, o adro, e, no entorno do mesmo, o patrimônio. Obviamente não há como «medir» estes distintos níveis de sacralidade, mas não é difícil demonstrar que estas diferenças existem.368 Uma evidência de que o templo constitui o foco a partir do qual o numinoso gradativamente diminui de «intensidade» é a existência do direito de asilo. Segundo as Constituições do Arcebispado da Bahia, «para os delinqüentes gozarem da imunidade da igreja, basta que se peguem aos ferrolhos das portas das igrejas, capelas, ou ermidas, ou se encostem a elas, ou às paredes, ou se recolham debaixo dos alpendres contíguos com as ditas igrejas, capelas ou ermidas».369 O simples contato com a parte física de uma capela ou igreja põe instantaneamente a salvo qualquer espécie de malfeitor. Os adros não são dotados da mesma força, mas também são espaços sagrados. As mesmas Constituições determinam que neles «não se façam feiras, ponham tendas, nem se compre, e venda, ou apregoe coisa alguma».370 O comércio e outras atividades profanas não podem realizar-se sobre um chão sagrado. Pode ainda acontecer de esta interdição ser extendida a todo o patrimônio (embora a legislação eclesiástica nada diga a respeito), conforme demonstra o importante exemplo de Itaipava nas primeiras décadas do século XX: «Anos atrás demoliu-se uma das igrejas da cidade. No mesmo local a Câ-

mara construiu o Mercado Municipal que antes funcionava no Largo da Matriz. Foi o golpe de morte nessa feira bastante concorrida. O mercado foi construído em ‹terras da santa› [Nossa Senhora dos Remédios], local sagrado que não podia ser profanado por um edifício destinado a objetivos alheios ao culto. Temendo desagradar a Santa, os homens da roça deixaram de concorrer ao novo mercado que até hoje continua ‹morto›, embora uma geração já houvesse passado desde que ocorreu a substituição. Quando, há mais de 25 dad y el campo, o una discusión sobre viejos lugares comunes». In: RDTP (15) 1959: 381-400, p. 387; e Tuan, Topofilia, p. 125. 368 Ver Leach, Edmund. Cultura e comunicação. A lógica pela qual os símbolos estão ligados. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, pp. 104-105. 369 CAB, livro IV, título XXXII, 751. É interessante notar que a desclericalização em algumas sociedades contemporâneas chegou a um ponto tal que mesmo uma instituição milenar como esta seja considerada hoje anacrônica e mesmo ilegal. Para um jornalista do Frankfurter Allgemeine Zeitung, «‹O direito de asilo› é uma infração da lei, e todos os envolvidos o sabem». Pergande, Frank. «Ein zu großer Name». In: FAZ, 12.09.2001. 370 CAB, livro IV, título XXIX, 738.

156 anos, se construíra o Grupo Escolar em terra de São Benedito, alguns moradores recusaram-se, a princípio, a mandar os filhos à escola, pois assim, na opinião deles, teriam participado de uma profanação. Nenhum mal, porém, se vê em construir casa de moradia num local pertencente à igreja.»371

O mercado, que Weber acreditava ser um dos elementos estruturais do espaço urbano, não teve entre nós a mesma importância que na Europa. A socialização e a produção do espaço estavam, possivelmente para a maioria dos casos, mais ligadas à função religiosa que à econômica. Não é por outra razão que os viajantes falam-nos sempre de «vendas», mas nunca de «mercados» em nossos arraiais. Por outro lado, morar e mesmo entregar-se a atividades comerciais em casas não contradiz a natureza sagrada do patrimônio do templo: há uma identidade profunda entre casa, capela e patrimônio.

3.3.3 Cemitério Nas formas elementares do espaço urbano mineiro o espaço do cemitério freqüentemente se confundia com o da capela. A casa de Deus era, simultaneamente, casa dos mortos. Quem entra nas antigas igrejas vê ainda nos assoalhos os números das covas de membros das irmandades e beneméritos que contribuíram para sua construção. Tal prática era considerada um «costume pio, antigo e louvável».372 Sucessivas tentativas de se coibí-la esbarraram na resignada resistência popular,373 e isso a tal ponto que somente na segunda metade do século XIX o sepultamento nos templos viria a ser formalmente proibido pelas autoridades imperiais. Tal superposição demonstra que «os vivos e os mortos estão unidos em Cristo e não podem ser separados pela morte».374 A existência do cemitério era tão vital quanto a da capela. A rigor, uma das funções principais do adro é exatamente a de servir como campo santo. As normas vigentes determinavam que «haverá no âmbito, e circunferência delas [das capelas] adros, e cemitérios capazes para nelas se enterrarem os defuntos; os quais adros serão demarcados por nosso provisor, ou vigário-geral».375 No ano de 1750, o ponto de rotação da povoação de Piranga tinha o seguinte aspecto: «Está esta igreja [matriz de Nossa Senhora da Conceição] em um nobre terreiro, com o cemitério à roda, no meio do arraial».376 Em outros núcleos formados no período colonial, como Lavras Novas e Cocais, estes adros-cemitérios ainda podem ser vistos. Em fins do século XVIII, alguns moradores de Campanha pedem autorização para levantarem uma capela de Nossa Senhora das Dores «onde seja pro371 372 373 374 375 376

Willems, Uma vila brasileira, p. 137. Grifo nosso. CAB, livro IV, título LIII, 843. Trindade, Cônego. Archidiocese de Mariana, vol. I, pp. 344-345. Benz, Beschreibung des Christentums, pp. 91-92. CAB, livro IV, título XVII, 688. CCM, p. 258.

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movido o seu culto (...) e onde possam enterrar os seus irmãos».377 Conhecedor do sertão leste mineiro, Bernardo Guimarães também fez menção a estes espaços: «a capelinha (...) tinha também junto a si o seu terreno sagrado, cercado de muro de pedra, e com uma cruz no meio, e era ali, que os fazendeiros daqueles contornos mandavam enterrar os seus defuntos».378 Num pedido de provisão feito em 1900, Maria Carlota, moradora da freguesia de São Gonçalo da Contagem, dá conta que «tendo edificado uma capela dedicada a Nossa Senhora dos Remédios (...) e estando defendida por um muro bem construído ao redor e entregue ao culto público, deseja aproveitar o espaço murado para um cemitério onde aspira ser sepultada quando morrer».379 A autoridade eclesiástica dava ordens expressas para que adros e capelas fossem cercados. Lê-se num regimento de 1757 feito por Dom Frei Manoel da Cruz: «Encomendamos muito aos ditos vigários da vara trabalhem todo o possível para que os adros das igrejas estejam demarcados, e valados com cercas, e os cemitérios com cruzes levantadas, não só para a reverência, mas também para evitar dúvidas sobre a imunidade [do terreno]».380 Dom Frei José, ao passar em 1824 pela vila de Barbacena, fez a seguinte advertência: «recomendamos muito o cerco do cemitério para que não se profane o lugar destinado para recolher os restos dos fiéis, que em vida foram templos do Espírito Santo e por muitas vezes receberam o sagrado corpo e sangue de Jesus Cristo nosso Redentor». Na capela de Nossa Senhora das Mercês, filial de São Manuel do Pomba, o mesmo prelado ordena que se faça o cemitério «ao redor da igreja ou, ao menos, interinamente, por detrás dela se faça um [cercado] de madeira de lei, com porta fechada e cruz». Ao fabriqueiro da matriz de Conceição de Guarapiranga, manda ele «que, sem demora, se proporcione terreno pela parte posterior da igreja para cemitério cercado de muro de pedra, de altura suficiente, ou ao menos de medeira de lei, com porta e cruz». Na capela do Espírito Santo, filial da freguesia de Nossa Senhora das Dores (atual Boa Esperança), o bispo de Mariana observa «a falta de cerco indispensável do adro para não se profanar, como de fato está este lugar destinado para se sepultarem os cadáveres dos fiéis, que pelos princípios bem sabidos deve ser sagrado».381 Neste sentido, um caso que se poderia classificar de extremo é o dos cemitérios clandestinos. Em relatório datado de 26 de outubro de 1838, o vigário de Santa Rita do Turvo queixa-se de que «há dois cemitérios nesta freguesia; e um na de Arrepiados [hoje Araponga] na extrema desta. Estes cemitérios estão no mato sem formalidade alguma de lugar sagrado, e neles sepulta-se os corpos sem no participarem para evadirem-se os seus donos de satisfazer os emolumentos 377 APM (AHU), cx. 149, doc. 64. O despacho do Conselho Ultramarino é datado em

3 de setembro de 1799. 378 Guimarães, Bernardo, «A filha do fazendeiro». In: Guimarães, B., História e tra-

dições da província de Minas Gerais, p. 16. 379 AEABH, cx. 037. 380 AEDC, Livro do tombo de Aiuruoca (1730-1822). 381 Trindade, Visitas pastorais (1821-1825), pp. 198, 180, 183 e 272.

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eclesiásticos».382 As visitas pastorais de Dom Frei José estão repletas de exemplos que atestam como a população estava longe de ter as mesmas preocupações que a hierarquia no que diz respeito à clara delimitação dos terrenos de adros e cemitérios.383 Que as pessoas não estivessem preocupadas em estabelecer fronteiras claras entre o eixo simbólico do arraial e os chãos à sua volta, só pode significar que no catolicismo praticado pela maioria o sagrado não é percebido como uma realidade cujos «limites» possam ser claramente (no caso: espacialmente) definidos. O patrimônio no qual situa-se capela e seu adro também é um espaço sagrado, de forma que levantar muros ou cercas separando o «mais sagrado» do «menos sagrado» dificilmente faz sentido no universo religioso popular. O que não quer dizer que os antigos mineiros não tivessem consciência das gradações existentes, ou que eles fossem indiferentes em relação à questão do seu local de sepultamento. Em absoluto. Apesar de possuírem uma capelinha, os moradores da parte oriental da Serra da Canastra não obtiveram do vigário de Piũí permissão para enterrar ali seus mortos. Saint-Hilaire relata: «Como os brasileiros fazem muita questão de ser enterrados em igrejas, (...) transportavam-se os corpos nas costas de homens, da serra até a vila, e, para me servir da expressão do lavrador em cuja casa dormira a duas léguas da cachoeira, os carregadores chegavam quase no mesmo estado daqueles que levavam a enterrar».384 Como diz aquele personagem de Rosa, um moribundo vitimado pela malária: «quando for a minha hora (...) quero ir mas é pr’a o cemitério do povoado... Está desdeixado, mas ainda é chão de Deus».385 O geógrafo Wilbur Zelinsky define o cemitério como uma espécie de «vestíbulo» da terra dos mortos, um ponto de interligação entre esta vida e o além.386 Ele divide com santuários e templos este status privilegiado de espaços onde imanência e transcendência se tocam. No Québec, onde o padrão de proto-urbanização foi em vários aspectos similar ao nosso, os povoados só eram tidos como consolidados depois que o número de sepulturas do cemitério local superasse o de habitantes.387 Em determinadas circunstâncias foi exatamente a «cidade dos mortos» e não a «casa de Deus» o fator deflagrador da gênese urbana. Em Estrela do Indaiá e em Guarani o cemitério antecedeu a ereção da primeira capela; do 382 AEAM, armário 24, cx. 3. 383 Trindade, Visitas pastorais, pp. 87, 106, 118, 119, 144, 177, 186, 211, 213, 221,

225, 233, 263, 297. 384 Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 179. 385 Rosa, «Sarapalha ». In: Sagarana, p. 123, grifo nosso. Basta dizer, a este respeito,

que a mais notória forma de punição post mortem aos suicidas consistia em impedir o seu sepultamento em cemitérios. É o caso de Roberto e Paulina, protagonistas da novela «A filha do fazendeiro », de Bernardo Guimarães (História e tradições..., pp. 133-134). 386 Zelinsky, Wilbur. «Unearthly delights: cemetery names and the map of the changing American afterworld». In: Lowenthal and Bowden (eds.), Geographies of the mind, p. 173. 387 Deffontaines, «Wert und Grenzen der religiöse Erklärung...», p. 206.

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que, aliás, os antigos topônimos dão prova («Cemitério da Estrela» e «Divino Espírito Santo do Cemitério»). De Guiricema sabe-se algo mais. Em 1825 faleceu a esposa do português José Lucas Pereira, que havia se estabelecido naquela região da Zona da Mata. Após enterrá-la, Pereira decidiu construir uma capela para trasladar os restos para o interior do recinto sagrado. Assim se fez, e, uma vez doado o patrimônio, cresceu o arraial. Em São Sebastião do Rio Preto, quando a capela foi erigida, já havia diversas casas nas imediações de um cemitério que ali fora construído em 1814. A antiga denominação de Virginópolis, «Nossa Senhora do Patrocínio», adveio do cemitério feito por Félix Gomes de Brito em meados do século XIX. No sítio hoje ocupado pela cidade de Água Boa, em meados do século XIX, teria ocorrido um assassinato. Como o cemitério mais próximo distava dali duas léguas, resolveram os moradores enterrar o cadáver ao pé de uma árvore. A proprietária do terreno, Ana Felícia da Silva, decidiu mais tarde fazer um cemitério no mesmo lugar, o qual foi bento por frei Bernardino do Lago Negro. Pouco depois fazia-se a capela, e, ao seu redor, levantaram-se as primeiras casas. Surgindo a idéia de fundar um arraial, Ana Felícia e seu marido, José Joaquim Carneiro, doaram dois alqueires para patrimônio da capela. A partir de então, formou-se Água Boa.388

3.3.4 As «vilas de domingo» existiram? Tudo leva a crer que foi Deffontaines o responsável pela difusão da expressão «vila de domingo». No seu estudo de 1938, escreve ele: «Às vezes a cidade não tem vida senão nos dias de missa, nos domingos, durante as festas e sobretudo durante a novena do santo padroeiro da aglomeração; durante a semana, a cidade fica vazia, quase todas as casas estão fechadas, os habitantes retornam para as suas fazendas; denominam-se tais aglomerações vilas de domingo. Em São Tomé das Letras, no sul de Minas, o burgo fica completamente fechado durante a semana».389 Em Géographie et religions, onde se encontra trecho quase idêntico ao que se acaba de reproduzir, ele afirma que estas «pequenas aglomerações em torno das igrejas ou capelas (...) levavam o expressivo nome de vilas do domingo».390 A expressão volta a aparecer em 1956, em sua comunicação no Congresso Internacional de Geografia.391 Povoações cuja única razão de ser é o culto religioso. Tal fenômeno verificouse na Minas antiga? E, se é esse o caso, correspondeu ele de fato ao termo empregado por Deffontaines? É o que temos em mente verificar. 388 EMB, vol. 25, pp. 106, 201, 182; DHGMG, pp. 144-145, 147, 330, 370; AHCMG,

pp. 656-657.

a

389 Deffontaines, «Como se constituiu no Brasil a rede de cidades», 2 parte, p. 299. 390 Deffontaines, Géographie et religions, p. 124. 391 Deffontaines, Pierre. «Le stade initial de la géographie urbaine est un stade reli-

gieux». In: XVIIIe Congrès International de Géographie. Rio de Janeiro, 1965 (tome III), pp. 163-166, p. 165.

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Santana dos Ferros, de cuja origem já falamos, é um bom ponto de partida. Na primeira década do século XIX, a situação daquele núcleo é a seguinte: «Hoje em dia, à exceção de alguns faiscadores, ninguém mais trabalha [na mineração], e o declínio total do arraial seria inevitável se a fertilidade das áreas vizinhas não tivesse oferecido outro meio de subsistência. A maior parte dos moradores dedicase agora à agricultura e vive aqui e acolá em propriedades dispersas, mas mantém suas casas no arraial e utilizam-se delas nos dias de domingo e de festa, quando vão à igreja. Fora esses dias estes lugares encontram-se completamente vazios».392 Ferros era formado por cerca de 30 casas, mas o número de aplicados da capela era bem mais elevado do que as dimensões do arraial permitiriam supor: 2.000 pessoas. O exemplo comprova como, naquelas regiões onde as condições topográficas e a qualidade dos solos eram favoráveis, processou-se uma rápida passagem da mineração à agricultura. Isso significou uma inevitável dispersão da população por propriedades situadas, não raro, a léguas de distância do embrião urbano (razão da desproporção entre o número de moradores das redondezas e a quantidade de casas no arraial). O mundo da vida do homem oitocentista mineiro é sobretudo a fazenda. Foi ela «o verdadeiro núcleo de ocupação humana e de povoamento».393 A principal força capaz de contrabalançar – não necesseriamente reverter – esta tendência ao isolamento foi a religião. Saint-Hilaire escreveu que nas províncias centrais do Brasil, onde a povoação encontrava-se muito mais dispersa que no litoral, o grande afastamento seja em relação aos templos seja em relação a postos de abastecimento levava à construção de casas nas proximidades de uma igreja. Estas moradas serviam de local de socialização e de descanso após a viagem. Num segundo estágio, artífices e comerciantes se estabeleciam ali em busca de clientes. «E é assim que se formam, na maioria, as povoações do interior que não devem sua origem à presença do ouro», conclui.394 Mas o que são afinal as assim chamadas «vilas de domingo»: antigos povoados mineradores decaídos cuja vida só se mantém às custas da devoção popular ou, pelo contrário, embriões de cidade em formação?

392 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 54. 393 Diégues Júnior, Manuel. «A ‹fazenda› como ambiente de relações étnicas e de cul-

tura no Brasil». In: III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (Actas). Lisboa, 1957, pp. 101-113, p. 105. Para Spix e Martius (op. cit., vol. I, p. 194) «o costume de morar a maior parte do ano em fazendas distantes, fora dos lugares habitados, domina em todo o Brasil». Ver também Holanda, Raízes do Brasil, pp. 57-60. 394 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, p. 61. «Os lavradores passam a vida nas fazendas e só vão à vila nos dias em que a missa é obrigatória. Forçandoos a se reunirem e comunicarem uns com os outros, o cumprimento das obrigações religiosas os impede, talvez mais do que qualquer outra causa, de cair em um estado próximo da vida selvagem». Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 121-122.

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Por sorte o fenômeno destes núcleos que «pulsam» ao sabor dos cultos dominicais e das festas religiosas chamou a atenção dos viajantes europeus, de forma que seus relatos podem dar-nos boas pistas para analisar este caso particularmente interessante de relação entre o sagrado e o espaço. A quase totalidade das cidades citadas a seguir tiveram uma trajetória semelhante à de Santana dos Ferros. No Vale do Jequitinhonha encontramos o maior número de casos, cuja descrição devemos de forma especial a Saint-Hilaire, que por ali passou em 1817. Nossa Senhora da Penha (Penha de França) tinha então algo em torno de 50 casas, das quais 18 dispunham-se em torno de uma pequena praça no meio da qual elevava-se a capela. «As casas pertencem a agricultores, dos quais a maioria só vem à povoação aos domingos, e, em grande parte, ficam fechadas durante os dias úteis». São João Batista (Itamarandiba) compunha-se de cerca de 60 casas. Sua matriz «é grande, bem conservada, e eleva-se no meio de uma praça irregular e mais ou menos elíptica, que se extende por um plano inclinado. As casas que, na maior parte, rodeiam a praça, foram construídas recentemente (...). Vi em São João ainda menos gente que em Penha. Colonos que habitam os trechos de matas dos arredores são os proprietários de quase toda essa povoação, e ali não vão senão aos domingos, para ouvir missa». O mesmo verifica-se em Chapada, porém nesta localidade a igreja não ocupa o centro da praça. Os «moradores», aproximadamente 500 pessoas, «só vêm à povoação aos domingos». O mesmo se dá em Água Suja (Berilo), Piedade (Turmalina), e Bonfim (Bocaiúva). Em Araçuaí a organização do espaço obedece ao mesmo padrão básico. Suas casas «formam dois lados opostos de um quadrilátero alongado», enquanto que a capela «acha-se colocada a uma distância aproximadamente igual das duas ordens de casas, e diante dela existe um pequeno terraço rodeado por uma balaustrada de madeira. Quase todas as casas de Araçuaí pertencem a lavradores que ali só vêm aos domingos e dias de festa».395 No sul de Minas encontramos outros casos. Madre de Deus, continua SaintHilaire, resumia-se a 12 casas em torno de uma capela. «Todas, sem exceção, estavam fechadas, e o meu tropeiro, José Mariano, que conhecia perfeitamente a zona, disse-me que a maior parte não tinha habitantes a não ser quando algum padre vinha de São João [del-Rei] celebrar missa na pequena igreja.» Em Oliveira o fenômeno se repete: a maioria de suas casas «e mesmo das mais bonitas, só são habitadas no domingo».396 São Tomé das Letras foi assim descrita por um autor anônimo em fins do século XIX: «São Tomé é um arraial decadente (...), com 400 habitantes, aproximadamente sem indústria e sem vida própria. Um largo central de fórmula retangular contém o cemitério e a igreja. Este largo é a parte mais importante do arraial; outras ruas estreitas e pequenas correm paralelas aos lados 395 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 20, 32, 78, 211, 225, 287,

234-235. 396 Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 90-91, 137.

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deste retângulo. As casas de construção baixa pertencem na maior parte a fazendeiros da vizinhança, que só utilizam-se delas nos tempos de festas (...). Do lado direito da igrejinha, que é limpa e de aspecto agradável, está o cemitério, formado de uma área retangular cercada de um muro e cheia de terra.»397 Observemos apenas que a afirmação relativa à «decadência» de São Tomé dificilmente corresponde à realidade, pois nada de significativo na vida do povoado mudara décadas mais tarde, quando ali esteve Deffontaines. Na região dos Campos das Vertentes encontramos três casos. Em Tamanduá (Itapecerica), vinte e oito anos após sua elevação a vila, os habitantes «são cultivadores que só lá vão aos domingos e dias de festa, alguns mercadores, artífices, e homens pobres que, aproveitando-se da abundância de que se goza na região, vão comer ora na casa de um, ora na casa de outro, e passam a vida na ociosidade». Em Piũí, aproximadamente 60 casas dispunham-se «à maneira de um Y muito imperfeito». É numa das ruas, «extremamente larga», que se localiza a matriz. Os habitantes «passam a vida nas suas fazendas e sítios e só vêm à vila aos domingos; por isso encontrei a maioria das suas casas fechadas».398 Eschwege passa por Bambuí em 1816, e descreve-a como sendo «um pequeno lugar, paupérrimo, de 40 fogos, aproximadamente». As casas estão dispostas sem ordem, e estão «sempre desabitadas, pois apenas em dias de festa é que os donos as utilizam, já que moram durante o resto do ano nas fazendas».399 No Alto Paranaíba, sertão leste mineiro, encontramos novamente três localidades em que o fenômeno se repete. Patrocínio tinha em 1819 cerca de 40 casas, que, «dispostas em duas filas, formam uma praça alongada no meio da qual está construída uma pequena capela, edificada, como as próprias casas, de madeira e barro». Em Araxá, quinze anos após seu surgimento, via-se «uma praça alongada, muito larga e regular (...). A igreja está construída na extremidade mais elevada da praça, e, conforme o uso geral, colocada a igual distância das duas ordens de casas». As moradas situadas fora desta praça ficam dispersas «quase sem ordem». Como nas demais povoações citadas, «durante os dias de trabalho a maior parte das casas de Araxá ficam fechadas; seus proprietários não vêm aí senão aos domingos». Em 1816, São Pedro de Alcântara (Ibiá) «possui apenas 12 casas, as quais, exceto a do pároco, permanecem quase sempre desabitadas, com exceção dos dias de festa».400 Nossos dois últimos exemplos situam-se na Zona da Mata. Tendo-se formado na última década do século XVIII, o Arraial das Mercês foi visitado em 1824 por 397 RAPM (IV) 1899, p. 506. O patrimônio da capela era composto, segundo corres-

pondência do vigário datada de 20 de fevereiro de 1870, de apólices da dívida pública, «que dá-lhe a renda anual de 540 mil réis», e de 30 alqueires de terra. APM, SP 1381. 398 Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 141, 160-162. 399 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 92. 400 Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 240, 226; Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 103.

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Langsdorff. O cônsul russo atribuiu erradamente a origem de Mercês «ao acaso», e suas próprias palavras o demonstram: «Proprietários de terra abastados ajudaram um padre a construir uma capela. Tão logo ela ficou pronta, eles acharam por bem construir uma casa ou uma pousada nas proximidades da capela, a fim de poderem assistir à missa e às festas da Igreja com mais conforto. Pouco a pouco, vieram também vendeiros, sapateiros, alfaiates e donos de mercearias, de forma que hoje, após 20 anos, existe ali uma aldeia» composta de «uma única rua e uma linda praça aberta onde fica a capela».401 O Chapéu d’Uvas (Paula Lima), surgido na primeira metade do setecentos, tinha 13 casas em torno da matriz em 1817. Cinqüenta anos depois, Tschudi descreve-o como «um lugar melancólico» formado por cerca de 40 casas: «Numa praça bastante desleixada está a capela (...). Quase todo grande fazendeiro das redondezas construiu para si uma casa no arraial [Dorf], a fim de trocar-se, quando aos domingos ele e sua família vêm a cavalo para a missa».402 Do que foi visto até agora se deduz que há pelo menos quatro boas razões para contestar a validade da expressão «vila de domingo». Primeiramente há que notar que o termo é, em si mesmo, um equívoco. As casas do povoado são utilizadas nos dias de culto e de festas importantes, e não apenas nos domingos. Por outro lado, só uma pequena parte dos povoados dos quais falamos eram efetivamente «vilas»; a grande maioria é composta de arraiais. Uma terceira razão diz respeito à afirmação de Deffontaines de que durante a semana o núcleo fica «vazio» pois «quase todas as casas ficam fechadas». Este quase vale um mundo. Há um pequeno contingente de pessoas que ali vive permanentemente. Saint-Hilaire é claro: «a população permanente das povoações é, em geral, composta quase toda de homens de cor, tendeiros e artesãos». Em Penha este grupo citadino – se nos é permitido o uso da expressão – compõe-se de «homens de cor, pobres, ignorantes e ociosos». Os que ficam em Araxá durante a semana, continua ele, «são artífices (...), homens sem ocupação, alguns mercadores e mulheres públicas».403 Grupos de perfil sócio-econômico claramente definido e que de forma alguma podem ser considerados de importância secundária na dinâmica do embrião urbano. Por fim, seja dito também que a expressão «vila de domingo» não aparece em nenhum dos documentos que utilizamos. Pode ser que Deffontaines tenha ouvido-a em algum dos seus trabalhos de campo ou mesmo em São Tomé das Letras, à qual sempre se refere. Mas isso não resolve nosso problema. Talvez estaremos mais próximos de uma solução da questão se optarmos por falar em «movimento pendular semanal».404 O caráter cíclico do deslocamento entre a morada do dia-a-dia e a morada ritual fica assim melhor caracterizado, 401 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 64. 402 Costa, Toponímia de Minas Gerais, p. 328; Pohl, Viagem ao interior do Brasil, vol.

I, p. 192; Tschudi, Reisen durch Südamerika, 1. Band, pp. 264-265. 403 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, p. 270; vol. II, p. 21; Saint-Hilaire,

Viagem às nascentes..., vol. I, p. 226. 404 Estamos em débito, aqui, com o Prof. Dr. Oswaldo Bueno Amorin Filho.

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com a vantagem de não fazer menção a um dia específico da semana. A periodicidade da ida a (e da estadia temporária em) um espaço sagrado lembra em tudo a lógica das romarias. Dir-se-ia apenas que, ao contrário destas, o deslocamento da fazenda rumo ao templo não é percebido como dotado da mesma potência regeneradora, não implica numa passagem a um plano tão radicalmente extra-cotidiano – em suma: o movimento pendular semanal de tipo religioso pode ser considerado uma «mini-peregrinação». O que buscam os fazendeiros e suas famílias ao dirigirem-se para suas casas no arraial não é, afinal, algo tão diferente do que buscam os romeiros em seu santuário. Não apenas os «bens de salvação», mas também uma superação do cotidiano que implica, necessariamente, numa superação do espaço do cotidiano. Como se deste modo eles pudessem dizer para si mesmos o que diz aquele personagem de Guimarães Rosa: «Eu avistava as novas estradas, diversidade de terras. Se amanhecia num lugar, se ia à noite noutro, tudo o que podia ser ranço ou discórdia consigo restava para trás».405

3.4

Sertão

O sertão é a mais interessante categoria espacial do Brasil dos séculos XVIIIXIX. O sertão transpira ameaça e mistério; espaço polissêmico em que as noções de fronteira, esconderijo e deserto se confundem. É verdade que ele pode ser considerado, e ainda o é, uma categoria geográfica. O que não significa que seja possível reduzí-lo a um espaço fixo, claramente delimitado. Se existe uma forma de contemplá-lo numa perspectiva próxima da que dele tinham os mineiros antigos, esta certamente não será a do formalismo racionalista, mas sim algo que se aproxime daquela «geografia mítica» que propunha Cassirer. Foram poucos os historiadores que se detiveram sobre este tema, a despeito do «retorno do espaço» à agenda das ciências humanas nos anos recentes. A força da perspectiva formalista é exemplificada pelo estudo de história regional de MataMachado406 sobre o sertão noroeste de Minas Gerais e pelo amplo balanço feito por Emanuel Araújo. Um importante salto qualitativo deu-se com os estudos de Carrara, que aborda o sertão não apenas enquanto espaço econômico e social, mas também como uma das «categorias primeiras da percepção geográfica» dos antigos mineiros.407 Porém, ao se ocupar com o sentido da palavra sertão, Carrara não destoa das definições correntes. Para ele foi a baixa densidade demográfica «a característica dominante» da percepção sobre o sertão nos dois primeiros séculos da história de Minas408, tal como para Araújo a idéia de «grandes vazios 405 Rosa, Grande sertão, p. 124. 406 Mata-Machado, Bernardo. História do sertão noroeste de Minas Gerais (1690-

1930). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991. 407 Carrara, Ângelo Alves. Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais

(1674-1807). Tese de doutorado, UFRJ, 1997, p. 149. 408 Carrara, «O ‹sertão› no espaço econômico da mineração», p. 43.

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incultos e desabitados aparece como um dos elementos definidores da noção de ‹sertão›».409 Vejamos o que disseram os europeus a respeito. Para Eschwege, «dá-se o nome de sertões às regiões onde pouca ou quase nenhuma civilização foi introduzida, por conseguinte, aos espaços quase ou totalmente desabitados».410 Segundo Saint-Hilaire a palavra sertão designa «uma espécie de divisão vaga e convencional determinada pela natureza do território e, principalmente, pela escassez de população».411 Spix e Martius encontravam-se próximos de Montes Claros quando anotaram o seguinte: «achamo-nos agora no sertão, como denominam os mineiros a vastidão deserta, na sua linguagem usual».412 Burmeister se expressa nestes termos: «O sertão é para o brasileiro o que o ‹far-west›, além de Ohio, é para o norte-americano. A terra incógnita é por ele (...) considerada um deserto árido e abandonado, para o qual somente iria em caso de extrema necessidade. O que de lá vem nada significa e quem lá mora não se pode considerar verdadeiramente mineiro».413 Todavia Langsdorff, ao passar pela região de Curvelo, dános uma visão distinta: «O sertão (interior) não é tão deserto e agreste como descreveu St. Hilaire. Já estamos no sertão, e ainda é uma região fértil e habitada».414 Será mesmo a baixa densidade populacional o critério fundamental de definição do sertão? Talvez algumas indicações a respeito da «localização» dos sertões e o perfil de seus moradores ajudem-nos a esclarecer a questão. Durante o século XVIII e boa parte do XIX, o sertão está um pouco por toda a parte: rumo sudoeste, a partir de Formiga; a oeste, toda a comarca de Paracatu; praticamente todo o Vale do São Francisco; no meio-norte, a partir de localidades como Lagoa Santa, Pompéu e Curvelo; mesmo a leste, nas densas matas do Vale do Rio Doce; e sudeste, uma boa porção da Zona da Mata. Isso explica por que o termo «sertão» vinha normalmente acompanhado de um outro, especificando-o segundo peculiaridades topográficas, divisões administrativas, etc. Este sertão genérico de que falam a maior parte dos viajantes não reflete, como bem insiste Carrara, a «pluralidade e variedade» com que a categoria era concebida na Minas da época.415 Relacionado a este aspecto, há um outro fator complicador. O sertão é um espaço fluido, sem fronteiras claramente definidas. Estas fronteiras – e conseqüentemente: a «localização» do sertão – podem variar tanto ao sabor das concepções espaciais (Raumauffassungen) de um grupo social específico quanto, historicamente, em função das transformações impostas à paisagem. Saint-Hilaire diz ter encontrado no sertão de Paracatu um casal que tinha «a mesma vaidade de 409 Araújo, «Tão vasto, tão ermo, tão longe. O sertão e o sertanejo nos tempos coloni410 411 412 413 414 415

ais», p. 80. Eschwege, Journal von Brasilien, 1. Band, p. 10. Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 247-248. Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 65. Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 224. Grifo nosso. Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 220. Carrara, «O ‹sertão› no espaço econômico da mineração», p. 42.

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julgar que esta zona não pertencia ao sertão; o deserto, diziam, só começa além de certas monhanhas que se encontram entre esta região e o São Francisco».416 O caráter relativo da categoria pode ser claramente observado no caso de Itaipava. Após o declínio da produção cafeeira nas primeiras décadas do século XX, Willems constata uma «inversão ocorrida na localização do ‹sertão›, que passou de oeste a leste. A princípio, Itaipava era um posto avançado à ‹boca do sertão›. Outrora, o sertão era Minas e São Paulo. Atualmente, os moradores de Itaipava chamam de ‹sertão› as áreas cobertas de mata virgem da Serra do Mar».417 Finalmente, mudanças a nível estrutural, por exemplo as acarretadas pelo avanço da urbanização, evidentemente têm um impacto imediato sobre a percepção coletiva a respeito do espaço sertanejo. Há uma boa dose de verdade na afirmação de Guimarães Rosa de que a cidade «acaba com o sertão».418 Em que pese esta fluidez, a imagem que se fazia destes espaços era, via de regra, negativa. Impossível, diz Bento Fernandes Furtado, o exercício da justiça «em um sertão onde, sem controvérsia, campeava a liberdade sem sujeição a nenhuma lei».419 Teixeira Coelho afirma que um certo Manuel Nunes Viana, morador «nos sertões da comarca do Sabará», e outros que a ele tinham-se aliado andavam «fazendo-se, pelas mortes e violências que tinham executado, o terror dos povos». O mesmo autor narra ainda o esforço de colonização promovido por Dom Antônio de Noronha, empenhado que estava em conquistar os «vastos sertões que ficam ao lado do sul do Rio Doce», que eram então cheios de cachoeiras «e infestado[s] de índios».420 A abertura do caminho novo entre as minas e o Rio de Janeiro no início do século XVIII fez com que a Coroa portuguesa decretasse a proibição da colonização dos sertões da Mantiqueira. Foi precisamente esta proibição, segundo Carla Anastasia, que permitiu o alastramento dos grupos de bandidos naquela região.421 Somente quando a produção de ouro entrou em franco declínio é que surgiram iniciativas oficiais no sentido de ocupar aquela área. Dom Rodrigo José de Menezes manda então que «se penetrassem os sertões incultos, e juntamente os da Mantiqueira, abaixo proibidos a título de servirem de barreira, ou de impedimento aos descaminhos do ouro».422 Do lado oposto da ca416 Saint-Hilaire, Viagem às nascentes, vol. I, p. 279. Esta relativização também é in-

417 418 419 420 421

422

vocada por Rosa logo nas primeiras linhas de seu opus magnus: «O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão?». Rosa, Grande sertão, p. 7. Willems, Uma vila brasileira, p. 27. Rosa, Grande sertão, p. 156. CCM, p. 193. Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», pp. 348-349, 358. Grifo nosso. Anastasia, Carla. «Salteadores, bandoleiros e desbravadores nas Matas Gerais da Mantiqueira (1783-1786)». In: Del Priore, M. (org.) Revisão do paraíso. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 124. «Descrição geográfica, topográfica, histórica e política da capitania de Minas Ge-

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pitania as ameaças à ordem colonial não eram menores. Além da busca do ouro, um dos motivos que levou Inácio Correia Pamplona a percorrer o oeste de Minas foi o combate aos quilombos ali estabelecidos. Lê-se no diário de uma de suas expedições que, em 6 de novembro de 1769, foram avistadas algumas casas que se julgaram pertencer a quilombolas, pois «no sertão não mora mais ninguém».423 Século XIX adentro, os viajantes fazem referência a vários arraiais e vilas do sertão que deviam sua origem a delinqüentes de toda espécie. Araxá teria sido formada «na maior parte, (...) de malfeitores, fugitivos de outras partes de Minas e de Goiás». De Formiga, diz-se que «criminosos perseguidos pela justiça se vieram refugiar neste lugar remoto e contribuíram para aumentar-lhe a população; os habitantes não gozam de boa fama». A vila do Tamanduá tivera, segundo consta, a mesma origem: ela «deve os seus fundamentos a criminosos que vieram, há uma centena de anos, procurar um asilo no seio das florestas de que a região é coberta». Os moradores do Arraial de Formigas eram «como filhos do sertão, mal afamados como brigões e por seu banditismo».424 A idéia generalizada de que o sertão é antes de tudo um espaço escassamente povoado não corresponde ao sentido de que era investido o termo. Um dos documentos do Códice Matoso revela que os primeiros exploradores das minas vieram das regiões mais populosas do Brasil «e também do sertão, que é muito extenso e tem muita gente».425 Boa parte da banda oriental de Minas, à época povoada por diversas nações indígenas e coberta por densas florestas, também recebia a denominação de sertão. O ponto-chave a elucidar é: por que paisagens tão radicalmente distintas entre si, como são o oeste e o leste de Minas Gerais426, puderam um dia ser designadas pelo mesmo termo? Primeiramente, porque ambos eram espaços cercados de interdições – por vezes interdições de ordem legal, como vimos –, nos quais prevalecem forças que o homem comum prefere evitar. Não se trata de espaços vazios (no sentido de Simmel) e muito menos de espaços «profanos». Na verdade o sertão é um espaço sagrado; mas um espaço sagrado que se coloca num plano oposto ao dos santuários e patrimônios religiosos. O princípio que nele domina é sobretudo o do sagrado nefasto. Uma extensão, enfim, dominada pelas «trevas exteriores, o mundo das ciladas e das armadilhas, que não conhece lei nem autoridade, e donde sopra uma ameaça permanente de mácula, de doença e de perdição».427 A existência de

423 424 425 426

427

rais. Seu descobrimento, estado civil, político e das rendas reais (1781)». In: RIHGB (71) 1908: 117-184, p. 174. «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...», p. 79. Grifo nosso. Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 106; Saint-Hilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 150-151, 140; Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 68. CCM, p. 197. Uma bela síntese descritiva desta verdadeira «encruzilhada de paisagens» que é Minas Gerais foi feita por Bernardes, Nilo. «Fisionomia da terra». In: Cesar, G. (org.) Minas Gerais – Terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1970, pp. 1-10. Caillois, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988 (1939), p. 52.

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doenças e epidemias – as temidas sezões – no sertão contribuiu para reforçar este temor. Spix e Martius legaram-nos um testemunho interessante, ao descreverem sua chegada em Salgado (atual Januária): «os nossos tropeiros declararam que não iriam adiante conosco. O medo das febres perigosas nestas regiões apavorava a todos, e, depois que o capataz de Minas Novas havia escapulido, durante a noite, em Capão, não havia meio de reter os outros.»428 Lembremo-nos que, para a mentalidade da época, a doença nunca é um fato puramente biológico. As formas de cura invariavelmente envolviam o sagrado, e a escassez de médicos certamente reforçava tais concepções. Um espaço onde grassam doenças, onde grassam miséria e crime, não pode ser um «chão de Deus». A penetração e o estabelecimento dos bandeirantes no sertão da Casa da Casca foi dos mais difíceis porque, além de ser este «muito agro e falto de víveres silvestres, por serem tudo matos e aspérrimas brenhas», estava o mesmo sertão «povoado de bravos e orgulhosíssimos gentios».429 Na sua tentativa de incrementar a ocupação da Zona da Mata e do Alto Rio Doce, Dom Rodrigo de Menezes adentra os sertões dos Arrepiados, então ocupados pelo «gentio Puri, nação bárbara e guerreira». Do alto de uma serra ele vê «sertões tão dilatados, quais a vista pôde alcançar, povoados de diversas nações de índios bravos e feras». Dirigindo-se para o noroeste, passa por Ponte Nova e, tomando o cuidado de munir-se de uma escolta, penetra na região dos Botocudos. «É este o bravo Botocudo devorador da carne humana, e senhor de toda aquela dilatada mata». Dom Rodrigo conclui que «aqueles sertões tinham geralmente ouro», mas «se achavam infestados de gentilismo».430 Os sertões de matas não foram menos temidos pelos naturalistas europeus. Segundo Eschwege, «a região mais perigosa que os viajantes têm de atravessar é chamada floresta ou mata dos Puris (...) que se compõe de pura mata virgem e tem cerca de uma légua de largura. Há inúmeros exemplos de que aqui os selvagens atiraram flechas em animais e cães de viajantes a fim de os provocar, mas sem nunca terem matado qualquer pessoa».431 Spix e Martius ficaram particularmente amedrontados ao passar pelas florestas nas imediações de Piranga: «(...) escura como o inferno de Dante fechava-se a mata, e cada vez mais es-

treita e mais íngreme, a vereda nos levou por labirínticos meandros, a profundos abismos (...). Ao horror, que esta solidão agreste infundia na alma, acrescentava-se ainda a aflitiva perspectiva de um ataque de animais ferozes ou de índios inimigos que a nossa imaginação figurava em pavorosos quadros, com os mais lúgrebes presentimentos.»432

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Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, 83. CCM, p. 170. «Descrição geográfica... », pp. 176-179. Eschwege, Journal von Brasilien, p. 56-57. Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. I, p. 193. Grifos nossos.

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O testemunho de Pohl atesta o misto de fascínio e temor suscitados por uma floresta no Campo das Vertentes: «Penetramos imediatamente num corte de selva, cujas grossas árvores de

formas para mim completamente desconhecidas, eram entrelaçadas, em estranhas voltas, por parasitas arbóreas; as quais (...) formavam, por assim dizer, um tecido impermeável aos raios solares e que, como cordoalha de navio, se movia ao mais leve impulso. Essa imagem agiu poderosamente em meu espírito. Com temeroso respeito atravessei essa abóboda da selva, o escuro dessa floresta, que, com as figuras indefinidas, me apareceu como um grande segredo da natureza.»433

Os riscos, imaginados ou reais, que cercavam os sertões de matos incultos montanhosos e penhascosos434 ajudam a explicar por que a política de colonização do leste mineiro na segunda metade do século XVIII privilegiou, antes de mais nada, os delinqüentes e vadios. Em 1768 o governador Luís Diogo Lobo da Silva afirma que somente pessoas com este perfil se sujeitariam à «calamitosa e miserável vida e riscos» necessários à colonização.435 O Conde de Valadares, por sua vez, determina o envio dos vadios à conquista do Cuité «porque como a conservação desta conquista era necessária, e se não podia conseguir sem que nela houvesse um corpo de tropas da dita qualidade, mais conforme à razão o ser a mesma tropa composta de homens vadios e facinorosos, do que de homens bem morigerados e precisos para a cultura de terras».436 A estratégia tem continuidade com Dom Rodrigo de Menezes em 1783, quando se chega a apoiar com víveres, ferramentas e roupas o estabelecimento daquelas «pessoas insignificantes» no sertão do Caeté.437 As conseqüências que poderiam advir do contato entre delinqüentes (sem dúvida numerosos) e os diversos povos indígenas que ali habitavam não pareciam tirar o sono das autoridades coloniais. Aos olhos de muitos dos moradores das vilas de Minas Gerais, há dois tipos básicos de habitantes do sertão: delinqüentes (criminosos foragidos, vadios, salteadores, quilombolas) e índios. Russel-Wood percebeu-o bem, e se aproximou de uma caracterização adequada do conjunto de imagens e sensações suscitados pelo espaço sertanejo quando sugeriu que «civilização e ortodoxia terminavam 433 Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. I, p. 223. Grifos nossos. O fato de que es-

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ses três relatos advém de autores alemães está longe de ser mera coincidência. Röhrich mostrou que a floresta ocupa no imaginário popular alemão um lugar muito mais destacado que em mitos de sociedades indígenas latino-americanas. Röhrich, Lutz. Märchen und Wirklichkeit. Wiesbaden: Steiner, 1974, pp. 201-202. Parece plausível que os naturalistas citados não estivessem tão distantes deste pano de fundo popular quanto se poderia crer. CCM, p. 171. Citado por Anastasia, «Salteadores, bandoleiros e desbravadores...», p. 123. Ver ainda Souza, Desclassificados do ouro, pp. 71-90. Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», p. 348. «Descrição geográfica... », p. 181-182.

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onde começava o sertão».438 O nível de difusão de expressões religiosas periféricas, para- e anti-institucionais foi sem dúvida uma marca da religião sertaneja. Segundo Saint-Hilaire, «tem-se, em todo o sertão, grande fé em sortilégios (...). O feiticeiro, que por ocasião de minha viagem tinha maior fama, era um negro livre que habitava uma povoação dependente do termo de Minas Novas. Apesar do preconceito em geral vigente contra sua cor, vinham consultá-lo de muito longe, e o negro esperto comprava escravos, e ia constituindo para si uma habitação excelente».439 Para o homem comum o sertão é o negativo do espaço habitável «normal». Difícil encontrar na literatura brasileira uma exploração tão profunda do complexo de imagens que o envolve como a que foi feita por Guimarães Rosa. Como na história de Turíbio Todo, que foge rumo ao norte de Minas após cometer um homicídio. O irmão da vítima se convence de que o assassino fugira para Piedade do Bagre (atual cidade de Felixlândia), onde tinha parentes: «Quando chegasse na Piedade – para adiante não havia terras aonde um cristão pensasse ir –, (...) tratava de voltar nos passos». Como Augusto Matraga, que, em seu refúgio no sertão norte, diz para si mesmo: «P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!»440 Ou ainda na reflexão do jagunço Riobaldo: «sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!».441 Quando, em 18 de setembro de 1781, Dom Rodrigo de Menezes regressa a Mariana depois de sua incursão pelos sertões dos Arrepiados e do Caeté, sua primeira ação é seguir para a igreja matriz a fim de oferecer um Te-Deum «em ação de graças da felicidade daquela perigosa viagem».442 Cassiano Ricardo cita o caso de um bandeirante que, antes de embrenhar-se sertão adentro, profere a seguinte oração: «Peço ao anjo São Gabriel e ao santo do meu nome e ao anjo de minha guarda me queiram acompanhar e livrar dos demônios».443 Ritos de incorporação e de separação que inevitavelmente se realizam à entrada e à saída de um espaço sagrado. O sertão compreende uma síntese tipicamente brasileira de motivos que, pelo menos na tradição européia, cristalizam-se em torno do complexo de imagens deserto-floresta:444 refúgio, ameaça, espaço de transgressão (ou de expiação) no qual a justiça humana e mesmo a divina não vigoram. Num sentido mais amplo, 438 Russel-Wood, «Frontiers in Colonial Brazil», p. 37. 439 Saint-Hilaire, Viagem às províncias..., vol. II, p. 252. Conferir o retrato que faz

440 441 442 443 444

Guimarães Rosa da figura do negro feiticeiro nos seus contos «São Marcos» e «Corpo Fechado». Rosa, Sagarana, pp. 221-249, 271, 277-280. Ver também Carrato, «A crise dos costumes...», pp. 240-241. Rosa, Sagarana, pp. 143, 338. Grifo nosso. Rosa, Grande sertão, p. 18. «Descição geográfica...», p. 180. Ricardo, Marcha para oeste, p. 336. Gehrts, Heino. «Der Wald ». In: Janning, J. und Gehrts, H. (Hrsg.) Die Welt im Märchen. Kassel: Röth, 1984, pp. 37-53; Le Goff, «Le désert-forêt dans l’Occident médiéval», pp. 66 e 70.

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para os antigos mineiros, o sertão se caracteriza sobretudo por ser um espaço incivilizado. Não basta que aquelas regiões sejam habitadas se seus moradores não se mostram capazes de domesticar o próprio espaço em que vivem. O sertão é, em outras palavras, a antítese de tudo aquilo que uma parcela significativa da população brasileira dos séculos XVIII-XIX julgava ser a «civilização» (e aqui já nos encontramos diante dos fundamentos da visão de um Euclides da Cunha). Esta noção de «civilização» resumia-se a três critérios fundamentais, e dialeticamente relacionados entre si: submissão ↔ urbanização ↔ religião. Os arraiais, e em especial as vilas, são os loci a partir dos quais o ideal civilizatório ocidentalcristão se difunde. É ali que a natural compulsão dos homens para o crime pode – assim se supunha – ser controlada pelas instâncias de poder jurídico e policial;445 é também ali, sob a ação educadora e/ou missionária da Igreja, que «pessoas insignificantes» e «selvagens» podem ser salvas de sua «superstição», de seu paganismo e finalmente trazidos à «verdadeira» comunidade dos crentes. O sertão é, pois, o reverso da cidade: um espaço ainda livre de toda e qualquer forma de domesticação.

3.5

Espaços utópicos

Nossa análise das relações entre espaço e representações religiosas não poderia deixar de fazer menção aos quilombos. Por serem espaços instituídos sob a égide de visões de mundo distintas ou só parcialmente influenciadas pelo catolicismo popular tradicional, não nos demoraremos neste ponto. Apenas algumas observações serão suficientes para que possamos caracterizá-los no quadro da Minas antiga. Antes de mais nada, trata-se de definir os quilombos – exemplos perfeitos do que Foucault denominou espaces autres («espaços que de alguma forma estão em contato com todos os outros, e que entretanto os contradizem»).446 O quilombo é uma comunidade de ex-escravos na qual se institui um sistema político, econômico, e, em alguns casos, de parentesco e religioso, alternativo ao da antiga condição servil. Em Minas Gerais a proliferação dos quilombos foi favorecida basicamente por dois fatores. De um lado, pelo enorme contingente de escravos trazidos para o serviço na mineração e, mais tarde, empregado na agricultura; por outro, pelas características ecológicas próprias do território mineiro (povoamento escasso nos sertões do oeste, topografia acidentada e densas matas na região do quadrilátero ferrífero). A despeito das importantes pesquisas levadas a cabo nos últimos anos447, o cotidiano das comunidades quilombolas mineiras 445 A crítica de Gonzaga («E aonde se amontoam os viventes/ em cidades ou vilas, aí

crescem/ os crimes e as desordens aos milhares»; Cartas Chilenas, p. 213) deve ser vista como uma exceção ou, quando muito, como uma posição minoritária no quadro da época. 446 Foucault, «Des espaces autres», p. 755. 447 Guimarães, Carlos Magno. A negação da ordem escravista: quilombos em Minas

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está longe de ser tão bem conhecido como o do famoso quilombo dos Palmares, em razão da grande dificuldade de se obter dados confiáveis sobre a sua estrutura interna. Depois de se debruçar sobre as comunidades quilombolas mineiras, Donald Ramos afirmou que o quilombo não significava uma ruptura mas sim uma mera «rejeição» do sistema escravocrata. Para ele as comunidades de fugitivos funcionavam como uma «válvula de escape que ajudava a impedir que o sistema implodisse».448 A «implosão» só apresentar-se-ia, ao seu ver, sob a forma de rebelião. Curiosa inversão: o ato de rebelar-se é colocado por Ramos num patamar mais elevado de complexidade e radicalidade, sendo que, na verdade, ele configura um evidente pressuposto (mesmo quando «atomizado» sob a forma de simples fuga individual) para a formação dos quilombos. O fato de que os quilombos continuavam a manter relações mais ou menos estreitas com a sociedade escravista não significa que eles não se colocassem como uma alternativa para a massa de oprimidos que constituía a base do sistema – alternativa que a revolta, por si só, não era capaz de oferecer.449 Preferimos ver no quilombo uma utopia vivida. São três os aspectos que fazem dele um empreendimento utópico: (1) a objetivação coletiva do ideal de liberdade; (2) a organização dos fugitivos numa comunidade cujos princípios fundamentais tendem a contradizer os que vigoram fora dela; e, finalmente, (3) o estabelecimento desta comunidade num espaço à parte. Observe-se que, a despeito da etimologia do termo, as utopias freqüentemente criam lugares. Um projeto alternativo de organização social «exige», por assim dizer, se pretende adquirir uma aparência de exeqüibilidade para aqueles que o abraçam, a sua expressão espacial.450 Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988; Guimarães, Carlos Magno. «O quilombo do Ambrósio: lenda, documentos e arqueologia». In: EIA 16 (1-2) 1990: 161-174; Gomes, Flávio dos Santos. «Seguindo o mapa das minas: plantas e quilombos mineiros setecentistas». In: Estudos Afro-Asiáticos (29) 1996: 113-142; Reis, J. J. e Gomes, F. S. (org.) Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1996; Souza, Laura de Mello e. Norma e conflito. Aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte, UFMG, 1999. 448 Ramos, Donald. «O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais do século XVIII». In: Reis e Gomes, Liberdade por um fio, pp. 167 e 174. 449 Para uma análise das revoltas na Minas Colonial, ver Anastasia, Carla. Vassalos rebeldes. Violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. 450 Sobre o conceito de utopia ver Mannheim, Karl. Ideologie und Utopie. Bonn: Friedrich Cohen, 1929, pp. 169-191; Doren, Alfred. «Wunschräume und Wunschzeiten». In: Neusüss, A. (Hrsg.) Utopie. Begriff und Phänomen des Utopischen. Neuwied/Berlin: Luchterhand, 1968, pp. 123-177; Baczko, Bronislaw. Lumières de l’utopie. Paris: Payot, 1978, pp. 29-38; Hölscher, Lucien. «Utopie». In: Brunner, O., Conze, W. und Koselleck, R. (Hrsg.) Geschichtliche Grundbegriffe. Stuttgart: Klett-Cotta, 1990 (6. Band).

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As plantas de quilombos mineiros setecentistas feitas por ocasião da expedição de Inácio Pamplona em 1769 demonstram que o espaço quilombola não obedecia a qualquer modelo, mesmo informal.451 Em boa medida a disposição desordenada das casas devia-se à configuração típica do topos quilombola: havia uma compreensível preferência por locais de topografia acidentada, de forma a facilitar as atividades de defesa. Por outro lado, eram precisamente as preocupações de ordem «militar» as únicas que justificaram a intervenção racional dos quilombolas sobre o espaço. Com a exceção do grande quilombo do Ambrósio, a discrepância entre a meticulosa construção de fossas, trincheiras e paliçadas contrasta com a disposição aleatória das casas e espaços voltadas para fins rituais. Quando se comparam estas plantas entre si, não se distingue a existência qualquer padrão comum. Se de fato, como postulou Simmel, a relação de um grupo com seu espaço «é a raiz e o símbolo da sua estrutura»452, fica claro que a função-defesa soprepujou todas as demais na objetivação espacial da utopia libertária dos quilombolas mineiros. Uma contraposição entre o espaço do arraial e o espaço quilombola revela de imediato duas distinções fundamentais. Nos primeiros se verifica um padrão comum, sem qualquer preocupação de estabelecimento de fronteiras claras entre o núcleo proto-urbano e o seu entorno. Nos quilombos dá-se exatamente o contrário. É interessante ainda notar que em dois dos seis quilombos cartografados pela expedição de Pamplona encontram-se cruzeiros plantados entre os conjuntos de casas. Um sinal evidente do quão cristianizados já eram seus moradores, embora não estejamos em condições de saber muita coisa da religiosidade praticada nestes espaços utópicos. A natureza do quilombo fica mais clara se o compararmos com um tipo antagônico de espace autre: o espaço disciplinar de tipo religioso. Referimo-nos aos monastérios e especialmente aos aldeamentos e missões. Para Jean Séguy e Paula Montero os monastérios e as missões se baseavam no modelo utópico453, o que não nos parece razoável. Monastérios, aldeamentos e missões podem ser mais facilmente entendidos por meio do conceito de «heterotopia». Proposto por Foucault, ele designa todo espaço disciplinar em que o homem não é agente da reconstrução da sociedade, mas uma mera variável a ser controlada. Enquanto o quilombo é fruto de um anseio de liberdade, a missão exprime sobretudo a sua perda. O quilombo é um projeto libertário, e a missão um projeto autoritário. Não é por outra razão que a preocupação com a ordenação do espaço seja um traço fundamental de heterotopias como prisões, hospícios ou missões, e não exerça papel digno de nota nos quilombos. De um lado, um espaço interno racionalizado; de outro, um espaço «espontâneo». Se o fundamental na 451 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...», pp. 107-112. 452 Simmel, «Der Raum und die räumlichen Ordnungen der Gesellschaft», p. 693. 453 Séguy, Jean. «Une sociologie des sociétés imaginés: monachisme et utopie». In:

Annales. Mars-Avril 1971: 328-354; Montero, Paula. «Utopias missionárias na América». In: Revista Sexta-Feira. Antropologia, artes, humanidades (5) 2001.

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heterotopia é disciplinar o ser humano, o que realmente importa na utopia vivida quilombola é garantir a sua dignidade.

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4.

Sociogênese e dinâmica do arraial

Uma história da sociogênese e do cotidiano dos povoados brasileiros ainda está para ser escrita. Os trabalhos de Borba de Moraes, Pierre Deffontaines, Pierre Monbeig, Aroldo de Azevedo, Waldemar Barbosa e Murillo Marx oferecem as bases a partir das quais tal história pode ser recuperada. Somente por meio de uma ambiciosa geografia histórica e de uma minuciosa classificação das formas elementares do espaço urbano será possível mensurar a importância das forças que catalizaram a sociogênese daqueles embriões de cidade. De fundamental importância é a identificação de cada uma destas diferentes forças: extrativismo mineral ou vegetal, religião, comércio, defesa (quartéis), transporte (portos fluviais, estradas, estações ferroviárias), e assim por diante. Cada uma delas deve ser estudada por meio de um aparato metodológico apropriado. Foi o que procuramos fazer, no nosso caso específico, ao nos reportarmos às diversas ciências das religiões. Se bem que a existência de tipos puros dificilmente se verifica. O arraial originado num patrimônio em terras pertencente a uma capela não tem grandes perspectivas diante de si caso as atividades econômicas no seu «interior» e à sua volta sejam pouco promissoras; da mesma forma que embriões que – como os quartéis – à primeira vista parecem ser formas estritamente «profanas» dificilmente prescindem da intervenção do sagrado. Para que as diferenças entre os embriões de cidades na Minas Gerais dos séculos XVIII-XIX fiquem mais claras, iniciaremos este capítulo com uma visão de conjunto da influência dos dois tipos de forças que, ao lado da religião, mais se fizeram presentes no surgimento de nossos antigos povoados. Só então nos ocuparemos a fundo com as relações entre o arraial e o sagrado.

4.1

Proto-urbanização e atividade econômica

A influência de fatores de ordem estritamente econômica na formação das cidades mineiras pode ser compreendida a partir de três modalidades principais: mineração, comércio e cidade-empreendimento. A importância dos dois primeiros fatores foi maior no espaço de tempo que aqui nos ocupa, uma vez que a cidadeempreendimento é um fenômeno que só assume seus contornos definitivos na passagem para o século XX. Ao estabelecerem-se, os pioneiros não se preocupam com as dificuldades impostas pela orografia. O que realmente conta é a perspectiva de enriquecimento. A simples idéia de levantar sua morada distante do local de trabalho parece-lhes absurda. Um testemunho de 1717 fala da caótica disposição das casas em São João del-Rei, o que «não sucederia (...) se aqueles moradores as fabricassem em um plano, aonde está situada a igreja adonde não há ouro».1 Princípios de ordem «paisagística» ou «urbanística» são completamente estranhos ao universo mental 1

«Diário

da jornada... », p. 313.

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do nosso homo ludens. Basta pensar em Ouro Preto e seu «sítio impossível» (Le Loup). Por esta razão eram comuns as «ruas tortuosas, vencendo com dificuldade o abrupto das encostas, e o casario como que agarrado sobre os morros, num milagre de equilíbrio».2 Os embriões de cidade cuja origem se associa diretamente ao gold rush não apresentaram sempre o padrão de desenvolvimento concêntrico que vimos ter sido o predominante nas cidades que se formaram a partir de um patrimônio religioso. Não era raro que, naqueles lugares nos quais as descobertas auríferas revelavam-se mais promissoras, a ocupação dos terrenos se polarizasse em torno de dois ou mais sub-núcleos dispostos nas proximidades das áreas de exploração. Algumas das primeiras vilas de Minas surgiram da fusão destes sub-núcleos, os quais recebiam os nomes de bairros ou arraiais (sobre a polissemia do termo «arraial», ver seção 3.3). Esta tendência à aglutinação decorria do aumento vertiginoso da população e, conseqüentemente, da progressiva ocupação dos interstícios entre os distintos bairros. Nos primórdios de Mariana,3 o primeiro núcleo a formar-se foi o de Mata Cavalos. Porém, devido aos surtos de fome que assolaram a região em 1697-1698 e 1701-1702, Mata Cavalos entra em decadência. Em 1703, Antônio Pereira constrói nas proximidades do ribeirão ali existente uma ermida dedicada a Nossa Senhora da Conceição («que era tão pequena que só cabiam o altar dentro dela e o acólito para ajudar a missa»).4 Com a invasão da sua sesmaria por um grande contingente de mineiros, cresce aos poucos o «Arraial de Baixo». O afluxo de aventureiros é de tal ordem que, no ano seguinte à sua ereção, a ermida da Conceição era elevada a freguesia.5 Um segundo bairro, com o nome de São Gonçalo, forma-se posteriormente na parte dita «de cima», ao longo da estrada que seguia para Ouro Preto. Em Ouro Preto observa-se a existência deste mesmo modelo «multipolar». Com o passar dos anos, sub-núcleos como o Caquende e o Arraial dos Paulistas foram pouco a pouco absorvidos pelo de Ouro Preto. A organização espacial destes bairros dependia das características do sítio. Enquanto em Antônio Dias desenvolveu-se um padrão linear, em Padre Faria o perfil era «caótico». Ademais, a instabilidade era muito alta. Alguns bairros prosperavam e fundiam-se com assentamentos vizinhos, enquanto que outros simplesmente desapareciam.6 Em Sa2

3

4 5 6

Azevedo, «Arraiais e corrutelas », p. 13. Ver também Gutersohn, Heinrich. «A região central de Minas Gerais. Uma contribuição à geografia cultural do Brasil». In: Boletim Geográfico (118) 1954: 5-49, p. 19. Fonseca, Cláudia D. Mariana: gênese e transformação de uma paisagem cultural, pp. 53, 58 e 62. Ver ainda, da mesma autora, «O espaço urbano de Mariana: sua formação e suas representações». In: VVAA. Termo de Mariana. História e documentação. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1998. CCM, p. 182. DHGMG, p. 196. Vasconcelos, Salomão de. «Os primeiros aforamentos e os primeiros ranchos em

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bará, os dois sub-núcleos principais teriam sido os de Barra e Igreja Grande, mas havia uma infinidade de outros de menores dimensões.7 Sylvio de Vasconcellos acusa o mesmo fenômeno em Diamantina, e afirma ser «provável que a povoação tenha nascido da polarização de pequenos núcleos isolados».8 Em resumo: a ocupação do sítio, em que pese o sistema de concessão de datas, é abrupta e desordenada. Constroem-se ranchos nas próprias datas, ao longo dos leitos dos córregos e dos caminhos. A população é composta por mineradores, gente desocupada e criminosos; o comércio (inclusive na sua modalidade sexual) é intenso; a prodigalidade e a jogatina estão na ordem do dia. Enfim, o arraial minerador é o hábitat por excelência do homo ludens. Um excelente retrato do que é o cotidiano deste tipo de aglomerado foi-nos dado por Langsdorff, que visitou Descoberta Nova (atual cidade de Descoberto, na Zona da Mata) em 1824, poucos meses após seu surgimento. Face à riqueza de seu relato, vale a pena reproduzi-lo um pouco mais extensamente: «(...) alcançamos Descoberta Nova. A gritaria, os estrondos, a barulheira fez-

nos perceber de longe que havia lá grande quantidade de pessoas. Inicialmente, vimos a fazenda do verdadeiro proprietário e, depois, uma longa fileira de palhoças. São as casas dos mineiros (se é que posso usar essa denominação) e de pessoas que para cá vieram para praticar o comércio e aproveitar a oportunidade favorável. Pedimos abrigo na primeira e na segunda casa, mas em vão. Depois passamos por entre as cabanas e vimos mercadorias jogadas entre estalagens, vendas e casas de jogos. Toda a aldeia tinha o aspecto de uma feira com suas carrocinhas de comidas. Aqui, os homens deitados em estacas fincadas na terra, em esteiras de palha; lá uma mulher ou uma moça. Um tinha um prato de feijão com toucinho. Mais adiante, rodavase uma agulha para decidir quem ganha e quem perde. Mágicos mostram sua arte; vinho, aguardente de cabeça, restilo e prazeres eram vendidos por toda parte. Comerciantes e, principalmente, vendedores estavam alojados no bosque. (...) Logo que a fama da descoberta se espalhou pela terra, vieram pessoas de todas as partes, de forma que hoje (após cerca de dois a quatro meses da descoberta) já se reuniram aqui quase 3000 almas. Nem todos vieram para lavrar ouro: alguns vieram para se divertir. Jogadores e beberrões, prostitutas e muitas outras pessoas que, de uma forma ou de outra, tentam ludibriar uns aos outros. Alguns vivem miserável e deploravelmente; outros gastam tudo ou perdem no jogo o que ganharam com a lavação. Foi realmente muito estranho ver aqui pessoas que, há poucas semanas, talvez não possuíssem sequer um tostão e que agora lidam com táleres de prata como se fossem moedas de cobre. Nem mesmo o ouro tem valor. Pode-se dizer: como foi ganho, será desperdiçado. É como uma loteria; ninguém sabe avaliar o

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Ouro Preto». In: RPHAN (5) 1941: 241-257; Ramos, A social history of Ouro Preto, pp. 142-152; Menezes, Igrejas e irmandades de Ouro Preto, p. 27. Passos, Em torno da história de Sabará, pp. 2-3. Vasconcellos, Sylvio. «Formação urbana do Arraial do Tejuco». In: RPHAN (4) 1959: 121-134, p. 127.

178 valor do ganho. O que chama a atenção é que tantas pessoas de repente tenham se aglomerado aqui, e o governo parece não ter tomado conhecimento disso (...). Um chega, lava o ouro e vai embora; o outro, da mesma forma, e assim pode-se dizer que, aqui, mudam as pessoas diariamente.»9

Se confrontamos Descoberta Nova com outros exemplos de proto-urbanização em contextos marcados pela mineração tradicional, algumas similitudes tornamse evidentes. É interessante notar que a simples rua ladeada por rústicas moradias e casas de comércio era também a configuração de Nevada City, uma típica povoação gerada pela exploração de ouro na Califórnia.10 Mas enquanto nos EUA as novas cidades se adequavam rapidamente ao padrão geométrico determinado pela Land Ordinance de 1785,11 o núcleo minerador latino-americano tendia – até (mas não apenas) por força das particularidades do seu quadro topográfico – a desenvolver-se desordenada e espontaneamente.12 Aroldo de Azevedo afirma, quanto ao Brasil, que «a impropriedade do sítio urbano constituiu a regra».13 A racionalidade econômica limita-se à esfera das trocas comerciais; e no entanto, dentro deste universo que visivelmente obedece a leis próprias, perde-se a noção do valor relativo das mercadorias. «O dinheiro aqui parece ser de pouco valor, e qualquer pessoa tem o bastante», escreveu uma testemunha do gold rush norteamericano.14 Quanto ao mais, é como se a dimensão lúdica se apossasse completamente do mundo da vida. Pois a vida se resume a dois princípios: o da diversão e o da aposta. Até que ponto é difícil separar uma coisa da outra, comprova-o não só o caso de Descoberta Nova. Assim se expressa um aventureiro americano oitocentista, ouvido numa casa de jogos: «I came here not to gamble, but to find amusement».15 O jogo é uma «tentação a que não se pode furtar um verdadeiro garimpeiro».16 O termo «loteria» para definir a lógica segundo a qual se orienta o mundo do garimpo, diga-se de passagem, não foi empregado apenas por Langsdorff. Também nos EUA a corrida do ouro foi vista como uma great lottery.17 A

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13 14 15 16 17

Da Silva, Os diários de Langsdorff, I, pp. 77-79; grifos nossos. Phelps, Robert. «‹All hands have gone downtown›. Urban places in Gold Rush California». In: California History 79 (2) 2000: 113-140, p. 130. Ver Reps, John W. Cities of the American West. A history of frontier urban planning. Princeton: Princeton University Press, 1979. Gakenheimer, Ralph A. «The early colonial mining town: some special opportunities for the study of urban structure». In: XXXIX Congresso Internacional de Americanistas – Actas y Memorias. Lima, 1972 (vol. II), pp. 359-371, p. 368. Azevedo, «Arraiais e corrutelas», p. 13. Rohrbough, Malcom. «No boy’s play. Migration and settlement in early gold rush California». In: California History 79 (2) 2000: 25-43, p. 38. Kurutz, Gary F. «Popular culture on the golden shore». In: California History 79 (2) 2000: 280-315, p. 285. Luís Sabóia Ribeiro, citado por Azevedo, «Arraiais e corrutelas», p. 23. Kurutz, «Popular culture...», p. 284.

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literatura popular dos povoados formados em torno de garimpos de diamante no Mato Grosso das décadas de 1920-1930 (as corrutelas) não dá margem a dúvida: Isto é uma pura verdade Que o garimpo é um jogo. Eu falo sem vaidade, os de sorte arranja[m] riqueza e os blefados não salvam a despesa.18

Esta lógica se mantinha mesmo quando a aposta assumia a forma social de «nomadismo». Um proprietário de minas no Potosí reclamava da precariedade com que ali eram construídas as casas e concluía: «Os que as habitam são oportunistas que vêm e vão sem permanecerem por um maior tempo».19 Azevedo constata: «Não resta dúvida que um dos principais característicos da corrutela consiste na heterogeneidade e mobilidade de sua população».20 Com isto parece ficar comprovada aquela conclusão a que chegávamos anteriormente: para uma parte substancial dos homens e mulheres da Minas antiga, festa, jogo e «nomadismo» situavam-se no mesmo plano simbólico e existencial. O papel do comércio enquanto atividade subsidiária e, ao mesmo tempo, garantidora de uma relativa estabilização dos embriões de cidade, não deve ser esquecido. Em 1715, Ouro Preto e Antônio Dias tinham, respectivamente, 42 e 61 comércios. Em sub-núcleos de menor importância, situados no Morro de Vila Rica, a realidade era a mesma. Ouro Podre tinha 25, Ouro Bueno 21 e Rio das Pedras 9 comércios.21 O relato de Tschudi, ainda que feito no início da segunda metade do século XIX, mostra-nos a importância destes estabelecimentos na região de Diamantina: «No Brasil formam-se imediatamente, em todo distrito de diamantes recém-

descoberto, um pequeno lugar com uma ou mais vendas onde se fazem negócios, vendem-se diamantes, alimentos e cachaça. Tal lugar se chama comércio até ganhar o suficiente em importância para, sob determinado nome, entrar para a classe dos arraiais (Dörfer). Todo sábado reúnem-se garimpeiros e compradores para ali fazer seus negócios. Todos estão armados e prontos a defender com a própria vida o seu ganho. Em meio à cachaça, jogo e prostitutas, essa gente – que de si mesma diz: ‹nós somos todos ladrões› – faz seus negócios (...). Escravos fugidos, assassinos, desertores, ladrões, negras e mulatas devassas formam a sociedade para a qual até mesmo o garimpeiro (ao qual nenhum prêmio de virtude seria concedido) olha com desprezo. (...) De comércios formaram-se gradativamente o povoado de

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Esta estrofe faz parte de um poema popular (do tipo poema em abc) com o título «Mergulho do garimpeiro blefado», da autoria de José Lopes de Araújo. Reproduzido na íntegra em Dornas Filho, Achegas de etnografia e folclore, pp. 208-211. Gakenheimer, «The early colonial mining town», p. 367. Azevedo, «Arraiais e corrutelas», p. 20. Ramos, A social history of Ouro Preto, pp. 150-151.

180 Santa Isabel de Sincorá e muitas pequenas localidades nas terras ricas em diamantes.»22

Os pontos de parada ao longo das estradas (como os que, em grande quantidade, distribuíam-se no percurso do «caminho novo» entre Minas e o Rio de Janeiro) exerciam uma força aglutinadora que, sob determinadas circunstâncias, podia dar origem a um embrião de cidade. Os tipos de pontos de parada foram bem caracterizados por Burton: há o pouso, «mero terreno de acampamento, cujo proprietário não se importa que os tropeiros ali dêem água aos seus animais e os amarrem em estacas»; o rancho, composto de «um telheiro comprido, tendo, às vezes, na frente, uma varanda»; e a venda, onde se «vende de tudo, desde alho e livro de missa, até cachaça, doces e velas».23 A origem de diversas cidades, como se vê, nada teve de idílica ou devota. Por vezes a autoridade religiosa é impotente diante das outras necessidades, bem mais concretas, das pessoas comuns. Araçuaí oferece um exemplo interessante. Na primeira metade do oitocentos, o padre Carlos Pereira Freire de Moura fundou uma povoação chamada Pontal na confluência dos rios Araçuaí e Jequitinhonha. Rigoroso (o que não era necessariamente comum naquele tempo), ele proibiu a presença de prostitutas e o consumo de álcool no Pontal. Uma fazendeira da região, Luciana Teixeira, acolheu então aquelas mulheres e seus «clientes», e no novo local de seu estabelecimento cresceu o arraial que deu origem a Araçuaí.24 Serrania, localizada no sul de Minas, formou-se a partir de um pouso de tropeiros. O local tornou-se ponto de encontro de «malfeitores e boêmios», e pouco a pouco surgiram casas em seu redor. Por volta de 1898, por iniciativa do vigário de Alfenas, particulares fizeram a doação do patrimônio a uma capela a ser erigida no lugar.25 É bem sabido o quanto importantes centros regionais dos dias de hoje deveram seu crescimento e prosperidade ao comércio na confluência ou à margem das estradas. Tal o foram Formiga, Barbacena e Juiz de Fora. Goodwin Jr. observou, quanto a esta última: «nascida às margens de um caminho, a cidade continuou a ter nas estradas um importante elemento do seu desenvolvimento».26 O que se confirmaria principalmente a partir da segunda metade do século XIX, com o surto da cafeicultura e o início da espansão da malha ferroviária na Zona da Mata.27 22 23

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Tschudi, Reisen durch Südamerika, I, p. 158. Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, pp. 100-101. O autor menciona ainda dois outros tipos (a hospedaria ou estalagem e o hotel), que porém não eram tão comuns quanto os três anteriores. DHGMG, pp. 28-29. EMB, vol. 27, p. 306. Goodwin Jr., James W. «A princesa de Minas». A construção de uma identidade pelas elites juizforanas. Belo Horizonte: dissertação de mestrado em história, UFMG, 1996, p. 43. Blasenheim, Peter L. «As ferrovias de Minas Gerais no século dezenove». In: Lo-

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Em Philadelphia (atual Teófilo Otoni) deu-se algo novo. O nascimento desta cidade não correspondeu nem às demandas do homo religiosus nem às do homo ludens. Trata-se do primeiro caso de cidade-empreendimento na história de Minas.28 Seu espaço urbano associa-se diretamente a uma empresa capitalista, e não à «loteria» da mineração. Daí ser o seu traçado concebido em moldes estritamente racionais. A espontaneidade dá lugar ao planejamento. Pode-se dizer, neste sentido, que Philadelphia antecipa Belo Horizonte (com a diferença de que nesta última o empreendimento não é fruto de uma iniciativa privada, mas governamental). Em 1847 o político e empresário Teófilo Otoni criou sua Companhia de Comércio e Navegação do Rio Mucuri. Além do monopólio sobre o comércio fluvial na região, a empresa de Otoni obteve do governo o direito de estabelecer colônias no Vale do Mucuri. Ele sonhava com a «civilização» daqueles sertões até então ocupados por indígenas. Nos seus planos, Philadelphia viria a ser o centro de uma nova província do Império, e para povoá-la foram trazidos imigrantes europeus, especialmente suíços e alemães.29 Philadelphia foi fundada em 7 de setembro de 1853, com projeto do engenheiro Robert Schlobach da Costa. A distinção em relação aos arraiais de origem religiosa ou mineral é gritante: suas ruas cruzam-se segundo um plano geométrico, e no centro da povoação ergue-se não um templo, mas o armazém central da Companhia do Mucuri. Previa-se a construção de uma igreja católica e uma protestante, mas era esta última que se localizava no alto de um morro ao lado da praça central. Tschudi esteve em Philadelphia em fevereiro de 1858, quando a povoação tinha cerca de 100 casas prontas. Antes da ponte que atravessava o Rio de Todos os Santos situava-se o «bairro» denominado Olaria. A razão desta denominação fora a antiga fábrica de telhas que ali se levantara. Em suas miseráveis casas residem pessoas pobres e algumas prostitutas. Depois de passar pela ponte e entrar na povoação propriamente dita, o viajante vê diante de si duas grandes praças. A maior delas leva o nome Praça da Companhia. Entre as praças estende-se a rua direita, e nela é que se localiza o armazém central. A igreja protestante ficara pronta já em 1855, enquanto a católica ainda estava em construção.30 Embora a forma de organização do espaço de Philadelphia seja racional, podem-se identificar elementos que mostram uma certa continuidade em relação a

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cus 2 (2) 1996: 81-110. Para uma visão de conjunto do que eram as cidades-empreendimento na primeira metade do século XX, ver Monbeig, Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, pp. 221-241. Dreher, Martin N. «Imigração alemã e protestantismo em Minas Gerais, ao longo do século XIX». In: Rhema 16 (4) 1998: 77-104, pp. 98-100. A introdução de imigrantes no espaço vital indígena foi uma estratégia «civilizadora» comum no Brasil-Império, como demonstra Prien, Hans-Jürgen. «Imigração, colonização e terra indígena». In: Jochem, Toni V. (org). São Pedro de Alcântara, 1829-1999. Aspectos de sua história. São Pedro de Alcântara, 1999, pp. 57-67. Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, pp. 234-238.

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características próprias das formas pré-urbanas anteriores. O fato de a rua principal receber o nome de «direita» tem sua origem no costume de dar esta designação à via que desemboca no largo das antigas matrizes. Segundo Waldemar Barbosa, a escolha do local da povoação foi determinado pelo encontro de duas expedições que haviam partido de direções contrárias (uma do Mucuri e outra de Minas Novas). O local do encontro fora precisamente a margem do Rio de Todos os Santos.31 Aparentemente, a solução é «racional»; porém – como teremos oportunidade de explorar na seção 4.3.2 – ela tem sua origem em antigas práticas de caráter nitidamente religioso. Demonstra-o ainda a constatação de Tschudi de que o sítio realmente não era dos mais felizes, por estar espremido entre os morros que cercam os vales dos rios nas redondezas. Acreditava-se inicialmente que uma planície à direita da Praça da Companhia permitiria o crescimento do núcleo. Todavia a grande densidade da floresta havia «disfarçado» o morro ali existente, o que só se veio a perceber mais tarde, com o desmatamento.32 De modo que Philadelphia, nossa primeira cidade-empreendimento, não conseguira se libertar de alguns simbolismos ancestrais. Algo parecido se pode observar em localidades do sul de Minas cuja origem ou desenvolvimento se associa diretamente à exploração de águas dotadas de propriedades medicinais: Caxambu, Poços de Caldas e São Lourenço. Nas duas primeiras a exploração foi planejada e financiada pelo poder público33; na última, pela iniciativa privada.34 Esta racionalização da exploração não se sobrepõe de todo, porém, à crença ancestral na dimensão numinosa – «milagrosa» – das águas.35 Como a própria história, a evolução do espaço urbano se faz num misto de ruptura e de continuidade, consciente ou não, com o passado.

4.2

Proto-urbanização e política indigenista

A primeira questão a ser colocada é saber se houve mesmo uma política indigenista na Minas antiga. Tudo se inicia com a progressiva ocupação dos sertões da Zona da Mata e Rio Doce. A partir da segunda metade do século XVIII o interesse por estas regiões aumentara muito, e os governadores da capitania viam nelas a saída para a crise causada pelo declínio da produção de ouro. É quando se intensificam as iniciativas no sentido de explorar e ocupar os territórios tradicionalmente habitados pelos índios. Ainda é cedo para que se possa falar numa «política indigenista». Nesta primeira fase, a ação colonizadora foi sobretudo de caráter policial-militar. A expressão espacial deste esforço era o presídio. 31 32 33 34 35

DHGMG, p. 349. Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, p. 238. Sobre Caxambu: ANEDC (15) 1953: 18-20; DHGMG, pp. 86-87. Sobre Poços de Caldas: RAPM, ano I, fascículo 2, 1896, pp. 198-201; DHGMG, pp. 261-262. ANEDC (12) 1950: 8-10; EMB, vol. 27, p. 253; DHGMG, pp. 324-325. Espírito Santo, A religião popular portuguesa, pp. 35-37.

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Eschwege explica que «dá-se aqui [em Minas Gerais] o nome de presídio aos lugares onde se estabelecem as forças militares destinadas à defesa ou civilização dos índios, bem como à prevenção do contrabando».36 O presídio representava portanto um tipo de posto avançado. Alguns chegaram a ser fundados pelos bandeirantes, mas a grande maioria surgiu da iniciativa estatal. Os colonos para lá encaminhados, como foi visto no capítulo anterior, eram considerados a escória da sociedade. Quando se lê os documentos da época, percebe-se claramente que a imagem dos responsáveis diretos pelo empreendimento «civilizatório» praticamente não se distinguia, aos olhos das autoridades, da imagem daqueles a serem «civilizados». Justamente os homens persuadidos ou coagidos a partirem rumo aos sertões de matos (e que antes viviam «como feras nos arraiais, nos sertões e nos lugares inacessíveis») é que tomam para si a tarefa de defender os presídios do Cuité e dos Arrependidos «da irrupção do gentio bárbaro, e que penetram como feras os matos virgens no seguimento do mesmo gentio».37 Só por ingenuidade poderíamos supor que os governadores não estavam conscientes das trágicas conseqüências que o contato entre colonos e indígenas, estabelecido nestas condições, haveria de gerar. Uma carta régia em maio de 1798 autorizava a introdução do trabalho compulsório dos indígenas. Legitimava-se assim as violências e as expropriações cometidas pelos fazendeiros.38 Além dos presídios do Cuité e dos Arrepiados, há referências a outros, como os de Peçanha, Abre Campo e São João Batista. Numa zona de fronteira e de difícil acesso, estes postos nem sempre resistiam por muito tempo. Em sua viagem aos sertões do Rio Doce, Dom Antônio de Noronha determinou que «se fizesse uma povoação nova, por se achar o pequeno presídio que [ali] existia em sítio baixo e pantanoso».39 Além disso havia a compreensível reação de algumas tribos à progressiva conquista do seu espaço vital. Os bispos criavam paróquias sem que se soubesse ao certo até que ponto os novos núcleos resistiriam às dificuldades impostas pelo meio e pelos índios. O presídio de Abre Campo, por exemplo, teve de enfrentar inúmeros revezes até estabilizar-se e tornar-se povoação nas últimas décadas do setecentos.40

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Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 62. Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais (1780)», p. 347; «Descrição geográfica, topográfica, histórica e política da Capitania das Minas Gerais (1781)», p. 177 (grifos nossos). A mesma estratégia foi utilizada em outras regiões do Brasil. Ver Flexor, Maria Helena O. «Núcleos urbanos planeados do século XVIII e a estratégia de civilização dos índios do Brasil». In: Silva, M. B. Nizza da (org.) Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, pp. 79-88. Paraíso, Maria H. B. «Os botocudos e sua trajetória histórica». In: Cunha, Manuela Carneiro da (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998 (1992), p. 416. Coelho, «Instrução para o governo ...», p. 359. DHGMG, pp. 16-17.

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Quanto à catequese propriamente dita, seu início na região se confunde com a trajetória de pelo menos dois arraiais. O mais antigo deles, o arraial do Pomba, formou-se bem cedo. A freguesia do Mártir São Manuel do Rio Pomba e Peixe foi criada pelo bispo do Rio de Janeiro em 16 de fevereiro de 1718. Este núcleo inicial, porém, teve vida curta. As atrocidades cometidas pelos bandeirantes e os contra-ataques dos índios criaram dificuldades tais que o estabelecimento de um sacerdote só viria a se concretizar em 1767, com o padre Manuel de Jesus Maria. O novo vigário levantou a capela, as primeiras casas e uma escola. A acreditar em Barbosa, seu trabalho foi bem acolhido entre os coroados e coropós. Em conseqüência da atividade deste missionário, cresceu o arraial do Pomba.41 Seu aspecto em 1824: «[a capela] é de pau-a-pique e fica numa grande praça aberta e livre. O lugar tem várias ruas, as casas são pequenas e térreas e, nesse momento, estão quase todas abandonadas pelos seus habitantes, que estão todos em Descoberta Nova». Padre Jesus Maria mantinha, nas proximidades, um moinho de canade-acúcar e uma venda.42 Em São João Batista do Presídio (hoje Visconde do Rio Branco) o núcleo primitivo fora levantado por bandeirantes. O lucrativo comércio da ipecacuanha (ou poaia, raiz usada como remédio contra tosse, vomitivo e espectorante) abriu boas perspectivas para a povoação. A fim de controlar esta atividade, criou-se ali, no dia 10 de junho de 1789, um quartel dotado de 60 soldados.43 Certamente já havia de existir uma capela provisória, quem sabe um simples altar portátil. Em 1776 estava formado seu cemitério. Em 25 de agosto de 1787 o padre Jesus Maria obteve provisão para a ereção de uma capela dedicada a São João Batista.44 O arraial não cresceu significativamente até que, por volta de 1814, muitas pessoas advindas de São Miguel e, posteriormente, de Catas Altas, começaram a estabelecer-se ali. Em 1817 havia cerca de 30 casas no local, e «prósperas roças» nas redondezas.45 Em 1824 o arraial tinha nada menos que 360 casas. Criavam-se suínos, plantava-se milho, feijão, café e cana-de-acúcar. O comércio da ipecacuanha mantinha-se intenso. Os índios extraíam a raiz para vendê-la pelo preço de 6 patacas (2.000 réis) ao quilo. Com o que, escreve Langsdorff, eles «bebem até não terem mais dinheiro». Cogitava-se então mudar a localização do arraial, em razão dos prejuízos causados por enchentes.46 É a partir do início do século XIX que se pode falar do início de uma «política indigenista» oficial. Ela se orientou por dois objetivos básicos: colonização dos sertões do leste e guerra aos índios botocudos. Logo após a chegada da Família Real ao Brasil, cria-se a Junta de Conquista e Civilização dos Índios, do Comér41 42 43 44 45 46

EMB, vol. 27, p. 74; DHGMG, pp. 286-287. Da Silva, Os diários de Langsdorff, I, p. 72. Como em Patrocínio do Muriaé, onde a exploração da ipecacuanha forneceu as bases econômicas do crescimento do núcleo incial. EMB, vol. 26, pp. 299-300. EMB, vol. 27, p. 446; DHGMG, p. 370. Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, I, p. 194. Trindade, Visitas pastorais, p. 172.

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cio e Navegação do Rio Doce. Alguns números falam por si sós: a carta régia que constituiu a Junta determinou a criação de 6 divisões de soldados, num total de aproximadamente 600 homens. Em correspondência datada de 20 de março de 1809, o alferes Antônio Roiz Taborda determina ao comandante da primeira divisão «até o mês de maio entrar com a gente de sua divisão a atacar os botocudos nas suas aldeias». Taborda diz esperar avanços significativos daquele comandante por ser este um «oficial antigo, e de tropa de linha», e que, como tal, haveria de demonstrar sua energia «em debelar esta massa antropófoga, que tantos prejuízos tem causado aos fazendeiros desta capitania».47 O resultado prático destas medidas não correspondeu de todo às intenções expressas pela Coroa. Eschwege falanos do estado de coisas em 1815: «Nem o território dos botocudos – que compreende um distrito de boas 1200 léguas quadradas (...) – foi conquistado, nem os botocudos curvaram-se sob o brando jugo da lei, nem se abriram estradas, nem foi incentivada a navegabilidade do Rio Doce.»48

Somente na primeira metade do oitocentos criaram-se em Minas 87 quartéis e 73 aldeamentos.49 Cidades como Aimorés e Jequitinhonha são alguns dos frutos deste esforço. Se nos arraiais formados a partir de patrimônios religiosos o ponto de cristalização em torno do qual se adensa o arraial nascente foram as capelas, nos casos de que se trata aqui é evidentemente o quartel que desempenha esse papel. Isso fica claro no caso de São Miguel (atual Jequitinhonha). Fundado pelo alferes Julião Fernandes Leão por volta de 1804 e sede da 7a Divisão Militar, este embrião de cidade sequer tinha uma capela quando por ele passou Saint-Hilaire. Possível, no quadro mental da Minas antiga, a criação de um espaço em áreas de fronteira sem o recurso ao sagrado? A presença de um cruzeiro diante do quartel bem mostra em que medida a transformação racional do espaço nem sempre excluiu o recurso ao numinoso. Anos depois, Pohl visitou São Miguel. A igreja estava em construção e já havia 40 casas de telha no arraial.50 Segundo um relatório feito em 1813 pelo futuro diretor dos distritos dos índios no alto Rio Doce, Guido Tomás Marlière, existiam então 150 aldeias de coroados, num total de 1.900 indígenas.51 Os coropós eram bem menos numerosos. Mais ou menos na mesma época, contavam-se 292 pessoas divididas por 29 aldeias. O esforço da Coroa visava, explicitamente, «civilizar» e «pacificar» os índios por meio da catequese, da introdução da agricultura e da sedentarização. A abertura de estradas, criação de quartéis e presídios garantiria as condições mínimas para a 47 48 49 50 51

APM, SC-334. Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 81. Paraíso, «Os botocudos...», p. 418. Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., II, p. 121; Pohl, Viagem no interior do Brasil, II, p. 315; DHGMG, p. 174. Cada uma destas aldeias era composta de uma ou no máximo duas famílias «extensas ». Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 120-121.

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formação e crescimento de povoações. A guerra aos botocudos também visava abastecer de mão-de-obra a fronteira agrícola em expansão.52 Se o processo de proto-urbanização no leste de Minas não pode ser entendido sem o reconhecimento da decisiva intervenção do poder público, a centelha que deflagrava a gênese de um embrião de cidade continuava a ser, muitas vezes, de natureza religiosa. Os moradores das margens do rio Ubá obtiveram, em 3 de novembro de 1815, autorização para a ereção de uma capela a São Januário. Os doadores do seu patrimônio foram o capitão-mor Antônio Januário Carneiro e sua mulher, Francisca Januário de Paula Carneiro.53 A capela foi concluída em 1818. Em 1823, Dom Frei José escrevia que «seu local é muito melhor que o da igreja matriz» e que tem «proporções para se fazer um bonito arraial».54 Langsdorff confirma estas impressões um ano mais tarde: «A aldeia d’Ubá é pequena e insignificante, mas a redondeza é agradável, e o local parece crescer diariamente (considerando-se as muitas casas novas)».55 A história de vários arraiais relaciona-se intimamente com a figura de Marlière. Por sua iniciativa foram fundados aldeamentos em 18 diferentes localidades, dos quais muitos efetivamente tornaram-se núcleos urbanos.56 Muriaé teve início com um aldeamento no lugar denominado Sítio de Manoel Burgo. Ali decidiu Marlière levantar capela de São Paulo Apóstolo. A provisão episcopal foi obtida em 16 de agosto de 1819, e o curato foi criado em 1821. Mas devido à lentidão com que era dotada de recursos públicos, a capela só foi considerada em condições de funcionar em 1832. Em 1844, segundo um relatório da Câmara da Vila do Presídio, o Arraial de São Paulo contava «com um pequeno número de casas habitadas, com um patrimônio composto de mais de duas sesmarias» concedidas por Dom João VI.57 Meia Pataca (hoje Cataguases) localizava-se num sítio inicialmente denominado Porto dos Diamantes. Embora os primeiros habitantes tivessem se estabelecido naquelas redondezas entre 1809 e 1810, foi somente em 26 de maio de 1828 que o sargento de ordenanças Henrique José de Azevedo e outros moradores doaram o patrimônio no qual Marlière cuidou de levantar capela de Santa Rita e fundar a povoação.58 O Sapé (Guidoval) cresceu nas imediações do sítio pertencente a Marlière no distrito dos coroados. Este sítio tinha o nome de Guidoval, e daí o nome atual da cidade.59 Guido Pocrane, um índio «civilizado» e que tornou-se afilhado de Marlière, foi o fundador da locali-

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Mattos, Izabel Missagia de. «O projeto militarista do Rio Doce». Mimeografado, 2001. EMB, vol. 27, p. 390. Trindade, Visitas Pastorais, p. 170. Da Silva, Os diários de Langsdorff, I, p. 89. Mattos, «O projeto militarista do Rio Doce», p. 3. AEAM, arm. 24, cx. 3; DHGMG, p. 214. EMB, vol. 24, pp. 423-424; DHGMG, pp. 84-85. EMB, vol. 25, p. 198; DHGMG, p. 146.

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dade que traz ainda o seu nome.60 Em outros casos os arraiais apenas se superpuseram a espaços anteriormente ocupados por aldeias. Nas origens de São João Evangelista existiu, no início do século XIX, um aldeamento chamado São Nicolau. Os índios abandonaram-no mais tarde e seguiram para Peçanha. As terras foram progressivamente assenhoradas por vários pioneiros, entre eles Idelfonso da Rocha Freitas. Seus filhos (Valeriano Freitas e Henrique Freitas) doaram, em 1874, cerca de dois alqueires de terras a Nossa Senhora do Rosário. Com a capela, surgiu o povoado.61 Também em Queiroga (atual Itanhomi) havia, nos primeiros anos do último século, um aldeamento. A partir de 1906, por iniciativa do padre Modesto Vieira, levantou-se um cruzeiro e começou a construir-se capela.62 Tudo isso não deve, porém, ser tomado como evidência do sucesso da empresa civilizatória luso-brasileira. A despeito do tom entusiasta de historiadores como Diogo de Vasconcellos e Waldemar Barbosa (para quem o padre Jesus Maria foi o «apóstolo dos silvícolas», e Marlière o «grande civilizador dos índios»), sabe-se hoje que a realidade foi outra. A opinião dominante a respeito das diversas tribos existentes no território mineiro era basicamente a mesma que predominara desde o início da colonização do Brasil: o índio é um selvagem que desconhece toda forma de «civilidade» e que, portanto, encontra-se ainda num estado sub-humano. Para Nuno Marques Pereira os índios eram «tão vadios, e calaceiros, que nem aldeias, nem casas têm, nem domicílio certo, porque dormem onde lhes anoitece (...) tendo somente por Deus os seus ventres».63 Pense-se na ironia histórica que é esta atribuição de incivilidade à condição de vida nômade; justo naquela Minas antiga em que o enraizamento sempre fora exceção. Mas estas considerações obviamente não perturbavam as consciências. Era mais cômodo caracterizar os índios como «muito atraiçoados, vingativos, sem nehum gênero de caridade», uma gente na qual não se acha «primor nem cortesia», que «não tem agradecimento ao benefício, que se lhes faz», seres «que mais se inclinam para o mal, do que para o bem».64 Não surpreendem, pois, os versos de Gonzaga: «Aqui os Europeus se divertiam/ em andarem à caça dos gentios/ como à caça de feras, pelos matos».65 Uma das primeiras e mais veementes críticas ao fracasso da política oficial foi feita por Eschwege. No seu Journal von Brasilien, o mineralogista alemão menciona as formas habituais por meio das quais os colonos lidavam com os índios: expropriação de terras, envenenamento, difusão intencional de doenças e do alcoolismo, massacres. Os soldados estacionados nos quartéis e presídios nada fa60 61

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DHGMG, p. 262. EMB, vol. 27, p. 235; DHGMG, p. 321. O tamanho do patrimônio difere nas duas fontes. O DHGMG fala em dois alqueires (96.400 m²), e a EMB em 9,68 ha (96.800 m²). EMB, vol. 25, p. 278. Pereira, Compêndio narrativo do peregrino da América, II, p. 58. Pereira, op. cit., II, p. 60. Gonzaga, Cartas chilenas, p. 213.

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zem pela segurança dos indígenas. Pelo contrário: «Marlière tem grande esperança na sua civilização; mas em que ajudam belas

idéias quando homens perversos destroem de um lado o que é construído de outro? Assim acontecem aos pobres puris ainda maiores crueldades onde eles são vigiados pelas divisões.»66

E mais: «Um rico proprietário das redondezas onde os puris recentemente se estabe-

leceram sugeriu ao diretor que se poderia misturar azinhavre à sua comida a fim de dar cabo deles. O comandante do distrito de Santana dos Ferros me disse abertamente, numa oportunidade em que eu conversava com ele sobre aqueles puris, que agora seria a melhor oportunidade para extinguir tal povo de uma só vez (...). Eu conheço até mesmo alguns sacerdotes que apoiam esta idéia.»67

A resistência inicial ao modelo civilizacional europeu era uma reação compreensível.68 Ademais, a imensa maioria dos coroados e coropós não chegara a adquirir conhecimentos básicos da língua portuguesa. Nestas condições, a conversão ao catolicismo seria ainda impensável. Os batismos e a assistência ao culto não implicavam o abandono do antigo cosmos sagrado mas inseria-se, para muitos dos «pacificados», numa espécie de «política de boa vizinhança» e, por que não dizêlo, numa estratégia de sobrevivência. Nos domingos e dias santos os sub-diretores os levavam às capelas, onde os vigários procuravam ensiná-los a rezar. Logo em seguida, porém, cuidavam os índios de visitar Marlière e dizer-lhe: «Capitão, tenho fome. Eu estava na igreja».69 Diferentemente dos africanos, cujos complexos sistemas politeístas ofereceram as condições para uma rápida incorporação criativa dos cânones católicos, nos xamanismos ameríndios não havia «afinidades eletivas» capazes de facilitar o processo de aculturação religiosa.70 Ao visitar a aldeia de Santo Antônio, Saint-Hilaire espantou-se ao perceber que um índio va66 67 68

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Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 103. Eschwege, Journal von Brasilien, I, pp. 103-104. O que não quer dizer que a posterior aculturação tenha inviabilizado a reconstrução da identidade indígena. Ver as oportunas reflexões de Mattos, Izabel Missagia de. «Temas para o estudo da história indígena em Minas Gerais ». In: Cadernos de História 5 (6) 2000: 5-16. Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 148. Sobre a religião dos principais grupos indígenas que habitavam o território mineiro, ver Steward, Julian (ed.) Handbook of South American Indians. New York: Cooper Square, 1963, vol. I, pp. 523-545. Para uma visão panorâmica, conferir Wright, Robin M. and Cunha, Manuela C. da. «Destruction, resistance, and transformation – Southern, Coastal, and Northern Brazil (1580-1890)». In: Salomon, F. and Schwartz, S. (ed.) The Cambridge History of the Native Peoples of The Americas. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, vol. III, part 2, pp. 287381.

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lia-se da palavra tupã para designar tanto Deus quanto o santo da capela.71 Dois representativos exemplos são dados por Freireyss, que esteve no presídio de São João Batista em 1814. Marlière deixou seu cãozinho com um coroado para que este o curasse dos ferimentos que sofrera devido a um ataque de porcos famintos. Dois dias depois o índio se apresentou ao Diretor dos Índios com a notícia da morte do pobre animal, não sem deixar de acrescentar: «como o cão era de um amigo, enterrei-o e pus uma cruz no túmulo».72 E continua o mesmo viajante: «Tinha-se contado aos índios batizados há pouco a história de São Manuel, não poupando as narrações de seus milagres. Ao mesmo tempo estava-se construindo uma igreja no presídio e no dia da inauguração da capela provisória a imagem de São Manuel devia ser ali depositada. Curiosos por conhecer o milagroso santo, muitos índios tinham chegado, mas, quando viram que a imagem era de madeira, voltaram todos para as suas matas. Acreditavam que se fazia caçoada deles e diziam que o santo era de pau e que pau só era pau e não tinha ação nenhuma».73 Em Mercês, reza a tradição local, a primeira capela foi destruída pelos índios, que lhe atribuíram um violento surto epidêmico que grassava naquela região.74 O mesmo fenômeno deu-se em Itambacuri, onde uma epidemia de sarampo fez com que os índios acusassem os padres de feitiçaria e queimassem o aldeamento.75 Esta atribuição de epidemias ao sagrado cristão é tão mais interessante quando se sabe que, para o catolicismo popular luso-brasileiro, a relação é exatamente inversa. Segundo o Códice Matoso, o sítio de Guarapiranga (atual cidade de Piranga) era, em seus primórdios, «muito infestado de sezões». Em 1695 construiu-se a capela de Nossa Senhora da Conceição. Com a vinda do vigário nomeado, padre Roque Pinto de Almeida, «foi o caso milagroso que logo que foi benzida e os ares cessaram as sezões, sarando os que as tinham, e ficou este distrito [o] mais sadio das Minas».76 Itambacuri foi o primeiro aldeamento mineiro dirigido por uma ordem religiosa. Os responsáveis por este projeto «heterotópico», os capuchinhos Serafim de Gorizia e Ângelo de Sassoferrato, foram nomeados pelo governo em 1872 e iniciaram suas atividades no ano seguinte. Sua missão era aldear os botocudos e evitar os conflitos entre estes e os colonos no Vale do Mucuri, os quais vinham se agravando desde a falência da Companhia de Comércio de Teófilo Otoni. «Civilização», catequese e urbanização eram ainda os três princípios que norteavam a política indigenista no Brasil, como demonstram as palavras de Frei Ângelo ao referir-se ao local onde deveriam se estabelecer: «Devia ser quanto possível um ponto central, que deparasse belo horizonte visual, e onde se pudesse formar uma

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Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., I, p. 359. Freireyss, G. W. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p. 96. Freireyss, op. cit., p. 98. EMB, vol. 26, p. 87. Paraíso, «Os botocudos...», p. 420. CCM, p. 257.

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aldeia, uma freguesia e até uma cidade».77 Izabel Missagia de Mattos, que tem se dedicado à análise sistemática da história de Itambacuri, caracteriza esta iniciativa como «empreendimento missionário-civilizador».78 Em 1902 o bispo coadjuntor de Mariana visita Itambacuri, e afirma ser «ótima» a sua igreja. O mestre dos índios era então João Alves Correia, «bisneto duma índia de São Miguel do Jequitinhonha, pegada a dente de cães». Para o prelado a morte dos «heróis» fundadores do aldeamento (ocorrida em 24 de maio de 1893) fora fruto da «traição dos índios». Existia ainda no lugar um recolhimento com 14 meninas, «a quem uma índia aranã ensina a ler».79 O aldeamento não resistiu às hostilidades e massacres cometidos ora pelos moradores da região, ora pelos próprios índios. O núcleo, porém, firmou-se e em 1911 foi finalmente elevado a distrito.80

4.3

Proto-urbanização e cosmos sagrado

No terceiro capítulo de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque diagnosticou um «predomínio esmagador do ruralismo» no Brasil Colônia.81 Esta convicção encontrou eco na obra de autores como Oliveira Vianna, para o qual o homem brasileiro colonial era marcado pelo «gosto do insulamento» e mesmo por uma «tendência antiurbana».82 Que tenha havido indivíduos que pelos mais distintos motivos buscavam a solidão nos sertões, é ponto pacífico. Porém, a grande diáspora que marca o processo de ruralização em Minas na segunda metade do século XVIII foi claramente deflagrada pela queda da produção de ouro. A agricultura assume, gradativamente, a condição de atividade econômica predominante. O espaço do mundo da vida não é mais a lavra à margem de um curso d’água ou a grupiara, mas a fazenda. Esta transição deve ter exercido uma influência que certamente não se limitou à imposição de outras formas de subsistência no novo Lebensraum. Pode-se imaginar o impacto decorrente deste processo sobre a percepção ambiental de homens até então habituados à paisagem cultural das «vilas do ouro». A tese do antiurbanismo colonial não se sustenta porque pressupõe que aqueles homens, depois de se espalharem pelo território mineiro, não teriam produzido forças capazes de contrabalançar e mesmo reverter tal dispersão.83 A religião foi 77 78

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Citado por Palazzolo, Frei Jacinto de. Nas selvas dos Vales do Mucurí e do Rio Doce. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1954, p. 61. Mattos, Izabel Missagia. ‹Civilização› e resistência: revolta indígena no aldeamento missionário de Itambacuri – 1893. Relatório científico apresentado ao doutorado em Ciências Sociais da Universidade de Campinas, 2001, p. 26. AEAD, cx. 49 (Livro de visita pastoral de Dom Joaquim Silvério de Souza). Paraíso, «Os botocudos...», pp. 419-420; DHGMH, pp. 160-161. Holanda, Raízes do Brasil, p. 60. Vianna, Instituições políticas brasileiras, vol. I, p. 102. A solução de Freyre demonstra ser bem mais factível: «Talvez não haja exagero em

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uma das mais importantes destas forças. A ponto de podermos afirmar, sem qualquer receio de violentar os fatos: ela produziu cidades.84 Por meio da análise da história das primitivas capelas e seus patrimônios veremos como isso foi possível. É necessário estabelecer aqui, de antemão, uma distinção importante. Não se trata simplesmente de reconstituir a trajetória deste ou daquele município, mas sim de demonstrar como o universo das representações religiosas deu vida aos arraiais mineiros. No seu Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, Waldemar Barbosa contribuiu, e muito, para que o empenho inicial dos geógrafos recebesse o devido tratamento historiográfico. Todavia, apesar de ter tido em mãos muitas das fontes das quais nos utilizaremos (pedidos de provisão, escrituras de doação de terras, relatórios enviados às autoridades civis e eclesiásticas), Barbosa não as explorou a fundo. É compreensível que um trabalho nas dimensões do que ele empreendeu não pudesse aprofundarse no estudo dos casos; a tarefa deveria ser levada a cabo pelas novas gerações de historiadores. O presente estudo deve ser entendido nesta perspectiva. Por outro lado, não nos interessa apenas a gênese das formas elementares do espaço urbano mineiro, mas também identificar as formas de religiosidade popular que permearam – e em grande medida presidiram – este processo. A documentação em questão tem muito a dizer a este respeito. No capítulo precedente, ao fim de nossa discussão sobre o problema das ermidas domésticas, concluímos que elas eram, antes de mais nada, fruto da intensa demanda pelo sacrifício da missa. Some-se a isto as dificuldades impostas pelas distâncias e/ou pela precariedade das vias de acesso à sede paroquial mais próxima. Afirmamos que o culto realizado numa ermida só se diferenciava daquele celebrado em qualquer outro templo por sua «escala», mas não pela sua natureza. Como veremos a seguir (seção 4.3.1), a ereção de capelas e a constituição de seus respectivos patrimônios em terras – embrião de tantas de nossas vilas e cidades – se assentou sobre as mesmas bases. Mas se no caso das ermidas domésticas a iniciativa parte de um único proprietário que arca com todos os gastos, no caso das capelas isso se dá bem mais raramente. Em razão dos altos custos envolvidos, são quase sempre grupos de moradores que se organizam para construir um templo onde possam receber de um sacerdote o indispensável «pasto espiritual». Mesmo quando a constituição do patrimônio «do santo» é feita por um único doador, o processo como um todo tem um caráter nitidamente coletivo. Diante disso, há que matizar a afirmativa de Julita Scarano, de que o grande número de templos

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dizer-se do brasileiro que (...) é um predisposto à rurbanidade, isto é, a um misto de urbano e de rural, de desenvolvimento e de estabilização (...). Uma forma de existência nem sempre atingida mas quase sempre desejada por todo brasileiro». Freyre, Sobrados e Mocambos, p. 20. Dorn mostrou como freqüentemente «há um incontestável paralelismo cronológico entre a fundação de um lugar e a fundação de uma igreja». Dorn, Johann. «Patrozinienforschung und Ortsnamenkunde». In: Zeitschrift für Ortsnamenforschung (8) 1932: 3-8, p. 5.

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no território mineiro85 se deveu à existência das irmandades. Não é verdade que «apenas agremiações solidamente constituídas teriam tido possibilidade de levar a cabo tais obras».86 Na pré-história dos arraiais e vilas, a devoção coletiva não estava ainda institucionalmente enquadrada sob a forma de irmandades. É revelador que a principal preocupação expressa na grande maioria dos documentos analisados seja a necessidade de «cumprir com o preceito da missa». Menciona-se também, é verdade, o «escândalo» em que vivem aquelas populações privadas dos sacramentos. A eucaristia e a penitência, únicos sacramentos a serem periodicamente «renovados», normalmente só eram recebidos uma única vez por ano, na Quaresma (ocasião da chamada desobriga).87 É bem sabido que para a Igreja Católica os «meios de salvação» constituíram um instrumento de disciplinarização dos fiéis e de imposição da religião oficial.88 Um Dom Frei Manoel da Cruz determina numa visita pastoral em Catas Altas no ano de 1743: «Não deve o reverendo pároco admitir ao sacramento do matrimônio a pessoa alguma sem que saiba a doutrina cristã nem confessor algum absolver a penitente que ignorar a dita doutrina».89 Esta estratégia provavelmente nunca se mostrou totalmente eficaz. Em 1825, escrevia Dom Frei José: «Porquanto a ignorância da doutrina cristã é digna de lástima, ordenamos a todos os confessores, e com pena de suspensão ipso facto, não admitam a penitente algum a Confissão, em especial da desobriga, sem preceder exame da doutrina».90 Na freguesia de Barra Longa, ainda segundo o mesmo bispo, houve pessoas que «amotinadamente se queixaram da negação do pároco em admití-los a sacramentos».91 No caso do batismo e mesmo da extrema-unção a dependência dos leigos em relação ao clero podia ser relativizada. Havia circunstâncias em que o povo se «apropriava» dos sacramentos. A própria Igreja permitia que, em casos extremos, o batismo pudesse ser ministrado por qualquer pessoa.92 Em 1769, Inácio Correia Pamplona encontrou no sertão oeste de Minas «um homem por nome Valentim, 85

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«Em nenhuma província brasileira a evidente desproporção entre o número de habitantes e o de igrejas se manifesta em tão alto grau como em Minas Gerais». Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, p. 52. Scarano, Devoção e escravidão, p. 83. CAB, livro I, título XXXVI, 139. A este respeito, ver o interessante estudo de Hahn, Alois. «Zur Soziologie der Beichte und anderer Formen institutionalisierter Bekenntnisse: Selbstthematisierung und Zivilisationsprozess». In: Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie (34) 1982: 408-434. Ver também Harnack, Dogmengeschichte, pp. 405414, 431-436. AEAM, 1° livro de pastorais e provisões de bispos visitadores. Trindade, Visitas pastorais, p. 259. Trindade, Visitas pastorais, p. 166. CAB, livro I, título XIII, 43. «Na zona rural de Itaipava, os moradores antecipam o batismo. Mal a criança nasceu chamam os padrinhos e com uma canequinha, água, sal e um raminho de arruda ministra-se o batismo». Willems, Uma vila brasileira, p. 150.

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oficial de Alfaiate, mui porco e muito sujo, que dizem era o homem que encomendava os defuntos».93 De uma maneira geral, os baixos níveis de sacramentação são uma constante nos séculos XVIII-XIX. Uma história dos sacramentos provavelmente tem menos a nos dizer sobre o cotidiano da religião da gente comum na Minas antiga que uma história do culto.94 Adalgisa Campos observa, a respeito da Minas colonial, que «mais do que a participação na eucaristia, (...) é importante estar presente à celebração».95 Embora a vida religiosa se expressasse por meio de inúmeros atos de devoção, como as invocações e orações nos momentos «críticos» do dia-a-dia (antes de levantarse e de dormir, ao sair de casa, antes das refeições, na hora do Ângelus) ou na reza do terço, o seu ponto alto dava-se sem dúvida na assistência ao culto dominical. Estamos aqui diante de um estilo de religiosidade, como bem mostrou José Comblin, no qual «a forma é o suporte da devoção».96 Este ponto merece aprofundamento. A religião configura um campo da vida coletiva por meio do qual se dá a ler a lógica do edifício social, e a Minas antiga certamente não faz exceção à regra. Affonso Ávila mostrou que a civilização barroca mineira era marcada pela «busca deliberada da sugestão ótica». O prazer «quase sensual diante das cores e formas», a empolgação «pelo rito da religião e pela magia do ouro» condicionava-lhe os hábitos e maneiras como um todo.97 Esta mentalidade não se limitou aos principais centros urbanos da época, e muito menos se confinou ao setecentos. Obviamente, o esplendor das grandes matrizes, festas e procissões urbanas só pôde se maximizar tanto em virtude da mineração. Com a diminuição da produção de ouro e a subseqüente ruralização, nada mais natural que também o barroco entrasse em «declínio». Mas a progressiva supera93 94

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diária e individual das marchas e acontecimentos...». In: Anais da Biblioteca Nacional (108) 1988, p. 58. A menção aos sacramentos nas correspondências enviadas às autoridades não deve ser necessariamente tomada como uma prova de que eles eram colocados num mesmo patamar de impotância que a prática do culto dominical. Uma hipótese a ser considerada é a de que este procedimento seria, antes, uma estratégia de legitimação dos próprios pedidos. No catolicismo popular observa-se, por vezes, uma postura bastante cética em relação à penitência. Veja-se o que alguns dos moradores de Cruz das Almas declararam a Donald Pierson: «This business of confessing is not for me. Why should I be telling things to another man?»; «I’m a Catholic but I don’t go to confession. That is nonsense»; «Whenever I can, I go to Mass. But to confess – that’s another thing. You should confess your sins only to the Father in Heaven; isn’t that so?». Pierson, Cruz das Almas, p. 157. Campos, Adalgisa Arantes. A terceira devoção do setecentos mineiro: o culto a São Miguel e Almas. São Paulo: tese de doutorado em história, USP, 1994, pp. 261-262. Comblin, José. «Para uma tipologia do Catolicismo no Brasil». In: REB 28(1) 1968: 46-73, p. 60. Ávila, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. Textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: UFMG, 1967, vol. I, pp. 85 e 108.

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ção de um estilo artístico não significa que a visão de mundo que lhe serviu de base tenha se desagregado com a mesma velocidade. Nosso catolicismo popular permaneceu profundamente marcado por este «primado do visual» (Ávila). É precisamente a missa o momento da vida social em que esses componentes estruturais da religião e da cultura mineira antiga podem ser melhor percebidos. Poder-se-ia dizer, em contraposição a esta tese, que dificilmente terá havido eventos que sintetizassem melhor a visão de mundo barroca que os ritos fúnebres. É possível. Mesmo a frenética atividade das confrarias e ordens terceiras girava, em larga medida, em torno da garantia de sepultamento e da realização de um funeral adequado («verdadeira obcessão» dos tempos coloniais, diz Boschi).98 Que os ritos funerários sejam investidos de uma dramaticidade infinitamente superior à de uma celebração dominical, não deveria mesmo causar-nos surpresa. Afinal, para o cristão, só é possível morrer uma vez. Porém o que torna o sacrifício da missa tão interessante é o fato de que ele – como todo rito – é dotado de um caráter extra-cotidiano sem com isso distanciar-se de forma radical do cotidiano da vida. E reciprocamente: ele é rito periódico sem com isso reduzir-se a uma mera rotina. Seria ingênuo imaginar que tamanha ênfase no culto se deveu apenas a constrangimentos eclesiásticos. Como se sabe, o ritualismo era um traço marcante da cultura portuguesa que manteve-se intocado entre nós.99 Ele impregnava todas as expressões, todos os campos da vida. As vozes dissonantes só faziam confirmar a regra. Em meados do setecentos, Mathias da Silva Eça lamentava: «a vida civil se reduz a um cerimonial composto de genuflexões, e de palavras».100 O serviço religioso era o momento onde este ritualismo assumia uma expressão particularmente nítida, como se pode perceber nesse conselho de Eschwege aos futuros viajantes interessados em percorrer Minas Gerais: «Tudo o que tem a ver com as boas maneiras e o cerimonial deve ser aqui ri-

gorosamente observado, do contrário perde-se muito facilmente o respeito. Um homem inteligente nunca se omitirá com relação a assuntos religiosos, mas visitará as igrejas do país mesmo quando declarar-se adepto de outra religião. Com isto ele ficará livre de muitas observações desagradáveis, tanto por parte das pessoas de melhor condição quanto da plebe.»101 Boschi, Os leigos e o poder, p. 150. O que não é exatamente uma originalidade: «na maioria das sociedades, os funerais são uma oportunidade de ostentação », diz Leach, Sistemas políticos da Alta Birmânia, p. 176. Segundo Scarano, oito dos vinte ítens que compunham o compromisso da irmandade do Rosário do Serro tratavam do tema da morte. Scarano, Devoção e escravidão, p. 53. 99 Willems, Emílio. «Portuguese culture in Brazil». In: Proceedings of the International Colloquium on Luso-Brazilian Studies. Nashville: The Vanderbilt University Press, 1953, pp. 66-79. 100 Eça, Mathias Aires Ramos da Silva. Reflexões sobre a vaidade dos homens, ou discursos morais sobre os efeitos da vaidade. Lisboa, 1752, p. 56. 101 Eschwege, Journal von Brasilien, vol. I, p. 20. 98

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Meio século mais tarde, Burton reclamava ainda do «penoso desdobrar de cerimônias» de que se cercavam os mineiros.102 Ao se dirigir ao templo, a mãe de família sai processionalmente com as filhas em fila indiana, dispostas por ordem de idade. Ao fim, caminha seu vigilante marido.103 Este procedimento demonstra não só a solenidade de que se reveste o dia do culto, mas também que o espaço é percebido pelos atores sociais como uma dimensão heterogênea. O que é uma procissão? Ela é uma «oração pública feita a Deus por um comum ajuntamento de fiéis disposto com certa ordem, que vai de um lugar sagrado a outro lugar sagrado».104 O mesmo formalismo e a mesma disciplina podem ser observados no cortejo das devotas famílias mineiras. A casa é o espaço sagrado do qual parte esta procissão em miniatura, e a igreja o espaço sagrado para onde ela se dirige. Aos domingos a indumentária assume uma importância capital. O sacrifício da missa é um evento sagrado, de modo que a ninguém ocorre a idéia de assisti-lo com as vestes do dia-a-dia. A íntima relação entre o dispositivo ritual e essas «máquinas de comunicar» que são as roupas sempre foi, de resto, ressaltada pelos antropólogos.105 O caso de Nossa Senhora de Nazaré (ver seção 3.3) mostra que as primeiras casas levantadas ao redor da capela não são «residências». Elas são – inicialmente, pelo menos – um mero abrigo onde as pessoas vindas de longe para a celebração recolhem seus pertences e onde podem trocar de roupa «para decentemente assistirem no templo».106 Esta preocupação era generalizada entre os católicos, independente de etnia ou condição social. Em princípios da década de 1720, um certo capitão Matias Barbosa ia à missa com sua consorte índia «calçada, bem vestida de manto e com outras escravas que os acompanham».107 Nuno Marques Pereira narra as dificuldades da esposa de um fazendeiro em fazer com que suas escravas assistissem às celebrações. Elas recusavam-se a fazê-lo sem sua senhora, e, «chegando a irem, há de ser com todo o preparo e roupas, como as mais escravas de suas vizinhas».108 Burmeister nota que, no dia do Senhor, em Congonhas, «o grande número de pessoas elegantemente vestidas surpreende, e pensamos encontrar-nos numa feira européia. Mas a ilusão não dura. No dia seguinte tudo muda: calças rôtas, sapatos gastos, saias sujas e remendadas e cha102 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 335. 103 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, pp. 118-119; Burmeister, Viagem

ao Brasil, p. 248. 104 CAB, livro III, título XIII, 488. 105 «The best clothes owned are worn to Mass», diz Pierson, Cruz das Almas, p. 154.

Ver também Leach, Cultura e comunicação, pp. 68-69; Da Matta, Carnavais, malandros e heróis, pp. 50-52. 106 APM (AHU), cx. 162, doc. 9. 107 Citado por Resende, Maria L. Chaves de. «Brasis coloniales: o gentio da terra nas Minas Gerais setecentista (1730-1800)». Trabalho apresentado no encontro da Latin American Studies Association, Washington, setembro de 2001, p. 13. 108 Pereira, Compêndio narrativo..., vol. I, p. 183.

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péus velhos substituem os elegantes trajes domingueiros».109 A missa não dura muito mais que 15 minutos, e é acompanhada em silêncio. Como todo bom representante do anti-ritualismo moderno110, Burmeister irrita-se com a preocupação das pessoas em se apresentarem bem vestidas à igreja. Para ele a participação no culto se resumia «a uma feira de vaidades». Burton teve uma percepção diferente quando de sua visita à mina de Morro Velho, onde assistiu sucessivamente o culto na capela protestante e a missa na capela católica. Seu testemunho: «Depois de passar muitos dias sem ouvir uma ladainha inglesa, não podemos deixar de pensar na observação do oratoriano Dr. Newman, isto é, que ‹o protestantismo é a mais triste das religiões›».111 Reunidos para assistir a missa, ele encontrou um grande número de pessoas, na sua maioria negros. Após serem acossados por um sacristão ávido de contribuições, «todos entraram, os brancos tomando lugar à frente e os pretos atrás, os homens de pé e as mulheres sentadas no chão. O velho costume continua no interior; somente nas cidades mais civilizadas do Brasil, as igrejas dispõe de bancos. Todo o mundo vestia trajes domingueiros; a capela estava repleta de tulipas (...). A conduta do ‹rebanho› era, sob todos os aspectos, exemplar; seus cantos eram mais entoados e havia mais fervor que na igreja rival.»112

Em Congonhas a disposição dos fiéis nas igrejas obedecia ao mesmo critério de divisão por sexo e condição sócio-racial: mulheres na nave central, ajoelhadas no chão; homens livres de pé, nos fundos ou laterais; os escravos em frente ou ao lado da porta de entrada. Tal como nas procissões e mesmo nos cemitérios, o lugar ocupado por uma pessoa ou grupo era a expressão visível da sua situação na hierarquia do mundo. A historiografia centrou-se sobretudo nesta dimensão das celebrações públicas na Minas Colonial. Para autores como Adalgisa Campos113, Júnia Furtado114, Iris Kantor115 e Laura de Mello e Souza116, trata-se de momentos que refletem, ao mesmo tempo que reforçam, a ordem e o controle social. Há, porém, o outro lado da moeda. As ciências sociais ressaltam, pelo menos desde Durkheim, que o rito exerce uma função-chave no processo de socializa109 Burmeister, Viagem ao Brasil, p. 248. 110 Soeffner, Hans-Georg. «Rituale des Antiritualismus – Materialien für Außeralltäg111 112 113 114 115 116

liches». In: Soeffner, Die Ordnung der Rituale, pp. 102-130. Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 197. Burton, op. cit., p. 198. Grifo nosso. Campos, Adalgisa Arantes. «A visão nobiliárquica nas solenidades do setecentos mineiro». In: LPH – Revista de História (6) 1996: 111-122. Furtado, Júnia Ferreira. «Desfilar: a procissão barroca». In: RBH 17(33) 1997: 251279. Kantor, Iris. «Notas sobre a aparência e visibilidade social nas cerimônias públicas em Minas setecentista». In: Pós-História (6) 1998: 163-174. Souza, Laura de Mello e. «Festas barrocas e vida cotidiana em Minas Gerais». In: Jancsó, István e Kantor, Iris (orgs.) Festa. Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Edusp/Hucitec, 2001.

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ção. Ele desempenha, no dizer de Maffesoli, o papel de coagulant social.117 Numa palavra: se para o historiador o rito «separa», para o cientista social ele «une». Evidentemente, as duas linhas de interpretação não se excluem mutuamente. Os ritos reforçam a unidade do corpo social sem que isso implique uma pura e simples anulação das diferenças existentes. Enquanto alguns deles prestam-se mais à representação e delimitação das fronteiras sociais, com outros dáse o contrário.118 As duas dimensões estão sempre presentes, em maior ou menor grau, conforme o rito em questão. Ora, o caso da missa demonstra de maneira clara a predominância do fator communitas. Se a necessidade da participação freqüente no culto leva à ereção de uma capela e à constituição do respectivo patrimônio em terras (ou seja, à formação do embrião urbano), é forçoso reconhecer que a análise da origem de muitos dos arraiais mineiros demonstra a que ponto o rito produz – e reproduz – o social. A capela e o arraial são as expressões materiais e espaciais da força sociogenética do fenômeno religioso. O serviço religioso é uma das mais privilegiadas formas de «socialização do extraordinário»119 nos séculos XVIII e XIX. Mais que estreitar os laços entre os viventes, ele estabelece uma ponte entre o mundo da vida e o «outro mundo». Para a mentalidade católica tradicional a celebração é investida de enorme eficácia, quando não de uma potência «mágica». Uma interessante conseqüência desta crença foi a prática de se instituir a própria alma como herdeira nos testamentos. Os bens deveriam ser revertidos para a celebração de missas por intenção da alma do falecido. Quando se tratava de membros das camadas sociais mais elevadas, atingiam-se por vezes números impressionantes. Matias Barbosa da Silva, o fundador do arraial de Barra Longa, determinou em seu testamento a celebração de 5.200 missas por sua alma.120 As autoridades portuguesas apressaram-se a coibir o que consideravam ser um excesso, mas ainda assim continuaram a permitir que cerca de 100$000 réis fossem reservados para esse fim. O que garantia a celebração de aproximadamente 167 missas.121 No tempo em que Langsdorff esteve no Distrito dos Índios Coroados, o preço cobrado por uma missa era duas a três vezes superior ao praticado na Corte. Como faltavam sacerdotes em Minas, enviava-se o dinheiro para o Rio de Janeiro a fim de se conseguir a celebração de 117 Maffesoli, Michel. «Le rituel dans la vie sociale». In: Lambert, Jean-Clarence (dir.).

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Roger Caillois. Témoignages, études et analyses. Paris: De la Différence, 1991, pp. 366-372. Para Roberto da Matta o rito é «veículo da permanência e da mudança. Do retorno à ordem ou da criação de uma nova ordem, uma nova alternativa». Da Matta, Carnavais, malandros e heróis, p. 33. A expressão é de Luckmann, Thomas. «Riten als Bewältigung lebensweltlicher Grenzen». In: Schweizerische Zeitschrift für Soziologie (3) 1985: 535-550, p. 544. DHGMG, p. 44. Chamon, Carla Simone. «O bem da alma: a terça e a tercinha do defunto nos inventários do século XVIII da comarca do Rio das Velhas». In: VH (12) 1993: 5865.

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missas.122 Segundo Saint-Hilaire, na maior parte das paróquias de Minas Gerais fazia-se uma procissão antes da missa para o resgate das almas do purgatório. Ele diz ter encontrado em todas as tabernas «um tronco em que estão pintadas figuras rodeadas de chamas, e que é destinado a receber as esmolas que se querem fazer às almas do purgatório».123 Acredita-se ser possível «interceder» a posteriori no destino dos que partiram: os mortos precisam dos vivos tanto quanto os vivos dos mortos. Por meio do serviço religioso o contato entre uns e outros adquire um caráter periódico. Conseqüentemente, a missa pode ser considerada um enclave do extra-cotidiano no cotidiano da vida. De onde vem a sua potência «mágica»? Jung mostrou que a missa, como evidencia a expressão corrente, é um «sacrifício». Não um sacrifício qualquer, mas sim sacrifício da divindade. Esta imolação ritual de Cristo é sub-repticiamente reconhecida pela própria Igreja: o Concílio de Trento estabeleceu que na missa idem ille Christus continetur et incruente immolatur. Por outro lado, a missa representa a reatualização do mistério/milagre da encarnação. O ponto alto da celebração é precisamente o ato de consagração, uma vez que nele Cristo tornar-se-ia corpo presente. O sentido da missa, conclui Jung, «é a communio do Cristo vivo com seus fiéis».124 * * * Nosso objetivo aqui não é traçar um painel da prática religiosa em Minas Gerais nos séculos XVIII-XIX, mas meramente o de chamar a atenção para a longa duração das suas formas. De fato, a análise da missa nos mostra uma impressionante estabilidade a nível formal. Este aspecto relaciona-se com aquilo que, no entender de Sanchis, seria um dos elementos definidores da identidade católica: a sua «insistência quase obcessional (...) sobre a importância do significante».125 Uma tendência que parece ter sido acentuada, em Minas, por fatores como a forte influência do padrão de religiosidade portuguesa, o relativo isolamento geográfico e a manutenção das tradicionais estruturas sócio-econômicas. Esta impressionante estabilidade das formas rituais – inclusive daquelas mais estreitamente ligadas ao universo religioso popular –, por sua vez, pode ser entendida como um indício razoavelmente seguro de uma estabilidade correspondente ao nível das representações coletivas.

122 Da Silva, Os diários de Langsdorff, I, 216. 123 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, p. 200. 124 Jung, Carl Gustav. «Das Wandlungssymbol in der Messe». In: Jung, C. G. Zur

Psychologie westlicher und östlicher Religion. Düsseldorf: Walter-Verlag, 1995, pp. 222-223, 230, 231-232, 238, 282. 125 Sanchis, Pierre. «Uma ‹identidade católica›? ». In: Cadernos do ISER (22) 1986: 516, p. 7.

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Diferentemente daqueles que insistem na tese do «exteriorismo» do catolicismo tradicional,126 nada vemos de arcaico ou anômalo nesta perenidade das formas e neste apego às formas. Os historiadores que falam em «exterioridade» nada mais fazem que projetar no passado duas ilusões tipicamente modernas. De um lado, a ilusão (etnocêntrica) de que somente a experiência religiosa interiorizada, ascética, seria efetivamente «autêntica»; e de outro lado a ilusão (anacrônica) de que já não vivemos hoje sob o jugo de incontáveis práticas rituais.127 Sendo a atitude anti-ritualista um fenômeno relativamente recente na história do Ocidente, não há como fazer dela o ponto de referência a partir do qual nos propomos a entender visões de mundo que não se orientavam pela mesma pré-disposição à rejeição da importância social dos ritos. Tomando de empréstimo uma formulação de Arnold Gehlen (e que somente à primeira vista parece ser contraditória), diríamos que na Minas antiga forms are the food of faith.128

4.3.1 Capela-patrimônio-arraial Os pedidos de autorização para a construção de capelas permitem-nos visualizar alguns aspectos da religião popular da Minas antiga que nem sempre podem ser percebidos por meio de fontes como visitas pastorais, testamentos, devassas ou processos inquisitoriais. Deve-se ter em mente que os autores destes pedidos habitam regiões afastadas das sedes paroquiais. Neste estágio a sua vida religiosa é, por assim dizer, «livre». Claro está que o próprio fato de terem de se submeter aos mecanismos de controle oficiais mostra que esta autonomia não tem como se manter indefinidamente. A religião popular vive, pois, num equilíbrio dinâmico entre os constrangimentos institucionais e a fidelidade às suas próprias práticas e representações. Com a realização mais ou menos freqüente de missas na capela essa relação de forças ainda não será substancialmente alterada. Mesmo quando o arraial cresce e se torna sede paroquial, novas capelas continuam a surgir. Este aumento do número de templos se deve basicamente a dois fatores. O orago da matriz, que na gênese do arraial simbolizava a unidade de 126 Citemos apenas um exemplo entre muitos. Tinhorão, referindo-se aos negros bra-

sileiros, afirma existir entre eles uma «tendência para a integração no catolicismo, levada sempre mais pelas exterioridades do culto do que pela assimilação dos conceitos teóricos da fé (...)». Tinhorão, José Ramos. Os negros em Portugal. Lisboa: Caminho, 1988, p. 139 (grifo nosso). 127 Para uma discussão mais detalhada, ver Da Mata, «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas Colonial», pp. 50-51; Soeffner, Gesellschaft ohne Baldachin, p. 30; e Maffesoli, «Le rituel dans la vie sociale», pp. 369-370. 128 Gehlen, Arnold. Urmensch und Spätkultur. Bonn: Athenäum, 1956, p. 27. Esta tendência, típica de sociedades tradicionais, parece ter sido levada à sua expressão máxima na China antiga. Os chineses, diz Granet, «não crêem que a alma dê vida ao corpo; antes, diríamos, acreditam que a alma só aparece após um enriquecimento da vida corporal». Granet, O pensamento chinês, pp. 243-244.

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todo o grupo, tem de dividir esta função com outros oragos à medida em que o núcleo se estabiliza e cresce em população. O que está em questão, neste caso, é menos um processo de polarização que o reflexo do caráter multifacetado da própria devoção popular. Ao mesmo tempo, a complexidade crescente da estrutura social do embrião de cidade pode também se manifestar por meio da progressiva organização de distintos grupos organizados segundo critérios sociais, étnicos e – last but not least – religiosos: as irmandades. Não nos ocuparemos com elas neste trabalho, haja vista os inúmeros estudos feitos a respeito nas últimas décadas. O que importa perceber é que a expansão da rede de templos mantém íntima relação com a formação de novos bairros (muitas vezes por meio de um mecanismo idêntico ao que deu origem à povoação) e o nível crescente de complexidade morfológica do arraial. Uma vez atingido este estágio, a presença institucional da Igreja começa a exercer uma influência cada vez maior sobre os distintos grupos, o que significa que o espaço ocupado pela religião popular tende a diminuir numa relação inversa à do avanço do processo de urbanização. Esta interessante dialética entre sagrado e produção do espaço vai de encontro ao modelo desenvolvido pela geografia da religião. Dinâmica religiosa e dinâmica ambiental condicionam-se reciprocamente.129 Resumido o processo em suas linhas gerais, passemos agora à apreciação dos casos concretos. Para tanto, nos utilizaremos de fontes eclesiásticas e não-eclesiásticas. Como todas as terras do Brasil pertenciam ao padroado da Ordem de Cristo, da qual o soberano português era o grão-mestre, os pedidos de ereção de capelas deveriam obter autorização não só junto à autoridade diocesana, mas também junto à Coroa.130 Vejamos um caso típico. Em 29 de março de 1742, Alexandre Gomes de Souza e o alferes João Ferreira da Silva escrevem ao bispo do Rio de Janeiro afirmando ter «suas fazendas de roçar e minerar na freguesia da Conceição de Guarapiranga (...) em distância da matriz quinze ou dezesseis léguas pouco mais ou menos, para a qual não podem vir senão embarcados em canoa com grande risco de vida pelo rio caudaloso, e nas ditas fazendas têm feitores e escravos (...) e os suplicantes são homens casados e com grandes famílias que entre ambos têm perto de duzentas pessoas e também na dita paragem e sertão estão já situados muitos moradores, e outros que de novo se vão situando, onde não podem comodamente ser socorridos com os sacramentos nem satisfazer ao preceito de ouvir missa, e atendendo os suplicantes aos ditos inconvinientes querem erigir uma capela no sítio 129 Ver seção 2.4.2. 130 Não dispomos das datas da maioria dos pedidos enviados ao Conselho Ultrama-

rino. Mas como estes, via de regra, demoravam cerca de um ano para serem respondidos, é possível estimar de forma aproximada quando os mesmos foram feitos. Mencionaremos no corpo do texto os anos prováveis de envio das correspondências a Portugal. Nas notas de pé de página a referência ao documento citado será seguida, quando necessário, da data do respectivo despacho do Conselho Ultramarino.

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chamado São João com a invocação do mesmo santo [São João Batista] para o que apresentam a escritura de patrimônio para a sustentação da capela e certidão do reverendo pároco da sobredita freguesia».131 O fazendeiro Hipólito Gonçalves Barbosa, morador do caminho novo para o Rio de Janeiro (comarca de São João del-Rei), requereu em 1787 ou 1788 autorização para fazer uma capela. Ele afirmava «ter família numerosa, muitos filhos e escravos para cultivarem as terras que por sesmaria alcançou». Era sua intenção pagar uma promessa a Nossa Senhora do Monte do Carmo por ter-se curado de uma «doença mortal». A promessa em questão consistia em «mandar fazer uma capela de pedra e cal com seu patrimônio para um capelão».132 Depois de obter provisão em 1793 junto à Sé de Mariana, o capitão Manoel Pereira Brandão, comandante das ordenanças em Queluz, pede permissão para poder «celebrar e administrar os sacramentos necessários à sua numerosa família em um passo, ou ermida adjacente às casas da sua residência». Feita de pedra e cal, a ermida situava-se em «lugar muito cômodo donde a sua família e outros mais podem ouvir missa sem que saiam a lugar muito público». Brandão considera justo o seu pedido, uma vez que «no tempo de águas especialmente se faz difícil à sua família e vizinhança satisfazerem ao preceito na matriz por ficar distante».133 José Ferreira Santiago e outras pessoas dedicavam-se à mineração nas margens do rio Santo Antônio (comarca do Serro Frio). Surgia assim, em fins da década de 1780, uma «nova povoação» desprovida porém do «pasto espiritual, pois que não têm sacerdote nem altar». Os suplicantes afirmam terem filhos ainda por batizar, «tudo isso pela grande distância em que ficam da igreja, tendo de atravessar os caudalosos rios». Requeriam assim licença para erigirem uma ermida «à sua custa na qual se dissesse missa e se administrassem os sacramentos». Sem o que estariam «na triste situação de abandonarem os seus trabalhos».134 Em outra carta enviada à Coroa (em 1786 ou 1787) lê-se o seguinte: «Dizem os devotos de São Francisco de Paula que eles suplicantes erigiram ao mesmo glorioso santo uma ermida na freguesia de Santo Antônio da Vila de São José (...), na qual se ajunta concursos de povo [sic] ao santo sacrifício da missa; e porque os suplicantes desejam muito fazer-lhe patrimônio e bonita capela», requerem autorização real.135 Estes casos retratam aspectos que se revelam recorrentes nas fontes pesquisadas, como a necessidade premente do sacrifício da missa e dos sacramentos, a capela erigida individualmente como fruto de uma «graça» alcançada, a dimensão coletiva da devoção popular e sua expressão a nível material/espacial por meio do 131 AEAM, pasta 54, gav. 1, arq. 1. Tratar-se-ia da primitiva capela de São João Ba-

132 133 134 135

tista do Presídio? A distância entre Guarapiranga (atual Piranga) e Visconde do Rio Branco sugere que sim. APM (AHU), cx. 128, doc. 13 [20.01.1788]. APM (AHU), cx. 140, doc. 26 [27.06.1795]. APM (AHU), cx. 128, doc. 28 [06.03.1788]. APM (AHU), cx. 127, doc. 34 [29.10.1787].

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templo e da constituição do patrimônio em terras. Os aplicados da capela do Divino Espírito Santo da paróquia de Santa Ana das Lavras do Funil informam em 1783 ou 1784 que haviam obtido licença episcopal para a ereção «da mencionada capela sita na paragem chamada Restinga das Pitangueiras, por ser mais cômoda para as suas vizinhanças assistirem missa e assistirem todos os mais exercícios espirituais, o que muitas vezes deixavam de fazer pela longitude da sua freguesia».136 Praticamente na mesma época, um grupo de devotos do Senhor Bom Jesus do Livramento escreve no seu requerimento que «têm feito a sua capela perfeita e completa sita na freguesia de Aiuruoca, comarca do Rio das Mortes e bispado de Mariana, e para haver de se benzer e se lhe fazer o seu patrimônio decente precisam os suplicantes licença de Vossa Magestade atendendo a utilidade e aumento do culto divino e aos longes daquelas terras».137 As fórmulas volta e meia se repetem. Mas há exceções. Florentino Soares da Fonseca, morador do Córrego do Bação, freguesia da Itabira, requere em 1753 ou 1754 autorização ao senado da Câmara de Vila Rica para aumentar o patrimônio da capela de Nossa Senhora da Oliveira. A capela situa-se em sua fazenda, e nela «os moradores daquele bairro vão assistir missa» (já existia, portanto, um arraialzinho no lugar). Percebe-se pelo teor do documento que a igreja havia sido erigida bem antes, provavelmente pelo antigo proprietário do terreno. Porém o fundador, que «deveria dotá-la com patrimônio suficiente (...) o não fez como devoto». Para Fonseca, esta pouca devoção era atestada pelo fato de que a terra inicialmente doada não passava de «um pedaço de capoeira138 que já não produz nada por muito cansada». Entenda-se: um tal patrimônio não rendia o suficiente para cobrir os gastos da capela. Fonseca diz ser o único responsável pela conservação da mesma, uma vez que a «grande decadência» das roças reduzira os moradores do lugar à pobreza. Diante da necessidade de refazer a capela (a qual, além de antiga, estava «ameaçando ruína»), ele requere autorização para abrir uma venda que «sirva de patrimônio naquele bairro não se permitindo mais nem uma [outra em] meia légua em circunferência». Para dar força a seu pedido, ele se vale de uma retórica que muito nos revela da mentalidade de então. Fonseca se orienta menos por um certo racionalismo jurídico que pelo recurso a argumentos de ordem religiosa e moral. Tendo a Câmara de Vila Rica concedido o mesmo favor «à capela de São Gonçalo139 do mesmo Bação (...) [e] sendo axioma de di-

reito termitante que o que se concede a um se não pode negar a outros, e se o milagroso São Gonçalo sendo vassalo do Rei dos Reis lhe foi franqueada semelhante graça, com maior razão se não deve negar a Nossa Senhora da 136 APM (AUH), cx. 122, doc. 23 [06.09.1784]. 137 APM (AHU), cx. 122, doc. 38 [14.10.1784]. 138 Capoeira: «Terreno em que o mato foi roçado e/ou queimado para cultivo da terra,

ou para outro fim» (Aurélio B. de H. Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa). 139 Atual Bação, distrito de Itabirito.

203 Oliveira que é Rainha da Corte Celestial, advogada dos pecadores, e mãe piedosíssima das misericórdias, que manda, e aquele pede.» 140

Como a hierarquia celestial deve necessariamente refletir-se nas realidades terrestres, a capela da Mãe de Deus (aquela «que manda») deve gozar de precedência sobre a de um simples santo (aquele «que pede»). Note-se como na fala de Fonseca o orago de um templo não é uma simples representação desta ou daquela figura do panteão católico: ele é a figura representada. Mas o suplicante segue em frente, e afirma ter tido notícia de que naquele ano, por ocasião da visita episcopal, «saíram [in]criminadas duas vendas por legítimas casas de alcoice141«. Razão pela qual prenderam-se na cadeia de Vila Rica «umas negras e negros e ainda os foragidos do mato aonde se praticava o

Uso de Vênus, com irreparável dano daqueles moradores, o que não há de suceder com a venda concedida a Nossa Senhora da Oliveira porque essa somente se há de alugar a homem branco conhecidamente de boa vida e costumes, com a condição de não assistir nunca nela negra ou mulata por ter mostrado a experiência que semelhante gente é o símbolo dos desaforos.»142

Do que é dito não há como saber onde viviam as pessoas que sofreram os «danos irreparáveis» causados por aqueles estabelecimentos. O episódio é invocado com o objetivo de estabelecer uma clara diferença entre empreendimentos puramente profanos e aqueles cuja finalidade principal era servir à ‹causa da religião›. O critério de limpeza racial seria a garantia, assevera Fonseca, de que no patrimônio de Nossa Senhora a história seria diferente. A Câmara de Vila Rica defere seu pedido em 8 de março de 1754, afirmando ser ele «muito atendível, assim para a conservação do culto da mesma Senhora como para se evitar escândalos, e como este senado concedeu a mesma graça à capela de São Gonçalo, não fica lugar de se negar a Nossa Senhora». Um caso distinto se passa em princípios dos anos 1790. Trata-se de um exemplo clássico daquelas formas de religiosidade inspiradas pelo modelo da devotio moderna. Silvestre Ferreira Ribeiro diz ter feito «voto de edificar uma capela ou ermida ao Senhor Bom Jesus, e de o servir, enquanto o mesmo Senhor lhe fizesse mercê de vida». A capela se situaria a apenas meia légua da matriz da vila de São Bento do Tamanduá (atual Itapecerica). A provisão episcopal foi dada, restava a autorização real. Como condições para o deferimento, além da constituição de «patrimônio suficiente para a administração, reparo e ornamento da mesma capela», o Conselho Ultramarino estabeleceu que o capelão seria nomeado «por Sua Majestade como sua [da capela] padroeira»143 e que a edifição correria por conta de Ribeiro, «e não de esmolas dos fiéis». A questão do patrimônio já estava resol140 141 142 143

APM (AHU), cx. 64, doc. 24 [06.03.1754]. Alcoice ou alcouce: prostíbulo. APM (AHU), cx. 64, doc. 24. No século XVIII e em parte do XIX há uma clara distinção entre os termos «orago» e «padroeiro ». O tema será explorado na seção 4.3.4.

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vida, pois uma carta dos membros da Câmara do Tamanduá, com data de 1° de junho de 1791, mostra que a capela do Senhor Bom Jesus de Matosinhos recebera de Antônio Joaquim de Ávilla uma chácara «que renderá muito acima de vinte mil réis». No que diz respeito a Ribeiro, os vereadores escrevem: «por vermos que a sua vida exemplar se faz digna dão-lhe a graça que implora para aquele louvável voto, que é constante, e verdadeiro».144 Movida por sua «particular devoção à Virgem Santíssima», Tereza de Jesus prometeu alguns anos mais tarde levantar uma capela dedicada a Nossa Senhora da Luz nos subúrbios do Arraial do Tejuco «e fazer-lhe um decente patrimônio para sustentação do culto divino». E isso, acrescenta ela, «não só em obséquio à Senhora, mas também em benefício da suplicante e mais vizinhos, que nela muito desejam afervorar o culto».145 Fora do espaço das vilas e dos grandes arraiais, a razão principal para o aparecimento de uma casa de oração é a demanda pelo culto e pelos sacramentos. Por vezes o inesperado torna premente uma necessidade religiosa que até então só gozara de importância secundária na vida de um ou outro. A teodicéia do sofrimento (Weber) é acionada. Uma desgraça a nível pessoal, uma doença, tudo pode ser suportado – desde que o indivíduo não esteja privado dos meios de salvação. Parece ser este o pano de fundo do requerimento feito em 8 de maio de 1804 por Antônio Leite Ribeiro. Morador na sua fazenda do Ribeiro Fundo, na freguesia de São João del-Rei, ele tem em mente fazer ali uma ermida por estar distante da capela de Nossa Senhora de Nazaré, e além disso ter «numerosa família». Consta de um dos documentos anexos que ele empregava em sua propriedade mais de 60 «agregados pobres». Em relatório feito em 12 de maio de 1804 pelo vigário responsável pela inspeção da ermida, lê-se que Ribeiro estava enfermo. O que indica tanto a dificuldade de deslocamento até a capela mais próxima quanto o terror causado pela perspectiva de uma morte sem os sacramentos.146 Os pedidos feitos coletivamente apenas confirmam em que medida o universo das representações religiosas levava a uma progressiva transformação da paisagem cultural da Minas antiga. Em 1805 ou 1806 Francisco Vieira Carneiro, João Fernandes da Silva e outros moradores da freguesia de Pouso Alto, termo de Campanha, informam que «com zelo católico» começaram a erigir uma capela dedicada a Nossa Senhora do Monte do Carmo numa paragem denominada Ribeirão do Carmo. Os motivos «que os moviam a tão piedosa obra eram tão urgentes e fatais, quais as constantes inundações consecutivas à rigorosa inturmescência e enchente do Rio Verde, por efeitos da qual não podem os suplicantes senão em manifesto risco de vida congregar-se na igreja matriz, sendo essa a razão porque o seu pároco lhes não pode administrar os sacramentos nas ocasiões oportunas, e de última precisão, maiormente naquelas povoações que lhe ficam na longa distância de mais de oito léguas, resultando daqui as lamentáveis conse144 APM (AHU), cx. 137, doc. 16 [16.05.1792]. 145 APM (AHU), cx. 165, doc. 68 [02.12.1802]. 146 APM (AHU), cx. 169, doc. 21 [02.03.1805].

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qüências de morrer muitos daquela gente sem sacramentos, e ser enterrada em lugares profanos».147 A formação dessa rede de ermidas domésticas e capelas nem sempre era a garantia de que a população espalhada por fazendas ou arraiais passasse a gozar de adequada assistência religiosa. É o que se pode notar de uma representação apresentada em fins dos anos 1740 pelos aplicados das capelas de Nossa Senhora de Conceição da Barra, São Gonçalo do Ibituruna, Nossa Senhora de Nazaré, São Gonçalo do Brumado e Santo Antônio do Rio das Mortes pequeno148, todas filiais da matriz de São João del-Rei. Devido à distância que os separava da sede paroquial, «têm falecido muitas pessoas sem sacramentos sem que seja suficiente o pagarem os suplicantes a capelães, porque estes não satisfazem a tudo, pela parca conviniência que os suplicantes lhe[s] podem fazer, por também pagarem ao seu reverendo pároco». Este, porém, «é pároco só no nome, e não no exercício; vendo-se os suplicantes neste extremo, sem poderem possuir o bem e consolação de suas almas».149 Os fiéis pedem então pela criação de uma freguesia no arraial de Conceição da Barra, por ser o mesmo eqüidistante das demais capelas. Isso somente viria a concretizar-se em 1825. De que maneira a história do templo reflete a dinâmica de uma povoação, mostra-o Catas Altas. O arraial teria surgido em 1703, e já em 1710 dispunha de um vigário.150 No início da década de 1730, os seus moradores resolveram pedir auxílio financeiro à Coroa a fim de concluir a construção da nova matriz. Justificam-se com o argumento de que as duas primeiras igrejas paroquiais tinham sido feitas exclusivamente às suas custas. A primeira em breve espaço de tempo revelou-se imprópria por ser muito pequena. A segunda, feita de madeira, encontrava-se de tal modo arruinada que os próprios fregueses receavam adentrá-la. A comunidade inicia em 1731 construção de uma terceira matriz, desta vez feita de materiais duráveis. O novo templo ficou orçado em 54.000 cruzados. Todavia os moradores não se vêem em condições de arcar com todos os gastos «pela miséria em que se acham de falta de ouro, várias contribuições, real donativo, várias irmandades,151 e despesas com capitães-do-mato para o seu sossego». O Conselho Ultramarino determina que o provedor da fazenda verifique (por meio de uma vi147 APM (AHU), cx. 181, doc. 53 [26.08.1806]. 148 Trata-se, atualmente, das cidades de Cassiterita, Ibituruna e Nazareno; e dos dis-

tritos são-joanenses de Caburu e Rio das Mortes. Waldemar Barbosa engana-se quando diz que a capela de Conceição da Barra teria recebido provisão em 1765 (DHGMH, p. 84). Esta capela – como as demais aqui mencionadas – existia pelo menos desde 1749. O que não chega, por outro lado, a ser um indício preciso do início do povoado, pois vimos que em Nazareno o arraial só se formou a partir de 1802. 149 APM (AHU), cx. 54, doc. 31 [13.10.1749]. 150 DHGMG, p. 85. 151 Note-se que a existência das confrarias era um impecílio à ereção da nova sede paroquial. A prioridade de cada uma delas era a construção e conservação da sua própria igreja.

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sita realizada em 1734) a veracidade de tais informações; e se decide enfim pela doação de 15.000 cruzados à freguesia de Catas Altas, repartidos em três anos.152 Outro bom retrato da dinâmica do catolicismo popular e das transformações por ele impostas à paisagem nos é dado por um pedido feito no arraial de Nossa Senhora da Nazaré153, termo de Mariana, no início dos anos 1790. Os moradores do lugar dizem manter um oratório na paragem chamada «Ilha», no qual veneram uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Asseguram ainda prestar à santa «reverentes cultos, que em todos os dias do ano à noite lhe rezam o terço e

nos dias de sua festa sempre fazem uma prática e isto com grandiosa função;154 e como por conta dos muitos milagres que aquela Senhora continuadamente está fazendo em benefício dos seus devotos[, eles] agradecidos lhe querem fazer uma capela onde onde seja com mais decência venerada e isto se não pode conseguir sem beneplácito de Vossa Majestade (...) que Vossa Majestade permita faculdade para se edificar uma capela com sepulturas livres, e que sendo o capelão que servis pago pelos suplicantes (...).»155

Testemunhos como este nos mostram até que ponto nossa história da religião tem ignorado estas formas de religiosidade popular setecentistas. As inúmeras pesquisas dedicadas às irmandades ou às práticas religiosas periféricas ou «desviantes» pouco ou nada nos dizem a respeito do culto comunitário, cotidiano, espontâneo, não enquadrado em termos institucionais, que se dava longe ou simplesmente à margem das sedes paroquiais. O direito à prática e à assistência religiosa é algo absolutamente evidente para os homens da época. Nem mesmo os criminosos poderiam ser dele privados. Isso fica claro numa representação enviada pela Câmara de São João del-Rei à Coroa em 8 de julho de 1741. A construção da nova cadeia da vila fora concluída, porém os presos encontravam-se impedidos de cumprirem com o preceito da missa. Em vista disso, «alguns devotos se ofereceram para a ereção de uma capela, ou oratório em lugar acomodado, para satisfazerem os presos o mesmo preceito». A única condição imposta pelos doadores era de que o patrimônio em dinheiro (6.000 réis anuais) da capela fosse constituído pela própria Câmara. Os oficiais acham razoável a proposta: «Nós ascendendo a que a obra era pia, e proveitosa ao bem das Almas, como também praticada na maior parte onde há cadeias, fizemos o patrimônio debaixo da condição se Vossa Majestade o confirmasse, e por bem houvesse».156 O Conselho Ultramarino aprova o pedido em 9 de maio de 1742.

152 APM (AHU), cx. 29, doc. 28 [05.02.1735]. 153 É quase certo que se trata da atual cidade de Santa Rita Durão. Ver DHGMG, p.

299; e Costa, Toponímia de Minas Gerais, p. 382. 154 Função: festa. 155 APM (AHU), cx. 136, doc. 14 [04.03.1791]. 156 APM (AHU), cx. 41, doc. 70. O grifo é nosso.

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É compreensível que o patrimônio de uma casa de oração erigida num espaço já urbanizado se tenha feito em dinheiro (ou ainda, como foi comum no caso de muitas irmandades, sob a forma de casas)157, afinal não há nestas circunstâncias tantos terrenos disponíveis. Mas mesmo nas regiões afastadas do centro da capitania os patrimônios eram às vezes constituídos em dinheiro. A antiga capela de São Brás do Suaçuí seguramente foi terminada um pouco antes de 1728, já que o termo de doação do seu patrimônio data daquele ano. Em 13 de abril de 1728, Amador de Sousa da Guarda declarava ao tabelião em Vila Rica estar disposto a doar «o seu sítio onde mora na Paropeba para fábrica e rendimento da capela de São Braz, sita no Suassuhy e a ela fazia doação de seis mil réis de dote em cada um ano os quais têm de sair do rendimento do dito sítio de que [o] outorgante é senhor (...) cuja doação fazia para comodamente melhor venerar e administrar o Sacrifício da Missa». Um dos documentos do «processo de patrimônio» de São Braz revela que os seis mil réis anuais foram pagos regularmente apenas até 1797, mantendo-se os descendentes do instituidor da capela na condição de devedores até 1836.158 A capela do arraial de Santo Antônio do Rio Acima teria sido erigida em 1736. Que o núcleo se formou no patrimônio «do santo», mostra-o um relatório enviado pelo padre José Sabino Marques a Mariana em 11 de outubro de 1893: «esta matriz tem um pequeno patrimônio, que consiste no terreno em que estão edificadas as casas deste arraial». Embora sua extensão fosse calculada em cerca de três alqueires de planta de milho, o sacerdote afirma que «pouco rendimento tem produzido».159 Construída por um grupo de moradores do Pirapetinga, a capela de Santa Quitéria (freguesia de Guarapiranga) recebeu de Pascoal Luiz em 5 de julho de 1733 a doação de 6.000 réis dos rendimentos de um sítio de sua propriedade «para a dita capela se poder ter e manter de todo o seu necessário na forma da Constituição deste bispado». Esta quantia deveria ser colocada à disposição do templo «de hoje para todo o sempre».160 Algo semelhante pode ser visto na capela de Santana do Morro do Chapéu (atual cidade de Santana dos Montes). A provisão para a sua ereção foi dada em 1749.161 A doação do terreno foi feita por Antônio Duarte Corrêa em 12 de junho de 1751: «(...) nesta Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, em o escritó-

rio de mim tabelião (...) me foi dito que ele era senhor e possuidor de uma fazenda de roça sita na mesma paragem do Morro do Chapéu (...) e que na 157 Scarano mostra que as irmandades de Nossa Senhora do Rosário do Distrito Dia-

158 159 160 161

mantino tinham «nas casas para alugar a sua maior fonte de renda». Scarano, Devoção e escravidão, p. 70. AEAM, arm. 24, cx. 5. AEABH, cx. 502 (grifo nosso); DHGMG, p. 281. AEAM, arm. 24, cx. 4. DHGMG, p. 303.

208 sobredita fazenda (...) se acha uma capela onde está colocada a imagem da Senhora Santana e sua sustentação lhe faz ele outorgante como com efeito (...) lhe nomeava e dava em dote as terras compreendidas na sobredita fazenda (...) as quais terras entre capoeiras e matas virgens levarão de planta quarenta e tantos alqueires (...) e que nas referidas terras faz ele outorgante, certo a quantia de seis mil réis em cada um ano para adjutório dos paramentos em o mais pertences à dita capela (...) para ele outorgante e seus sucessores a entrarem em cada um ano com a sobredita quantia dos referidos seis mil réis sem falta alguma para o que dito fica, cujo encargo passará de uns para outros ditos sucessores que houverem a possuir a sobredita fazenda onde se compreendem as terras acima doadas.»162

Em 21 de março de 1752 fez-se uma segunda escritura, provavelmente devido a erros no estabelecimento dos limites das terras cujo rendimento deveria reverterse em benefício da capela. Além de Corrêa, assinam o documento Manoel André Pinto e sua mulher Luíza Rodrigues Graça. A extensão do terreno é desta vez um pouco menor, «30 alqueires pouco mais ou menos, entre matas virgens e capoeiras». A efetiva doação de um terreno à capela com certeza se deu mais tarde; todavia ignoramos quando. Morro do Chapéu somente viria a adquirir o status de distrito (de Queluz) em 1840 e de freguesia em 1874. Em 1897, segundo informação do vigário José Januário Carneiro, a matriz recebeu doação da terça parte dos bens de Herculano Teixeira: 60 alqueires de terras no valor de 5 contos de réis, entre as freguesias de Santo Amaro e Queluz. Não sabemos quando surgiu o arraial do Redondo (hoje Alto Maranhão), mas é certo que a constituição do patrimônio de sua capela deu-se em 14 de março de 1754. Nesta data Domingos de Magalhães e sua esposa, Rosa Perpétua do Sacramento, moradores daquele arraial, declaram «que para haver de se celebrar o sacrossanto sacrifício da missa na capela de Nossa Senhora da Ajuda (...) lhe era preciso consignar-lhe dote para guisamento e preparos à mesma». Pelo que comprometiam-se a dotá-la de «9.000 réis a cada ano para sua segurança da qual quantia hipotecavam uma fazenda de lavouras com casas de vivenda e engenho sito no rio do Jequeri».163 O quadro descrito num pedido enviado ao bispo de Mariana em 27 de março de 1761 já nos é de certa forma familiar: o padre Domingos de Araújo e outros moradores da freguesia da Barra Longa dizem viver com «suas famílias e agregados», «fábricas e escravaturas» a sete léguas de distância da sede paroquial e a outros sete da freguesia de São Caetano. Por isso «passam os suplicantes com suas famílias em contínua desolação da falta de pasto espiritual e [do] Santo Sacrifício da Missa, [e] com excessivo trabalho saem a desobrigar-se na quaresma de cada ano à dita capela mais vizinha, e com notório risco da salvação de suas almas, e que para aliviar-lhes é necessário mandar carregar para fora dos ditos sítios os enfermos em redes para serem sacramentados e pelo (...) perigo de suas 162 AEAM, arm 24, cx. 4. 163 AEAM, arm. 24, cx. 2.

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vidas pela longitude e incômodo do abalo do caminho, a que vendo o reverendo suplicante e movido de piedade e zelo do próximo, quer erigir na sua fazenda uma capela com invocação a Nossa Senhora da Saúde, por ser o lugar mais conviniente para todos, e com cemitério para nele se sepultar os defuntos». Dom Frei Manoel da Cruz dá provisão para a ereção da capela em 20 de outubro do mesmo ano. O patrimônio (oito oitavas de ouro anuais) foi constituído em 3 de novembro de 1762, e garantido através de meia sesmaria de terras «em matas virgens e capoeiras onde se acha a mesma capela».164 A capelinha da Saúde foi elevada a paróquia setenta e nove anos mais tarde.165 Formava-se a atual cidade de Dom Silvério. Também o arraial de Piedade do Bagre (atual Felixlândia) deveu sua formação à iniciativa de um sacerdote. Em termo de doação lavrado em 19 de abril de 1762 na Vila de Sabará, o padre Félix Ferreira da Rocha atestava ser morador da sua fazenda do Bagre, localizada na freguesia de Santo Antônio do Curvelo. Padre Félix desejava «erigir uma capela com a invocação de Nossa Senhora da Piedade, para haver de nela se poder celebrar missa e para esse efeito e o mais que necessário fazer dote e patrimônio cujo lhe faz em meia légua de terra que fica na mesma fazenda (...) com a condição de que ele dito doador obriga por sua pessoa a uns a fazer doar seis mil réis ou o que for necessário para a côngrua que pretende erigir para se conservar com a decência necessária para o culto divino para o que (...) promete não revogar, nem reclamar, nem alienar a tal dita meia légua de terra que doado tem».166 Segundo a tradição oral de Felixlândia, algumas famílias que viviam no terreno do padre, e que desejavam se libertar da sua tutela, começaram a construir casas em volta da capela da Senhora da Piedade, crescendo assim o arraial.167 Na escritura de doação do patrimônio da capela de São José do Chopotó (hoje Alto Rio Doce), feita em 5 de maio de 1764, pode-se observar um dado novo. José Alves Maciel Pereira e sua mulher, Vicência Maria de Oliveira, moradores na freguesia de Guapapiranga, doaram naquela ocasião parte de uma sesmaria de sua propriedade à capela de São José. Atente-se para o fato de que nesta escritura os doadores já previam a possibilidade de formação de um arraial no patrimônio: «(...) no caso que pelo tempo futuro se estabeleça naquela paragem das terras doadas – arraial – não podem ter os moradores do mesmo – porcos nem vacas soltas por não deficarem [sic] e prejudicar a fazenda deles doantes e que outrossim pessoas poderão fazer casas algumas nas ditas terras doadas sem preceder licença do administrador [da capela]».168

164 165 166 167 168

AEAM, arm. 24, cx. 2. DHGMG, p. 119. AEAD, cx. 102. EMB, vol. 25, p. 127. RAPM, II, 1897, pp. 123-125.

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O documento acima revela em que medida os atores sociais estavam plenamente conscientes de que a constituição de um patrimônio em terras tendia a funcionar como um pólo de atração. A formação de um arraial neste espaço sagrado pertencente à capela nada tinha, pois, de «espontânea».169 Não foi outra a origem da cidade de Senhora dos Remédios. Em 1764 ou 1765 os moradores da região das cabeceiras de Brejaúba da Serra da Mantiqueira, no seu pedido de provisão, explicam que a matriz da Borda do Campo dista deles sete léguas, e «a capela mais próxima», a de Ressaca, fica a cinco léguas. Daí ser este o «motivo porque são poucos os que ouvem missa mais do que de ano e

mesmo padecendo uma total falta de pasto espiritual pela distância referida, de tal forma que quase sempre fica todo aquele numeroso povo sem missa; estando em evidente perigo de morrerem sem sacramentos. E para evitarem tão considerável dano, querem os suplicantes erigir uma capela na fazenda de Manoel Souza Barbosa, o qual não só consente em que se faça a dita capela na sua fazenda, no pé da própria casa em que vive, mas também está pronto a fazer-lhe patrimônio, tudo a fim de poderem todos os domingos e dias santos ouvir missa e terem prontos os mais sacramentos, pois estão vivendo como gentios, sem uso da igreja, falta de doutrina e de todos os sacramentos, sendo tão perniciosas faltas o motivo de não estar mais povoado aquele continente.»170

A última frase é clara. Somente a capela e a devida assistência religiosa garantiriam à região um povoamento estável. Não sabemos se o patrimônio que Manoel Souza Barbosa prometera doar foi constituído em dinheiro ou bens imóveis. Consta que a capela de Nossa Senhora dos Remédios foi dotada com terras e algumas casas pelo governador Luiz Diogo Lobo da Silva e outras pessoas (o que deve ter acontecido, portanto, no máximo até meados de 1768). Em 31 de janeiro de 1775, Antônio Ferreira Mendes doou ao patrimônio outras casas situadas ao redor do templo. Em 1895, duas décadas e meia após a criação da paróquia, o vigário do arraial informava ao bispado que havia ali «um terreno em duas sortes de cerca de três ou quatro alqueires com o título de logradouro; existem mais três posses ocupadas por moradores que também se diz pertencer a esta igreja». Uma das mais completas séries documentais que localizamos nos processos de patrimônio do arquivo da Cúria de Mariana diz respeito aos primórdios da cidade de Rio Espera. O pedido de construção da capela de Nossa Senhora da Piedade fez-se provavelmente em 1759 ou nos primeiros meses de 1760. O vigário de Ita169 A tese da «espontaneidade» foi defendida por Costa Porto: «A ‹povoação›, na Colô-

nia, se apresenta como fenômeno espontâneo, o fato material de se agruparem algumas famílias em residências – fogos – com certa contigüidade e unidade formal, mas sem nenhuma interferência do Estado». Porto, O sistema sesmarial no Brasil, p. 127. 170 AEAM, arm. 24, cx. 3; grifos nossos. A autorização do cônego da Câmara Eclesiástica de Mariana data de 20 de março de 1765.

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verava, Manoel Ribeiro Taborda, determinou em 2 de outubro de 1760 que o padre João Maciel da Costa fosse à fazenda de André da Costa de Oliveira. Nesta fazenda, situada «no Ribeirão da Espera entre o Lamim e as Embrajaúbas», deveria o sacerdote demarcar o sítio da capela «onde mais conviniente for, ficando a porta principal da capela para o nascente do sol».171 O padre João atesta em carta de 20 de outubro do mesmo ano ter feito a demarcação do terreno sob a assistência de muitas pessoas, «não havendo entre elas contraposição alguma». Estas palavras não correspondiam inteiramente à verdade. Um dos moradores das redondezas, Francisco de Souza Rego, pretendia que a capela de Nossa Senhora fosse erigida na sua Fazenda do Lamim, sem levar em consideração os moradores da Espera e Embrajaúbas. Ele desrespeitava assim um princípio básico da tradição, segundo o qual a capela deveria situar-se num ponto eqüidistante em relação à população a ela afiliada. O desentendimento acirrou-se, com este e aquele partido argumentando ter feito as maiores despezas para a construção, e finalmente culminou com o sumiço da provisão dada ao templo. As suspeitas caíram naturalmente sobre Rego. Em vista do ocorrido, o bispo de Mariana manteve os termos relativos ao local que fora inicialmente escolhido, e revogou pedido antigo de Rego no sentido de fazer uma ermida em sua fazenda. O fazendeiro não desistiu, e voltou a pedir autorização para fazer sua ermida, alegando a distância de uma légua em relação à capela da Espera. Em sua resposta, dada em 25 de novembro de 1760, o bispo argumenta: «Como a paragem da Espera é a mais útil para todos os moradores, para nela se fazer a capela mencionada, e nos consta que brevemente se fará; concluída ela requererá [novamente] o suplicante». Rego teve de se conformar com esta decisão, e de aguardar sete anos para obter autorização para sua ermida.172 Enquanto isso, iniciaram-se os trabalhos de construção da capela de Nossa Senhora da Piedade. A lentidão com que a mesma era erigida demonstra a escassez de recursos dos moradores da região. Em 1765, telhado e capela-mor já estavam prontos. A nave achava-se ainda em obras. Ainda assim requereu-se permissão para celebrar missa, «para os suplicantes nela se refazerem do pasto espiritual enquanto não se completa o corpo da mesma capela». Em 24 de junho de 1765, o bispo permite as celebrações pelo período de um ano, ao término do qual a obra deveria estar concluída. A primeira missa foi realizada pelo vigário Taborda no Natal no mesmo ano. Pouco depois, em 26 de fevereiro de 1766, os aplicados da capela pedem autorização para bênção da pia batismal e de um terreno para servir de cemitério. Em nova correspondência, datada de 22 de dezembro de 1766, os moradores informam ao bispo que «não puderam concluir as obras por motivos 171 Sobre a questão da orientação dos templos, ver seção 3.3.2. 172 DHGMG, p. 185. Há, no DHGMG, algumas imprecisões no verbete «Lamim».

Barbosa afirma ter existido ali uma antiga capela feita por José Pires Lamim, com provisão de 4.07.1760. Ora, a provisão em questão parece ser, antes, a primeira obtida por Rego para sua ermida, e posteriormente anulada em razão do conflito sobre a capela da Espera.

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de suas penúrias» e pedem prorrogação «para se poder celebrar, batizar e sepultar na mesma capela, e seu cemitério pelo tempo de um ano». O termo de doação do patrimônio foi lavrado em Vila Rica, no dia 11 de agosto de 1766. Trata-se de um dos raros documentos nos quais se pode visualizar a incipiente organização espacial do embrião urbano de tipo religioso. Mateus Pereira da Ponte e sua mulher, Quitéria de Oliveira de Jesus, atestam ser possuidores das terras à margem do Ribeirão da Espera onde fora edificada a capela da Senhora da Piedade. Declaram fazer das mesmas doação «irrevogável» à capela, além de reservar «chãos para cinco moradores de casas com sessenta palmos de frente, cada

uma com seus fundos com 200 para o quintal, a saber um dos referidos chãos para eles doadores, e outros para Antônio Ferreira Ribeiro, e outros para Manoel Lopes da Rocha, e outros para João Rodrigues, outros para Domingos da Silva Pacheco, com condição prévia porém que nem eles doadores, nem os mais acima referidos não poderão usar das ditas casas para cousas de fazenda seca ou molhado [sic], por si ou por outrem para o dito fim (...) e da mesma sorte fazem doação eles outorgantes de uma morada de casas cobertas de telha sita nas mesmas terras com loja preparada para nela se vender fazenda seca ou molhados e todo o mais negócio, pagando-se delas aluguéis para o patrimônio da mesma capela, à qual fazem a dita doação, e outrossim, nenhuma pessoa se poderá intrometer a fazer casas nas ditas terras sem beneplácito dos administradores da mesma, ouvidos eles outorgantes se convém ou não e todas as mais casas que ao presente estiverem feitas e ao futuro se fizerem pagarão todos os anos os aluguéis que são para a mesma capela, e (...) não poderão ter de fronteira mais que sessenta palmos e fundos 200 (...).»173

Cerca de seis anos depois de iniciada a capela, existiam apenas meia dúzia de casas ao seu redor. As cinco primeiras pertenciam a fazendeiros das redondezas, entre eles os doadores do patrimônio; uma sexta casa ficaria reservada para o comércio no arraial. Outras pessoas interessadas em fazer moradas nas imediações da capela provavelmente não obtiveram autorização dos proprietários do terreno. Mas com a doação do patrimônio em terras tudo muda de figura. Vislumbra-se o inevitável crescimento do núcleo. Por esta razão, além da permissão dos aforamentos, concede-se o monopólio do comércio a uma única venda, cujo aluguel, por sua vez, deve-se reverter à capela (vimos que o mesmo ocorreu em Nossa Senhora da Oliveira do Bação). As dimensões dos lotes para a construção de casas ficam pré-fixadas: 13,2 metros de frente por 44 de fundo. Enfim, em 4 de março de 1767 o vigário Manoel Ribeiro Taborda procede à visita da capela de Nossa Senhora da Piedade da Espera, à demarcação (com marcos feitos de braúna) e bênção do seu adro. O Arraial de Formigas (hoje Montes Claros) cresceu no patrimônio da capela de Nossa Senhora da Conceição e São José. O dono da Fazenda dos Montes Cla173 AEAM, arm. 24, cx. 4.

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ros, José Lopes da Costa, enviou correspondência à diocese de Salvador – à qual era subordinada a região norte de Minas – em 1769 na qual enumera as razões pelas quais pretendia erigir uma capela. Um quadro semelhante ao de tantos outros casos já enumerados: a propriedade de Costa situava-se a nada mais nada menos que vinte léguas de Santo Antônio de Itacambira, o que impedia a ele e sua família, bem como a outros moradores das redondezas, «satisfazer o culto divino, nem comodamente (...) administrar o sacramento aos doentes, mais ainda em tempo de águas». O patrimônio em terras doado por Costa à capela era enorme. Segundo a escritura de julho de 1769, media ele uma légua e meia de comprimento por uma légua de largura. Além disso doavam-se cinqüenta novilhos.174 Ao contrário de outros arraiais, cujo ritmo de crescimento era normalmente lento, Formigas desenvolveu-se rapidamente a partir de 1809 com o início da produção de salitre. Saint-Hilaire visitou a povoação em 1817, e disse tratar-se de «uma das mais belas que vi na província de Minas». Havia então duzentas casas em Formigas, e uma população de cerca de oitocentas pessoas.175 Eis o que pudemos apurar sobre a formação de Dores do Turvo: nos primeiros anos da década de 1780 existia nas imediações do ribeirão de São Francisco do Turvo uma ermida de Nossa Senhora das Dores, que os habitantes da região edificaram «à custa de seu trabalho e despesa». A escolha do orago deveu-se, ao que parece, a Maria Lopes. Ela, Francisco Martins e outros devotos requisitaram posteriormente à Coroa autorização para que «em lugar da ermida que têm edificada na mesma paragem, possam erigir uma capela à mesma Santíssima Virgem das Dores, para mais comodamente poderem satisfazer aos preceitos divinos e terem o pronto pasto espiritual». Ademais, requeriam permissão para ter um ermitão, «que com caixinha da mesma Senhora das Dores possa vagar por aquela capitania e outra qualquer» a fim de coletar donativos para a conclusão da obra.176 Nosso último exemplo setecentista refere-se à origem do município de São Joaquim de Bicas. O pedido de provisão para a capela local foi feito em 1795 ou 1796. Este documento demonstra claramente em que medida as representações e práticas religiosas são capazes de induzir à criação do espaço proto-urbano. «Diz Francisco Gomes Leite, residente na freguesia de Nossa Senhora da

Boa Viagem do Curral del-Rei comarca do Sabará e bispado de Mariana nas Minas Gerais, que ele e outros roceiros de grande fábrica, penetrados do justo sentimento de não poder sem grande incômodo gravíssimo de suas pessoas e famílias ter a consolação espiritual de assistir ao santo sacrifício da missa nos dias de preceito, por ser[em] as suas fazendas estabelecidas em paragem muito distante da freguesia, e ainda mesmo da capela filial da Senhora 174 RAPM, II, 1897, pp. 562-564. 175 Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 290-291. 176 APM (AHU), cx. 119, doc. 44 [01.07.1783]; APM, SC-19, folhas 73-73v; EMB,

vol. 25, p. 73; DHGMG, p. 121.

214 do Carmo ereta no Arraial da Capela Nova177, obtiveram benigna faculdade do Exmo. Rmo. Bispo daquele bispado para a ereção de uma ermida na paragem chamada a Ponte Nova, e pondo em consideração aquele justo empenho com o auxílio de todos os fazendeiros daquelas vizinhanças, concluíram a factura da dita ermida prontissimamente, e fizeram colocar nela a imagem de São Joaquim seguindo-se logo a celebração dos sacrifícios com licença do mesmo Exmo. prelado, e sumo gosto do próprio pároco. Foi tanto do agrado daqueles povos a ereção daquela ermida, já pelo ponderado motivo de terem a consolação de ter missa todos os dias de preceito, já por terem bem próxima às suas habitações o recurso competente para os sacramentos nas ocasiões de necessidade, que todos liberalmente se apresentaram a concorrer com esmolas, não só para o paramento necessário da ermida, como para assalariar um capelão sem ajutório do pároco. E ele mesmo querendo providenciá-los do remédio espiritual se deliberou a pedir ao Exmo. Bispo licença para o dito confessar mulheres (...). Sendo manifesto ao provedor da comarca, que a dita ermida já estava [a]bastecida de adornos, e que era necessário vigiar sobre a conservação deles, elegeu um administrador o qual é o suplicante presentemente, e tão gostosamente exercita o dito emprego, que lembrando-se que com o recurso do tempo poderá enfraquecer a devoção daqueles povos, e faltar com isso o necessário para a subsistência da ermida e guisamento, está disposto a fazer-lhe um patrimônio de bens de raiz178 seus próprios, fazendo doação deles. E como não pode reduzir a efeito os seus desejos sem obter licença de Vossa Magestade, suplica por isso a Vossa Magestade haja por efeito especial da sua real grandeza, e zelo católico, conceder faculdade para o suplicante fazer doação ponderada por terem os bens maior valor de que duzentos mil réis, e que igualmente se possa estabelecer o patrimônio, praticadas as formalidades de estilo, passando-se para tudo provisão, por cuja graça formará Vossa Magestade um degrau para ascender à eterna bem-aventurança».179

Um minucioso processo anexo ao pedido citado acima, em que constam depoimentos de várias testemunhas, atesta a veracidade das informações dadas por Francisco Gomes Leite. A maior parte dos habitantes da paragem da Ponte Nova compunha-se de «roceiros e mineiros». Antes da construção da ermida de São Joaquim faleciam muitos recém-nascidos e idosos sem os respectivos sacramentos, pois a matriz do Curral del Rei ficava a nove léguas dali, e a capela do Arraial da Capela Nova a três léguas.180 Além disso, a estrada que dava acesso à Capela Nova era «muito ruim e principalmente em tempo de águas». O mal foi finalmente sanado com a ereção do templo na Ponte Nova e a nomeação do padre José Benevides para o cargo de capelão. Mas faltava ainda o patrimônio, de modo que 177 178 179 180

Atual cidade de Betim. Bens passíveis de registro. APM (AHU), cx. 142, doc. 34 [25.08.1796]. Para uma visão de conjunto da vida religiosa nesta freguesia, ver Campos, Adalgisa Arantes. «A mentalidade religiosa do setecentos: o Curral del Rei e as visitas religiosas ». In: VH (18) 1997: 11-28.

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a capela só era conservada «com as esmolas do suplicante e mais moradores». Os bens que o administrador decide doar valiam 200.000 réis. As fontes não permitem saber se este patrimônio foi constituído em terras, casas ou ambas as coisas. Que a cidade de Capelinha originou-se a partir da tríade capela-patrimônio-arraial, sugere-o não apenas o seu topônimo. Num documento redigido pelo padre José Batista dos Santos em 5 de maio de 1945,181 e seguramente baseado da tradição oral, diz-se que por volta de 1812 Feliciano Luís Pego e seus familiares decidiram erigir uma capela naquela região do Alto Jequitinhonha: «Nesta humilde capela se reuniam aos sábados e domingos os membros da família de Feliciano e alguns amigos seus para rezarem o terço ou o ofício de Nossa Senhora. Aparecendo então a idéia de se estabelecer um povoado neste lugar, Feliciano doou para este fim, a Nossa Senhora da Graça, uma porção de terreno em torno de sua capela. Construíram-se nesta ocasião algumas choupanas nos lugares mais próximos à capela e assim foi-se desenvolvendo a povoação com o nome de Capelinha de Nossa Senhora da Graça». Em 1817 Capelinha já tinha cerca de 50 casas. Saint-Hilaire escreve: «Poucas colônias oferecem tanto como Capelinha a imagem de uma colônia nascente».182 O desenvolvimento do arraial se acelerou a partir da metade do século XIX, com o avanço da ocupação da região.183 Não foi outra a lógica que presidiu a formação de São João Nepomuceno. Uma família há tempos ali estabelecida decidiu levantar uma igrejinha, que recebeu provisão em 1811.184 O termo de doação do patrimônio foi feito por José Antônio de Mendonça e sua mulher Francisca Maria de São José na Fazenda do Ribeirão, em 27 de novembro de 1815. Pelo mesmo, prometiam eles doar à capela de São João uma «sorte de terras [que] foram avaliadas em dez alqueires de planta, sitas à roda da mesma capela».185 A capela de Nossa Senhora do Livramento foi o ponto de partida da história do arraial de Livramento de Barbacena (atual cidade de Oliveira Fortes). As obras tiveram início provavelmente em fins de 1821, todavia o responsável, João da Silva de Andrade, não se comprometeu de imediato a dotá-la do devido patrimônio. O comandante de ordenanças da capela do Piau inspecionou a obra em fevereiro de 1822, e, ao dar-se conta que o terreno em que se erigia a capela pertencia a Manoel da Costa Cardoso («crioulo forro») e a Francisco Alves de Faria («acaboclado»), ambos pobres, achou por bem embargar a construção. Em vista disso, Andrade e outros fazendeiros do lugar requereram permissão para dar continuidade aos trabalhos, comprometendo-se a doar um pedaço de terra à capela. O embrião tomou forma aos poucos. Em 1895, 15 anos depois da criação da freguesia, o pároco do Livramento notificou a todos os paroquianos que a cobrança de 181 AEAD, cx. 102. Tanto o DHGMG (p. 76) quanto a EMB (vol. 24, p. 342) baseiam182 183 184 185

se nesta mesma fonte, sem contudo mencioná-la. Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias..., II, pp. 39-40. Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, pp. 193-194. DHGMG, p. 321. AEAM, pasta 11-A/G. 1/A.2

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foros anuais voltaria a ser posta em prática – o que demonstra que o patrimônio rendera durante um período relativamente curto de tempo. Em carta de 31 de dezembro de 1895, o vigário Lourenço de Lucas esclarece à Cúria que «não é verdade que alguns dos meus paroquianos repugnam a se reconhecer foreiros; pelo contrário, estão prontos a pagar». Diga-se de passagem que entre os foreiros encontava-se Crispim Bias Fortes (governador de Minas entre 1894 e 1898). O terreno da capela foi medido no ano seguinte, e contaram-se então 108 foreiros.186 Às vezes o terreno do patrimônio era doado de uma só vez, por um ou mais proprietários. Do contrário eram feitas doações sucessivas até que o «santo» detivesse bens suficientes. É o caso da capela de Nossa Senhora das Mercês, na freguesia de Santa Cruz do Escalvado. A provisão para sua construção foi dada em 26 de janeiro de 1846, porém o patrimônio original (cuja extensão ignoramos) foi posteriormente acrescido de um terreno doado pelos devotos. Este terreno originalmente pertencera a um escravo, de nome Ciríaco Martins Valadão, que o comprara em 1848 da mãe de seu senhor pela quantia de 40.000 réis. Em 11 de fevereiro de 1862, Valadão vendeu seu terreno (por 50.000 réis) a Felícia Clara de Oliveira, que por sua vez o doou à capela das Mercês. Na mesma freguesia, em 18 de março de 1885, a capela de São Sebastião teve aumentado o seu patrimônio em quatro alqueires, os quais estavam estimados em 200.000 réis.187 A capela de São Sebastião do Grota (atual Grota, distrito de Jequeri) obteve seu patrimônio em terras antes mesmo de dispor da provisão episcopal. Há referência a um alqueire doado por Eliseu Fernandes da Silva e sua esposa, e a uma segunda doação em 30 de setembro de 1877: «Digo eu abaixo assinada Dorselina Brás Batista que entre (...) uma parte de terra que me cabe por herança de minha falecida mãe (...) de cuja parte de terra dou ao mártir São Sebastião terreno de uma quarta no lugar denominado Grota».188 A formação de São Sebastião da Mata (atual Eugenópolis) foi singular. O pioneiro na região teria sido Antônio Rodrigues dos Santos, que levantou em sua fazenda de São Manoel uma capelinha com esta mesma invocação. Consta que chegaram a surgir casas ao seu redor, mas após a morte de Antônio dos Santos a propriedade foi dividida entre seus herdeiros, e o núcleo retrocedeu. Em 1848, a fazenda de São Manoel foi comprada por Luíza Maria de Jesus. Decidiu-se mais tarde levantar nova capela no mesmo lugar da anterior, desta vez tendo São Sebastião por orago. O procedimento, em si, nada tem de excepcional: quando uma igreja passava a desfrutar de um novo benfeitor podia realizar-se a mudança de orago.189 Aos poucos o núcleo retomou fôlego, com novas casas surgindo ao redor da igrejinha. Em 1865, finalmente, Joaquim Batista de Figueiredo e outros proprietários doaram um terreno de 12 alqueires para patrimônio de São Sebas186 187 188 189

AEAM, arm. 24, cx. 3. AEAM, arm. 24, cx. 4. AEAM, arm. 24, cx. 4; DHGMG, p. 142. Dorn, «Beiträge zur Patrozinienforschung», pp. 36-37.

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tião – o que, como já demonstramos, estabelece as pré-condições básicas para o crescimento do arraial. É interessante notar que a devoção ao primeiro orago não foi suprimida da consciência coletiva, pois quando o lugarejo adquiriu – em 1891 – o status de vila o nome escolhido para a mesma foi precisamente o de São Manoel.190 O município de Dores da Vitória teve como marco inicial a edificação da capela de Nossa Senhora das Dores da Vitória. Dom Viçoso atendeu a um requerimento de Antônio Carlos da Fonseca, Francisco Luiz de Andrade e outros moradores em 10 de agosto de 1855. O distrito foi criado apenas dois anos mais tarde. Este crescimento rápido (em comparação com os casos típicos de embriões de cidade de origem religiosa) é o que provavelmente explica a necessidade de um posterior aumento das dimensões do patrimônio. Em 19 de julho de 1863, Ana Francisca do Sacramento, Higino Garcia de Oliveira, João Carlos da Fonseca Silva e João Ferreira da Costa doaram dois alqueires «de terras de cultura», no valor de 100.000 réis, à capela da Senhora das Dores.191 O caso de Santo Antônio do Grama demonstra como doações sucessivas podem ser motivadas pela demanda de aumento da área do embrião de cidade. Antônio Luiz de Freitas fundou, em 13 de junho de 1850, uma capelinha de Santo Antônio na divisa de sua propriedade com a Fazenda do Grama. Uma vez constituído o patrimônio, começou a formar-se o arraial. Seguramente devido a um afluxo crescente de foreiros, outros pequenos fazendeiros aumentam pouco a pouco a área do patrimônio: José Fernandes da Silva doou 4 alqueires à capela, e fez a Rua de Baixo; Antônio Claudiano da Silva adquiriu um terreno chamado Palhada onde se fez uma rua com o mesmo nome; José Antônio Pereira Salgado acrescentou ao patrimônio uma sorte de terras que se extendia da capela ao Córrego dos Salgados; Venâncio Gonçalves Mil e Francisco Gomes da Silva Jr. fizeram a Rua Nova; Joaquim Gonçalves Gomes (o tesoureiro da capela) doou os terrenos onde se delineou a Rua de Cima. Esta última doação teria sido, segundo o depoimento de um morador recolhido já no século XX, a que mais contribuiu para a «rapidez assombrosa» com que se desenvolveu o arraial.192 Em Amparo da Serra a doação do patrimônio inicial deu-se em 15 de dezembro de 1862. Como acontecia por vezes, cedeu-se à capela não um terreno em si, mas o rendimento por ele produzido. Francisco [Lisimbra?] e sua esposa Rita Maria de Jesus doaram o produto de um alqueire de terras de sua propriedade. O mesmo fizeram – e na mesma data – João Gonçalves Leal e sua mulher Simplícia Maria de Jesus, porém sob o rendimento de três alqueires e meio. O arraial parece 190 AEAM, arm. 24, cx. 3; EMB, vol. 25, pp. 114-115. Não nos foi possível identificar

ao certo quem foi o responsável (ou responsáveis) pela reconstrução da capela. Na EMB sugere-se que tenha sido a própria Luíza Maria de Jesus, enquanto que numa carta do vigário de São Miguel, datada de 10 de maio de 1893, aparecem os nomes de Manuel Luiz Pereira Grugel e Feliciano Mariano dos Prazeres. 191 AEAM, arm. 24, cx. 2. 192 AEAM, arm. 24, cx. 4; EMB, vol. 27, p. 176.

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ter tido aquela data como ponto de partida, já que não se faz qualquer menção a ele nas duas escrituras. Treze anos mais tarde o arraial estava formado, e o patrimônio foi aumentado: o casal Simplício José de Almeida e Sebastiana Maria de Alcântara vendeu ao vigário um «pedaço de terras nas vertentes deste arraial que divisam por um lado com as terras do patrimônio e pelo outro com terra dos vendedores (...) para o patrimônio de Nossa Senhora do Amparo e cujo rendimento será aplicado à igreja da mesma santa».193 Na análise dos dados acima o pesquisador pode pode ser levado a crer que a tríade capela-patrimônio-arraial desfrutava de uma espécie de autonomia em relação à percepção e às intenções dos atores sociais. Como se necessidades espirituais e normas eclesiásticas simplesmente guiassem os indivíduos. Um grupo de fiéis precisava de uma capela a fim de assistir ao culto, receber o «pasto espiritual» e os meios de salvação. A constituição do patrimônio seria uma mera conseqüência de exigências eclesiásticas; e a formação do arraial, por seu turno, uma conseqüência da conseqüência. Na verdade as coisas não eram assim tão simples. Não nos esqueçamos de que o patrimônio sempre pôde ser constituído em dinheiro. Se quase sempre ele o era em terras é porque os fazendeiros preferiam esta segunda modalidade. Se o instituidor de uma capela pretendesse evitar que a mesma deflagrasse o processo de proto-urbanização, bastava dotá-la de 6.000 réis anuais. De maneira que, fora das circunstâncias onde predominou a mineração ou a ação policial-militar do Estado, não houve arraial possível sem patrimônio em terras – sem um espaço sagrado associado ao templo. Neste ponto, é preciso fazer um reparo importante a Sérgio Buarque de Holanda. Para ele, «a cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza»; nossas cidades não seriam fruto de um «ato definido da vontade humana».194 Este juízo se amparava numa contraposição dicotômica do modelo das cidades coloniais espanholas e portuguesas, já convinientemente criticada por Roberta Marx Delson em seu estudo sobre cidades planejadas no Brasil Colonial.195 Mas não é necessário que se chegue tão longe. Mesmo os arraiais nunca foram estruturas totalmente «espontâneas», seja no que se refere à sua gênese seja no que se refere à sua organização espacial. O problema para o historiador reside no fato de que o desejo de se promover a proto-urbanização por meio de capelas e patrimônios dificilmente se manifesta nas fontes. Afinal, não havia razões para isso: ao dirigir-se a um bispo ou à Coroa, um indivíduo ou grupo de moradores deveria pedir permissão para levantar um templo, mas não para dar início a uma povoação. Ainda assim alguns pedidos de provisão ou escrituras de patrimônios permitem perceber que a formação de 193 AEAM, arm. 24, cx. 1. Baseado no Cônego Trindade, Barbosa atribui a primeira

doação a Domiciano José da Fonseca (DHGMG, p. 24). Este fora, na verdade, um mero arrendatário das terras pertencentes aos doadores. 194 Holanda, Raízes do Brasil, pp. 76, 62. 195 Delson, New towns for Colonial Brazil.

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uma povoação sempre foi um «ato definido da vontade humana». Foi o que pudemos observar no caso do arraial setecentista de São José do Chopotó. Vejamos outros exemplos. O primeiro deles diz respeito à gênese da atual cidade de Matipó. Depois de obter uma graça de São João Batista, João Fernandes dos Santos decidiu «pagar a promessa» que assumira perante o santo de sua devoção: erigir-lhe uma capela. O termo de doação do patrimônio, datado de 28 de outubro de 1876, é assinado por ele e sua mulher Antônia Valeriana da Silva: «(...) doamos de nossa livre e espontânea vontade para fundação de um arraial, cinco e meio alqueires de terras de cultura, (...) dentro desta minha fazenda no lugar denominado São João Batista declarando que destes cinco alqueires e meio um é grátis para os povos e quatro e meio [para] quem quiser edificar dentro deste terreno.»196

O segundo exemplo trata da formação do embrião de São Domingos (atual Missionário). Em carta ao bispado de Mariana em 1° de outubro de 1884, Francisco Antônio de Souza Barros informa que concluíra uma capela dedicada a São Domingos de Gusmão em sua fazenda. Junto dela, o fazendeiro fizera também um «cemitério murado de pedra». A capela estava dotada, assegura ele, de «algum terreno» para patrimônio. Ao que parece, a dimensão deste patrimônio não era das mais avantajadas, pois numa escritura de 20 de novembro de 1891 lê-se que Francisco da Costa Barros comprou um alqueire e meio de «terra de cultura» a fim de doá-lo à capela, assim como para a «criação do arraial de São Domingos».197 O terceiro exemplo é o da capela do Senhor Bom Jesus do Vau-Açu, ponto de rotação em torno do qual formou-se o arraial de Alto Vau-Açu (atual Padre Felisberto). Curiosamente, a doação do patrimônio antecedeu ali a construção da capela. A escritura demonstra o desejo explícito de Antônio Luiz Martins de Carvalho em deflagrar o processo de proto-urbanização. Em 22 de junho de 1898, cedeu ele três alqueires «ao Senhor Bom Jesus de Matosinhos a cujo santo fica de hoje em diante

pertencendo esse terreno para seu patrimônio onde o povo poderá erigir igreja, fundar qualquer estabelecimento de caridade, de instrução pública assim como casas particulares e todo edifício necessário para um bom arraial (...).»198

A capela foi construída, mas por algum motivo o arraial não se desenvolveu de imediato. Uma segunda escritura, com data de 21 de novembro de 1914, estipulou a doação de mais um alqueire e três quartos de terras «ao Senhor Bom Jesus e sua capela». Os doadores, Maria Luiza Fialho, José Antônio de Miranda e sua 196 AEAM, arm, 24, cx. 3 (grifo nosso). 197 AEAM, arm. 24, cx. 3 (o grifo é nosso). 198 AEAM, arm. 24, cx. 1.

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mulher, declaram que nas ditas terras «se poderá erigir igrejas, estabelecimentos e instituições fiéis, fundar hospitais, casas de instrução, casas particulares, fábricas, maquinismos, ruas, praças e outros melhoramentos indispensáveis a uma boa vila». São Sebastião do Pirapitinga (hoje Pirapitinga, distrito de Catas Altas da Noruega) deve sua formação à ereção de uma capela por José Gomes da Silva. O patrimônio foi doado em 31 de julho de 1888, e media «um alqueire e meia quarta de terras» localizadas «no centro da pequena povoação denominada Pirapetinga, onde já vários têm feito suas casas». Note-se que a formação do grupo de casas em torno da capela iniciou-se antes da doação do patrimônio. Mas isso só pôde ocorrer porque o proprietário do terreno não se opôs. De toda forma, trata-se de uma situação transitória. Somente a constituição do patrimônio em terras garante o direito dos foreiros de se instalarem nas proximidades da capela e ali fixarem residência.199 Um pedido de ereção de capela permite-nos rastrear a pré-história de Santa Filomena (distrito de Santana do Manhuaçu). Em 24 de abril de 1898, enviou-se a Dom Silvério Gomes Pimenta, bispo de Mariana, a seguinte carta: «Desejando os habitantes do córrego Taquaruçu nesta freguesia de São José do Barroso [atual Paula Cândido], edificar uma capela à gloriosa Santa Filomena em um patrimônio de seis alqueires de terras, doado à mesma santa na fazenda pertencente ao finado Padre Francisco Valente, vêm por esta requerer a Va. Exa. a competente licença e bem assim autorização ao vigário desta freguesia para benzer a dita capela depois de ultimada. O referido patrimônio dista mais de duas léguas da sede da freguesia (...)».200 Como se pode notar, a tríade capela-patrimônio-arraial é de fundamental importância para a compreensão da formação da rede urbana mineira. Quanto mais porque este tipo de interação entre sagrado e proto-urbanização foi um processo de longa duração, tendo se extendido do setecentos até o século XX adentro. Mencionemos, a título de ilustração, o caso de São Sebastião de Santa Rosa, germe da atual cidade de Paiva. Por volta de 1906 uma violenta epidemia atingia aquela porção da Zona da Mata. João Ferreira de Paiva, rico fazendeiro da região, prometeu então a São Sebastião que fundaria um arraial caso a sezão fosse debelada. A graça foi obtida, e Paiva mandou levantar um grande cruzeiro que, posteriormente, se mandou transladar a um local chamado Santa Rosa, onde o fazendeiro havia adquirido um terreno para patrimônio e início do arraial. Em 8 de julho de 1907 realizou-se a primeira missa ao ar livre no sítio onde ergueu-se, mais tarde, a capela de São Sebastião.201 Em 1909, seu patrimônio media cerca de oito alqueires. A capela era feita em madeira, e media 80 palmos de comprimento por 30 de largura e 28 de altura. Havia ainda no lugar o cruzeiro «com to199 AEAM, arm. 24, cx. 2. 200 AEAM, pasta 33, gav. 4, arq. 4. 201 EMB, vol. 26, p. 242.

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dos os martírios», um cemitério e uma casa para a residência do padre. O arraial tinha então «vinte casas edificadas e outras já em construção com cem habitantes, achando-se colocado o dito arraial num lugar pitoresco» e com farto acesso a fonte d’água. Reuniam-se ali, por ocasião das celebrações, 500 pessoas ou mais.202 O desenvolvimento da localidade foi bastante favorecido, a partir de 1914, com a inauguração de uma estação ferroviária – em terras, aliás, doadas pelo mesmo João Ferreira de Paiva.203

4.3.2 Sagas e mitos de origem Não é apenas o historiador, munido de seu aparato teórico-metodológico e seu vasto elenco de fontes, que se ocupa com a origem de nossas capelas e embriões de cidade. Movido pela mesma curiosidade, o povo também se pergunta a respeito. À sua maneira, ele encontra respostas. Estas respostas eventualmente constituem um corpo de narrativas que se pode classificar como sagas ou mitos de origem. Comecemos com um exemplo bem conhecido. No século XVIII, ao recolherem suas redes do leito de um rio, alguns pescadores encontram uma imagem de Nossa Senhora sem cabeça. Depois de lançarem outras vezes as redes, a cabeça pertencente à mesma imagem é encontrada. Faz-se-lhe um pequeno altar. Os que recorrem a ela não se decepcionam. Acontecem milagres, e a devoção cresce cada vez mais. Um templo maior é construído. As graças obtidas por intermédio da santa espalham sua fama por regiões distantes, e iniciam-se finalmente as romarias. Todo católico em nosso país conhece a «lenda» da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Numa perspectiva objetivista, narrativas deste tipo não merecem crédito algum da parte do historiador. Ninguém interessado em reconstruir a realidade histórica deveria servir-se de «lendas». Adolf von Harnack escreveu: «Se perguntarmos hoje aos nossos grandes historiadores (...) qual é a mais difícil parte de sua tarefa, assim nos responderão eles unanimemente: a luta contra a lenda (Legende)».204 Desde há muito este rigorismo cientificista tem sido criticado. O que foi escrito por André Jolles em 1930 a respeito da saga aplica-se perfeitamente à atitude que predomina na modernidade em relação à «lenda». Jolles chamava a atenção para essa «tirania da história» que nos leva a pensar «que a saga simplesmente não existiria, ou que ela constituiria apenas uma espécie de tímida pré-condição da própria história».205

202 AEAM, arm, 24, cx. 3. 203 DHGMG, p. 234. 204 Harnack, Adolf von. «Legenden als Geschichtsquellen». In: Harnack, A. v. Reden

und Aufsätze. Gieszen: J. Ricker’sche Verlagsbuchhandlung, 1904 (1. Band), p. 8. 205 Jolles, André. Einfache Formen. Tübingen: Niemeyer, 1974 (1930), p. 64.

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A historiografia contemporânea adota, sabidamente, uma posição bem menos ortodoxa. Gêneros como a saga e o mito oferecem-nos uma privilegiada via de acesso à mentalidade de uma época, ou, pelo menos, aos estilos de pensamento de uma camada social num dado período histórico. O grande medievalista russo Gurjewitsch, por exemplo, considera a saga uma das mais originais fontes para o estudo do que ele chama o «mundo interior» do homem medieval.206 Como uma coletividade concebe o universo à sua volta? Como ela organiza as relações entre as distintas «províncias de significado» (Schütz) que constituem sua realidade? O fundamental aqui é perceber que para a mentalidade popular tais narrativas são de fato verdadeiras. Neste sentido toda saga e todo mito contém uma porção não desprezível de verdade, e como tal pode e deve ser explorada pelo historiador.207 Vimos que o homem comum, na Minas antiga, é um homo religiosus. A idéia de «acaso» lhe é estranha: todo evento sensível, todo fenômeno, encontra no invisível a sua justificação. Ele ignora (ou simplesmente recusa) a rígida separação entre sagrado e profano de que tanto fala a religião oficial. Em seu universo o extra-cotidiano faz parte do cotidiano. Narrativas como a da origem da imagem de Nossa Senhora Aparecida eram moeda corrente na América Latina durante o período colonial.208 Na Minas dos séculos XVIII-XIX encontram-se ainda diversas outras modalidades mais ou menos semelhantes. Boa parte delas relaciona-se à construção de uma capela e, por conseguinte, à gênese de um arraial. Ora, diante deste tipo de fonte, a questão que se coloca não é mais «como surgiu a cidade», mas como o povo concebe a origem da cidade. O primeiro passo para a análise deste material consistiria no abandono da palavra «lenda», de vez que sua acepção corrente, no Brasil, está intimamente associada à idéia de «deturpação do real». Em conformidade com os trabalhos daqueles que primeiro realizaram estudos sistemáticos nesta área – os folcloristas –, empregaremos o termo saga.209 Ao contrário do que sugere o senso comum, este termo não denota apenas os relatos dos feitos dos antigos heróis nórdicos. As sagas têm dimensões e motivos que podem variar ao infinito – da complexidade do 206 Gurjewitsch, Aaron. Das Individuum im europäischen Mittelalter. München: C. H.

Beck, 1994, p. 55. 207 Pettazzoni, Raffaele. «The truth of myth». In: Dundes, Alan (ed.) Sacred narrative.

Readings in the theory of myth. Berlekey: University of California Press, 1984, pp. 98-109. 208 Ver Souza, Juliana B. Almeida de. «Virgem mestiça: devoção à Nossa Senhora na colonização do Novo Mundo». In: Tempo 6 (11) 2001: 77-92. 209 No francês e no inglês usam-se os derivados da forma latina legenda (légende, legend). Embora a palavra exista em português, o seu uso não se consagrou nem mesmo entre os pesquisadores brasileiros e lusitanos. A melhor solução nos parece ser «saga», uma vez que este termo encontrou uma aplicação bem mais precisa no âmbito da folclorística alemã.

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Edda à singela «história» da padroeira do Brasil. «Saga» é uma denominação abrangente para uma infinidade de sub-gêneros de narrativa popular que têm em comum o fato de colocarem no centro da ação não propriamente o homem em si, mas o extraordinário.210 Pelo menos naqueles contextos sociais ainda não afetados pela técnica e ciência modernas, a saga é percebida como a expressão inequívoca de um fato realmente acontecido. Ela pode ser considerada como uma espécie de cristalização, sob a forma de narrativa, das crenças populares. Donde se conclui que o estudo das sagas se confunde, em grande medida, com o estudo da religião popular.211 São três os seus tipos básicos212: – sagas demonológicas (no sentido original da palavra daímōn): nas quais o que desempenha o papel central é o Erlebnis, a «vivência» do extraordinário; – sagas históricas: onde figuram pessoas ou eventos reais; – sagas de origem: nas quais se busca explicar um dado fenômeno ou manifestação natural (uma tradução mais adequada para Ursprungssage é, talvez, «mito de origem»). Esta classificação não visa estabelecer uma diferenciação rígida, uma vez que na prática há sagas que contém elementos pertencentes aos três tipos ideais. Veremos, dentro em pouco, ser este o caso de muitas das sagas relativas às antigas capelas e arraiais mineiros. Em todo o caso estes tipos ideais oferecem um quadro de referência, contribuindo assim para conferir alguma intelegibilidade ao material pesquisado. A cidade não é algo «natural». Sua formação deve, portanto, ser explicada. Daí o surgimento das sagas ou mitos de origem: para alguns Lisboa teria sido fundada por Ulisses; outros crêem que o fundador teria sido Luso, um companheiro de Baco; para outros ainda o seu fundador foi um bisneto de Noé.213 À primeira vista, e em virtude da sua formação bem mais recente, nada semelhante teria acontecido em nossos arraiais. Conferindo um peso excessivo a casos como os de Belo Horizonte e Brasília, Flusser chega a escrever que as cidades brasileiras, «diferentemente das européias, originam-se não num projeto mítico, mas racional».214 Mas não é bem esse o caso. 210 Röhrich, Lutz. Sage. Stuttgart: Metzlersche Verlagsbuchhandlung, 1966, pp. 1-4. 211 Tillhagen, Carl-Herman. «Was ist eine Sage? Eine Definition und ein Vorschlag für

ein europäisches Sagensystem». In: Petzoldt, L. (Hrsg.) Vergleichende Sagenforschung. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969, pp. 307-318. 212 Bausinger, Hermann. Formen der «Volkspoesie». Berlin: Erich Schmidt, 1980, pp. 179-187; Röhrich, Lutz. «Erzählforschung». In: Brednich, R. W. (Hrsg.) Grundriß der Volkskunde. Berlin: Reimer, 2001, pp. 527-531. 213 Costa, Alexandre de Carvalho. Lendas – historietas – etimologias populares e outras etimologias respeitantes às cidades, vilas, aldeias e lugares de Portugal Continental. Porto: Civilização, 1959, p. 21. 214 Flusser, «Brasilianische Städte», p. 262.

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Um problema com o qual todas as sagas direta ou indiretamente se ocupam é o da escolha do sítio. Em Divino a solução foi original. Dispostos a fundar um povoado, os antigos moradores da região decidiram sair em caminhada, pela manhã, descendo pelo ribeirão São João do Norte até o rio Carangola, percorrendo suas margens até o ponto em que sentissem fome. No local em que pararam para fazer sua refeição, fincaram a bandeira do Divino Espírito Santo (de quem eram devotos) e edificaram a capela.215 A refeição como símbolo de congraçamento e união: algo que a capela – e o espaço que por seu intermédio se torna habitável – haveria de reforçar e representar de forma perene. Por volta de 1790, dois fazendeiros do sul de Minas tiveram a idéia de levantar uma capela. Discordaram, porém, quanto ao local da obra. Decidiu-se enfim que ambos sairiam de suas fazendas numa mesma hora combinada, um em direção à propriedade do outro. No local do encontro seria erigida a capela, célula-mater da atual cidade de Bocaina de Minas.216 A origem de Luz estaria relacionada, igualmente, a desentendimentos entre proprietários rurais. Duas fazendas vizinhas, chamadas «Cocais» e «Camargos», não tinham limites bem demarcados, o que motivava descontentamento e tensões de ambos os lados. A esposa de um dos fazendeiros, apreensiva, fez promessa a Nossa Senhora da Luz para que fosse encontrada uma solução pacífica. Surgiu então uma idéia para se resolver a questão: partindo pela manhã, simultaneamente, cada um de sua residência, os fazendeiros cavalgariam um em direção ao outro. Próximo do ribeirão do Jorge Pequeno deu-se o encontro, colocando-se ali o marco divisório. Resolveu-se fazer uma capela no mesmo local, a qual recebeu patrimônio. Daí a formação do arraial de Nossa Senhora da Luz da Confusão.217 A mesma solução foi posta em prática em Martinho Campos, embora na versão da saga de que dispomos não se faça menção a diferenças de opinião entre os fazendeiros Jerônimo Vieira e Maximiliano Alves de Araújo. Os dois decidiram na primeira metade do século XIX erigir uma capela a Nossa Senhora da Abadia.218 Deixar ao «acaso» de um encontro a determinação do sítio do templo? Em absoluto. A prática descrita acima nos remete a arquétipos cujas origens provavelmente se perdem no tempo. Em França acreditava-se que «depois de terem escolhido o lugar da igreja de São Léger-sous-Beuvray, São Léger e São Julien combinaram um encontro para o dia seguinte: o lugar onde eles se encontrassem seria escolhido para edificar a igreja de Laizy».219 215 216 217 218 219

EMB, vol. 25, p. 40. EMB, vol. 24, p. 199. EMB, vol. 25, p. 468. EMB, vol. 26, p. 60. Sébillot, Le folk-lore de France, p. 113. Conta-se nos cantões suíços de Uri e Grarus que a fronteira entre ambos teria sido demarcada por meio do mesmo recurso. Para pôr fim aos conflitos, dois homens robustos sairiam, cada um de sua região, «tão logo o galo cantasse». Petzoldt, Leander (Hrsg.) Deutsche Volkssagen. München: C. H. Beck, 1978, pp. 336-337.

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Tal como na Europa220, o que muitas vezes desencadeia a construção de uma capela na Minas antiga é o cumprimento de uma promessa – o que, diga-se de passagem, tende a relativizar a idéia de que o homem do século XVIII seria «obcecado» pela morte (para usar os termos de Euclides da Cunha: «a terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado sempre»).221 O mecanismo da promessa revela uma lógica diversa. É comum recorrer-se a ela num momento de perigo eminente ou de doença. No âmbito do catolicismo popular, o exercício da fé está em função da vida. Conta-se em Bom Sucesso que a origem da cidade se relaciona ao seguinte episódio. Por volta de 1720 passava por aquela região um governador de Minas com sua esposa, que estava grávida. Sentindo ela as dores do parto, fez o governador uma promessa à Virgem a fim de que tudo ocorresse sem problemas. Obtida a «graça», mandou-se construir no local uma capela dedicada a Nossa Senhora do Bom Sucesso. Ao seu redor formou-se o arraial.222 Em 1755, o padre Domingos de Araújo se estabeleceu com seus escravos numa fazenda. Anos depois a região foi afetada por uma sezão. Reunindo seus escravos em ofícios religiosos, o padre Araújo suplicou a Nossa Senhora da Saúde que os socorresse e prometeu fazer-lhe uma capela. Pôs-se o sacerdote a caminho do Rio de Janeiro, de onde trouxe, nas costas de um escravo, uma imagem da santa. Chegados à sua fazenda, esta imagem foi intronizada numa capela provisória construída no interregno da viagem. A epidemia arrefeceu, e a capela constituiu o eixo em torno do qual surgiu o arraial de Nossa Senhora da Saúde, atual cidade de Dom Silvério.223 Segundo a saga de origem de São Domingos do Prata, o fazendeiro Domingos Marques Afonso perdeu-se na mata, aonde fora caçar. Já sem esperança de safarse dos ataques de índios ou de animais selvagens, pediu a proteção divina, por intermédio «do seu homônimo, São Domingos de Gusmão, ao qual prometeu doar um patrimônio no lugar onde estava sua roça de milho». Depois de feito este voto, Afonso conseguiu chegar são e salvo a lugar seguro. Em 1760, em companhia de Antônio Alves Passos, ele deu início à construção da capela de São Domingos. A doação do patrimônio fez-se em 3 de outubro de 1768 em Catas Altas.224 Em Paraopeba acredita-se que a capela de Nossa Senhora do Carmo foi erguida e dotada de patrimônio por um proprietário chamado Coronel Marques, em agradecimento por ter saído ileso de um ataque de onça durante uma caçada.225 Faz-se promessas sobretudo devido a doenças ou ao medo de contrair doenças. O fundador de Santa Rita do Sapucaí, Manoel José da Fonseca, era tido como um homem «piedoso e bom». Conta-se que ele chegou àquela região com um saco às 220 221 222 223 224 225

Sébillot, Le folk-lore de France, pp. 123-124; HdA, 4. Band, p. 969. Cunha, Os sertões, p. 95. EMB, vol. 24, pp. 219-220. EMB, vol. 25, p. 58. EMB, vol. 27, p. 189-190. EMB, vol. 26, p. 268.

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costas, no qual trazia uma imagem de Santa Rita. Certa ocasião, ao ver-se enfermo, ele fez promessa de doar a Santa Rita de Cássia um terreno e contruir-lhe uma capela se recuperasse a saúde. Após sua morte (a variante de que dispomos não esclarece se a «graça» foi efetivamente atingida), sua esposa, Genoveva da Fonseca, doou em 1825 cerca de oito alqueires à santa – embrião da cidade de Santa Rita do Sapucaí.226 Atraídos pela qualidade das terras, dois irmãos, Daniel e Joaquim Goulart, se estabeleceram no sul de Minas. Isso por volta de 1820. Tempos depois um deles ficou gravemente doente, e ambos fizeram promessa de doar a São João Batista uma porção de terras entre os córregos do Lava Pés e da Chácara. Obtida a cura, doaram os irmãos Goulart nada menos que 70 alqueires nos quais logo foi erigida uma capela de São João Batista. Em 1825 um pequeno grupo de casas já se formara ao redor do templo.227 Bom Jesus do Galho teria sido fruto de uma promessa feita por Adão Coelho por volta de 1880. Devido a uma grave moléstia, «e não conseguindo cura na medicina», resolveu apelar para o Senhor Bom Jesus. Depois de restabelecer-se, Coelho doou terras «para que se construísse o povoado».228 Não é outro o motivo central na saga de origem de Monte Alegre de Minas. A família de Martins Pereira, a caminho de Goiás, teve um de seus membros acometido por uma enfermidade. Tiveram, por esta razão, de fazer pouso naquela parte do Triângulo Mineiro. Como devotos de São Francisco das Chagas, fizeram o voto de doar uma gleba de terras e construir uma capela para este santo, no caso de cura daquele familiar adoecido. Assim se deu, e com auxílio de outras famílias – os Gonçalves Costa e os Martins de Sá – a promessa foi cumprida: nasceu assim a povoação de São Francisco das Chagas do Monte Alegre.229 A epidemia volta a aparecer, relacionada à promessa, na saga da cidade de Teixeiras. Em torno de 1840, encontrava-se Antônio Serafim Teixeira a caminho de Ouro Preto para ali vender o produto de suas lavouras. No percurso, Teixeira foi tomado pelo medo de contrair uma moléstia que então grassava na região. Vendose nestas circunstâncias, fez promessa a Santo Antônio de que lhe construiria uma capela próxima ao local de sua residência. Tempos depois, a capela era erigida. O povoado cresceu lentamente.230 O mesmo teria se dado em Raul Soares. Duas irmãs, depois de rogarem a São Sebastião pelo abrandamento de sezões, doaram terras para patrimônio de uma igreja a ser construída em honra ao dito santo.231 Narrativas de estrutura semelhante (promessa → patrimônio/capela → arraial) encontram-se ainda nas cidades de Botelhos, Conceição de Aparecida, Guapé e Elói Mendes.232 Podemos considerá-las uma mistura de sagas históricas e mitos 226 227 228 229 230 231 232

EMB, vol. 27, p. 164. EMB, vol. 27, p. 217. EMB, vol. 24, p. 214. EMB, vol. 26, p. 118. EMB, vol. 27, pp. 343-344. EMB, vol. 27, p. 13. EMB, vol. 24, pp. 235 e 463; EMB, vol. 25, p. 171; ANEDC (22) 1960, p. 34.

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de origem: os personagens são quase sempre pessoas que realmente existiram, e a memória coletiva reconhece neles os «heróis fundadores» da comunidade. Por outro lado, trata-se de explicar um fenômeno – a cidade – que se sabe de origem «não-natural». Um fenômeno que os homens, por si sós, não seriam capazes de produzir. O que essas sagas parecem querer nos dizer é que, sem a decisiva intervenção do sagrado, o embrião de cidade jamais teria existido. Mas a religião popular estabelece também uma certa gradação entre as diferentes formas por meio das quais se dá tal intervenção. Se nos casos acima o sagrado é invocado, há outros em que ele simplesmente se manifesta. Estas manifestações espontâneas do numinoso, estas hierofanias233, colocam determinados eventos num patamar mais elevado de sacralidade. Um fenômeno recorrente nas sagas pesquisadas é a construção da capela no lugar onde se encontra a imagem de um santo. Van der Leeuw observou com perspicácia que este fenômeno mostra que os homens nem sempre escolhem o local da capela. É o local que, por assim dizer, se revela.234 Uma das moradoras de Cruz das Almas resumiu a questão de forma primorosa: «Os santos que são mais milagrosos são os antigos. Isso é porque os novos santos são feitos, e os antigos eram encontrados.»235

Bocaiúva teria surgido após o aparecimento de uma imagem do Senhor do Bonfim no início do século XVIII. Antônia Leite, esposa de Faustino Leite Pereira, ofereceu parte de suas terras para patrimônio da igreja do Bonfim. «Foi este, na verdade, o marco inicial da fundação da cidade».236 Em Matosinhos, a capela primitiva foi edificada nas ruínas de um antigo acampamento, onde se descobriu uma imagem do Senhor Bom Jesus.237 Em Nova Resende, in illo tempore, achouse uma imagem de Santa Rita. Erigiu-se uma capela à santa, que recebeu o respectivo patrimônio. Estava formado o embrião da cidade.238 O mesmo se deu em Turmalina, após o aparecimento da imagem de Nossa Senhora da Piedade.239 233 Goody («Religion and ritual», p. 151) critica este termo de Eliade, considerando-o

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inadequado para fins de sociologia religiosa comparada. Mas a recíproca não nos parece menos verdadeira: pode o método sociológico ser de alguma valia na análise das sagas e mitos de origem? Como já apontava Lévi-Strauss (Antropologia estrutural, p. 239), estes relatos apresentam notáveis semelhanças apesar de se originarem nos mais diversos contextos culturais e geográficos. Há fenômenos, como a crença em milagres e visões, que não se prestam a uma explicação de tipo sociológico tradicional (Benz, Die Vision, p. 642). A alternativa poderia estar num diálogo mais intenso com a fenomenologia. Nesta perspectiva: Dupront, Du sacré, pp. 44, 221; e Knoblauch, Religionssoziologie, pp. 35-38. Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 375. Pierson, Cruz das Almas, p. 147. EMB, vol. 24, p. 202. EMB, vol. 26, p. 75. EMB, vol. 26, p. 199. EMB, vol. 27, p. 387.

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Em 1853, um lenhador chamado Pedro Espetáculo (sic), ao manejar sua foice num roçado, descobriu uma imagem de São Pedro. O fato foi considerado um milagre, e nada menos que 19 proprietários constituíram um patrimônio com 60 alqueires para a capela dedicada ao santo. Desta «união» veio a idéia para o topônimo que ainda hoje se mantém no lugar: São Pedro da União.240 A saga de origem de São Vicente de Minas conta que no início do século XIX um empregado do fazendeiro Francisco José de Andrade Melo encontrou um santo às margens de uma nascente d’água. Verificou-se mais tarde que se tratava de uma imagem de São Vicente Férrer. O proprietário das terras mandou fazer uma ermida em honra ao santo, e depois uma capela. Esta tornou-se «o centro das atividades sociais da redondeza», crescendo assim o arraial.241 De Portugal242 à Romênia243, a tradição popular é marcada pelos mesmos relatos de capelas construídas em lugares (campos, rochedos ou grutas, junto a fontes ou árvores244) onde se acharam imagens de santos. Moisés Espírito Santo, centrando-se no estudo da crença nas «Senhoras Aparecidas» em aldeias portuguesas, sugere que este fenômeno exprime «a visão do próprio nascimento e manifesta o desejo da presença da mãe».245 Esta interpretação não satisfaz: também membros masculinos do panteão católico eram encontrados. Um grupo particularmente interessante de sagas é o das imagens «teimosas», aliás comuns na Espanha246 e na França.247 Vejamos o caso de Passa Vinte. Na primeira metade do oitocentos, duas velhas negras forras, ao saírem para buscar lenha, encontraram uma imagem de Santo Antônio no mato, ao pé de uma árvore. Levaram-na para casa e colocaram-na num altar improvisado. No dia seguinte a imagem havia desaparecido misteriosamente, e após intensas buscas, foram encontrá-la no mesmo local onde ela estava na véspera. Trouxeram-na de volta, mas o desaparecimento se repetiu nos mesmos termos: Santo Antônio voltara para seu lugar de origem. Diante do fato, as escravas reuniram conhecidos e construíram,

240 EMB, vol. 27, p. 264. 241 EMB, vol. 27, p. 288. 242 Costa, Lendas – historietas – etimologias populares..., pp. 433, 524, 562, 568, 570-

571. 243 Taloş, Ion. Petit dictionnaire de mythologie populaire roumaine, p. 263; Taloş, Ion. «Bausagen

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in Rumänien». In: Fabula (10) 1969: 198-211, pp. 201-202; Taloş, Ion. Meşterul Manole. Grai şi Suflet-Cultura NaŃională: Bucareşti, 1997, p. 398. «Trata-se de lugares que, devido à sua expressão simbólica, são predestinados à construção de uma igreja». Blümmel, Maria-Verena. «Bauplatzlegende». In: EM, 1. Band, p. 1402. Espírito Santo, A religião popular portuguesa, p. 98. Segundo Paul Zumthor, «du IXe au XVIIIe siècle, se sont fondés, particulièrement en Espagne, bien des sanctuaires mariaux aux emplacements où un berger de jadis était censé avoir découvert une image miraculeuse de la Vierge, laquelle aurait refusé d’être transportée ailleurs ». Zumthor, La mesure du monde, p. 55. Sébillot, Le folk-lore de France, p. 121.

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em regime de mutirão, uma capela no local em que o santo preferia ficar.248 Juiz de Fora dá-nos outro exemplo. Quando se concluiu a nova capela (atual matriz da cidade), em terras doadas por José Ribeiro de Resende, a imagem de Santo Antônio deveria ser trazida da antiga capela do Caminho Novo. Assim se fez, processionalmente, «com grandes manifestações de fé e civismo». Durante a noite, porém, a imagem voltou para seu antigo templo. Dando-se conta do ocorrido, os fiéis realizaram nova procissão, trasladando o santo para a capela nova. Mais uma vez, na noite seguinte, voltou a imagem para sua antiga capela. A solução encontrada foi original. Enquanto a reação comum consiste em submeter-se à vontade do santo, os moradores de Juiz de Fora passaram a procurar a imagem em romaria «até que, vigiada, custodiada dia e noite, adaptou-se à nova situação».249 Santo Antônio foi coagido a aceitar a sua nova morada. Na sua interessante análise comparada das sagas associadas a Nossa Senhora na América Latina Colonial, Juliana Beatriz de Souza sugere que por meio destas narrativas «a Igreja encontrava um meio de transformar o colonizado, potencialmente rebelde, em aliado, no fortalecimento da sua presença nas colônias americanas».250 Reduzir tais crenças ao produto de uma manipulação, da parte de quem quer que seja, significaria ao nosso ver assumir uma atitude incompatível com a lógica que parece mover o fenômeno religioso popular. Uma lógica à qual os clérigos, em maior ou menor grau, têm de obedecer.251 Por outro lado, seria igualmente apressado excluir qualquer possibilidade de «manipulação». Para Dupront, se as sagas são «cristalizações do imaginário coletivo, lentamente elaboradas, ou ficções produzidas por eruditos com a finalidade de condicionar ou excitar, não importa».252 De fato: a origem das sagas importa menos que seu dinamismo próprio.253 Para a gente simples do campo, elas cumprem o papel fundamental de (se assim podemos nos expressar) explicar o inexplicável. 248 EMB, vol. 26, p. 279-280. 249 Bastos, Wilson de Lima. Folclore no setor religião em Juiz de Fora. Juiz de Fora:

Paraibuna, 1973, p. 10. 250 Souza, «Virgem mestiça...», p. 91. 251 Como já percebera Weber: «A fim de manter seu poder, freqüentemente ele [o

clero] precisa, em ampla medida, ceder às necessidades dos leigos ». Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, p. 260. 252 Dupront, Du sacré, p. 56. 253 Eis aqui outro ponto em que nos afastamos de Juliana de Souza. Baseando-se em Mott, ela propõe que estas tradições teriam tido origem na Espanha (Souza, «Virgem mestiça...», p. 83). Na verdade, sagas deste tipo estavam presentes em praticamente todo o ocidente cristão. Encontrar uma «origem» das narrativas religiosas populares no tempo e no espaço é, de resto, tarefa praticamente irrealizável. Esta preocupação em se historicizar o mito faz lembrar o paradigma da escola difusionista, ou ainda a doutrina dos «círculos culturais» (Kulturkreisen). A respeito, ver as críticas de Malinowski, Bronislaw. Eine wissenschaftliche Theorie der Kultur. Frankfurt: Suhrkamp, 1975 (1944), pp. 60-62; e Lévi-Strauss, Antropologia estrutural, pp. 18-19.

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Ao mesmo tempo, tais narrativas revelam algo da ambivalência que marca as relações entre religião popular e religião oficial. As sagas «demonológicas» exprimem uma (ânsia de) comunicação direta com o sagrado, sem a intermediação institucional da Igreja.254 Eis que, num segundo momento, constrói-se a capela. A médio ou longo prazo, isso implica numa rotinização – ao menos relativa – do carisma. Esta curiosa dialética também se dá a ler numa perspectiva geográfica. As transformações que as representações coletivas geram no espaço reincidem sobre o campo religioso, alterando parcialmente a sua lógica inicial (sagrado «selvagem» → capela/sacerdote → domesticação do sagrado). Ou seja: «à medida em que utilizam e moldam espaços, os grupos religiosos também moldam-se a si mesmos».255 Os eventos que se relacionam à origem de uma povoação podem assumir um grau de sacralidade ainda mais elevado, como as visões e os milagres. Em Santa Bárbara de Canoas (atual Guaranésia), embora a capela primitiva tenha sido feita à custa da devoção de José Maria Uchoa, considera-se que o que influiu decisivamente na formação do arraial foi a providência divina. Na véspera da inauguração do templo, um grupo de homens trabalhava na derrubada da mata onde hoje se localiza a cidade. Ao tentar escapar da queda de um tronco, um dos trabalhadores caiu ao solo e, aterrorizado, gritou por Santa Bárbara. Eis que a árvore, arrastada na queda, teve sua raiz violentamente projetada para fora, atirando para longe o pobre homem e salvando-o da morte certa. «Seus companheiros então se prosternaram e murmuraram: Milagre! Milagre! de Santa Bárbara!» Celebrada a primeira missa no dia seguinte, José Martins e Manoel Fernandes Varanda decidiram doar patrimônio a Santa Bárbara, a fim de nele fazer um arraial.256 A narrativa comprova algo que nossa documentação já havia mostrado. Longe das áreas mineradoras, da ação colonizadora do Estado ou das concorridas rotas de comércio, o arraial só se forma após a doação do patrimônio que compõe o espaço (sagrado) da futura povoação. A saga de origem de Lambari tem uma trama um pouco mais complexa. Em meados do século XIX, a área atualmente ocupada pela cidade era coberta por uma floresta. Sua vegetação era tão densa que nem mesmo os raios solares conseguiam ali penetrar.257 Perdida na imensidão da mata existia uma fonte de águas milagrosas, conhecida somente por um velho escravo mina de propriedade de um fazendeiro de Campanha. Antônio Dantas era o seu nome. Naquela época, chegou a Campanha um rico fazendeiro e criador, Antônio Alves Troncoso. Vinha ele 254 Ver Espírito Santo, Moisés. Origens orientais da religião popular portuguesa. Lis-

boa: Assírio & Alvin, 1988, p. 26; e Dupront, Du sacré, p. 430. 255 Hoheisel, Karl. «Religionsgeographie und Religionsgeschichte». In: Zinser, H.

(Hrsg.) Religionswissenschaft. Eine Einführung. Berlin: Dietrich Reimer, 1988.p. 125. 256 EMB, vol. 25, p. 178. 257 «A floresta escura tem um caráter numinoso», lembra van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 370.

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com sua filha Cecília à vila, para que um famoso médico ali residente pudesse curá-la de uma grave enfermidade. Mas as luzes da ciência não reestabeleceram a saúde da jovem. Numa venda de Campanha, Tancredo – noivo de Cecília – contava a pessoas ali presentes sobre os sofrimentos de que ela era vítima, até que o escravo Dantas, aproximando-se, falou-lhe da fonte milagrosa. Decidiram todos seguir até o local designado, onde, depois de tratar-se com a água durante 20 dias, Cecília recuperou-se totalmente. Seu pai, em agradecimento pela graça obtida, fez construir ali uma capela dedicada a Nossa Senhora da Saúde. Nesta singela casa de oração celebrou-se, pouco tempo depois, o casamento de Tancredo e Cecília. Ao seu redor, nasceu a povoação de Lambari.258 Estas narrativas apresentam uma visível semelhança com as sagas de origem dos mais importantes centros de romarias da Minas antiga. A gruta de Nossa Senhora da Lapa, que Carrato diz ter sido o mais antigo santuário de Minas, foi descoberta por um garoto que ali penetrara à procura de um coelho. Dentro da gruta, encontrou ele uma imagem da Virgem. O povo, ao saber do ocorrido, para lá se dirigiu e, colocando-a num andor, transportou a imagem até a matriz. À noite, Nossa Senhora voltou à sua gruta, e o fato foi interpretado como sinal de que ali deveria ser ela venerada.259 Foi depois de curar-se de uma doença que Feliciano Mendes se dispôs a erigir o santuário do Senhor Bom Jesus em Congonhas do Campo. A visão da Virgem onde haveria de se construir o eremitério da Serra da Piedade; as marcas deixadas por São Tomé em pessoa numa gruta do sul de Minas; a imagem encontrada por um escravo em Conceição do Mato Dentro: a identidade entre o elemento popular e este tipo de manifestação do sagrado é evidente. O parentesco entre os grandes centros de romarias e inúmeros de nossos embriões de cidade, assentados em seus patrimônios, é flagrante. Concebidos como espaços sagrados, eles devem sua origem a um transbordamento da transcendência.260 Santuário e arraial «pulsam» regularmente; um por ocasião das grandes festas que são os jubileus, o outro por ocasião do culto dominical. Uma vez mais pode-se dizer que a diferença aqui é de grandeza, não de natureza. Se estes aspectos da religião popular escapam a toda e qualquer tentativa de interpretação pautada por aquilo que Evans-Pritchard ironicamente chamou metafísica sociológica, é preciso reconhecer que nem tudo nas sagas está desconectado da realidade social.261 Basta dizer que são quase sempre indivíduos socialmente marginalizados (pescadores, lavradores, escravos) os que estabelecem a ponte entre o cotidiano e o transcendente. Dificilmente aquele que encontra a 258 ANEDC (8) 1946: 5-7. 259 Carrato, Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais, p. 35. 260 «A pilgrimage’s foundation is typically marked by visions, miracles, or martyr-

doms». Turner & Turner, Image and pilgrimage in Christian culture, p. 25. 261 Longe de nós ignorar a existência, ao nível do imaginário, desta dialética «entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e os constrangimentos (intimations objectives) que emanam do meio cósmico e social». Durand, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1984 (1969), p. 38.

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imagem santa, que tem a visão, que desfruta de um acesso privilegiado ao numinoso, é o membro das camadas privilegiadas. Para o imaginário popular existe uma «afinidade eletiva» entre a(s) divindade(s) e os excluídos deste mundo. Como disse Antônio Xavier, pai de duas das moças que afirmam receber mensagens da Virgem na Vila de Piedade dos Gerais: «Deus é sempre dos pobres e é por isso que ele, junto com sua mãe, escolheu este lugar».262

4.3.3 Ritos de fundação Ritos são «ações simbólicas minuciosamente constituídas e que visam o (re)estabelecimento da segurança em momentos de transição e de superação de fronteiras».263 O dispositivo ritual «demarca» e ao mesmo tempo garante a passagem entre diferentes espaços (ritos de separação e incorporação) ou estados (ritos de iniciação), assim como a passagem entre «províncias de significado» distintas: ritos também são as orações noturnas feitas pelo homo religiosus antes de adentrar o mundo dos sonhos. A importância do ritual na gênese do espaço urbano é atestada desde a Antigüidade. Difícil imaginar que a Minas Gerais dos séculos XVIII-XIX tenha constituído uma exceção. Porque não basta que a imposição de normas religiosas, a existência de recursos naturais e a vontade do próprio além definam o local da capela e de seu respectivo arraial. A extensão só se torna habitável depois de ter sido sacralizada por intermédio de um rito. Todavia são bastante raras as referências a respeito na literatura, e não consta que os historiadores do fenômeno urbano brasileiro tenham se ocupado com a questão. Mesmo nas fontes com as quais trabalhamos os ritos de fundação são mencionados de forma fragmentária. Ainda assim, talvez valha a pena reunir alguns destes fragmentos e verificar se, a partir deles, se pode avançar alguma coisa na compreensão deste importante aspecto do processo de formação de nossos arraiais. Rocha Pombo dá a sua versão do rito de fundação no Brasil Colônia: «A fundação da cidade aqui é ainda uma cerimônia de culto: ergue-se a cruz no alto de uma colina; marca-se no solo o quadrilátero para os muros, e benze-se a terra; levanta-se em seguida, no meio dessa área, a capela destinada ao orago».264 É interessante notar como este rito lembra a cerimônia de delimitação do terreno dedicado à construção de uma capela. O bispo ou seu representante deve levantar uma cruz no sítio escolhido, e, em seguida, demarcar a área do templo e seu respectivo adro.265 Na prática, invertia-se às vezes a ordem dos procedimentos. O sítio da 262 Citado por Ferreira, As aparições em Piedade dos Gerais, p. 46. 263 Soeffner, Gesellschaft ohne Baldachin, p. 204. 264 Rocha Pombo, José Francisco da. História do Brazil. Rio de Janeiro: J. Fonseca

Saraiva, vol. II, s/d, p. 581. 265 CAB, livro IV, título XVII, 687.

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igreja nova da Borda do Campo (atual Barbacena) foi demarcado em 19 de agosto de 1726. O início das obras só se deu 16 anos depois. No dia 9 de dezembro de 1743, em meio a grande festa, levantou-se um cruzeiro no lugar da construção.266 Em geral, o terreno do patrimônio deve passar por dois ritos: a demarcação e o ato de posse. Aparentemente, não há uma padronização. Em alguns casos descreve-se a demarcação e omite-se o ato de posse; em outros ocorre o inverso. Podemos ver como é feita a demarcação no caso da capela de Nossa Senhora do Ó de Sabará. Como parece ter sido típico em arraiais mineradores, inicialmente ela não foi dotada de patrimônio em terras. Era somente à custa de esmolas que os fiéis a mantinham. Em 1717 decidem eles recorrer à Câmara da vila: «querem os suplicantes fazer um patrimônio para o que carecem de terras no circuito da dita capela para nelas fazer ou darem a quem possua algum rendimento». A área requerida media 70 braças. Em 28 de setembro de 1717 o terreno é concedido, com a condição que o rendimento das casas já existentes no local fosse reservado à Câmara. Em 8 de dezembro do mesmo ano o arruador e medidor do Conselho, José Ferreira da Conceição, deslocou-se até o sítio designado para efetuar a medição. «Certifico que (...) fui medir no Arraial de Nossa Senhora do Ó os terrenos

concedidos, os quais medi 35 braças para cada lado, que vem a ser 70 braças de largura; aonde chegaram as ditas braças lhe pus 2 marcos de pedra, em cada um lhe puseram 5 pedras mais pequenas que servem de testemunhas da dita arruação, e por ser pedida passo a presente certidão.»267

Esta descrição não permite identificar a existência de qualquer simbolismo religioso. A demarcação do patrimônio seria, portanto, um rito «profano»? É preciso 266 Trindade, Cônego Raimundo. Instituições de igrejas no bispado de Mariana. Rio

de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945, p. 61. 267 AEABH, cx. 837. A interpretação destes documentos prestou-se a uma série de

confusões da parte de outros autores. Como o pedido enviado à Câmara se inicia com a frase «dizem os devotos de Nossa Senhora da Espectação que eles estão fabricando uma capela (...)», Salomão de Vasconcelos afirmou que a igrejinha estava passando por uma «reforma». Na verdade, «fabricar» significa aqui «dotar de fábrica», ou seja, sustentar e manter financeiramente uma obra pia. À época, quando se falava em «construir» uma capela, o mais comum era o uso do verbo erigir. Vasconcelos, Salomão de. «Velhas matrizes mineiras...». In: RIHGMG 2 (2) 1945: 84102, p. 86-87. Murillo Marx («Arraiais mineiros...», p. 391), baseando-se amplamente em Vasconcelos e referindo-se ao mesmo exemplo, escreve: «Tais documentos dizem tudo para compreendermos a gênese (...) dos arraiais mineiros». Como acreditamos ter comprovado, é um erro imaginar que os patrimônios tenham desempenhado um papel importante na gênese dos arraiais ligados à mineração. O caso da capela de Nossa Senhora do Ó bem o demonstra: o arraial já existia antes da doação do patrimônio. Aliás, outro detalhe importante para o qual Marx não atentou é que «arraial», aqui, não significa «povoado» mas sim bairro (Sabará era vila desde 1711).

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atentar para o fato de que a certidão do arruador não tem por objetivo explicar minuciosamente qual é o procedimento adotado. Ela é um mero registro. Que o processo podia eventualmente atingir um considerável grau de complexidade, mostra-o o próximo exemplo. Erigida em fins da década de 1760, a capela de Nossa Senhora da Ajuda de Três Pontas seguramente teve seu primeiro patrimônio constituído em dinheiro. Uma sesmaria de meia légua quadrada, abarcando toda aquela redondeza, foi obtida por Bento Ferreira de Brito junto ao governador da Capitania em 24 de setembro de 1793. A demarcação da área reservada para «logradouro da capela» (o que significa que se trata de um daqueles casos em que se doa não o terreno em si, mas seu rendimento) fez-se simultaneamente à delimitação da sesmaria, em 3 de outubro de 1794. Joaquim Nunes Corrêa e Manuel Fernandes Teixeira foram os medidores nomeados. De comum acordo, decidiu-se colocar o eixo de referência (o pião) numa serra, a certa distância da capela. Feito de pedra, este pião tinha quatro cruzes, cada uma delas voltada para a direção na qual deveriam seguir os medidores. Utilizou-se uma corda de linho fino com extensão de 15 braças (33 m.). Uma vez instalado o pião, partiram os medidores rumo sudeste, e contaram 25 cordas «para logradouro do arraial» (que já existia num declive próximo ao córrego da Ortiga). Neste local foi instalado um marco de pedra com uma cruz voltada para o pião. Seguiram adiante mais nove cordas, até as margens do córrego da Ortiga, onde colocaram um marco de madeira «em que lavraram uma cruz virada para o pião». Retornando ao ponto de partida, caminharam rumo noroeste e mediram 25 cordas «para logradouro da dita capela». Assentaram o marco de pedra com uma cruz voltada para o pião, e, depois de percorrer mais 91 cordas na mesma direção, fincaram um marco de «pau de jacarandá». Voltaram ao pião e de lá seguiram 25 cordas rumo sudoeste «para logradouros» da capela. Este terceiro marco de pedra foi colocado no alto da serra, pouco atrás do templo. Continuando a medição, percorreram 50 cordas, ao fim dos quais colocou-se um marco «de pau nativo». Voltaram mais uma vez ao pião e tomaram direção nordeste. Ao fim das primeiras 25 cordas «para logradouro da capela» colocaram o marco de pedra. Depois, outras 50 cordas foram contadas e o último marco de «pau nativo de jacarandá» foi instalado.268 Portanto o quadrilátero central ocupava uma área de 50 x 50 cordas (272,25 hectares), dividida em quatro partes. Dos três quartos destinados à capela, um quarto ficou reservado para o doador. O restante (25 x 25 cordas ou 68,06 ha.) foi destinado ao arraial. A sentença do juiz de sesmarias, datada de 14 de outubro de 1794, dava a Bento Ferreira de Brito direito de posse sobre a sesmaria (área total: 2.597,265 ha.), «salvo as do quarto também medido e demarcado reservado para logradouros do Arraial».269 268 ANEDC (19) 1957: 9-11. 269 Equivoca-se Waldemar Barbosa ao afirmar que o patrimônio media meia légua de

sesmaria e que o arraial surgiu em torno da capela. DHGMG, pp. 356-357. O erro foi induzido pela transcrição incompleta dos documentos originais feita por Monsenhor Lefort. Da maneira como este último organiza sua exposição, o leitor é le-

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Tal como na China e na Roma antigas, o espaço é concebido como um quadrado. Os quatro marcos «internos» delimitam a parte central, a mais importante do terreno. Por isso eles são de pedra. Mas da mesma forma que os «externos», feitos em madeira, eles trazem cruzes voltadas para o ponto de rotação (depois de concluída a demarcação, a sesmaria tem nada menos que 12 cruzes: uma em cada marco e quatro no pião). O símbolo da cruz atesta a sua sacralidade.270 O caráter religioso deste complexo de ritos fica mais evidente no ato de posse. Segundo Nelson Omegna, «o padre ou o diretor da irmandade, representando o santo, quebra alguns ramos de árvore, espalha-os, cava o chão, semeia a terra, e estende o olhar pela extensão da área doada, apossando-se dela».271 Com uma ou outra diferença, esta descrição coincide com a da posse da sesmaria em que se formou a cidade de Três Pontas: «Ao sesmeiro [foi] mandado cortar ramos, cavar terras e com ânimo de to-

mar posse, em cujo auto disse eu escrivão três vezes em voz alta, que se havia quem se opusesse à dita posse chegasse a fazer o seu requerimento, e porque proferidas as ditas palavras e feitas as mais cerimônias da lei, não houvesse oposição, houve o (...) dito sesmeiro [Bento Ferreira de Brito] por empossado das referidas terras.»272

Van der Leeuw insistiu, e com razão, que a agricultura e a fundação de uma cidade estão intimamente relacionadas entre si no plano simbólico.273 O costume do uso do arado para delimitar a área do bastide medieval também parece ter se transmitido à Minas antiga, onde ele aparece de forma evidentemente mais tosca. A rigor, tanto o patrimônio quanto o bastide são «plantados».274 Ao estender o olhar sobre a área do patrimônio, a pessoa que dele se apossa faz lembrar o procedimento dos áugures romanos. O sacerdote sobe a um ponto alto do terreno (o templum), volta-se para o oriente e divide seu campo de visão em quatro partes. As manifestações que aí se verificarem (raios, vôo de passaros, etc) fornecerão elementos para o oráculo.275 Toda a realidade circunscreve-se ao que se situa

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vado a crer que toda a sesmaria tinha sido doada à capela, o que é desmentido pelo próprio atestado de medição. A configuração «anômala» do embrião de Três Pontas – o arraial se desenvolveu a certa distância da capela – provavelmente foi causada pelo fato de que esta última estava num sítio elevado e sem espaço suficiente ao seu redor. O mesmo ocorreu com o arraial da capela de Santana de São João Acima, filial da matriz de Pitangui. Trindade, Visitas pastorais, p. 142. «A sacralidade dos marcos e sua irremovibilidade (termini em Roma, kudurru na Babilônia) é conhecida e se prolonga até a era moderna». Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 377. Omegna, A cidade colonial, p. 71. ANEDC (19) 1957: 12. Grifo nosso. Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 376. Heers, Jacques. La ville au Moyen Âge. Paisages, pouvoirs et conflits. Paris: Fayard, 1990, p. 130. Müller, Die heilige Stadt, p. 45.

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dentro deste horizonte visual – no interior do qual ela é, por assim dizer, fenomenologicamente «reduzida». Inácio Correia Pamplona escolheu, em 1769, «um lugar delicioso e aprazível» para fundar um arraial. Mas para o ato de posse pareceu-lhe melhor subir uma serra, para «apreender tudo quanto a vista alcançasse do alto dela». Ali chegando com sua comitiva, mandou tocar os tambores e reunir todos os interessados. Em seguida, «fizeram em um pau de sucupira do campo quatro cruzes e mandou o Senhor

Mestre de Campo armar um altar ao pé do dito pau, e depois de postas nele as Santíssimas Imagens de Nosso Senhor e Nossa Senhora, o reverendo capelão mandou por a todos de joelhos, e que rezassem uma Ave Maria e uma Salve Rainha a Nossa Senhora para que prometesse que, desfeito aquele ato, se nos seguisse a todos em bom sucesso, o que assim se fez com toda a devoção. Depois disto acabado, mandou o Senhor Mestre de Campo tocar trompas, flautas, violas e rebecas (...), acabado isso disse ao soldado José Francisco Serra, em voz alta, que o Senhor Mestre de Campo estava em ato de posse naquele lugar (...).»276

Nas referências a ritos de fundação de embriões de cidade formados ao longo do século XIX, outros elementos tornam-se mais evidentes – em especial o levantamento do cruzeiro277 e a missa. Por vezes se menciona a presença de oficiais de justiça. Como no arraial de São Sebastião da Ventania (atual Alpinópolis). Em 1808, Ana Teodora de Souza, empenhada em cumprir o desejo do seu esposo há pouco falecido, adquiriu por 500.000 réis meia légua em quadra. Seu objetivo: levantar uma capela em homenagem a São Sebastião e fundar um arraial. Em 14 de dezembro de 1809, Pedro Antônio de Souza, oficial de justiça de Campanha, veio com sua comitiva ao local e deu à capela «posse judicial, civil e solene» sobre o patrimônio. A cerimônia foi acompanhada pelo vigário de Jacuí.278 No dia 23 de março de 1812 doou-se um terreno a Nossa Senhora do Carmo para a fundação de um arraial. Uma segunda doação foi feita por João Coelho Nunes em 24 de fevereiro de 1814. Nesta mesma data, reuniram-se no terreno doado os moradores dos arredores, celebrou-se missa, levantou-se um cruzeiro «e deu-se por fundado o arraial de Nossa Senhora do Carmo», hoje cidade de Carmo de Minas.279 Em fins da década de 1860 doaram-se 11 alqueires à capela de Santa Isabel dos Coqueiros (atual Heliodora). Convocado o padre Antônio Carlos da Silveira, dirigiu-se ele ao local da doação, celebrou missa e tomou posse do pa276 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...». In: Anais da Bibli-

oteca Nacional (108) 1988, pp. 77-78. 277 Sobre o papel das cruzes, ver Martin, Hervé et Martin, Louis. «Croix rurales et sa-

cralisation de l’espace». In: Archives de Sciences Sociales des Religions 43(1) 1977: 23-38. 278 EMB, vol. 24, pp. 61-62. 279 EMB, vol. 24, p. 390.

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trimônio em nome do bispo de Mariana.280 Manoel Gonçalves Prudente e sua mulher Delfina Maria da Conceição doaram em 1885 terras para fundar um arraial que recebeu o nome de Santo Antônio da Coluna. Em 15 de agosto do mesmo ano, Dom João Antônio dos Santos benzeu um cruzeiro no terreno doado. Neste local erigiu-se, mais tarde, a matriz da cidade de Coluna.281 Estas referências esparsas não nos permitem saber até que ponto os procedimentos eram ou não padronizados. Em parte, isso se deve ao caráter da documentação de que nos servimos. Uma análise minuciosa dos ritos de fundação exigiria um estudo da extensa documentação produzida por juízes de sesmarias, medidores, oficiais de justiça, etc. Tarefa essa que, evidentemente, não estamos condições de empreender neste trabalho. Por hora, bastará fazer algumas observações de caráter geral a respeito dos ritos de fundação. Os momentos básicos parecem ser: (a) demarcação, (b) ato de posse, (c) levantamento de um cruzeiro, (d) bênção e/ou missa e (e) festa. Como dissemos, não há rigidez nesta ordem e muito menos presença obrigatória de todos os elementos. Normalmente quem oficia o rito é um oficial de justiça, secundado ou não por um sacerdote. Este último pode assumir preeminência, em especial naqueles casos em que o fundador do arraial é, ele próprio, um padre (como em Cordisburgo, Dom Silvério, Dom Viçoso e São Tomás de Aquino).282 Embora a demarcação e o ato de posse pareçam ser ritos «laicos», nem um nem outro estão completamente destituídos de conotação religiosa. Segue-se, então, o rito religioso stricto sensu: uma prece coletiva aos pés de um cruzeiro ou um altar rústico, a missa, a bênção. Seja dito, aliás, que as empresas de loteamento que atuaram no oeste paulista na primeira metade do século XX conservaram o costume de levantar e benzer um cruzeiro na clareira aberta para dar lugar à nova cidade. Monbeig diz que «essa é uma ocasião de grande festa, de que o loteador fará o maior alarde possível, convidando os personagens importantes da região».283 A festa, «pulsão da unidade», opera na duração a mesma transformação que o patrimônio impõe ao espaço. A comunidade já pode surgir.

4.3.4 Relações de poder O arraial é uma expressão espacial, e talvez a mais privilegiada, da religião popular na Minas antiga. A tríade capela-patrimônio-arraial pode ser tomada como um signo visível do universo mental predominante naquela época. Como toda forma de espaço, o arraial deve ser construído simbolicamente e socialmente. Isso acontece através de um complexo processo de interação entre os planos religioso, social e espacial. Embora cada um destes níveis desfrute de 280 281 282 283

EMB, vol. 25, pp. 204-205. EMB, vol. 24, p. 455. EMB, vol. 24, p. 527; vol. 25, p. 58; vol. 27, p. 438; vol. 27, p. 284-5. Monbeig, Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, p. 236.

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um dinamismo próprio, nenhum deles é absolutamente «autônomo» um em relação ao outro.284 O que significa dizer que a análise da produção do espaço do arraial permite identificar não só a visão de mundo do grupo que o «preenche» mas também as relações de poder que aí se desenrolam. Uma parcela substancial das capelas era construída e mantida por um único fazendeiro. Movem-no outros interesses que não os de natureza religiosa? Sem dúvida. Em 1756, Antônio da Costa envia um pedido de provisão ao bispo de Mariana afirmando viver com sua família «mui retirado» da freguesia de Furquim. Era sua intenção «fazer à sua custa uma capela» em sua propriedade, aberta a «todo o povo, do que há grande número, e pela longitude com que estão muitas vezes perdem a missa». Detalhe importante: Antônio da Costa «tem seu filho cujo deve ordená-lo a título da mesma capela».285 Há pelo menos um forte indício de que a capela e o sacerdote podem, eventualmente, se tornar instrumentos de poder nas mãos dos fazendeiros: é a possibilidade de um fazendeiro tornar-se padroeiro de uma capela (não confundir com orago, termo utilizado para se referir ao santo venerado). Padroeiros, segundo a Encyclopedia e Diccionário Internacional (vol. XIV, p. 8317), são aqueles «que têm o direito de padroado», que são «fundadores de igrejas ou mosteiros». Na Antigüidade tardia o membro de alguma família influente podia obter direitos sobre o túmulo de um mártir, adquirindo assim o status de patronus. Peter Brown considera esta prática uma forma de «privatização do sagrado».286 Analisando a questão no contexto do Brasil Colônia, Riolando Azzi chega a uma conclusão semelhante: «o ‹dono da igreja› tornava-se também o ‹dono do santo›«.287 A mais clara referência à existência desta instituição em Minas foi feita em fins do século XIX pelo Monsenhor Bicalho, secretário do bispado de Mariana. Empenhado em reaver os patrimônios das antigas capelas e matrizes, ele explica em correspondência aos párocos que «os fundadores recebiam dos Exmos. e Rvmos. Srs. Bispos o título de padroeiros

dessas capelas, gozando de muitos privilégios, como o de ter capelão, poder nomeá-los entre os sacerdotes aprovados, administrar os bens das capelas, etc, título este de que os fundadores muito se vangloriavam. Era uma espécie de direito de padroado.»288

A existência desta prática é confirmada por uma provisão de Dom Frei Manoel da Cruz, datada de 3 de novembro de 1753: 284 Löw, Raumsoziologie, p. 131. 285 AEAM, pasta 54, gav. 1, arq. 1. 286 Brown, Peter. The cult of the saints. It’s rise and function in Latin Christianity.

Chicago: University of Chicago Press, 1981, pp. 32-34. Na China, quando o templo dos povoados era construído à custa de doadores, estes recebiam títulos honoríficos. Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, I, p. 382, nota 2. 287 Azzi, A cristandade colonial, p. 49. 288 AEAM, arm. 24, cx. 5.

239 «Fazemos saber que (...) nos convém a dizer o Coronel Miguel Alves Pereira,

administrador da Capela de Nossa Senhora da Conceição do Suassuaí da Matriz do Santo Antônio do Ribeirão de Santa Bárbara, havemos por bem de lhe mandar passar a presente nossa provisão, pela qual gozará do privilégio de padroeiro e lhe concedemos a si e a seus sucessores, sendo brancos legítimos, o jus de nomear para capelão de sua capela sacerdote secular, sendo por nós aprovado; com a cláusula, porém, se fazer à sua custa todas as obras que forem necessárias na dita capela.»289

Outros desfrutaram do mesmo privilégio. Antônio José de Abranches decidira levantar uma capela dedicada a Nossa Senhora Mãe dos Homens na sua Fazenda da Costa da Mina, situada a quatro léguas da matriz da Borda do Campo. A capela, diz ele numa carta de 27 de novembro de 1789, seria dotada de fábrica e patrimoniada «à sua própria conta, sem que alguns paroquianos, que ficavam meus vizinhos, para as despesas concorressem». Depois de concluídas as obras, Abranches estabeleceu um capelão com 120.000 réis de côngrua para celebrar para sua família, além de colocar à sua disposição um cavalo «para o mesmo igualmente acudir aos paroquianos mais vizinhos». O fazendeiro tinha plena consciência da estreita relação entre a necessidade de assitência religiosa e o efetivo povoamento naquelas regiões não diretamente afetadas pela lógica do extrativismo mineral: «bem visível é a urgência que havia de capelão cura naquele sítio, sem o qual seria o mesmo despovoado e ermo». De fato, ali se formou um arraial, hoje localidade de Correia de Almeida. Ao fim de sua longa carta, Abranches fazia seu requerimento à Coroa: «E como a vós do ponderado pareça justo, que as providências internas têm

confirmação, e que o suplicante deve gozar do privilégio de padroeiro da capela e oratório independente do pároco da matriz, assim como se tem concedido a outros padroeiros.»290

Manoel Pereira Guimarães foi padroeiro da capela de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas da Noruega, erigida em 1727.291 A capela de Santo Antônio do Calambau, em torno da qual cresceu a cidade de Presidente Bernardes, foi benta em 10 de janeiro de 1775. O patrimônio foi doado por João Cabral da Silva, mas Ana Cabral da Câmara é que se tornou a padroeira da capela. Em Cocais, a capela de Nossa Senhora do Rosário foi fundada pelos irmãos Antônio Furtado Leite e João Furtado Leite, que tornaram-se seus padroeiros. Em 1° de fevereiro de 1755, obteve Ana Maria do Nascimento provisão para erigir uma capela a Nossa Senhora da Conceição na sua fazenda do Rio Grande. E obteve também o privilégio de tornar-se padroeira da mesma. Na freguesia de Sabará, José Rodrigues Soares e sua esposa Teodora Teixeira de Souza doaram o patrimônio da capela do Rosário em 1765 e 1766. José Rodrigues foi o padroeiro. A prática se 289 AEAM, pasta 33, gav. 4, arq. 4.; grifo nosso. 290 APM, SC-19, fls. 194v-195v. 291 AEAM, arm. 24, cx. 2.

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extendeu até princípios do século XX. Em Miguel Burnier, distrito de Ouro Preto, Carlos Wigg e sua mulher tornaram-se padroeiros da paróquia de Nossa Senhora de Calastróis – isso em 1918.292 A possibilidade de um fazendeiro tornar-se padroeiro aparentemente dá força à tese segundo a qual houve um «catolicismo patriarcal» no Brasil colonial. O ambiente típico deste sub-tipo de catolicismo seria o engenho de açúcar. Mas a julgar pela exposição de Hoornaert, onde há uma capela associada a uma casagrande e um capelão dependente do seu proprietário, aí existe «catolicismo patriarcal». Nestas circunstâncias, o espírito da religião cristã sofreria uma espécie de deturpação (Hoornaert chega a usar o termo «patológico»). Em resumo, no «catolicismo patriarcal» o sacerdote é um mero funcionário a serviço dos interesses do fazendeiro. O objetivo básico é sacralizar a ordem social estabelecida e «impedir o nascimento de uma consciência de comunidade» entre os mais pobres.293 Em Minas, ainda segundo o mesmo autor, ter-se-ia desenvolvido uma modalidade à parte: o «catolicismo mineiro». Ao invés de ser o produto da atividade dos missionários portugueses, o «catolicismo mineiro» representava os interesses de comerciantes e funcionários da Coroa. Uma forma de religiosidade, pois, «fundamentalmente colonialista».294 Ora, como distinguir um outro «tipo» de catolicismo apenas a partir da suposta dependência financeira do capelão e dos privilégios obtidos pelo padroeiro? É um erro pressupor que o catolicismo popular não possa ter florescido nesse ambiente. Um segundo ponto a questionar é o pano-de-fundo epistemológico da análise de Hoornaert. De uma maneira geral, ele coincide com a leitura marxista da categoria ideologia: de um lado, a «legítima» visão de mundo dos oprimidos; de outro, a «falsa consciência» imposta pelas elites. Outras obras de peso escritas no período em que apareceu Formação do catolicismo brasileiro trazem as mesmas marcas. Para Bastide, por exemplo, somente as religiões afro-brasileiras estavam em condições de expressar a resistência do negro na história do Brasil.295 A aceitar estes pressupostos, o catolicismo se apresentaria aos escravos como uma forma de «falsa consciência». Os limites deste tipo de análise são hoje evidentes. Uma coisa é o que a elite eclesiástica ou social têm a pretensão de impor através de um sistema religioso; outra, bem diferente, a forma como este sistema é (re)interpretado e vivenciado pelos seus adeptos. Não se trata de negar que os padroeiros das capelas pudessem se valer de sua posição frente ao capelão e à comunidade como forma de reforçar seu poder sobre seus escravos, sua clientela e, eventualmente, sua vizinhança. Mas uma visão mais próxima da realidade certamente reconheceria no campo religioso um jogo de forças entre hierocracia/elites de um lado e a massa de adeptos do outro, e não 292 Trindade, Instituições de igrejas no bispado de Mariana, pp. 72, 93, 250, 259 e

315. 293 Hoornaert, Formação do catolicismo brasileiro, p. 74. 294 Hoornaert, idem, p. 97. 295 Bastide, As religiões africanas no Brasil, pp. 113-140.

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uma simples imposição de uns sobre outros. O historiador, em todo o caso, não tem como se esquivar ao peso das evidências. E estas demonstram que o campo religioso na Minas antiga é profundamente marcado pela consciência de que o sagrado, em grande parte, é algo que «pertence» ao povo. As sagas e mitos de origem analisados neste capítulo demonstraram-no claramente. Curiosamente, podia ocorrer de um capelão atuar menos como um instrumento de «domesticação das massas» (Weber) que de domesticação das elites. Tschudi descreve o capelão do Barão de Diamantina como «um homem culto, solícito». E acrescenta: «Não foi difícil perceber que padre José era o princípio dominante na [sua] casa».296 Na verdade, e na imensa maioria dos casos, os sacerdotes de forma alguma podiam ser considerados funcionários do fazendeiro. Diferentemente de um capataz, vaqueiro ou administrador, o capelão não reside na fazenda. Ele se desloca até ela, geralmente aos sábados à noite, e conduz as orações na ermida.297 No dia seguinte, celebra a missa e certamente fica para o almoço. Os vizinhos que acorrem para o culto também almoçam e jantam às custas do anfitrião.298 O que significa que os gastos do padroeiro são consideráveis. Por ocasião de grandes comemorações chegava-se a gastar entre 3.000 e 4.000 réis.299 Uma vez que todo local de culto é público, possuir uma ermida doméstica, ter uma capela encravada em suas terras ou mesmo na sua vizinhança significa para o proprietário ter de conviver com o afluxo periódico de fiéis. Nem sempre as conseqüências deste afluxo eram de interesse dos fazendeiros. Diversos deles negavam-se a permitir que se construíssem casas ao redor das capelas por eles erigidas. Para tanto, constituíam o patrimônio em dinheiro, de modo que a capela não gozasse de terras próprias e a formação do arraial se tornasse inviável. Caso necessário lançava-se mão de estratagemas, como ocorreu nos primórios de Barbacena. A capela de Nossa Senhora da Piedade era de construção antiga. Já em 1726, com a abertura do Caminho Novo, era elevada a sede de freguesia. Mais tarde, face ao mau estado da capela, os moradores da região sentiram-se compelidos a construir novo templo. Quase concluídas as obras, e sabendo ser inevitável a formação do arraial, um fazendeiro das redondezas, Estevão dos Reis Motta, requisitou em segredo (e obteve) uma sesmaria cujas terras abarcavam o sítio da matriz. Os moradores, alheios ao que se passava, pediram ao Rei autorização para fundarem o arraial, o que foi concedido em 9 de maio de 1747.300 Seguindo as 296 Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, p. 63. 297 Ribeyrolles, Brasil pitoresco, vol. II, pp. 34-35. 298 Hospedado na fazenda da Boa Vista, Saint-Hilaire (Viagem pelas províncias..., vol.

II, p. 104-105) observou que «todos os colonos da vizinhança se tinham reunido na habitação com os filhos e netos de minha hospedeira [Luciana Teixeira], para assistir ao serviço divino. Essa boa gente jantou em casa dela: a mesma mesa foi posta e desfeita várias vezes». 299 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 337. 300 APM, SC-45, fls. 48-48v.

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normas vigentes, o governador Gomes Freire de Andrada passou um edital em 6 de junho de 1748 no qual estabelecia um prazo de um mês para que os que possíveis prejudicados com a construção do povoado se apresentassem com seus títulos de posse. Valendo-se do seu título, Motta vai à presença do governador e dispõe-se a permitir que os fiéis construíssem «cobertos levantados em pilares para recorrer suas bagagens, e ainda mais algumas moradas de casas», sob a condição porém «de não terem em elas vendendo seus habitadores alfaiates, barbeiro, ferreiro e semelhantes oficiais». Como esta proibição não deu mostras de ser aceita pelos que pretendiam fundar o arraial, Motta se defende com o argumento de que se consentisse em vendas naquele sítio «perdia todo o lucro da sua fazenda, pois as frutas que colhesse não teriam saída».301 Diante do impasse, os moradores recorrem à Coroa. Eles argumentam em sua correspondência que Motta, seu sócio José Pinto Reis e outros fazendeiros estavam «empenhados em que se não faça arraial». A proibição de terem suas próprias vendas no local parece-lhes atentar «contra o bem público, porque os moradores do dito arraial se não podiam

conservar sem lojas e vendas públicas por não haver na dita freguesia outro arraial com lojas e vendas a que pudessem recorrer os moradores, querendo assim o dito Estevão dos Reis Motta, seu sócio e mais alguns vizinhos vender-lhes os seus mantimentos e mais gêneros de fazendas, secos e molhados que metessem no dito arraial, pondo-lhes o preço a seu arbítrio, o que não só parece iníqüo, mas contra toda a razão, direito e regalia que devem ter todos os arraiais, porque toda a sua conservação depende de comércio livre e geral (...). A igreja se acha em um lugar deserto com grande perigo de ser roubada e o grande discômodo [sic] de não ter o pároco acomodação junto dela para mais prontamente acodir aos sacramentos, nem podem ajuntar-se irmãos da confraria que acompanha o Senhor quando sai por viático, sucedendo muitas vezes sair além da tarde com grande indecência por se acharem apenas duas pessoas que [o] acompanhem, o que tudo é contra o serviço de Deus e de Vossa Majestade; e com grande prejuízo do bem espiritual e temporal dos suplicantes (...).»302

A decisão final lhes foi favorável. Em carta datada de 25 de maio de 1753, o Conselho Ultramarino observa que nos dias das celebrações os fiéis e suas famílias deslocam-se «cinco, seis e mais léguas, e muitas vezes não [o] fazem por falta de casas, em que possam reparar-se das chuvas e mais incomodidades do tempo (...) o que assim não aconteceria se houvesse arraial».303 Somente então pôde ter início o Arraial da Igreja Nova, embrião da Vila de Barbacena. Ao visitar a freguesia de Pitangui em 1822, Dom Frei José anota a respeito da capela de Santo Antônio de São João Acima: «acha-se arruinada no meio de um 301 APM, SC-45, fls. 106-106v. (carta de Gomes Freire de Andrada à Coroa, 15 de

março de 1749). 302 APM (AHU), cx. 162, doc. 30. 303 Ibidem. Barbosa, que menciona en passant este documento, se engana ao afirmar

que ele tem data de 15.05.1753. DHGMG, p. 42.

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adro cercado de madeira feita curiosamente, mas em um local pouco agradável e sem arraial, por não darem licença os donos da terra».304 O mesmo se observou inicialmente na capela (hoje cidade) de Campo Belo. Erigida por Catarina Ferreira provavelmente em fins do século XVIII, em 1824 ela se encontrava sem capelão. Um dos motivos apurados pelo bispo de Mariana era o de estar a mesma «encravada em terras da fazenda denominada Campo Belo». Os proprietários, continua ele, «temem a sua freqüência por não se verem na precisão do aldeamento e povoação do lugar».305 Uma carta enviada em 27 de setembro de 1901 pelo vigário de Piedade do Paraopeba ao bispado de Mariana comprova que este tipo de procedimento se estendeu até períodos mais recentes: «Exmo. e Rvmo. Sr. Bispo – (...) o Sr. Antônio Pedro de Araújo e sua mulher

acham-se edificando, à sua custa, uma capela no caminho que daqui vai para a Aranha, para entregá-la ao culto público. Desejam saber se podem constituir seu patrimônio em dinheiro. Têm receio de que, constituindo-o em terreno, por ocasião do aforamento venham se estabelecer vizinhos que os incomodem, servindo-se principalmente da água de seu uso. Se não puderem constituir o patrimônio em dinheiro, desejam então saber se o podem em terras, mas que não sejam contíguas à capela, que é em frente da morada dos mesmos. (...) Beijando o sagrado anel, peço a bênção e me subscrevo (...) Padre Ubaldo Anselmo da Silva.»306

A autorização de Dom Silvério Gomes Pimenta é dada apenas três dias depois, com a ressalva de que «ao redor da capela fique uma área capaz para a mesma na qual não se edifique». A história de Santa Rita do Turvo (atual Viçosa) foi marcada pela mesma problemática. Por volta de 1781, Ignácio Vieira de Andrade e outros, «moradores do Turvo», pedem autorização para fazer uma «capela ou ermida» com a invocação de Santa Rita. A dificuldade de cumprirem com suas obrigações religiosas deviase ao fato de morarem em lugar de «conquista nova». Não lhes fora possível precisar a que distância estavam da matriz «por não estarem aqueles matos penetrados de moradores, sendo mais por onde deve ser o caminho habitado de índios, dos quais [a]inda que de paz sempre os povoadores temem a sua inconstância». Em 1788 ou 1789 o vigário do Pomba, padre Manoel de Jesus Maria, pede permissão para fazer da ermida uma capela, por ser aquele templo «muito conveniente aos novos povoadores e aos (...) índios que se estão reduzindo ao cristianismo».307 Tais evidências vão de encontro à suspeita, levantada por Waldemar Barbosa, que a primeira casa de oração da futura cidade de Viçosa existira antes mesmo da virada para o século XIX.308 Muito provavelmente as terras do patri304 305 306 307 308

Trindade, Visitas pastorais, pp. 141-142. Trindade, Visitas pastorais, p. 228; EMB, vol. 24, p. 313. AEABH, cx. 444. APM (AHU), cx. 131, doc. 25. DHGMG, p. 368.

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mônio não foram doadas ao redor da capela. Uma certidão de 20 de agosto de 1805 atesta ainda que Manoel Cardoso Machado e sua mulher Ana Joaquina acrescentaram algumas casas cobertas de telha aos bens de Santa Rita.309 Décadas depois da sua construção o arraial não se formara ainda porque o proprietário do terreno não franqueava a construção de casas ao redor da capela. Em virtude dessa proibição, algumas pessoas levantaram suas moradas a cerca de 10 minutos de distância dali, nas encostas de um morro310 (nas terras do patrimônio?). Em 1823, durante sua visita pastoral, Dom Frei José constatou que a instransigência do fazendeiro prejudicava a manutenção do templo. Impedidos de fazer o arraial, os aplicados não se sentiam obrigados a contribuir financeiramente nos reparos e ornamentação da capela. Amparando-se na tradição, escreve Dom Frei José: «Deixamos esta desordem algum tempo remediada e esperamos que os ben-

feitores do lugar correspondam às nossas intenções como fundadas na razão e bem conhecido direito que têm os aplicados de edificarem casas no plano circunscrito de uma capela pública e curada, pela prática bem sabida de todas as igrejas deste bispado, encravadas no meio de outras semelhantes fazendas.»311

Segundo Langsdorff, que passou por ali naquele mesmo ano, a morte do antigo proprietário e a intervenção do bispo surtiram efeito. Uma segunda doação foi feita.312 «Agora estão começando a assentar lá as casas do arraial», anota o explorador russo.313 O caso de Viçosa mostra que o jogo de forças entre elite rural e o elemento popular nem sempre pende definitivamente em favor da primeira. Eis outro exemplo: ao comprar a fazenda São Joanico, o padre Veríssimo de Souza Rocha doou uma porção de terras à capela que já se encontrava, com algumas casas em volta, naquela propriedade. Uma ordem régia determinou que as terras do patrimônio fossem vendidas, porém o padre Rocha voltou a adquiri-las por 120 oitavas de ouro. O arraial de Santo Antônio de São Joanico tornou-se, em virtude disto, propriedade privada. Inconformados com a perda do patrimônio, os habitantes do lugar invadiram por diversas vezes as terras que haviam sido doadas, forçando o 309 AEAM, arm. 24, cx. 5. Num relatório escrito em 26 de outubro de 1838, o vigário

310 311 312

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de Santa Rita do Turvo informa que o patrimônio «consta de terras e casas aforadas». Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 104. Trindade, Visitas pastorais, p. 176. Grifo nosso. Numa carta sem identificação, enviada ao vigário geral da Cúria de Mariana em 26 de julho de 1913, afirma-se que segundo a tradição corrente em Viçosa «o patrimônio foi doado pelo falecido padre Manoel Ignácio de Castro, cujo título de doação foi entregue pelo mesmo (...) ao falecido bispo de Mariana, Dom Frei José da Santíssima Trindade, na ocasião em que este bispo esteve aqui em visita». AEAM, arm. 24, cx. 5. Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 104.

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herdeiro do padre Rocha a constituir novo patrimônio. Num outro sítio da mesma fazenda doaram-se cerca de 200 hectares para nova capela, no dia 2 de outubro de 1832. O templo foi sagrado em 20 de setembro de 1835, e aos poucos formou-se o arraial e futura cidade de Maravilhas.314 Mas muitas vezes prevaleciam os interesses dos fazendeiros. Em meados da década de 1880, Joaquim Gomes de Resende doou 5 alqueires de sua Fazenda da Boceta para patrimônio de uma capela, a ser construída no local, sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição. A história por detrás desta doação é sem dúvida original. Ao contrário do que normalmente poderia se esperar, a iniciativa de Resende provocou profunda irritação entre seus vizinhos. Um deles, José Martins de Oliveira, deu a sua versão dos fatos em uma carta (escrita muito provavelmente em 1887) à autoridade eclesiástica. Segundo ele, Joaquim Gomes de Resende era um «homem idiota e caprichoso», e sua doação não fora motivada por devoção à Santa, mas sim «para fazer mal às propriedades do suplicante, imundar a água que é pequena e devassar os fundos de suas fazendas». Oliveira afirma não poder consentir com aquela doação «porque é pai de numerosa família, [e] não pode ter suas fazendas devassadas e com a povoação sobre os fundos de suas fazendas e agoada em cujo lugar não pode ser admitido patrimônio senão por caprichosos e malfeitores». A referida doação nada mais era que um «verdadeiro capricho odioso filho da ingratidão e é tudo porque quis [este] picareta casar-se com uma filha do suplicante e esse mostrou-lhe um espelho». Oliveira se dispõe a comprar um terreno em outro lugar e fazer doação dele ou mesmo destinar recursos à Santa. E pede a intervenção da Igreja no litígio, a fim de que «se evite alguma desgraça». O vigário de Jequeri, convencido ou persuadido por Oliveira, sugeriu à Cúria de Mariana que o patrimônio doado fosse trocado por outro em benefício da matriz, porém a operação não se completou. Em 1910, o novo vigário de Santana do Jequeri propunha ao bispo a venda do antigo patrimônio da Fazenda da Boceta. Dentre as causas enumeradas, diz ele que aquelas terras «não se prestam para a formação de um povoado por falta d’água no lugar onde se acham e por serem montanhosas». Além disso, «estando anexas a fazendeiros, estes não fazem permuta por terreno mais próprio para se formar um povoado, e nem desejam que isto se faça, opondo-se com energia por prejudicar-lhes os interesses».315 Vê-se que nos séculos XVIII-XIX a afirmação do poder das elites rurais não passava necessariamente por uma (suposta) instrumentalização da religião, como a instituição dos patroni poderia fazer crer. Para muitos fazendeiros a formação de um povoado não era desejável porque isso significaria ter de abrir mão da exclusividade sobre alguns dos seus recursos, como a água. A maior parte da população, por outro lado, não concebia a capela sem o respectivo arraial. Em face da oposição dos fazendeiros o povo se organizava e os pressionava por intermédio da autoridade civil e/ou eclesiástica, e mesmo de invasões. Quem pretende anali314 EMB, vol. 26, p. 37. 315 AEAM, arm. 24, cx. 3.

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sar o campo religioso certamente pode fazê-lo sob o prisma das relações de poder entre diferentes estratos sociais, entre hierocracia e «leigos», etc. Todavia o historiador da religião não deve se esquecer de que a relação de poder nada mais é que uma forma particular de relação social. Significa dizer: ela obedece, tal como qualquer outra relação social, ao princípio da reciprocidade. Os atores sempre dispõem de algum poder. Mesmo quando a vida religiosa é institucionalmente controlada por fazendeiros e sacerdotes, a massa de fiéis nunca está completamente à deriva dos interesses e prioridades daqueles grupos. Mesmo quando têm a pretensão de se servir da religião enquanto mecanismo de «domesticação das massas», as elites rurais podem vir a deparar-se com a decidida resistência popular. Seja no plano das representações religiosas (sagas e mitos de origem), seja no plano da praxis propriamente dita. Para a grande maioria na Minas antiga, o arraial é imprescindível. Ele é bem mais que um aglomerado de casas, nas quais as pessoas depositam seus pertences e se vestem adequadamente para assistir ao culto. Ele representa a estreita ligação entre os devotos e o seu santo – uma ligação que, por seu intermédio, se expressa espacialmente. O arraial garante que a religião nunca venha a ser completamente «privatizada».

4.4

A desclericalização do espaço

Que destino tiveram os patrimônios daquela infinidade de capelas e matrizes? A maior parte foi simplesmente assenhorada por proprietários, fabriqueiros desonestos ou ainda pelas Câmaras Municipais, já no alvorecer da República. O historiador poderia sentir-se então tentado a concordar com Murillo Marx, para quem o chão urbano passou por um progressivo processo de «secularização».316 De fato, um dos sentidos originais da palavra «secularização» era exatamente o de denotar a perda dos bens eclesiásticos para o Estado. Caso fosse ainda este o seu significado, não haveria qualquer problema em falar numa secularização do espaço urbano no Brasil. Entretanto, na sua acepção corrente, «secularização» passou a designar um suposto esvaecimento do fenômeno religioso. «Morte de Deus», «desencantamento do mundo», «saída da religião» foram algumas das diferentes expressões empregadas para designar este processo. Vimos (seção 2.4.2) que, nesta perspectiva, a «secularização» não passa de um mito moderno. Os próprios patrimônios «leigos» estudados por Monbeig na colonização do oeste paulista não podem ser considerados embriões de cidade totalmente «profanos». A fundação do loteamento era normalmente precedida por um rito religioso. O que se pretende analisar aqui são os mecanismos por meio dos quais os patrimônios em terras caíram em mãos de particulares e das Câmaras (isto é, a «secularização» no antigo sentido do termo). Para evitar qualquer tipo de confusão, parece-nos mais sensato renunciar ao conceito de «secularização». Diferente316 Marx, Nosso chão: do sagrado ao profano, pp. 17, 144, 200.

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mente de Pierucci317, não acreditamos que faça sentido resgatar a sua acepção político-jurídica «original». Além do mais, o uso moderno deste conceito (dentro e fora da sociologia) traduz apenas o mito da dissolução da religião. Ora, a religião não pode se dissolver: ela é uma constante antropológica.318 Existem, isso sim, novas formas sociais de religião – que, todavia, o estudioso da sociedade nem sempre está em condições (em virtude dos seus pressupostos teóricos) de reconhecer como tais. Optamos assim por adotar o termo neutro desclericalização. Ao contrário do que se poderia imaginar, a desclericalização dos patrimônios não começou com a Proclamação da República e a conseqüente separação entre Igreja e Estado. É anterior a ela. Isso demonstra que a apropriação das terras «dos santos» se iniciou num contexto ainda profundamente marcado pela religião católica tradicional. Antes de nos indagarmos se esta prática constituiu ou não um paradoxo, é preciso voltar aos documentos.

4.4.1 Interesses privados e desclericalização Há indícios de que já no século XVIII as terras doadas às capelas eram cobiçadas por muita gente. Quando de sua morte, Mathias da Costa Maciel doou terrenos à irmandade do Santíssimo Sacramento da matriz de Rio Acima. Em 25 de abril de 1763, o visitador geral José dos Santos determina que «a dita irmandade não consinta que ninguém tome as ditas terras sem primeiro lhes passar arrendamento». Mesmo tendo um dos seus antecessores estabelecido pena de excomunhão maior ipso facto incurrenda a quem se assenhorasse das terras do patrimônio, os usurpadores não se intimidaram: «têm várias pessoas feito algumas propriedades nas ditas terras sem as arren-

darem nem obterem licença da irmandade com assinatura do reverendo pároco.»319

A quase totalidade dos casos de apropriação pesquisados concentram-se, todavia, ao longo do século XIX. A resposta mais cômoda para este fato: com a progressiva perda de influência da religião na passagem para o século XX, seria natural que terras antes consideradas «sagradas» perdessem gradativamente este caráter. A dissolução da rede de patrimônios religiosos nada mais seria que uma evidência do desencantamento do mundo. A República seria a expressão desta transformação no plano político; assim como Belo Horizonte, a nova capital, o seria no plano urbanístico. Mas a razão pela qual existem mais casos registrados na segunda metade do oitocentos é bem outra. O primeiro esforço eclesiástico no sentido mapear os pa317 Pierucci, «Secularização em Max Weber ». 318 Dux, Günter. Die Logik der Weltbilder. Frankfurt: Suhrkamp, 1990 (1982), pp.

307-308. 319 AEABH, cx. 502.

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trimônios na Diocese de Mariana ocorreu na época de Dom Viçoso, em virtude de um requerimento feito pelo poder público em 1850. Vigorando ainda o sistema de padroado, estava o Estado obrigado a concorrer financeiramente com a manutenção dos templos. Era portanto necessário saber quais deles gozavam ou não de rendas próprias, advindas dos seus respectivos patrimônios.320 O outro momentochave no que se refere à produção de documentos foi o ano de 1890, quando se decreta a separação entre Estado e Igreja. Esta última ficava agora desprovida do auxílio dos cofres públicos. Daí a importância de garantir a posse dos patrimônios. A grande ofensiva da Igreja marianense teve início em 1893, quando o secretário do bispado, Monsenhor Júlio de Paula Dias Bicalho, enviou a todos os vigários da diocese um questionário em que deveriam constar informações minuciosas sobre os patrimônios.321 Não é improvável que as usurpações das terras das capelas e matrizes tenham ocorrido no setecentos, porém não dispomos (até o momento) de fontes que delas dêem prova. Por outro lado, não se deve esquecer de que o século XIX é o século da «ruralização». Embora a agricultura sempre tenha sido praticada em Minas, é no oitocentos que ela se firma como a atividade econômica base da província. Nada mais natural que, nestas condições, a demanda (e a cobiça) por terra tenha aumentado tanto. Em correspondência com data de 26 de junho de 1852, o vigário de Abre Campo informa sobre o estratagema empregado por Cipriano Aloísio Pereira, o qual havia feito doação de um terreno próximo da matriz «em benefício desta e dos habitantes que ali se quiseram arranchar». O suposto benfeitor da matriz, porém, recebia o produto da venda dos lotes sem repassá-lo à igreja.322 O vigário de Formiga afirma, em 21 de fevereiro de 1854, que os «primeiros habitantes desta vila (...) despojaram a São Vicente do terreno em que está edificada», o mesmo ocorrendo com as capelas filiais dos então distritos de Arcos e Porto Real do Rio São Francisco (atual Iguatama): «Ambas estas capelas receberam em princípio dos proprietários do lugar uma porção de terreno; mas (...) os particulares foramse apossando do que quiseram arbitrariamente, sem ônus algum».323 Em Itatiaiuçu, segundo carta do pároco em 8 de julho de 1864, a igreja matriz possuía ¼ de légua em terras. «Porém nada rendem, antes alguns pedaços têm sido vendidos pelos fabriqueiros sem que a autoridade competente tenha tomado conhecimento algum disso, e não tendo este produto revertido em benefício da igreja».324 O vigário de Venda Nova, por sua vez, escreve em 30 de janeiro de 1870 que «O arraial da Venda Nova está edificado sobre um terreno que foi deixado

em patrimônio à antiga capela de Santo Antônio, mas o povo se tem apode320 321 322 323 324

APM, SP, PP1/9, cx. 13, pasta 5. AEAM, arm. 24, cx. 5. APM, SP, PP 1/9, cx. 13. APM, SP, PP 1/9, cx. 19, pasta 36. APM, SP 1061.

249 rado dele, edifica, e o desfruta gratuitamente, e nesta posse está de longuíssimo tempo, porque nunca houve quem taxasse algum foro e o cobrasse, de sorte que o patrimônio é nominal.»325

Em Carangola, consta que tanto a matriz como o arraial localizavam-se num terreno de 15 ou 20 alqueires que fora comprado para patrimônio. Os habitantes negavam-se contudo a pagar os direitos à Fazenda Pública e a fazerem a escritura de doação ao orago. O patrimônio foi dividido em lotes, cuja venda era destinada à construção da sede paroquial. «Acontece porém – escreve o pároco em 9 de março de 1870 – que o terreno está todo tomado e a matriz sem rendimento algum para se continuar na sua conclusão». Ele diz esforçar-se para convencer os compradores dos terrenos a regularizarem sua situação a fim de que o patrimônio gere foros para a matriz, «mas bem longe de se convencerem, são pertinazes em não quererem passar os títulos, dizendo que são senhores e possuidores do terreno, e que dele hão de fazer o que muito lhes aprouver».326 Não raro a figura do fabriqueiro exercia um papel-chave no processo de desclericalização dos patrimônios, de vez que era ele o responsável pela administração dos bens dos templos. Ao visitar o Serro em 1821, Dom Frei José é informado de que o fabriqueiro «cobrava os direitos da fábrica e os consumia».327 A freguesia de Rio Preto oferece outro exemplo. A acreditar no pároco do lugar, o rendimento do patrimônio decresceu na ordem inversa do aumento da população: de oito a nove contos de réis para cerca de 100.000 réis, isso num período de tempo em que «a população cresceu espantosamente». Tudo porque «outrora ocupava o cargo de fabriqueiro um cidadão probo e honrado, e hoje [ocupa-o] um homem ébrio, desmoralizado, que consome todo o dinheiro que arrecada em bebidas e jogatinas».328 Nem sempre o não pagamento dos foros era questão de má fé. Em alguns casos os foreiros não cumpriam com suas obrigações simplesmente porque não o podiam. Quando, a despeito da pobreza dos moradores, a Igreja insistia nas cobranças, a população reagia muito negativamente. Em Santa Rita do Turvo, escreve o vigário em 26 de outubro de 1838, «o povo é muito pobre, e mesmo não se quer unir, principalmente depois que aqui se pôs em andamento a [cobrança da] fábrica». A capela filial de Nossa Senhora da Conceição dispunha de um patrimônio de nada menos de ¼ de sesmaria, a maior parte do qual habitado e cultivado. A capela ainda não estava terminada, pois a sua conclusão «não cabe na força do povo, que não é rico». Não há fabriqueiro no lugar «por ninguém querer sujeitarse a trabalho, responsabilidade e graves inimizades».329 Para tentar minorar o problema, a lei provincial n° 258 de 23 de dezembro de 1844 estabeleceu que os 325 326 327 328 329

APM, SP 1381. APM, SP 1381. Trindade, Visitas pastorais, p. 93. APM, SP 1381 (carta datada de 24 de março de 1870). AEAM, arm. 24, cx. 5. Grifo nosso.

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fabriqueiros passavam a ter direito a 25% do valor por eles arrecadado (30% no caso das dívidas anteriores à vigência da lei).330 O efeito desta medida pode ter sido o oposto do pretendido. Em 21 de janeiro de 1870, Domingos Cândido da Silveira, vigário de Betim, afirmava ser «de urgente necessidade uma lei que regule melhor os negócios da fábrica». Os rendimentos das igrejas não seriam suficientes, diz ele, sequer para «reparos no material da matriz e compra de paramentos necessários».331 A capela de Nossa Senhora da Conceição do arraial de Campina no Rio Verde (hoje cidade de Conceição do Rio Verde) teve constituído seu patrimônio em 1778, por Damião Rodrigues Gomes e sua mulher Isabel Maria de Jesus. Depois de sucessivos acréscimos, os terrenos da capela somavam 373 braças. Entre 1789 e 1801 os foros foram pagos regularmente. Mas em 1895 a situação se alterera totalmente: a matriz encontrava-se, segundo palavras do vigário, «paupérrima». A despeito de seus esforços para convencer os moradores «do dever que lhes corria ao pagarem os foros do patrimônio que ocupam», nenhum resultado se obtinha. Um dos moradores estaria a insuflar os demais ao não pagamento, chegando mesmo a ameaçar o vigário: «à minha pessoa declarou que minha estada aqui dependia de não falar no patrimônio». Os foreiros de uma chácara pertencente à capela negavam-se desde 1879 a pagar suas obrigações. Naquele mesmo ano, tendo o padre José Pedro de Souza decidido reivindicar os direitos do patrimônio, houve «forte oposição do povo, que protestou veementemente».332 Em 1838 a matriz de Três Corações tinha um «tênue patrimônio». Como o procurador da matriz administrava-o de forma «pouco ativa» e «invigilante», seu rendimento montava em 9.000 a 10.000 réis. Segundo o pároco ele poderia, bem administrado, render praticamente o dobro. Quarenta e sete anos mais tarde, porém, lê-se num relatório que o patrimônio da matriz (16 alqueires e mais «algumas propriedades») estavam «em poder de particulares, sem que se saiba quais os títulos que lhes asseguram a posse delas».333 Em Alto Rio Doce, no ano de 1895, estimava-se que metade do patrimônio em 50 alqueires fora já assenhorada.334 Algumas vezes, sucessivas doações eram vítimas de sucessivas usurpações. Constituído em 26 de agosto de 1754, o primeiro patrimônio da capela de Nossa Senhora do Rosário de Paulo Moreira (hoje Alvinópolis) praticamente «desaparecera» ao fim do setecentos, de modo que nova doação acabou sendo feita em 2 de novembro de 1801.335 Uma carta escrita pelos moradores do povoado em 1886 afirma que uma sesmaria de terras fora doada à igreja de Nossa Senhora do Rosário. Entretanto, 330 APM, SP 1061. Carta de João Crispiano Soares, conselheiro do Presidente da Pro331 332 333 334 335

víncia, ao bispo de Mariana. Datada de 18.02.1864. APM, SP 1381. ANEDC (14) 1952: 22-24. AEDC, cx. 4, pasta «Três Corações». AEAM, arm. 24, cx. 1. DHGMG, p. 23.

251 «José Pinto Pereira e Amaro Pires, já falecidos, tomaram todo o terreno do

patrimônio e logradouro público, sem a menor resistência dos povos, por que estas pessoas eram mandões do lugar e como tais eram temidos, ficando este terreno fazendo parte de seus bens, e como tais foram transferidos a terceiros que o possuem com prejuízos e danos dos povos.»336

Em outubro de 1896, Bernardino de Senna Figueiredo enviava uma carta ao juiz de direito de Alto Rio Doce dando conta da invasão do patrimônio da matriz de Nossa Senhora da Piedade de Boa Esperança. Segundo ele, poucos dias antes «o cidadão bandido Rodrigues Madeira, como intruso, invadiu o dito patrimônio, intitulando-se possuidor de um pedaço do mesmo, sito na rua denominada de cima no dito arraial, fazendo cercados e plantações no intuito de estabelecer ali uma posse sem o competente aforamento.»337

Figueiredo requeriu então a restituição das terras do patrimônio, e uma multa no valor de um conto de réis para o invasor. No mês seguinte o vigário informa ter desistido da ação a pedido de Rodrigues Madeira, por ter este reconhecido o direito da igreja e pago todas as despesas. Recorrer à justiça para resguardar os direitos dos templos podia significar também ter de dar início a um verdadeiro inquérito, como ocorreu na freguesia do Santíssimo Sacramento do Taquaruçu de Minas. Tendo desaparecido os títulos dos patrimônios das antigas capelas do Boticário, Santo Antônio e Taquaruçu de Baixo, o vigário requereu do juiz de paz que se intimassem testemunhas a fim de saber que destino tinham tido aquelas terras. Em 2 de novembro de 1894 iniciaram-se os depoimentos. O lavrador Joaquim Regino Alves, 64 anos, declarou que seu avô, Antônio José Alves, doou o terreno do arraial do Boticário à capela ali existente. O carpinteiro Manoel Rodrigues Homem, 73 anos, confirmou que Antônio José Alves fizera «um donativo de um terreno para edificar este arraial e [para] patrimônio da matriz». Quanto à capela de Santo Antônio, disse José Mendes Vieira, 66 anos, que trinta anos antes tinha visto ainda suas paredes e esteios. Afirmou que «sempre ouviu dos antigos que a capela tinha patrimônio (...) e ele testemunha entende ser verdade dos antigos por ter visto um marco no lugar denominado Sesmaria e que este marco arrancaram». Joaquim Moreira Sabino, 69 anos, também declarou ter visto a capela de Santo Antônio e que «seus tios lhe disseram que sua bisavó dera a margem do campo de Santo Antônio até o lugar denominado Sesmaria para patrimônio da capela». As imagens teriam sido mandadas para a matriz do Arraial do Japão (atual Carmópolis de Minas), e o altar foi levado para a fazenda do Macuco, de propriedade do padre Manoel Ferreira Pinto.338 Estes depoimentos, em si mesmos, não tinham eficácia jurídica. Sem documentos que atestassem a doação dos patrimônios e seu arrendamento ao 336 AEAM, pasta 22, gav. 3, arq. 2. 337 AEAM, arm. 24, cx. 4. 338 AEABH, cx. 509.

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longo do tempo, a Igreja não tinha como evitar sua perda. Uma trama bem mais complexa envolveu a usurpação do patrimônio da matriz de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas da Noruega. Erigida em 1727339, a primitiva capela obteve de Sebastião Pedrosa e sua mulher Maria Rodrigues uma primeira doação de terras em 11 de fevereiro de 1744. Nova doação foi feita mais tarde (não sabemos exatamente quando) por Manoel Alves Ferreira, medindo entre 24 e 30 alqueires. Sigamos a tumultuada história deste segundo terreno. O antigo fabriqueiro da capela cedeu as terras do patrimônio a dois fazendeiros: Joaquim Gonçalves Goulart e Manoel Felisberto. O primeiro concordou em pagar 12.000 réis por ano, e o segundo a metade deste valor. Mais tarde, Silvério José de Almeida obteve de Goulart a cessão de seu direito de arrendamento. Interessado nos demais terrenos do patrimônio – cuja qualidade era excelente –, Almeida adquire a fazenda de Manoel Felisberto. Este, contudo, adverte-o que a porção de terras já então chamadas «do patrimônio» não lhe pertenciam, mas sim «à santa». Almeida, que tinha alguns terrenos arrendados a Francisco Alves Lobo da Neiva, então fabriqueiro, propôs-se a trocá-los pelos do patrimônio. O negócio não teria se completado, pois Neiva disse que, embora fosse responsável pelos bens da capela, não estava no direito de dispor dos mesmos. As tentativas de aquisição do patrimônio respeitaram, até este momento, as normas eclesiásticas. Tudo começou a mudar de figura quando faleceu a primeira mulher de Silvério José de Almeida, Dona Cândida. Ao fazer o inventário dos bens, seus herdeiros pediram-lhe que se incluísse o patrimônio entre eles, ao que se negou terminentemente Almeida. O projeto de seus filhos se realizou contudo após a sua morte: as terras da capela foram fraudulentamente inseridas no inventário e divididas. A maior parte coube a Francisco José de Almeida e José Calisto de Almeida. A porção de Francisco manteve-se em suas mãos. Já a parte de Calisto foi transferida a seus filhos, que dividiram-na entre si depois de sua morte e venderam-na a Antônio Gonçalves de Arruda. Procurado pelo vigário Guilherme Coelho Neto em 1897, Francisco declarou que só pagaria os foros que devia à capela por decisão episcopal. Arruda, por sua vez, disse que entregaria sua parte caso os herdeiros de Calisto o reembolsassem. O vigário, o zelador e o secretário do bispado iniciam então uma minuciosa busca dos livros de receita da capela, sem os quais as terras não poderiam ser reclamadas judicialmente. Somente em 1910 o zelador Antônio Carlos Alves Neiva veio a descobrir que Antônio Gonçalves Arruda estava de posse dos livros em questão: «Hoje milagrosamente eu soube por pessoa muito de bem que o livro está em poder de quem está usufrutando das terras do referido patrimônio, sem pagar o aforamento, dizendo que as terras são sua propriedade, porque as comprou.»340

339 DHGMG, p. 86. 340 AEAM, arm. 24, cx. 1.

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Em carta escrita em 23 de agosto de 1895 ao Monsenhor Bicalho, o vigário Guilherme Neto afirma que o desmembramento do patrimônio só foi possível devido ao desleixo ou à conivência dos seus antecessores. Realmente, não se pode negar que vários dos párocos favoreciam antes de tudo aos interesses de particulares. O fabriqueiro de Santo Antônio da Venda Nova queixava-se ao bispo de Mariana, em 23 de setembro de 1881, que o vigário havia concedido a Joaquim de Santana direito de arrendamento em terras do patrimônio. Entretanto aquelas terras eram usadas como rossio pela população: «o terreno é dádiva a Santo Antônio para os paroquianos tirar lenhas, cipós para reparos de suas casinhas e com os mesmos paroquianos é que [se] obtém algumas esmolas para as construções desta matriz e cujo arrendamento o vigário o fez em particular e os paroquianos estão bastante desgostosos porque ficam sem recursos».341 O pároco de Nossa Senhora da Saúde de Mariana (atual Dom Silvério) reclamava em 1897 ao secretário do bispado que seu antecessor havia se apossado dos livros da matriz e se negava a entregá-los. Em sua resposta, Monsenhor Bicalho sugere que se evite o conflito direto. Mais inteligente seria fazer uso da persuasão e induzir os usurpadores a abrir mão espontaneamente dos bens da Igreja «para que não atraiam as maldições de Deus». A Igreja, afirma Bicalho, «só quer que se lhes reconheçam o domínio de tais patrimônios, e garanta-se o culto divino; mas não quer desalojar ninguém, nem oprimir».342 As disputas estenderam-se século XX adentro. A capela setecentista de Nossa Senhora do Socorro obteve patrimônio por doação de Manuel Perdigão da Costa em 17 de março de 1738.343 Um longo manifesto publicado pelo vigário Manoel Mello Mattos em 15 de agosto de 1911 afirma que todos no arraial conheciam a capela e sabiam que em torno dela «formou-se e continua a desenvolver-se o seu povoado». O patrimônio teria sido arrendado «por longos anos» à Companhia de Mineração do Gongo. Posteriormente, rescindido o contrato, as terras foram devolvidas pela empresa à paróquia. Um dos moradores do arraial, João Evangelista de Resende, apresentou-se então com duas testemunhas diante do juiz municipal de Santa Bárbara afirmando que as terras pertenciam a ele, por herança de seu pai. Para o vigário a iniciativa de Resende fazia parte de um «conluio, com o objetivo de perturbar a capela na sua posse tradicional e incontroversa». Resende estaria reclamando os terrenos a mando dos proprietários do Gongo. O pároco recomenda aos moradores que não participem das «discussões impertinentes que o Sr. João Evangelista costuma provocar sobre as divisas do Gongo e patrimônio», além de pedir que a população não se negue a testemunhar em favor dos direitos da capela.344

341 AEABH, cx. 813. 342 AEAM, arm. 24, cx. 2. 343 DHGMG, p. 346. Num documento sem assinatura e sem data (AEAM, arm. 24, cx.

5) referente à capela do Socorro consta uma outra data: 17 de maio de 1730. 344 AEAM, arm. 24, cx. 5.

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Por volta de 1893, João Antônio Ferreira doou 50 litros de terra (4,8 ha) a São José, padroeiro do arraial de São José do Passa Bem (atual Passabém). O doador colocou como condição que ele próprio encabeçasse uma comissão responsável pela venda dos lotes do patrimônio. Com o falecimento de quase todos os membros dessa comissão, o terreno passou a ser fechado por particulares que ali construíam suas casas «não tendo pago quantia alguma a benefício da capela de São José». Formou-se então uma nova comissão, que, em vista do que se passava, dirigiu-se em 16 de outubro de 1923 ao bispo de Mariana para saber se deveria medir os terrenos ocupados e cobrar o necessário dos responsáveis. Informam ainda ao bispo que «alguns proprietários venderam casas com terreno, [e] passaram documento sem terem comprado os terrenos». Em visita a Passabém, o bispo auxiliar, Dom Antônio José dos Santos, conseguiu que os herdeiros de João Antônio Ferreira ratificassem a doação. Ainda assim, continuam os membros da comissão, «alguns proprietários que têm terreno fechado (...) responderam que não pagavam nada».345 De uma maneira geral, a Igreja não teve como reverter a privatização dos patrimônios. No período compreendido entre o decreto de separação entre Igreja e Estado (7 de janeiro de 1890) e o início de vigência do Código Civil (1° de janeiro de 1917) ela não dispôs de instrumentos legais capazes de garantir as terras das matrizes e capelas. Antes de 1917, quando um particular construía uma casa em terras do patrimônio – e partindo do pressuposto que as construções tinham geralmente maior valor que os terrenos por elas ocupadas – as decisões judiciais tendiam a favorecer o dono da casa em caso de litígio entre as partes. Segundo parecer do advogado Agripino Gomes Veado, dado em 7 de março de 1921, os proprietários das casas feitas em terras da igreja de Nossa Senhora do Patrocínio antes da vigência do Código Civil tornavam-se legalmente senhores dos terrenos, tendo apenas de indenizar à igreja o valor da terra ocupada.346 Como reagiam os católicos à privatização dos patrimônios «dos santos»? Numa época em que a maior parte dos moradores de distritos habitavam as áreas adjacentes aos arraiais propriamente ditos, pode-se imaginar que nem todos os aplicados de uma capela se davam conta de ocupações irregulares ou do não pagamento dos foros, quanto mais porque muitas vezes os vigários e fabriqueiros eram os responsáveis diretos ou indiretos pelos descaminhos dos patrimônios. As relações de dominação no campo impunham, por sua vez, o silêncio àqueles que eventualmente poderiam se opor à usurpação dos direitos das capelas. Mas não se deve pensar que este fenômeno fosse estranho ao cotidiano da maior parte das pessoas na Minas antiga. A apropriação dos patrimônios por particulares apenas seguia uma tradição já antiga no Brasil. Analisando a questão da posse da terra na Colônia, Carrara constata um «descumprimento usual e generalizado da legislação agrária». Do ponto de vista econômico, diz ele, «a propriedade sempre funci345 AEAD, cx. 2. 346 AEAM, arm. 24, cx. 3.

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onou como propriedade privada no Brasil».347 Observe-se ainda que os patrimônios das Câmaras (no caso, os terrenos dos logradouros) não eram mais respeitados que os patrimônios religiosos. Segundo Reis Filho, os pagamentos de foros às Câmaras «tendiam a desaparecer, sempre que fosse possível aos moradores encontrar uma forma de evitá-los».348 O aparente «paradoxo» que foi a apropriação das terras dos patrimônios num contexto profundamente marcado pelo catolicismo popular dever-se-ia, ao nosso ver, mais à escassez de registros escritos (sobre a forma como estas apropriações eram encaradas pela maioria das pessoas) que a uma suposta indiferença religiosa. Ainda assim, alguns documentos dão testemunho de que nem tudo se assistia de forma absolutamente passiva. A ocupação de metade do do patrimônio de Alto Rio Doce, diz o pároco em 1895, «tem sido censurada pela maioria dos fiéis».349 Manoel Dias Lopes Santa Ana, um dos filhos do usurpador do patrimônio de Catas Altas da Noruega, recusou-se a aceitar uma parte das terras que lhe eram oferecidas pelo seu pai «por saber que pertencia a Nossa Senhora da Conceição da Noruega».350 Naquela mesma freguesia, Manoel Francisco de Freitas, que mantinha em seu poder uma casa pertencente ao patrimônio da capela de São Gonçalo, foi excomungado pelo vigário Guilherme Coelho Neto por ter reagido com excessiva violência depois de lhe ser pedida a devolução desta casa. Vendose «abandonado quase de todo povo», Freitas teve de mudar-se para outra região.351 Nas primeiras décadas do século XX, Willems observou o seguinte fenômeno em Itaipava: «Sagrados também são os lugares que ‹pertencem ao santo›. Anos atrás demoliu-se uma das igrejas (Nossa Senhora dos Remédios) da cidade. No mesmo local a Câmara construiu o Mercado Municipal que antes funcionava no Largo da Matriz. Foi o golpe de morte nessa feira bastante concorrida. O mercado foi construído em ‹terras da santa›, local sagrado que não podia ser profanado por um edifício destinado a objetivos alheios ao culto. Temendo desagradar a Santa, os homens da roça deixaram de concorrer ao novo mercado que até hoje continua ‹morto›, embora uma geração já houvesse passado desde que ocorreu a substituição. Quando, há mais de 25 anos, se construíra o Grupo Escolar em terra de São Benedito, alguns moradores recusaram-se, a princípio, a mandar os filhos à escola, pois assim, na opinião deles, teriam participado de uma profanação.»352

347 Carrara, Agricultura e pecuária na Capitania de Minas Gerais (1674-1807), pp.

135, 141. Reis Filho, Evolução urbana do Brasil, pp. 114-115. AEAM, arm. 24, cx. 1. AEAM, arm. 24, cx. 2. AEAM, arm. 24, cx. 2. Carta do padre Guilherme Coelho Neto, datada de 23 de agosto de 1895. 352 Willems, Uma vila brasileira, p. 137. Até 1995, ano em que Amauri Ferreira defendeu sua dissertação de mestrado sobre as «aparições » de Nossa Senhora na Vila 348 349 350 351

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4.4.2. Poder público e desclericalização As disputas entre os representantes eclesiásticos e Conselhos Distritais ou as Câmaras Municipais se entensifica em fins do século XIX. Não raro os logradouros públicos se formaram a partir de terras antes pertencentes às capelas e/ou matrizes. A Igreja perdia terreno para o Estado – literalmente. Isso obviamente gerou inúmeras disputas judiciais, como se verá adiante. Vejamos inicialmente um caso misto de apropriação privada e pública. O patrimônio da capela do Senhor Bom Jesus do Bonfim (hoje cidade de Bonfim) foi doado em 8 de junho de 1752 por João Antunes da Silva e sua esposa Maria do Couto. Um século depois, os moradores do Bonfim não mais se lembravam dos nomes dos doadores, embora fosse mais ou menos notória a origem das terras da capela. Por volta de 1857, o seu zelador, João de Souza Parreiras, vendeu parte do patrimônio. O restante foi tomado pela Câmara após a criação da vila em 1860. Parreiras teria vendido oito alqueires a Silvéria Maria do Carmo, os quais passaram ainda de mão em mão: compraram-no, sucessivamente, Manoel Bernardo da Cunha, Antônio Nery Ferreira e, finalmente, Christiano José da Rocha. Balduíno Pereira Henriques e sua esposa, moradores de Bonfim, declararam ao pároco em 1897 que «se João Parreiras foi vendedor de partes do patrimônio, a municipalidade foi

usurpadora do resto, e que não lhes consta que esta, para formar seus logradouros, tenha comprado sequer um palmo de terra. Balduíno lembra-se que seu avô (...), quando via alguém edificar nesses terrenos, ou apossar-se deles, costumava exclamar indignado: ‹Os ladrões estão roubando do Senhor do Bonfim!›»353

Em Patrocínio do Muriaé ocorreu uma curiosa dualidade de poderes. O terreno da matriz fora doado por Antônio Rodrigues dos Santos, em 28 de outubro de 1840. Ao que parece, após as medidas do governo provisório, surgiu um sério conflito entre representantes da Igreja e poder público a respeito do patrimônio. Em 1893 Antônio Francisco Leite de Castro, proprietário de uma fábrica de tijolos, requereu ao agente executivo, João Chrysostomo Leopoldino, autorização para retirar barro do logradouro, o que lhe foi negado. Insatisfeito com a decisão, Leite de Castro recorreu ao vigário, propondo-lhe o arrendamento do mesmo terreno. Este, certamente para ganhar um poderoso aliado na luta pelos direitos da matriz, cedeu ao pedido. O valor do aforamento ficou estipulado em 100 réis por metro de extensão. Esta decisão se deu num momento de grande radicalização, como se pode perceber pelo tom de uma matéria publicada no jornal local por Horácio Catta Preta:

de Piedade dos Gerais, o comércio ainda era proibido no local. Ferreira, As aparições em Piedade dos Gerais, p. 13. 353 AEABH, cx. 507.

257 «O Sr. agente executivo deste município (...) com seu procedimento capri-

choso e cheio de vingancinhas veio preciptar a questão que já fez eco neste município e reboará estrondosamente em todos os outros da confedereção brasileira (...). O Sr. Leite de Castro, porém, altivo, enérgico e inteligente como é, acaba de esmagar, como a montanha ao sapo, ao Sr. agente executivo municipal recorrendo a quem (...) competia arrendar os terrenos do patrimônio.»354

Nova matéria na imprensa local, em 20 de agosto de 1893, dava conta de que o «importante e distintíssimo industrial» Leite de Castro havia se colocado à disposição da paróquia para custear qualquer ação judicial que visasse garantir a posse do patrimônio pela matriz. Infelizmente a documentação não nos permite saber como teve fim o conflito. Francisco Pereira Pontes, morador da freguesia do Rio Pomba, enviou ao Rei de Portugal pedido para levantar uma capela dedicada ao Senhor Bom Jesus da Cana Verde. A autorização real foi dada em 17 de abril de 1821. O patrimônio doado à capela media 51 alqueires (244,8 ha). Tudo leva a crer que com o passar do tempo estas terras foram, pouco a pouco, sendo ocupadas. Em 1894 o vigário Theodolindo Fagundes escrevia ao bispo de Mariana dizendo que a Câmara do Pomba negava-se a reconhecer os títulos do patrimônio e que, além disso, fazia «o maior pouco caso» de suas reclamações. «Já fiz o que pude, estão de capricho, até os advogados dão parecer contra a igreja», acrescenta ele. Em resposta a esta carta, Monsenhor Bicalho sugere ao vigário que faça uma coleta entre os paroquianos para custear as ações judiciais: «Como se vê, os adversários têm tido pareceres e têm tido meios para sustentar despesa em oposição aos sagrados direitos da matriz; ora, não é bem que os filhos da Igreja ali se mostrem menos generosos do que aqueles». Obtidos os meios, o vigário deveria procurar o jurisconsulto Lafayette Rodrigues Pereira e entregar-lhe os documentos que estavam em seu poder. «Será a última palavra», conclui Bicalho. Entretanto dois acontecimentos prejudicaram a estratégia da Igreja: primeiramente, a morte do padre Theodolindo Fagundes. E, mais grave, a usurpação da escritura do patrimônio. Segundo o novo vigário, Antônio José Gomes, em correspondência com data de 6 de outubro de 1898, o padre Fagundes conseguira cópia da escritura que se achava em Portugal. Desejoso de solucionar o quanto antes a disputa entre a Câmara e a paróquia, Fagundes teria procurado o advogado Francisco de Paula Motta, ao qual entregou a escritura. Mais tarde, quando o novo pároco procurou aquele advogado, este lhe apresentou apenas «um título falso de seis alqueires, de que diversas pessoas aqui possuem». Paula Motta exercia então o cargo de agente executivo.355 Em 7 novembro de 1896 o Diário Oficial de Minas Gerais publicou um edital comunicando o leilão público de mil hectares de terras «devolutas» entre a Esta354 AEAM, arm. 24, cx. 3 (Echo Municipal, 9.07.1893). 355 AEAM, arm. 24, cx. 5.

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ção de Miguel Burnier e Pires, lugar pertencente à freguesia de Congonhas do Campo. Em 19 de novembro do mesmo ano, Monsenhor Bicalho escreve a uma alta autoridade civil afirmando que na área a ser leiloada existiram três capelas públicas, de modo que «os terrenos mencionados no referido edital não são devolutos, mas sim patrimônios dessas capelas». E pede que o leilão seja suspenso, «com o que prestará Va. Exa. assinalado serviço à Religião, à Igreja e ainda à Causa Pública».356 Em Congonhas do Campo, em 1897, o patrimônio da matriz de Nossa Senhora da Conceição estava sendo aforado pelo agente distrital Sabino de Souza Costa. O orçamento do distrito, publicado no Minas Gerais de 27 de fevereiro, estabelecia o valor de 350.000 réis para a concessão de aforamentos.357 O patrimônio de Santana do Jequeri media originalmente 12 alqueires (57,6 ha). A doação foi feita por Manoel Gonçalves Mol, Joaquim Antônio Ribeiro, Manoel Justiniano Ferreira, Camilo de Leeliz, Antônio José Martins e Manoel Gonçalves Pena em 22 de novembro de 1849. A demarcação e medição dos terrenos fizeram-se em 3 de dezembro de 1853. Em fins do oitocentos a matriz entra na justiça contra Luiz de Assis Marcondes, agente executivo distrital de Jequeri, requerendo reintegração de posse sobre o patrimônio. Deflagradora da ação judicial foi a discordância entre o fabriqueiro e o agente distrital quanto a um pedido de construção nas terras do patrimônio feito por Maria Antônia Alves dos Santos. Enquanto o administrador dos bens da igreja permitira a obra, Marcondes a proibira. Este, «negando alinhamento e mandando demolir prédios em começo de construção», provava assim que se achava de posse do patrimônio. Como a lei mineira n° 2 de 14 de setembro de 1891 transferia todo o poder de decisão a respeito de obras nos logradouros públicos às Câmaras e não aos Conselhos Distritais, o juiz deu ganho de causa ao fabriqueiro, condenando Marcondes a abrir mão do terreno do patrimônio.358 Na década de 1730, no lugar hoje ocupado pela cidade de Curvelo, o padre Antônio de Ávila Curvelo, português, adquiriu uma grande extensão de terreno. No lugar já havia um arraialzinho chamado Santo Antônio da Estrada, com uma rústica ermida coberta de palha. O padre Curvelo aumentou-a e colocou-lhe um telhado. Ao falecer, deixou em testamento à capela uma sesmaria quadrada de terras. Tal como em tantas outras localidades, estas terras foram progressivamente ocupadas, subdivididas e vendidas – mesmo após a criação da vila. No intuito de impedir novas ocupações do logradouro público, a Câmara decidiu demarcar seu terreno. Para este fim, foi nomeada uma comissão, cujo parecer foi publicado em 8 de março de 1902. Em consulta feita pela diocese de Diamantina ao advogado Levindo Reis, perguntava-se se a mitra podia reivindicar os terrenos, já que a 356 AEAM, arm. 24, cx. 5. 357 AEAM, arm. 24, cx. 2 (carta enviada em 19.03.1897 a Lafayette Rodrigues Pe-

reira). 358 AEAM, arm. 24, cx. 3.

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Câmara não dispunha de qualquer documento que comprovasse propriedade sobre o patrimônio da matriz. A resposta confirma os termos da lei n° 2 de 14 de setembro de 1891: os antigos patrimônios foram transmutados em logradouros públicos, e, como tais, deveriam ser administrados pelas Câmaras. Um segundo parecer, dado pelo advogado Ernesto Reis da Gama Cerqueira, argumenta que depois de passado mais de um século da doação original sem que a Igreja reclamasse a sua posse, e tendo as ocupações se transmitido aos herdeiros ao longo do tempo, adquiriam estes domínio «e, portanto, o direito de se manterem na posse dos ditos terrenos». De maneira que a Câmara, tanto quanto qualquer outro possuidor, estava em condições de contestar a ação de reintegração da matriz, sob o argumento de que o direito da mesma já havia prescrito.359 A Igreja tentou resistir o máximo que pôde à desclericalização dos patrimônios. Em Abre Campo a polêmica chegou também às páginas da imprensa. Em texto publicado em O Abre Campo de 1° de fevereiro de 1903, lê-se: «Os terrenos doados pelo povo às capelas, que depois foram elevadas a ma-

trizes, constituem seus patrimônios [e] não podem as Câmaras Municipais administrá-los, aforá-los, conceder licença para edificações de prédios e outras obras; são bens incorporados às fábricas cuja administração pertence aos respectivos fabriqueiros de nomeação do Exmo. Bispo Diocesano. (...) Os que pretendem construir casas, não devem requerer licença à Câmara (...), devendo requerer aos fabriqueiros e aos conselheiros que possuem terrenos o aforamento dos mesmos, uma vez que eles são os únicos competentes para dar as concessões. (...) A nossa Câmara ainda não adquiriu terrenos para seu patrimônio de acordo com a legislação vigente, e assim sendo, nenhum direito tem ela de cobrar imposto (...).»360

Esta «dualidade de poderes» só poderia intensificar ainda mais o atrito entre Estado e Igreja. Ao tentar assegurar a posse das terras das antigas capelas, a Igreja desautorizava, aos olhos da população, a ação do poder público. Em 19 de dezembro de 1906, o pároco de São Miguel do Anta escrevia uma carta ao bispo de Mariana informamdo-o que ocorria então «uma veemente questão sobre o patrimônio» do qual estava de posse a Câmara Municipal. Rogava ainda que se lhe enviasse, o mais rápido possível, cópia do título de doação dos terrenos. E justificava-se, dizendo que «estando a matriz desta freguesia em completa pobreza, e distituída de todo o

necessário para o culto externo, e estando todos os fregueses a reclamarem sobre a injusta usurpação que está praticando a Câmara, a ponto de quererem-se revolucionar (...).»361

359 AEAD, cx. 101, pasta «Paróquia Santo Antônio – Curvelo» (cartas escritas, res-

pectivamente, em 30 de setembro de 1903 e 29 de dezembro de 1902). 360 AEAM, arm. 24, cx. 1. 361 AEAM, arm. 24, cx. 4.

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Resta, enfim, o caso da cidade-símbolo do projeto moderno em Minas Gerais: Belo Horizonte. Como se sabe, a nova capital de Minas Gerais foi construída sobre o antigo arraial do Curral del-Rei. Destinada a ocupar o centro das decisões políticas do estado, era de fundamental importância para Igreja que ao menos ali ela conseguisse opor-se ao processo de desclericalização do espaço. Vencida a batalha em Belo Horizonte, a guerra não estaria de todo perdida. Mas as condições eram agora ainda menos favoráveis, e não apenas devido à influência crescente do positivismo entre os novos donos do poder. Num parecer com data de 9 de agosto de 1894, certamente feito a pedido das autoridades eclesiásticas, Lafayette Roiz Pereira procura conferir base jurídica à demanda da Igreja. Partindo do pressuposto que todo templo deveria ser dotado de «patrimônio em terras, que é o costume da nossa diocese», ele conclui que a matriz da Boa Viagem necessariamente dispunha ou tinha disposto do terreno sobre o qual se construía a capital. Sabemos que esta afirmativa só é parcialmente correta. Toda nova capela tinha de ter o seu patrimônio, porém o mesmo podia ser – e o foi, muitas vezes – constituído em dinheiro, não em terras. É revelador que Lafayette Pereira e mesmo os prelados marianenses se esquivassem de evocar as Constituições do Arcebispado da Bahia, onde, diga-se de passagem, somente a modalidade patrimônio-em-dinheiro é mencionada. Mas Lafayette Pereira ia ainda mais longe, e negava «que a aludida porção de terras pertença ao Estado. (...) Seria preciso que por parte do Estado se exibisse título legal de aquisição».362 Em 1895, Dom Antônio de Sá e Benevides dirige uma carta ao governador em que insiste na «necessidade de salvar os direitos da Igreja no patrimônio da matriz». Benevides dizia-se obrigado «a empregar todos os esforços para conservar o que é da Igreja, mormente nas condições em que atualmente ela se acha». A resposta de Bias Fortes é clara: «O governo tem sido solícito em respeitar todos os direitos de domínio devidamente formado nas desapropriações procedidas naquele distrito». Quanto ao patrimônio, acrescentava, «nenhuma reclamação documentada até esta data foi apresentada sobre a propriedade que por ventura tenha a Igreja».363 As autoridades eclesiásticas nada podiam fazer: aproximadamente um século depois de sua construção, a igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem não tinha patrimônio algum, segundo relatório do vigário da vara de Sabará em 1838.364 A despeito de intensos esforços, o termo de doação do patrimônio da antiga capela – se é que ele foi mesmo constituído em terras – nunca foi encontrado. O padre Francisco Martins Dias, em obra sobre Belo Horizonte publicada já em 1897, escreve: «Não encontramos aqui nem livros, nem outros quaisquer documentos, que

menção fizeram do patrimônio da paróquia; queremos acreditar que se perderam proposital ou fortuitamente. (...) Ao que parece, foram os astutos 362 AEAM, arm.24, cx. 5. 363 AEABH, cx. 438 (carta de 25 de fevereiro de 1895), grifo nosso. 364 AEABH, cx. 438 (carta datada de 24 de dezembro de 1838).

261 mandões e os régulos de tempos idos, que, abusando da simplicidade do povo, e da timidez ou desleixo do pároco, com artimanhas e trapaças, lançavam mãos sacrílegas no que à igreja pertencia, e daí iam-se sucedendo as transmissões até os presentes proprietários».365

Mesmo admitindo que o patrimônio em terras tenha existido, muito provavelmente nada poderia ser feito contra as apropriações realizadas pelo poder civil em nome do «bem público» e do «progresso». O Estado não tomou qualquer conhecimento das reivindicações do clero, e somente com muito custo concordou que a igreja da Boa Viagem fosse mantida em seu sítio de origem (o projeto original da capital previa que a velha matriz fosse demolida, e uma nova erigida no alto do Cruzeiro).366 Talvez se possa falar legitimamente, aqui, no estabelecimento de um «marco histórico». Pois o caso de Belo Horizonte ilustra, melhor que qualquer outro, a inexorável desclericalização dos antigos patrimônios. Os chãos «dos santos» tiveram de dar lugar aos logradouros públicos. O processo de desclericalização do espaço dos antigos arraiais culminaria, alguns anos mais tarde, com o início da progressiva descristianização da toponímia mineira.367 Pouca valia teve o singelo protesto de Guimarães Rosa, para quem «nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado».368 Contando com fervorosos adeptos no aparato estatal, as novas formas sociais de religião – religião civil, «religião da humanidade» – tinham como projeto moldar o espaço e seus signos ao espírito do tempo. Numa certa medida, o conseguiram. O que não significa que se possa falar em «secularização» na jovem República brasileira. Na ilusão de expulsarem a religião da vida social, as novas elites remodelaram o espaço urbano à sua imagem e semelhança – religiosamente.369

365 Dias, Francisco Martins. Traços históricos e descriptivos de Bello Horizonte. Bello

Horizonte: Typographia Bello Horizonte, 1897, pp. 43-44. 366 Almeida, Marcelina das Graças de. Fé na modernidade e tradição na fé: a catedral

da Boa Viagem e a capital. Belo Horizonte: dissertação de mestrado em história, UFMG, 1993, p. 75. 367 A lei n° 843 de 7 de setembro de 1923 alterou os nomes de 324 localidades mineiras, das quais 177 tinham anteriormente uma denominação de caráter explicitamente religioso (DHGMG, pp. 10-14). Lima Jr. chamou estas mudanças de «depredação toponímica». Lima Júnior, A capitania das Minas Gerais, p. 87. 368 Rosa, Grande sertão, p. 39. 369 Da Mata, «Passado e presente da religião civil», pp. 196-200.

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5.

Derrota da «cidade selvagem»?

1897 é o ano da inauguração de Belo Horizonte. Uma notável coincidência histórica, que valeria, por sí só, um estudo à parte: 1897 é também o ano da queda do arraial de Canudos. Se existe algo como um espectro das distintas possibilidades de interação entre o universo das representações coletivas e o das estruturas espaciais, não resta dúvida de que Canudos e Belo Horizonte situam-se nas suas antípodas. Utopia milenarista de um lado, heterotopia modernista de outro.1 Na visão de Euclides da Cunha, tudo em Canudos era atípico e, num certo sentido, monstruoso: a raça, mestiça; a religião, «indefinida»; o espaço do arraial, caótico. Por isso ele se refere ao arraial de Canudos com a expressão «a cidade selvagem».2 Belo Horizonte representa um modelo diametralmente oposto. Nela, o sonho do progresso assume o lugar do sonho milenarista. Não é mais a religião que cria a cidade, mas sim o pensamento racional, o planejamento metódico. À relativa espontaneidade das formas sucede a geometria. O espaço urbano, doravante, é algo a ser domesticado. Sua gênese não mais se associa às necessidades impostas pela fé. Ela responde a um triunfo da vontade. 1897 assinalaria, portanto, uma virada histórica. Depois de Belo Horizonte, parecíamos condenados a confirmar a afirmação de Flusser de que as cidades brasileiras, «diferentemente das européias, originam-se não num projeto mítico, mas racional».3 Contestamos esta tese no capítulo anterior, à luz do estudo das origens e da dinâmica dos antigos embriões de cidades mineiros. Mas a hipótese de Flusser aparentemente adquire força diante de exemplos como os de Philadelphia e da nova capital de Minas. Um dos grandes paradoxos dos processos históricos reside no fato de que mesmo sob a aparência das rupturas mais espetaculares, subsiste sempre um núcleo duro que resiste à corrosão do tempo. Ora, precisamente naqueles espaços urbanos que assinalam a vitória do projeto moderno – e a desclericalização do espaço – o substrato religioso tradicional nunca foi completamente eliminado. A suspeita de que Belo Horizonte tenha surgido em terras de Nossa Senhora da Boa Viagem não foi apenas fruto da ânsia dos representantes da Igreja em garantir seu poder econômico e simbólico face à ação do Estado. Esta suspeita se baseava na probabilidade muito real de que as terras onde se situava o arraial do Curral delRei teriam, originalmente, feito parte do patrimônio «da Santa». A este respeito, é bastante ilustrativa a resistência da Igreja em aceitar que a antiga matriz da Boa Viagem fosse demolida e reconstruída num outro local. Antes, a matriz havia constituído o foco da vida social do Curral del-Rei. Com a 1

É verdade que Bloch se refere ao planejamento urbano moderno com as expressões da cidade racional» e «utopia da ordem». Bloch, Ernst. Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt: Suhrkamp, 1982 (1959), pp. 865-866. Porém estamos, nesse ponto, mais próximos da posição de Foucault, «Des espaces autres», pp. 752-762. Cunha, Os sertões, p. 122. Flusser, «Brasilianische Städte», p. 262. «utopia

2 3

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inauguração de Belo Horizonte, o locus das decisões políticas se deslocou para o conjunto da Praça da Liberdade (onde, aliás, a Igreja também se fará presente mais tarde, com a construção do Palácio Cristo Rei ao lado – e à direita – da sede do Governo do Estado). Mas o coração religioso da metrópole nascente pulsava ainda no mesmo espaço sagrado de outrora, ali mesmo onde, no início do século XVIII, fora erguida a capela primitiva do arraial. Nem mesmo Brasília, a capital-monumento, rompeu de todo com o substrato religioso que, desde sempre, une o sagrado ao urbano.4 Em 30 de agosto de 1883, Dom João Bosco teve uma visão na qual percorria o território latino-americano embarcado num trem: «Eu via as entranhas das montanhas e o fundo das planícies. Tinha sob os olhos as riquezas incomparáveis destes países, as quais um dia serão descobertas. Via numerosas minas de metais preciosos e de carvão fóssil, depósitos de petróleo tão abundantes que jamais já se viram em outros lugares. Mas não era tudo. Entre os paralelos 15 e 20 graus, havia um leito muito largo e muito extenso, que partia de um ponto donde se formava um lago. Agora, uma voz disse repetidamente: quando se vierem escavar as minas escondidas no meio destas montanhas, aparecerá neste sítio a terra prometida, donde fluirá leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.»5

O mito foi mobilizado, mais tarde, pelos defensores da construção da nova capital brasileira no estado de Goiás. Políticos como Juscelino Kubitschek invocaramno. O que é compreensível, já que poucas experiências religiosas fascinam tanto quanto a visão.6 Que ver neste caso senão uma evidência da ligação estrutural entre o fenômeno religioso e o fenômeno urbano? A jovem Brasília só fez seguir os exemplos de Roma, Lisboa e tantas outras. O que sugere, num certo sentido, que a cidade, também para o homem moderno, continua sendo um «mistério». O mito vem em seu socorro: ele torna a cidade inteligível na medida em que a justifica. A análise da nossa «geografia mítica» nos termos propostos por Cassirer demonstraria, ainda, a existência de uma reveladora homologia entre Brasília e Canudos. Segundo depoimento de um clérigo anotado por Euclides da Cunha, corria no sertão baiano a crença de que em Canudos «nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas».7 O mesmo motivo – cuja antigüidade é evidente (Ex 3: 8) – pode ser observado na visão de Dom Bosco. Não seria excessivo acrescentar que este tipo de representação mítica muito provavelmente se mantém nos dias de hoje, apenas sob novas roupagens. É co4 5 6 7

Ver Tuan, Topofilia, pp. 196-198. Tamanini, Lourenço Fernando. Memória da construção: Brasília. Royal Court: Brasília, 1994, p. 105. Grifo nosso. Benz, Die Vision, pp. 641-642. Cunha, Os sertões, p. 127.

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mum entre os brasileiros a impressão de que em Brasília, cidade dos funcionários públicos, ganha-se bem e «ninguém trabalha». A capital do Brasil, costuma-se dizer, é uma «ilha da fantasia». A ruptura entre a cidade modernista e a «cidade selvagem» é menos radical que se imagina.8 * * * Este trabalho procurou demonstrar, numa perspectiva que nos arriscaríamos a caracterizar como histórico-fenomenológica, de que maneira religião e espaço interagem nos dois primeiros séculos da história de Minas Gerais. Primeiramente mostrou-se como a religião estava profundamente imbricada no mundo da vida. Em seguida, empreendemos uma análise do espaço vivido – do mais íntimo da casa aos confins do sertão. Finalmente, centramos nossa atenção nas formas elementares do espaço urbano, onde o jogo de inter-influências entre representações religiosas, concepções espaciais (Raumauffassungen) e organização do espaço se apresentam de maneira particularmente nítida. O espaço reflete sempre a visão de mundo do grupo que o «preenche». De que forma o arraial na Minas antiga permite saber um pouco mais a respeito da mentalidade daqueles que o criaram e que o habitaram? Num ambiente ainda dominado pelo catolicismo popular, é a capela que «tem» um arraial, não o contrário. Para se entender por quê o embrião de cidade se forma, é preciso entender o que esta capela efetivamente representa: ela é a expressão material e espacial de uma necessidade de comunicação periódica com o sagrado. Ela configura um espaço qualitativamente distinto daquele que se situa ao seu redor, e esta qualidade se extende ao terreno que lhe é doado: o patrimônio. É a partir deste binômio capela-patrimônio que o arraial se forma. As primeiras casas que nele se levantam não são propriamente residências, mas simples pousos nos quais as pessoas se preparam para o rito da missa. Estes pousos têm originalmente, portanto, uma função ritual. Ali os fazendeiros e suas famílias, vindos muitas vezes de longe, se vestem adequadamente para a celebração. Simultaneamente, surgem os primeiros estabelecimentos comercias, as primeiras «vendas». Elas são aceitas de bom grado, afinal o arraial não é (nem pode ser) um espaço exclusivamente devotado à religião. Caso as condições oferecidas pelo meio e as perspectivas econômicas sejam favoráveis, o núcleo se desenvolve. Do contrário o arraial cai em estagnação ou é simplesmente abandonado. E, no entanto: a «fagulha» que desencadeia todo o processo é de natureza religiosa. O arraial que se forma a partir de uma capela e seu patrimônio em terras oferece um modelo diferente do arraial surgido às margens de um local de minera8

Para uma visão mais abrangente, ver Haufe, Hans. «Die historische Stadt: Raumidentität und kulturelles Erbe in Lateinamerika». In: Riekenberg, M., Rinke, S. u. Schmidt, P. (Hrsg.) Kultur-Diskurs: Kontinuität und Wandel der Diskussion um Identitäten in Lateinamerika im 19. und 20. Jahrhundert. Stuttgart: Hans-Dieter Heinz, 2001, pp. 103-129.

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ção. Grosso modo, poderíamos dizer que o tipo humano predominante no primeiro é o «homo religiosus», enquanto que o tipo que prevalece no segundo é o «homo ludens». O arraial minerador vive em função das lavras; o arraial surgido num patrimônio tem na capela o seu ponto de rotação. Outro interessante aspecto se dá a ler por meio do complexo capela-patrimônio-arraial. Ele é concebido sem fronteiras. Nada existe ao seu redor que denote a necessidade de separar de maneira clara e indubitável o «dentro» do «fora». Os inúmeros casos de adros e cemitérios destituídos de muros revelam a mesma lógica, qual seja: no universo religioso popular da Minas antiga não há uma clara diferenciação entre sagrado e profano. A organização do espaço do arraial permite visualizar este aspecto fundamental da religião popular. Em outros termos, o extra-cotidiano faz parte do cotidiano. A festa, o lúdico, não estão em «oposição» ao sagrado. As representações e práticas religiosas não se voltam exclusivamente para o post-mortem, uma vez que elas estão indissociavelmente integradas à trama da vida. O estudo do arraial mineiro não exclui, de certo, o fato de que na sua constituição entram em jogo determinadas relações de poder. A capela podia perfeitamente ser encarada, da parte de um grande fazendeiro, como um instrumento. Arcando com os custos de sua construção, ele pode vir a obter o título de «padroeiro». A indicação e o sustento de um capelão reforçam sua autoridade. De modo que se a religião não pode ser reduzida à sua função de sacralizadora da ordem social, não há como negar que ela também se presta a este papel. Todavia o estudo das sagas e mitos de origem dos arraiais demonstra que a idéia de que o campo religioso seria dominado pela lógica ditada pelas elites rurais e/ou pelo clero deve ser posta de lado. No âmbito do catolicismo popular são muitas vezes os oprimidos deste mundo que estabelecem a ligação entre deuses e homens. No mundo da vida (Lebenswelt) da Minas antiga, o carisma é patrimônio comum. A geografia da religião nos ajuda a perceber, finalmente, que o complexo capela-patrimônio-arraial é marcado por um paradoxo: a evolução do núcleo implica, ao menos tendencialmente, num enfraquecimento progressivo da modalidade de vida religiosa que presidira a sua própria gênese. Uma população vivendo à margem de todo tipo de «assistência religiosa» formal se decide pela construção de uma capela. Neste estágio, a comunidade não está submetida a qualquer espécie de constrangimento institucional. Como vimos, é exatamente esta relação ambivalente das massas rurais com o aparato eclesiástico que parece ser um dos principais elementos daquilo que chamamos catolicismo popular. Erigida a capela, doado o patrimônio, o embrião de cidade começa a se desenvolver. Com o tempo, aquela rústica capela inicial já não consegue abrigar o número crescente de fiéis. Faz-se um templo de maiores dimensões, e a estabilização do núcleo torna-o digno de ser elevado à condição de freguesia. Com a presença do vigário, o controle sobre a vida religiosa da população se torna cada vez mais intenso. Criadas as primeiras escolas, o advento da educação formal reforça ainda mais a tendência à marginalização das concepções religiosas iniciais. Com isso

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não se pretende dizer que o catolicismo popular seja sufocado por um processo que ele mesmo deflagra, mas apenas que seu espaço efetivamente tende a se reduzir. A história de todo núcleo urbano é a história da dialética entre espaço e representações. O espaço é «produzido» – isto é, ele adquire significado – a partir de determinadas concepções pré-existentes. Entretanto, os arraiais são algo mais que espelhos da mentalidade predominante na Minas Gerais dos séculos XVIII-XIX. À medida em que evoluem, estes embriões de cidades contribuem para que o catolicismo popular seja substituído por formas cada vez mais «enquadradas» de religiosidade.

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Fontes e Bibliografia Abreviaturas AEABH – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Belo Horizonte AEAD – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina AEAM – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana AEDC – Arquivo Eclesiástico da Diocese de Campanha AfKG – Archiv für Kulturgeschichte AHCMG – Annuario Historico-Chorografico de Minas Gerais ANEDC – Anuário Eclesiástico da Diocese de Campanha APM – Arquivo Público Mineiro CAB – Constituições do Arcebispado da Bahia CCM – Códice Costa Matoso DHGMG – Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais EIA – Estudos Ibero-Americanos EM – Enzyklopädie des Märchens EMB – Enciclopédia dos Municípios Brasileiros ER – The Encyclopedia of Religion GG – Geschichte und Gesellschaft HAHR – Hispanic American Historical Review HdA – Handwörterbuch des deutschen Aberglaubens HrwG – Handbuch religionswissenschaftlicher Grundbegriffe HT – History and Theory IESS – International Encyclopedia of the Social Sciences IJRS – Internationales Jahrbuch für Religionssoziologie JbLA – Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas JPC – Journal of Popular Culture MTSR – Method & Theory in the Study of Religion PHG – Progress in Human Geography RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro RBCS – Revista Brasileira de Ciências Sociais RBEP – Revista Brasileira de Estudos Políticos RBG – Revista Brasileira de Geografia RBH – Revista Brasileira de História RDTP – Revista de Dialectología y Tradiciones Populares REB – Revista Eclesiástica Brasileira RGG – Die Religion in Geschichte und Gegenwart RH – Revista de História (São Paulo) RHR – Revista de História Regional RIEB – Revista do Instituto de Estudos Brasileiros RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil RIHGMG – Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais

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RPHAN – Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ThQ – Theologische Quartalschrift VH – Varia Historia

a) Documentos manuscritos I. Arquivo Público Mineiro Códices da Seção Colonial: SC 19; SC 32; SC 35; SC 45. Códices da Seção Provincial: SP 508; SP 546; SP 565; SP 602; SP 657; SP 779; SP 897; SP 952; SP 1061; SP 1159; SP 1381. Documentos avulsos Seção Provincial: PP 1/9, cx.7; PP 1/9, cx. 8; PP 1/9, cx. 9; PP 1/9, cx. 12; PP 1/9, cx. 13; PP 1/9, cx. 16; PP 1/9, cx. 18; PP 1/9, cx. 19; PP 1/9, cx. 20; PP 1/9, cx. 21. Microfilmes do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU): Cx. 29, doc. 28; cx. 41, doc. 70; cx. 54, doc. 31; cx. 62, doc. 30; cx. 64, doc. 24; cx. 119, doc. 44; cx. 122, docs. 23 e 38; cx. 127, doc. 34; cx. 128, docs. 13 e 28; cx. 131, doc. 25; cx. 136, doc. 14; cx. 137, doc. 16; cx. 140, doc. 26; cx. 142, doc. 34; cx. 149, doc. 64; cx. 162, doc. 9; cx. 165, doc. 68; cx. 169, doc. 21; cx. 181, doc. 53.

II. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina Documentos avulsos: caixas 02, 49, 101, 102, 106.

III. Arquivo Eclesiástico da Diocese de Campanha Documentos avulsos: caixas 01, 02, 03, 04, 05. Livro do tombo de Aiuruoca (1730-1822) Livro de pastorais de Baependi (1822-1899)

IV. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Belo Horizonte Documentos avulsos: caixas 31, 37, 295, 404, 438, 444, 502, 503, 507, 509, 813, 837.

V. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana Documentos avulsos: pasta 22, gav. 3, arq. 2; pasta 28, gav. 1, arq. 1; pasta 33, gav. 2, arq. 1; pasta 33, gav. 4, arq. 4; pasta 54, gav. 1, arq. 1; pasta 11-A/G.1/A.2. Processos de patrimônio: arm. 24, caixas 01, 02, 03, 04, 05.

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b) Documentos impressos Actas e constituições do primeiro sínodo diocesano fortalexiense celebrado na respectiva igreja catedral em os dias 31 de janeiro, 1° e 2 de fevereiro de 1888; sendo bispo desta diocese o Exmo e Rvmo Snr Dom Joaquim José Vieira, do Conselho de S. Magestade o Imperador, comendador da Ordem de Cristo, etc, etc. Ceará: Typographia Economica, 1888. Castro, Martinho de Mello e. «Instrução para o Visconde de Barbacena». In: RIHGB (21) 1844: 3-59. Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. Coordenação de Luciano Figueiredo e Mônica Campos. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999. Coelho, José João Teixeira. «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais (1780)». In: RIHGB 15 (7) 1852: 255-481. Da Vide, Dom Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arbebispado da Bahia. São Paulo: Typographia 2 de Dezembro, 1853 (1719-1720). «Descrição geográfica, topográfica, histórica e política da capitania de Minas Gerais. Seu descobrimento, estado civil, político e das rendas reais (1781)». In: RIHGB (71) 1908: 117-184 «Diário da jornada, que fez o Exmo. Senhor Dom Pedro desde o Rio de Janeiro até a cidade de São Paulo, e desta até as Minas no ano 1717». In: RPHAN (3) 1939: 295-316. «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jornada que fez o Senhor Mestre de Campo, Regente e Guarda-mor Inácio Correia Pamplona, desde que saiu de sua casa e fazenda do Capote às conquistas do Sertão, até se tornar a recolher à mesma sua dita fazenda do Capote etc. etc. etc.». In: Anais da Biblioteca Nacional (108) 1988: 53-113. «Retrato e reverso do Reino de Portugal». In: Nova História (1) 1984: 83-143. Trindade, Dom Frei José da Santíssima. Visitas pastorais (1821-1825). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998.

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Anexos

303 «Igreja

Católica é ‹dona› de distrito em São Paulo»

A Igreja Católica é dona de todo o território do distrito de Cruz das Posses, em uma realidade imobiliária típica da Idade Média. Cruz das Posses pertence ao município de Sertãozinho (330 km de São Paulo) e tem 8.000 habitantes. O território do distrito tem 39 hectares (ou 390 mil m²) divididos em terrenos que pertencem à igreja. Toda a área, equivalente a 54 campos de futebol, está registrada em um documento no Cartório de Registro de Imóveis de Sertãozinho em nome do Patrimônio da Capella de Santa Cruz. A posse da igreja foi adquirida por meio de uma doação feita em 1906 por um fazendeiro do local «para o bom Jesus». Os terrenos foreiros, no qual o usuário paga a um senhorio por sua utilização, surgiram na Europa durante a Idade Média, quando a Igreja tinha o domínio da boa parte de Portugal, França e Espanha. Moradores de Cruz das Posses estão familiarizados com termos jurídicos medievais, como o foro (dinheiro pago pela utilização do terreno) e o laudêmio (dinheiro pago ao senhorio quando da alienação da área), e possuem cartas de aforamento de seus terrenos. Essa carta não vale como uma escritura. Legalmente, a pessoa tem o domínio do terreno, mas não tem a posse. Se os moradores precisarem de um empréstimo bancário ou quiserem avalizar um negócio, por exemplo, o documento não serve como garantia porque não comprova a propriedade do imóvel. O subprefeito de Cruz das Posses, Antônio Ferreira Rosa, diz que 70% da população do local possui cartas de aforamento, também chamadas de «cartas de data». Os demais terrenos são da igreja ou de pessoas que conseguiram a escritura irregularmente, segundo o cartório de Sertãozinho. «Eu mesmo tenho uma ‹carta de data›. O que acontece, na prática, é que a casa é da pessoa, mas o terreno é da igreja. Então, ninguém compra e ninguém vende mais aqui», afirma o subprefeito. O comerciante José Antônio Petri, 37, tem três cartas de aforamento de imóveis em Cruz das Posses. Ele diz que já tentou um empréstimo bancário para equipar melhor o seu supermercado, mas não conseguiu. «Aqui, todo mundo sofre com isso. A nossa propriedade, na prática, não vale nada. Eu já fui no cartório, tentei resolver na igreja, mas não tem jeito», afirma.

Igreja Procurado pela Folha, o padre Antônio de Oliveira, que tomou conta das terras de Cruz das Posses por mais 50 anos, não quis falar sobre o caso. O arcebispo de Ribeirão Preto, D. Arnaldo Ribeiro, também se negou a falar sobre o assunto.

304

O atual pároco de Cruz das Posses, Ilson Montanari, disse que a igreja está tentanto encontrar uma solução para resolver o problema, mas ainda não conseguiu. «É uma questão difícil. Pensamos em iniciar ações por usucapião, já que todas as pessoas estão lá há várias décadas, mas isso não é viável porque fica muito caro. Ainda estamos estudando uma medida legal», afirmou o padre. O padre Sérgio Carmona, que também trabalha em Cruz as Posses, afirmou que o foro e o laudêmio não estão mais sendo cobrados. Segundo ele, o foro não é cobrado pela igreja há mais de dez anos e o laudêmio deixou de ser cobrado há cerca de dois anos. (Folha de São Paulo, 11.01.1998)

Arraial de Matozinhos em 1887

Lavras Novas

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Planta da cidade de Philadelphia, século XIX

Teófilo Otoni (Philadelphia) em 1858 (Tschudi, Reisen durch Südamerika)

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310

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Planta da cidade de Chiador (anos 1950). Fonte: Valverde, Orlando. «Estudo regional da Zona da Mata, de Minas Gerais». In: RBG 1 (20) 1958, p. 70. Sobre a origem do arraial, lê-se na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros: «Diz a tradição que [o português Antônio Joaquim dos Santos] se instalou no local onde hoje existe a fazenda Serra da Arriba, deliberando, pouco depois, a construção, por ele próprio e seus escravos, de uma capela em honra a Santo Antônio. Concluída a capela, (...) deu carta de liberdade aos escravos que trabalharam na construção, ao mesmo tempo que lhes permitiu construírem ranchos e cultivar terras ao redor da capela. Iniciou-se, desta forma, o povoado». EMB, v. 24, p. 440.

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