CHOQUE CULTURAL NO OCIDENTE BÁRBARO - Atritos, convivência e trocas culturais entre romanos e germanos nos séculos V e VI -

October 1, 2017 | Autor: Mauricio Albuquerque | Categoria: Early Medieval History, Late Antiquity, Late Roman Empire
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CHOQUE CULTURAL NO OCIDENTE BÁRBARO - Atritos, convivência e trocas culturais entre romanos e germanos nos séculos V e VI -

RESUMO: Este trabalho busca analisar dois casos específicos:1) A reação dos germânicos recém convertidos perante os hábitos da fé cristã a partir dos relatos de São Cesário, o bispo de Arles. 2) A cooperação (consciente ou não) dos limitanei para com o adentramento germânico no Império. Visando salientar a convivência , ora hostíl ora pacífica, entre romanos e germanos, os atritos decorrentes da diferença cultural e algumas possíveis trocas culturais que teriam ocorrido nestes contatos.

PALAVRAS-CHAVE: QUEDA DE ROMA – BÁRBAROS – ANTIGUIDADE TARDIA

ABSTRACT: This paper analyzes two specific cases: 1) The reaction of Germanic newly converted before the habits of the Christian faith from the San Cesario ( the bishop of Arles) reports, . 2) The cooperation (consciously or not) of limitanei towards the German indentation in the Empire. In order to emphasize the coexistence, sometimes hostile now peaceful, between Romans and Germans, the friction arising from cultural differences and some possible cultural exchanges that have occurred in these contacts.

.KEY-WORDS: FALL OF ROME – BARBARIANS – LATE ANTIQUITY

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INTRODUÇÃO Analisar os últimos séculos do Império Romano, assim como os primeiros da Idade Média,é uma tarefa que há muito tem gerado polêmicas e controvérsias entre os historiadores, desde que Edward Gibbon escrevera “The History of the Decline and Fall of The Roman Empire”1 em 1776 a historiografia sobre o assunto tivera seu início formal,

sofrendo

transformações a cada geração, culminando com o lançamento de “The World of the Late Antiquity”(1970) de Peter Brown, onde a visão “catastrofista” começara a ser revisionada com maior ênfase. Quase dois séculos e meio mais tarde, com o aprimoramento das pesquisas arqueológicos e o surgimento de novas teorias da história, nos é possível observar este período de transição com detalhes que Edward ,assim como muitos de seus posteriores, jamais poderiam visualizar ou imaginar. A vida e cotidiano dos povos bárbaros, assim como as interações destes como as populações romanas, não seriam fáceis de compreender apenas com as fontes que estavam disponíveis para Gibbon. No entanto, mesmo com todos os meios disponíveis e com inúmeros revisionismo já feitos sobre o assunto, a antiguidade tardia continua sendo um campo de batalha para medievalistas, germanistas, arqueo-antropólogos, e especialistas dos mais variados ramos, que, armados dos mais diversos argumentos, discutem temas como:“Invasões ou grandes migrações?, Ruptura ou Continuidade?,Queda ou transformação de Roma?...”. Não é de minha intenção discutir qual destes conceitos é o correto e o porquê de ser ( se é que é possível dizer que algum deles está correto) , qualquer opinião advinda de minha pessoa, ao menos neste momento de minha formação, seria apenas o enfatizar de algo que já fora explanado por historiadores experientes no tema, como Walter Goffart2, Peter Heather3 e Guy Halsall4. No entanto ressalto que, independente da vertente historiográfica que se adote sobre o tema, existem alguns consensos entre os historiadores:

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Publicado no Brasil como “ A História do Declínio e Queda do Império Romano” Walter Andre Goffart, historiador alemão, especializado em Império Romano Tardio, Alta Idade Média e Reinos Bárbaros, atua como pesquisador e conferencista na Universidade de Yale, nos EUA 3 Peter Heather, historiador britânico, especializado em antiguidade tardia e alta idade média, atua como professor de História Medieval em King’s College London. 4 Guy Halsall, historiador britânico, especializado em história e arqueologia merovíngia, atua no setor de pesquisa do departamento da Universidade de York. 2

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1-As interações (sejam elas pacíficas ou violentas) entre romanos e bárbaros germânicos foram fundamentais para a formação das estruturas (políticas, econômicas, religiosas...) da Idade Média. 2-Romanos e Germânicos influenciaram-se mutuamente enquanto conviviam nas regiões dos Limes, nas campanhas militares, ou mesmo dentro dos territórios imperiais. 3-As invasões (ou migrações) germânicas foram instigadoras de profundas mudanças na política do Império. Este texto buscará, na medida das dificuldades existentes, exemplificar e analisar alguns destes momentos de interação entre bárbaros e romanos, tendo como foco o choque cultural decorrente do contato entre estas duas culturas, que compunham um quadro (ainda) extremamente heterogêneo na Europa ocidental

1 ENTRE PAGÃOS E CRISTÃOS Um documento que possui interessantes informações sobre a diversidade religiosa deste contexto é o sermão número 13 de São Cesário, bispo de Arles, proferido a uma paróquia rural no sul da Gália. Estima-se que tenha sido escrito entre 470 – 530 D.C, onde, ao que tudo indica, havia um forte convívio entre populações bárbaras (especialmente francos, burgúndios e visigodos) e romanizadas. Este documento se faz interessante não apenas pelo relato que traz, mas também pelo contexto em que se insere. São Cesário fora contemporâneo de Clóvis I, Alarico II e Theodorico(O Grande), líderes que protagonizaram alguns dos acontecimentos mais impactantes deste período, além do fato de ser uma época em que o poder local dos bispos se fazia cada vez mais latente, em contraste ao poder Imperial (ou, melhor, os “resíduos” deste), cada vez mais impotente em solucionar as querelas regionais. São Cesário, por sua vez, mostra-se como um educador da cristandade, o sermão demonstra profunda preocupação com os hábitos dos rudes camponeses (rudici), em muito supersticiosos e impregnados de hábitos pecaminosos, além dos resíduos de costumes pagãos, ainda fortemente arraigados. Atentemos a seguinte passagem: “Vede, irmãos, como quem recorre à Igreja em sua doença obtém a saúde do corpo e a remissão dos pecados. Se é possível, pois, encontrar este duplo benefício na Igreja, por que há infelizes que se empenham em causar mal a si

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mesmos, procurando os mais variados sortilégios: recorrendo a encantadores, a feitiçarias em fontes e árvores, amuletos, charlatães, videntes e adivinhos?”

A menção de São Cesário a feitiçarias em fontes e árvores nos remete a um hábito comum a quase todas as crenças pagãs, a adoração por elementos da natureza, em especial aqueles ligados a florestas, onde as tais árvores e fontes estariam presentes em maior abundância. Estes ritos florestais já foram associados aos germânicos em outras ocasiões, Tácito, por exemplo, em sua Germania, fizera sobre a religiosidade dos povos que viviam além do reno: “[...]pensam que encerrar os deuses entre quatro paredes e representá-los sob forma humana lhes parece contrário à majestade celeste. Por esse motivo, consagram-lhes selvas e bosques, e dão nomes de deuses a esses misteriosos lugares que só olham com olhos reverentes.“ “Os semones se dizem os mais antigos e os mais nobres dos suevos, e confirmam isso com sua religião. Em certas épocas do ano, numa de suas florestas, consagrados pelos áugures dos seus pais e por prístinos terrores congregam-se os povos dessa mesma origem e, sacrificando publicamente um homem, celebram a horrível instituição de um bárbaro rito “

É necessário notar que existe uma distância geográfica, e mais ainda cronológica, considerável entre os povos germânicos descritos por Tácito e aqueles que São Cesário convivera ao sul da Gália, mas, no que concerne ao presente estudo, as semelhanças ritualísticas presentes nas duas obras são fatos a serem considerados. Outra passagem que demonstra a indignação do bispo de Arles para com os comportamentos heréticos dos fiéis: “Esses infelizes e miseráveis que, sem vergonha e sem temor, promovem seus bailes e danças bem diante das próprias basílicas dos santos, tendo vindo à igreja como cristãos, dela saem como pagãos: pois tais bailes são restos de paganismo. E dizei-me que tipo de cristão é esse que veio à igreja para orar, mas se esquece da oração e não se envergonha de entoar cânticos sacrílegos pagãos. Considerai ainda, irmãos, se é justo que a boca cristã, que recebe o próprio corpo de Cristo, entoe cânticos obscenos, um veneno do diabo.”

As alegações de comportamentos pagãos narrados pelo bispo fazem muito sentido vide que a conversão em massa dos francos à fé católica ocorre após o ano 511 (ano do batismo de Clóvis I), considerando que o documento remonta entre 470 e 530, seria razoável afirmar que o paganismo entre os francos ainda era a religião predominante apesar do convívio com as populações galo-romanas cristãs ( ou, na melhor das hipóteses, que os povos bárbaros recém cristianizados da região ainda mantinham fortes traços culturais pagãos e por vezes faziam confusões entre as crenças). 4

Mais adiante : “E ainda que eu creia que, com a ajuda de Deus e graças a vossos esforços, erradicados estão daqui aqueles desgraçados costumes herdados do paganismo, no entanto, se ainda souberdes de alguém que pratique a torpeza sordidíssima das annicula ou do cervulus repreendei-o severamente para que se arrependa de ter cometido sacrilégio. E, se conhecerdes quem ainda lança clamores à lua nova, exortai-o e mostrai-lhe quão grande é este pecado de ousar confiar-se à proteção da lua - que, simplesmente, por ordem de Deus, esconde-se de tempos em tempos - por meio de seus gritos e imprecações sacrílegas.E se virdes alguém dirigir votos junto a fontes ou a árvores e ir procurar, como já dissemos, charlatães, videntes e adivinhos, pendurar no próprio pescoço - ou no de outros - amuletos diabólicos, talismãs, ervas ou âmbar, repreendei-o duramente, dizendo que quem cometer estes males perderá a consagração do Batismo.”

De todos os comportamentos citados pelo bispo o de annicula e cervulus são os que chamam maior atenção, se tratavam de práticas pagãs, herdadas desde os tempos da Gália Céltica, em que pessoas vestiam-se com fantasias de cervo ou cordeiro para festejar as calendas5. Para além do relato histórico o sermão do bispo também nos mostra alguns fenômenos interessantes de caráter antropológico: a apropriação e uma certa resistência cultural, ambas agindo mutuamente na consciência dos bárbaros recém cristianizados. De um lado o documento nos mostra uma aceitação por parte destes rúdicos camponeses perante a nova fé, o que não seria surpreendente se tratando de uma população , provavelmente, sofrida das mazelas decorrentes da queda do Império ao se depararem com uma possível salvação ( lembrando que o âmbito espiritual se confunde com o real na mentalidade da época), por outro também notamos que muitos hábitos dos antigos ritos acabam se mantendo, havendo, por tanto, a resistência de alguns valores que afrontam os dogmas da cristandade, o que demonstra um “hibridismo” religioso presente na mentalidade destes camponeses.

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Primeiro dia do mês no calendário romano. Quando ocorre a Lua Nova

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2.1 OPOSIÇÃO IDEOLÓGICA ENTRE ROMANOS E BÁRBAROS Lucien Musset, em “Las Invasiones – Las Oleadas Germanicas” levantara um questionamento interessante a respeito das relações entre romanos e bárbaros:”en qué medida el enemigo exterior há encontrado complicidades, conscientes o no, em el interior”(p.158). Ou seja, a que ponto realmente existira uma oposição entre os interesses da população romana em relação aos dos povos bárbaros? A historiografia antiga responde de forma clara, afirmando que os bárbaros que adentravam o império apenas desejavam apropriar-se dos bens dos demais, instalar-se em terras mais ricas e gozar do fruto de sua conquistas (MUSSET,Lucien. p.174). Hoje esta premissa é passível de ser relativizada, de fato não foram poucos os líderes bárbaros que alimentavam um desejo de continuidade para com as estruturas imperiais, o próprio Odoacro, líder do Hérulos que depôs o último imperador, agira de forma conservadora durante sua gestão,“Odoacro não tinha governado melhor nem pior do que seus predecessores. Nada construíra e nada destruíra. Conservara a Itália como a encontrara: uma terra de rapinagem e de conquista à mercê de todos.” (MONTANELLI, 1964, pg 111), Alarico I, que conduzira o saque de Roma em 410, reivindicara fortemente o título de Magister Militum, e Theodorico (O Grande), assim como outros líderes bárbaros, consideravam-se vassalos do Império Bizantino, demonstrando que a contraparte oriental de Roma ainda possuía grande prestígio no ocidente . Por outro lado também seria imprudente negligenciar casos de extrema violência praticada pelos bárbaros sobre as populações romanas, como fora o dramático episódio da dominação vândala no norte da África, registrado pelo bispo Victor Vitenses em Historia persecutionis Africanae Provinciae, temporibus Geiserici et Hunirici regum Wandalorum, uma verdadeira tentativa de sobreposição cultural no expurgo dos heréticos. (WICKHAM, 2010, p. 76) Ademais , de um modo geral, podemos dizer que a maior divergência ideológica existente entre romanos e germanos fora no âmbito religioso, nas disputas entre o catolicismo e o arianismo, que por vezes se faziam mais violentas e por outras mostravam relativa tolerância. Já a questão da contribuição dos romanos para com as invasões é provável que esta não tenha ocorrido de forma proposital e(ou) planejada, apesar dos inúmeros problemas sociais em que Roma se encontrava terem contribuído para o avanço bárbaro é muito improvável que estes( os bárbaros) tivessem consciência de tal, tampouco os romanos teriam coadjuvado nesses acontecimentos, salve excessão quando em procedimentos de ordem

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militar ( como a utilização de contigentes germanicos como Foederati6 e Auxiliae7,ou mesmo os Laeti8, muito comuns nos séculos IV e V ,por exemplo), mas neste caso a medida seria mais de caráter emergencial do que propriamente uma interação desejada. Ainda em questões militares pensemos o caso dos Limitanei nos séculos IV e V. Se tratavam de tropas de fronteira fixas, ou seja, viviam nas regiões limítrofes do Império junto de suas famílias, uma espécie de soldado-colono ( na maioria dos casos mais colono do que soldado) (FILHO,1989, p.15), recebendo, além do soldo militar, lotes de terra para seu sustento. 2.2 A SITUAÇÃO DOS LIMITANEI Para esboçar melhor a colaboração inconsciente dos romanos com o adentramento germânico imaginemos um personagem fictício, ao qual chamaremos de Germanus. Nossa história se passa na província Germania Secunda, no ano de 392, nosso “herói”, nascido em Colônia Agripinense, está com 31 anos e é um limitanei assentado próximo à margem ocidental do Reno. Há algunsanos a fronteira à qual Germanus fora enviado para defender apresenta sinais de estabilidade, as invasões violentas há tempos não ocorrem, mas o que mais preocupa nosso guerreiro não são os bárbaros mas sim sua condição econômica. Como Germanus não pertence a uma unidade móvel não pode solicitar que civis o acolham em suas casas ( MACDOWALL, 1994, p.18) ( até por estar demasiado distante da região urbanizada mais próxima) e também não tem a oportunidade de realizar pilhagens9, somado a isso ele possui uma esposa e dois filhos aos quais precisa prover sustento e seu comandante, extremamente corrupto, esta a lhe atrasar o soldo há 8 meses. Nosso soldado, junto de outros limitanei que estão em situação semelhante, resolve apoiar um General que planeja uma insurreição contra o governador da província, iniciando assim uma guerra civil. Germanus abandona seu posto quase que por completo e passa a atuar como um miliciano à favor do

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Tribos bárbaras que, mediante pagamento ou privilégios políticos, lutavam ao lado do Império. Tropas auxiliares do exército, geralmente compostas de não-cidadãos. Após as reformas de Diocleciano e Constantino este tipo unidade deixara de existir, mas a entrada de soldados bárbaros permanecerá sob a nova organização no exército. 8 Comunidades bárbaras que assentavam-se próximas ao território imperial, e, em troca de terrras, forneciam recrutas para o exército romano. 7

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general10, que está a pagar-lhe muito melhor, além do mais nosso herói começa a interagir com alguns bárbaros francos que também prestam serviço ao seu chefe atual. Os bárbaros que atuam com Germanus na milícia não são do tipo “selvagem” que ele estava acostumado a combater na fronteira, muitos, devido as interações com os romanos, aprenderam a falar um pouco do latim e, se não fosse por algumas coisas, seriam facilmente confundidos com soldados romanos, até o corte de cabelo militar passaram a adotar. Infelizmente a insurreição fora desastrosa e nosso guerreiro fora obrigado a retornar ao seu posto na fronteira norte do Reno. Germanus, já em muito desmotivado a continuar suas funções como limitanei, passa a se dedicar quase que completamente ao cuidado com a terra, visando a partir desta prover a riqueza necessária para a subsistência sua e dos seus. Lembrara-se da experiência que teve com os francos na insurreição então não se importou quando algumas famílias de bárbaros (que não pareciam hostís) assentaram-se próximas à sua propriedade (GRIMBERG, 1989, p.56), inclusive arrendara um pedaço de suas terras para uma destas famílias em troca de parte da produção. Passa-se duas décadas, ano 412, Germanus já se aponsentara e seu filho mais velho,Hunneri herdara o cargo do pai. Hunneri crescera ao lado de crianças bárbaras, filhas daqueles peregrinos que seu pai permitira que se assentassem ( outros limitanei, na mesma época, também arrendaram terras para bárbaros imigrantes para, talvez assim, alcançar um status de maior riqueza, o que aumentara o número de bárbaros “pacíficos” na região), teoricamente Hunneri é um romano mas utiliza muitas expressões bárbaras em seu vocabulário, inclusive tivera um filho com uma mulher de origem bárbara. Nosso novo herói pouco atuou como limitanei (apesar desta ser a sua função), a maioria de suas batalhas foram contra algum governador ou general e ele tomara partido de um outro governador ( ou general) que o contratara. Hunneri, apesar de não ser o melhor guarda de fronteiras, sabe que a segurança da região depente muito mais da boa vontade dos chefes bárbaros locais ( isto é, dos que ainda eram clientes do Império) do que propriamente de seus colegas limitanei, vide que as tropas 10

A prática do Bucelattumse tornara muito comum na última fase do Império Romano, se tratavam de tropas privadas que eram pagas e equipadas por uma pessoa de grande poder e prestígio, como um general ou um político de boa fortuna. Normalmente estes séquitos militares eram pequenos, destinados apenas à proteção pessoal do “patrão”, mas com o aumento das guerras civis, das insurreições locais e com a falta de segurança advinda da decadência do exército romano estes ( os Bucellari) poderiam atingir numeros maiores, não raro chegando a alguns milhares de guerreiros. Acredita-se que esta prática tenha sido uma das originadoras do militarismo do sistema feudal, uma vez que, na falta da autoridade estatal romana, os poderes privados tenham assumido as responsabilidades em certos setores da sociedade.

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da fronteira norte há anos já estão defasadas, recebendo poucos suprimentos e os soldos em moeda ( que desde a época de seu pai já costumavam falhar) são raramente recebidos11. O descaso do Império com esta região não apenas prejudicara seus próprios soldados mas tornara o quadro de relações externas muito mais delicado, uma vez que o fluxo de moedas fora cortado de várias regiões durante a gestão do usurpador Eugenius (, dificultando as negociações com os chefes bárbaros locais. Temos então um quadro sugestivo: soldados altamente desvalorizados e cada vez mais assimilando a cultura de seus vizinhos germanos, e chefes bárbaros, ávidos por terras, conquistas militares e bens ( HEATHER, Peter. p 82)12, com uma porta de entrada para o Império.Apesar de se tratar apenas se uma simulaçãoé possível imaginar em micro-escala alguns fenômenos dos séculos IV e V no que tange à interação entre romanos e bárbaros se levarmos em conta alguns fatores de causalidade assim como conceitos antropológicos simples ( assimiliação e apropriação cultural).Edward James, em Europe’s Barbarians AD 200-600, já esboçara sobre a utilização de bárbaros como limitanei, o que pode ser claramento confirmado pela presença de regimentos com nomes bárbaros no Notitia Dignitatum13.

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A decadência dos soldados de fronteira já fora esboçada por outros pesquisadores. Guy Halsall, em War and Society in the Barbarian West 450 -900 e Penny MacGeorge, em sua tese Late Roman Warlords, comentam sobre uma passagem de Eugippius em Vita Sancti Severini que fala sobre um regimento estacionado no alto Danúbio no século V. Tendo seu pagamento mais atrasado do que de costume resolvem mandar alguns dos seus para cobrar a dívida, estes, por sua vez, são mortos por bárbaros. Este caso nos mostra que, além de sofrerem com os problemas administrativos do Império decadente, os limitanei ainda estavam à mercê de seus vizinhos germânicos, cada vez mais bem equipadas e melhor organizados política e militarmente. Esta vulnerabilidade terá sido um dos fatores determinantes para que a classe dos limitanei desaparaça por completo até a segunda metade do séculos V. 12 Muito se comenta sobre a ânsia dos germanos por terras e riquezas (ouro, prata, etc), mas Peter Heather cita uma escavação iniciada em 1967, ao longo do Reno, próxima a velha cidade romana Civitas Nemetum( atual Speyer, Alemanha). Após sessenta anos de escavação fora descoberta uma história impressionsante à respeito deste sítio. Os objetos encontrados pelos arqueólogos eram parte de uma pilhagem feita por alamanos, que, no final do século III, estavam tentando levar seus botins para casa através do rio até que foram surpreendidos e emboscados por uma Lusoriae( patrulha romana de regiões fluviais) que patrulhava a área. Não seria nenhuma novidade, a não ser pelos ítens que os alamanos estavam levando. 700 kilos de pilhagem, a maior parte de objetos domésticos; 51 caldeirões, 25 tigelas e vasilhas, 20 conchas, uma série de objetos de uso agrícola, alguns objetos do santuário da villa, entre outros. Esta descoberta não apenas adiciona uma nova variável na equação, como também nos permite pensar o valor que objetos tão prosaicos para os romanos teriam para seus vizinhos bárbaros. Na pior das hipóteses tais objetos poderiam ser derretidos e utilizados para a forja de armas e demais ferramentas, mas, no que concerne à esta abordagem, o valor antropológico desta descoberta é mais relevante. 13 “Barbarians were not only used in the field army ( especially in Gaul), but also in the frontier troops, the limitanei. The document known as NotitiaDignitatum, wich lists the elements of Roman Army, gives barbarian names to a large number of regiments, including the frontier forces of the East, which indicate that at least originally these units were recruited from barbarians groups” (p.164)

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Logo, retomando o objetivo deste escrito, é aceitável ( ao menos em meu entedimento) afirmar que os romanos, visando atenuar sua situação presente, acabaram contribuindo com os processos migratórios germânicos, assim como o adentrar destes no território imperial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Torna-se cada vez mais claro que as relações entre Roma e o barbaricum são muito mais volúveis e transitivas do que (normalmente) se pensa.Pensar em romanos e bárbaros como figuras cristalizadas, cultural e ideologicamente opostos, é uma premissa que ( apesar de comum) faz pouco sentido antropológico. São Cesário de Arles nos mostra isso em seu sermão e a situação dos soldados de fronteira nas últimas décadas do Império sugerem um quadro semelhante. Isso não significa, de forma alguma, dizer que todas as relações entre romanos e bárbaros possam ser interpretadas como pacíficas ( coisa que pretendo explorar com mais ímpeto em um próximo escrito), mas sim que as forças atuantes deste período são de extrema complexidade, culturalmente híbridas e que não podem ser interpretadas sobre um viés reducionista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1-Fontes: AMMIANUS MARCELLINUS.Book XXXI. Trad. Bill Thayer .< http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Ammian/31*.html>. Acessado em 01/12/2014. 22h30 Anônimo.Salic Law. Trad. Ernest Henderson. < http://en.wikisource.org/wiki/Salic_Law_(Anonymous)>. Acessado em 26/11/2014, 18h50 CAIO CORNÉLIO TÁCITO. Germania. Trad. Sadi Garibaldi. . Acessado em 01/12/2014. 21h 50 CESÁRIO DE ARLES.Sermão XIII. Trad. Jean Lauand.< http://www.hottopos.com/videtur21/jeancesario.htm>. Acessado em 01/12/2014. 21h34. 10

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