CIDADANIA CULTURAL E DIREITO À DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA: A CONCEPÇÃO CONSTITUCIONAL DAS LÍNGUAS E FALARES DO BRASIL COMO BEM CULTURAL

October 13, 2017 | Autor: Ines Soares | Categoria: Patrimonio Cultural, Patrimonio cultural inmaterial
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CIDADANIA CULTURAL E DIREITO À DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA: A CONCEPÇÃO CONSTITUCIONAL DAS LÍNGUAS E FALARES DO BRASIL COMO BEM CULTURAL Inês Virgínia Prado Soares1

RESUMO: O presente artigo tem por finalidade abordar a necessidade de se tratar o tema da língua e dos falares do Brasil como bens culturais, os quais necessitam de instrumentos jurídicos e administrativos para sua tutela efetiva. A argumentação é desenvolvida no sentido de que a oficialidade da língua portuguesa, indicada pela Constituição, não significa o afastamento, proibição ou rejeição da diversidade de línguas brasileiras faladas pelos grupos formadores da sociedade brasileira. Palavras-chave: direitos lingüísticos, patrimônio imaterial, línguas e falares brasileirosRegistro ABSTRACT: The purpose of the present article is to examine the need to deal with the subject of the language and the speaks of Brazil as cultural goods, which need juridical and administrative instruments for their effective protection. The reasoning is developed in the sense that the setting of the Portuguese as official language, as indicated by the Constitution, doesn’t mean the removal, prohibition or rejection of the diversity of Brazilian languages spoken by the groups that constitute the Brazilian society. Keywords: linguistic rights, immaterial patrimony, Brazilian languages and speaks – Record.

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Procuradora da República em São Paulo, Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Direito Sanitário pela UNB, autora do livro Proteção Jurídica do Patrimônio Arqueológico no Brasil: fundamentos para efetividade da tutela em face de obras e atividades impactantes, Editora Habilis, 2007 e Presidente do Instituto de Estudos Direito e Cidadania – IEDC.

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1. Considerações iniciais sobre direitos lingüísticos, diversidade cultural e falares brasileiros A cultura é o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange também as artes e as letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças2. Dentre os traços integrantes da cultura, a linguagem é um dos mais significativos, não somente para a presente e as futuras gerações como para a compreensão da humanidade em sua trajetória na terra. A linguagem, forma de expressão estreitamente ligada à liberdade e à essência da vida humana, pode ser tratada no plano jurídico como bem cultural viabilizador de direitos humanos e como vetor do patrimônio cultural imaterial 3. Nesse sentido, a utilização da língua é exercício dos direitos culturais lingüísticos, contrapartida dos direitos de liberdade de expressão e comunicação4 e materialização do bem cultural intangível (forma de expressão). Em razão disso, a língua é elemento fundamental da diversidade cultural5 e, portanto, não se pode falar em direitos culturais lingüísticos e em direito fundamental ao patrimônio cultural lingüístico sem considerar o acolhimento, pelo ordenamento jurídico, do respeito à língua materna e do reconhecimento direito da comunidade de se expressar de acordo com os valores que afirmam sua identidade cultural6.

Sob essa ótica, o debate jurídico exige a compreensão do alcance do direito à diversidade lingüística no Brasil - país que tem uma língua oficial e hegemônica, e dos possíveis instrumentos e mecanismos para tutela dos outros falares que são falares brasileiros, como bens culturais integrantes (ou potencialmente integrantes) do patrimônio cultural brasileiro. Como destaca Gilvan Müller de Oliveira, atualmente não são poucas as línguas diferentes do português faladas pelos brasileiros: “são faladas cerca de 210 línguas por cerca de um milhão e meio de cidadãos brasileiros que não têm o português como língua materna, e que nem por isso são menos brasileiros. Cerca de 190 línguas são autóctones, isto é, línguas indígenas de vários troncos lingüísticos, como o Apurinã, o Xokléng, o Iatê, e cerca de 20 são línguas alóctones, isto é, de imigração, que compartilham nosso devir nacional ao lado das línguas indígenas e da língua oficial há 200 anos, como é o caso do alemão, do italiano, do japonês”. 7 No entanto, como a trajetória da política lingüística em nosso país foi de utilização do aparato jurídico-administrativo para o direcionamento ao monolingüismo, as atuações do Estado e da sociedade para proteção da diversidade, depois da Constituição de 1988, exigem uma mudança de perspectiva:

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“Sob o ideário de um povo, uma nação, uma língua, o Estado brasileiro desen-

Conforme preâmbulo da Convenção sobre a Diversidade Cultural, Unesco, 2005. Conforme definição da Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco Convenção de 2003, art.2 4 A comunicação entre os indivíduos é um direito de cada ser integrante da sociedade. Daí porque diz Leonardo Boff que a “moderna antropologia, vinda da biologia genética, da teoria dos sistemas abertos e da nova cosmologia, sustenta a hipótese de que a singularidade do ser humano, sua essência, reside em sua capacidade de falar. A fala não é apenas um meio de comunicação. É a maneira como o ser humano pensa, ordena o mundo e constrói continuamente a realidade” (Leonardo Boff, Artigo 19, in Direitos Humanos – Conquistas e Desafios. Editora Letraviva. Brasília, 1999. p. 253). No mesmo esteio, o direito à liberdade de expressão, inscrito no art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, está ligado não somente ao direito à vida, mas a uma “vida urdida de fala e de comunicação”.Expressão utilizada por LEONARDO Boff, idem, p. 254. 5 Conforme preâmbulo da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, UNESCO, 2005. 6 Entendendo-se por identidade cultural “como conjunto de referências culturais por meio do qual uma pessoa ou grupo se define, se manifesta e deseja ser reconhecido. Também implica liberdades inerentes à dignidade da pessoa e integra, em um processo permanente, a diversidade cultural, o particular e o universal, a memória e o projeto”. Conceito fornecido pelo Projeto de Declaração sobre Direitos Culturais, 1998, art. 1º, apresentado por Oswaldo Ruiz Chiriboga, “O direito à identidade cultural dos povos indígenas e das minorias nacionais: um olhar a partir do Sistema Interamericano”. Revista Internacional de Direitos Humanos, Rede Universitária de Direitos Humanos, n. 5, ano 3, 2006.p. 44/45. 7 Gilvan Müller de Oliveira, (org.) Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos, Campinas, SP: IPOL/Mercadodas Letras, 2003 apud Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras“, Revista Patrimônio, http:// www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08. 3

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volveu uma política lingüística direcionada ao monolingüismo, centrada na língua portuguesa como língua oficial e nacional. Ligada à própria conformação da nacionalidade brasileira, essa posição monolingüística se erigiu no período colonial com o Diretório dos Índios (1757), que obrigava o uso da língua portuguesa no Estado do Grão Pará e Maranhão em detrimento da língua geral, de base tupi (língua indígena), em franca utilização naquele momento. Seguindo essa direção, tivemos na história do país várias medidas de controle da diversidade lingüística, como as das campanhas de nacionalização da década de 1930 [4], além das que garantem a manutenção de políticas educacionais voltadas maciçamente ao ensino e uso da língua portuguesa como língua única. O resultado dessa posição foi o extermínio de inúmeras línguas. Rodrigues (1986) calcula que se falavam no que é hoje o território brasileiro, em 1500, cerca de 1.200 línguas, das quais restaram cerca 180. Em 2005, diz esse autor: ‘a redução de 1200 para 180 línguas indígenas nos últimos 500 anos foi o efeito de um processo colonizador extremamente violento e continuado, o qual ainda perdura, não tendo sido interrompido nem com a independência política do país no início do século XIX, nem com a instauração do regime republicano no final desse mesmo século, nem ainda com a promulgação da “Constituição Cidadã” de 1988. Embora esta tenha sido a primeira carta magna a reconhecer direitos fundamentais dos povos indígenas, inclusive direitos lingüísticos, as relações entre a sociedade majoritária e as minorias indígenas

pouco mudou. Graças à Constituição em vigor está havendo diversos desenvolvimentos importantes para muitas dessas minorias em vários planos, inclusive no acesso a projetos de educação mais específicos e com consideração de suas línguas nativas. Entretanto, ainda são grandes a hostilidade e a violência, alimentadas não só por ambições de natureza econômica, mas também pela desinformação sobre a diversidade cultural do país, sobre a importância dessa diversidade para a nação e para a humanidade e sobre os direitos fundamentais das minorias’ (idem, 01).”8 Na Constituição o tratamento da cultura e dos bens culturais decorre dos elementos que caracterizam o Estado brasileiro como Estado Democrático de Direito. Por isso, pode-se afirmar que a discussão pautada na diversidade cultural (e nos direitos e bens culturais desta decorrentes) tem sua fundamentação no texto constitucional, já que nosso sistema jurídico estabelece um Estado de direito cultural e indica a construção de um Estado democrático cultural9. Assim, embora a Constituição não defina o que é patrimônio cultural brasileiro, dispõe que o seu tratamento deve se pautar no respeito à diversidade e à liberdade e na busca da igualdade material entre e para os grupos formadores da sociedade brasileira, especialmente para os grupos desfavorecidos histórica, social e economicamente. Desse modo, as comunidades brasileiras falantes de línguas indígenas (Nheengatu e Guarani), afro-brasileiras (falante de Gira de Tabatinga-MG) e de imigração (Talian, Hunsruckkish e Pomerano) 10 encontram no texto constitucional a fundamentação legal para edição de normas e a implementação de medidas, instrumentos e ações que permitam que não somente se expressem em seus próprios idiomas nas re-

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Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras“, Revista Patrimônio, http:// www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08. 9 E o traço cultural democrático é estabelecido constitucionalmente, em especial: a) pelos artigos que versam sobre a cultura, sobre a necessidade de respeito à diversidade cultural brasileira e sobre a importância da tutela dos bens culturais que são referenciais para os grupos formadores da sociedade; e b) pela estruturação do Estado para a tutela dos valores culturais, com a colaboração da comunidade. A Constituição portuguesa também trata a matéria e o comentário da doutrina portuguesa cabe exatamente para a Constituição brasileira: “A salvaguarda e valorização do patrimônio cultural constitui uma preocupação partilhada por todos os segmentos em que se desdobra o amplo campus do direito cultural, o qual, tendo por base o que vem sendo designado por constituição cultural, se encontra polarizado em torno do Estado cultural que uma tal constituição suporta e que, bem vistas as coisas, é simultaneamente, um Estado de direito cultural, enquanto garante um conjunto de direitos e liberdades fundamentais pessoais de caráter cultural, e um Estado democrático cultural, enquanto se apresenta constitucionalmente empenhado na realização dos chamados direitos culturais.” José Casalta Nabais, Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural, p. 59, Coimbra, Editora Almedina, 2004. 10 Línguas indicadas por Maria Cecília Londres Fonseca, “A diversidade linguística no Brasil: considerações sobre uma proposta de política”, Revista Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=215, acesso em 25.04.08.

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lações de repercussão pública, mas que tenham a língua reconhecida como bem cultural brasileiro. A valorização da diversidade lingüística no Brasil não modifica a predominância da língua portuguesa nem permite se falar na possibilidade de oficialidade de pluralismo lingüístico no ordenamento jurídico brasileiro: a fala e a comunicação devem ser prioritariamente em português quando praticadas pelos órgãos públicos, nos espaços públicos e nas relações privadas com qualquer repercussão social ou pública, a menos que uma lei excepcione seu uso ou garanta a possibilidade de expressão em outra língua ou falar, com base na diversidade cultural. Desse modo, a língua portuguesa, além de ser o idioma nacional, por força da Constituição, também assume a posição de língua oficial, conforme disposto no art. 13 caput. O presente artigo tem por finalidade abordar a necessidade de se tratar o tema da língua e dos falares do Brasil como bens culturais que, em uma perspectiva de diversidade cultural, necessitam de instrumentos para sua tutela. Como a hegemonia da língua portuguesa não significa o afastamento, proibição ou rejeição da diversidade de línguas brasileiras faladas pelos grupos formadores da sociedade brasileira: línguas indígenas, línguas de imigração (alóctones) ou afro-brasileiras, a discussão do tema assume especial importância para os grupos falantes, que são minoritários e que têm na língua um dos bens culturais mais preciosos para a manutenção de sua identidade cultural.

2. Constituição brasileira, direitos culturais e diversidade lingüística 2.1. Os valores culturais na Constituição

No sistema constitucional brasileiro, a democracia tem como pressupostos os fundamentos

estabelecidos nos incisos I a V do art. 1º. Assim, a soberania popular, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa direcionam a forma de organização da sociedade brasileira e o modo de agir social. Além disso, cabe ao Estado brasileiro a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e, ainda, a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A declaração dos fundamentos e objetivos do Estado Democrático brasileiro é o reconhecimento jurídico da necessidade de desenvolvimento econômico e social e da existência de desigualdades em nosso país. A gama de valores indicada constitucionalmente a partir da concepção de uma sociedade democrática fornece um leque extenso de bens a serem protegidos, pelos planos e programas nacionais, regionais, estaduais e municipais.11 Dentre os bens e valores significativos para a sociedade brasileira estão os decorrentes dos direitos culturais. Assim, os direitos culturais que preenchem de significado a tutela cultural constitucional são: a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística e científica; o direito de criação cultural, compreendidas as criações artísticas, científicas e tecnológicas; o direito de acesso às fontes da cultura nacional; o direito de difusão das manifestações culturais; o direito de proteção das manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional; o direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens culturais, que passam a um regime especial de bens de interesse público.12

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Entre os valores constitucionais, vale destacar: a dignidade humana (consagrada princípio fundamental da República, art. 1º, III); os direitos sociais da educação, da saúde, do trabalho, do lazer, da segurança, da previdência social, da proteção à maternidade e à infância, da assistência aos desamparados (previstos no art. 6º); a ordem econômica que tem por objeto assegurar a todos existência digna (art. 170); a ordem social com objetivo de proporcionar o bem-estar e a justiça sociais (art. 193); a educação (art. 205); a garantia a todos do pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional (art. 215, § 1.º); a previsão de instrumentos para tutela do patrimônio cultural brasileiro pelo Poder Público em colaboração com a comunidade (art. 216, § 1.º); a ciência e a tecnologia (art. 218); a previsão do mercado interno como patrimônio nacional (art. 219); e o dever de proteger o meio ambiente para as presentes e futuras gerações (art. 225). 12 José Afonso da Silva, Ordenação Constitucional da Cultura, São Paulo, Ed. Malheiros, 2001, p. 51/52.

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Nesses direitos identificam-se duas ordens de valores culturais, ou nas palavras de José Afonso da Silva, dois sistemas de significações: “Ora, vê-se bem que na ordenação constitucional da cultura se encontram duas ordens de valores culturais, dois sistemas de significações: uma que são as próprias normas jurídico-constitucionais, por si sós repositórios de valores (direitos culturais, garantias de acesso à cultura, liberdades de criação e difusão cultural, igualdade no gozo dos bens culturais etc.); outra que se constitui da própria matéria normatizada: a cultura, o patrimônio cultural brasileiro, os diversos objetos culturais (formas de expressão; modos de criar, fazer e viver; criações artísticas; obras, objetos, documentos, edificações, conjuntos urbanos, sítios, monumentos de valor cultural).”13 As ordens de valores se complementam e interagem, necessariamente. Os direitos culturais, além de serem permanentemente repositório de valores dos bens culturais, são destes dependentes. Essa situação peculiar é bem nítida quando se trata de direitos lingüísticos e da língua como bem cultural: enquanto os direitos culturais lingüísticos são pautados na diversidade e têm sua tutela a partir dos valores de referência que portam, os falares e as línguas somente se firmam como bens merecedores de tutela, quando os direitos culturais da comunidade ou do grupo são reconhecidos. Por isso, as ordens culturais constitucionais estão permeadas pelas características da democracia e da diversidade cultural. Nesse aspecto, os sistemas de significação cultural que decorrem dos dispositivos constitucionais revelam e garantem o empenho do Estado e da sociedade para a realização dos direitos culturais. Essa realização ocorre na fruição das liberdades, nas escolhas e designação dos bens que são referên-

cia para manifestação e preservação da cultura dos vários grupos formadores da sociedade ou no acesso amplo aos bens culturais já estabelecidos. Os direitos culturais têm, na concepção constitucional, uma dimensão multicultural, consagrada pela interação sociedade-Estado na realização das tarefas que promovam tanto o exercício desses direitos, como a proteção e fruição dos bens culturais materiais e imateriais que lhe dão suporte. A concepção constitucional parte da referencialidade dos bens culturais e da diversidade cultural para a atuação do Poder Público e da sociedade em sua defesa: “O multiculturalismo permeia todos os dispositivos constitucionais dedicados à proteção da cultura. Está presente na obrigação do Estado de proteger as manifestações culturais dos diferentes grupos sociais e étnicos, incluindo indígenas e afro-brasileiros, que formam a sociedade brasileira, e de fixar datas representativas para todos esses grupos. Vislumbra-se a orientação pluralista e multicultural do texto constitucional no conceito de patrimônio cultural, que consagra a idéia de que este abrange os bens culturais referenciadores dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, e no tombamento constitucional dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. É a valorização da rica sociodiversidade brasileira, e o reconhecimento do papel das expressões culturais de diferentes grupos sociais na formação da identidade cultural brasileira.”14 A ordem de valor que interessa para o presente artigo, que aborda a tutela das línguas e falares do Brasil como bem cultural, é a ordem de valor que trata da vertente dinâmica da cultura: a cultura normatizada, especialmente o sig-

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José Afonso da Silva, ob. cit., p. 34. No mesmo sentido, Celso Ribeiro Bastos: “A proteção fornecida pela Constituição à cultura atinge duas modalidades fundamentais. A primeira é a liberdade ampla conferida a todos de pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes desta cultura. A segunda vem a ser a proteção que o Poder Público deve exercer sobre o chamado Patrimônio Cultural Brasileiro” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª Edição, Ed. Malheiros, p. 369, 1998). 14 Juliana Santilli, Patrimônio imaterial: proteção jurídica da cultura brasileira. In: III Seminário Internacional de Direito Ambiental. Cadernos do CEJ, Brasília, v. 21, 2002.p. 75.

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nificado jurídico do patrimônio cultural lingüístico e a garantia da diversidade na fruição deste bem. 2.2. A indicação constitucional para a atuação do Estado brasileiro na proteção da diversidade lingüística

O art. 215, caput, da Constituição Federal de 1988 determina que o Estado garantirá a todos o acesso às fontes da cultura nacional, apoiando, valorizando e incentivando a difusão das manifestações culturais. Ao Estado cabe uma atuação que possibilite que as manifestações culturais nacionais ou estrangeiras se desenvolvam no país. Mas, especialmente, incumbe ao Poder Público proteger as manifestações locais, regionais ou nacionais das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, bem como as de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, nos termos do art. 215, § 1º, da Constituição. A tutela do Estado, prevista na Constituição para as manifestações culturais, deve se revelar na prática de ações positivas para defesa da sua existência, valorização e difusão. Ou ainda, simplesmente, no fornecimento, pelo Poder Público, das condições essenciais para que as atividades culturais sejam praticadas com liberdade pelos grupos, num espectro de diversidade cultural. O reconhecimento e tratamento, pela Constituição, dos direitos culturais como direito fundamental e, a previsão do dever de atuação democrática na proteção e promoção dos bens culturais, conduz o Estado à obrigação de implementar ações e políticas públicas que podem ser relacionadas, no que tange ao direito cultural à diversidade lingüística, em quatro linhas de atuação: a) na proibição de discriminação, de indivíduos ou grupos, na fruição da língua como bem cultural, ou seja, no uso do falar ou da linguagem que seja portadora de referên-

cia cultural; b) na obrigação do Estado adotar medidas imediatas, especialmente nos âmbitos legislativo e executivo, para que os direitos lingüísticos e os falares ou línguas que servem de base para grupos culturalmente diferenciados (ou para a sociedade como um todo: o português) sejam promovidos e protegidos, inclusive com a previsão de ações afirmativas para os grupos étnicos que utilizam línguas e falares diversos do português; c) na obrigação de garantir um patamar básico (mínimo) de fruição aos direitos lingüísticos e à língua, pela qual os grupos se expressam; e d) na obrigação de progressividade e proibição de retrocesso no tratamento do tema.15 A diversidade cultural se refere à “multiplicidade de formas em que se expressam as culturas dos grupos e sociedades. Estas expressões se transmitem entre os grupos e a sociedade e dentro deles”.16 Desse modo, a previsão do dever de atuação democrática do Poder Público na proteção e promoção das línguas e falares do Brasil deve se pautar no valor simbólico que o bem representa para a identidade cultural da sociedade brasileira ou dos grupos minoritários e na dimensão interativa desse bem cultural, que pode contribuir para trazer à tona a diversidade lingüística existente no Brasil. Embora a Constituição faça menção expressa às comunidades indígenas, o direito à diversidade lingüística abrange todas as línguas faladas por brasileiros e, por isso, o desenvolvimento das políticas públicas deve atingir os diversos grupos falantes. Nesse sentido, vale trazer as ponderações de Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira:

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“A Constituição de 1988, como se disse antes, foi um passo importante nessa direção, no que tange às línguas indígenas, atribuindo ao índio o estatuto de cidadão brasileiro que tem direito a sua língua e a sua cultura. No entanto, ela

Conforme as obrigações relacionadas por Victor Abramovich e Christian Courtis para os direitos sociais. Para os autores as obrigações são: a proibição de discriminação, a obrigação de adotar medidas imediatas, a obrigação de garantir níveis essenciais de direitos e, a obrigação de progressividade e proibição de retrocesso (Los derechos sociales em debate democrático, Fundación Sindical de Estudios, p. 41/53, 2006). 16 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, art. 41, Unesco, 2005. A diversidade cultural se refere à “multiplicidade de formas em que se expressam as culturas dos grupos e sociedades. Estas expressões se transmitem entre os grupos e a sociedade e dentro deles”.

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silencia sobre as línguas alóctones. Além disso, a ecologia das relações sociais, entre elas as lingüísticas, abriga, hoje, demandas e questões advindas da presença das tecnologias de linguagem que requerem um novo posicionamento do Estado e da sociedade civil, e, portanto, novas formas de ação política. É no diálogo com essa configuração social que situamos o debate sobre as políticas de registro envolvidas no Livro de registro das línguas como patrimônio imaterial dentro do Programa de Registro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Ministério da Cultura do Brasil (MinC).” 17 As políticas públicas e os instrumentos para tutela do patrimônio cultural lingüístico devem considerar a diversidade cultural, a hegemonia da língua portuguesa – base unificadora do povo brasileiro - e a necessidade de valorização e de participação dos vários grupos formadores da sociedade brasileira, com atenção diferenciada para o fortalecimento da identidade cultural dos grupos etnicamente diferenciados. 2.3. A redefinição constitucional da cidadania cultural

Associado ao tratamento democrático da língua como bem cultural pelo Poder Público, está o dever de participação da sociedade na sua tutela. A busca pela integração da comunidade no processo de conservação e valorização do patrimônio cultural lingüístico, a começar pelo português, e a implementação de práticas democráticas na defesa do bem cultural exigem o respeito aos direitos básicos do indivíduo e da sociedade. Por isso, a participação do Estado e da coletividade, com a garantia de acesso aos instrumentos judiciais e extrajudiciais para proteção das línguas e falares do Brasil, seja a língua portuguesa, sejam as outras línguas pelas quais se

expressam os grupos minoritários, favorece o fortalecimento da cidadania cultural. Nas palavras de Carlos Frederico Marés de Souza Filho: “A novidade mais importante trazida em 1988, foi alterar o conceito de bens integrantes do patrimônio cultural passando a considerar que são aqueles ‘portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira’. Pela primeira vez no Brasil foi reconhecida, em texto legal, a diversidade cultural brasileira, que em conseqüência passou a ser protegida e enaltecida, passando a ter relevância jurídica os valores populares, indígenas e afro-brasileiros.”18 Para uma cidadania cultural, é necessário que a comunidade tenha a seu alcance meios judiciais ou extrajudiciais para tutelar o seu modo de expressão como bem cultural. A Constituição, ao estabelecer no § 1º do art. 216 instrumentos de proteção do patrimônio cultural brasileiro (os inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação) e, ainda se referir a “outras formas de acautelamento”, incumbindo à sociedade o dever de defesa dos bens culturais, traz, dentre outras conseqüências jurídicas, a extensão da titularidade da tutela dos bens culturais a todos integrantes da comunidade. O dever de atuação comissiva e de não omissão da sociedade na proteção da língua utilizada pelos grupos etnicamente ou culturalmente diferenciados assume, muitas vezes, um sentido de imprescindibilidade, em razão do traço de singularidade dos falares e da dificuldade de instrumentos formais para sua identificação e proteção. Desse modo, há uma clara ampliação constitucional dos legitimados ativos para propositura de ações judiciais individuais ou coletivas na defesa dos direitos lingüísticos e dos falares como bens culturais. Há também uma legitimidade dos integrantes da comunidade (administrados) para participação nos processos

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Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio, http:// www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08. 18 Carlos Frederico Marés, Proteção Jurídica dos Bens Culturais. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 1, n. 2, 1993, p. 23.

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administrativos, quando houver interesse do grupo “falante” de outra língua que não seja o português, especialmente em discussões sobre educação formal, comunicação escrita e compatibilidade entre língua portuguesa e outras línguas como forma de expressão dos brasileiros. Nesse esteio, a Constituição apresenta valores e diretrizes que proporcionam a redefinição da cidadania no tratamento do patrimônio cultural, dentre os quais: a) a ampliação do rol de legitimados ativos para a tutela das línguas e dos falares do Brasil como bens culturais (reconhecidos ou em potencial); b) a valorização das línguas e dos falares do Brasil a partir do significado que tenham e de sua referência para a comunidade falante; c) a indicação da necessidade de consideração da diversidade cultural na elaboração e implementação de políticas públicas culturais em relação a todos os grupos formadores da sociedade brasileira; e d) a afirmação da gestão participativa da sociedade nos assuntos relativos às línguas e aos falares diferentes do português. Se as diretrizes estão colocadas na Constituição, resta a atuação do Estado e da sociedade para tornar efetiva a diversidade lingüística. Como destaca Maria Cecília Londres Fonseca: “Ainda há muito trabalho a ser feito, mas, pelo menos, a questão está posta, e conta com o empenho de várias organizações e grupos da sociedade brasileira. Como no caso da valorização de nossa diversidade biológica, e de nossa diversidade cultural, esse passo vem contribuir para produzir um retrato mais matizado e complexo do Brasil, e sobretudo para o reconhecimento da contribuição que línguas praticamente desconhecidas da grande maioria dos brasileiros trazem para a nossa história e para o respeito de todos em relação aos seus falantes.” 19 Por isso, o exercício da cidadania cultural depende de uma política de redução de desigual19

dades e de um aparato jurídico-administrativo que possibilite a liberdade na utilização da língua que seja portadora de referência para o grupo culturalmente diferenciado. A comunidade deve também ter à sua disposição mecanismos que permitam sua efetiva participação na elaboração e no controle da realização das políticas públicas que versem sobre a matéria, valendo sempre destacar a oficialidade da língua portuguesa na compatilização da diversidade lingüística brasileira.

3. Direito ao patrimônio cultural lingüístico como direito fundamental No Estado Democrático brasileiro, o indivíduo (ou a comunidade) residente no país tem direito a preservar e ver preservados os elementos mais significativos de sua cultura e da cultura nacional para fruição presente e transmissão às próximas gerações. Desse modo, os direitos culturais lingüísticos são direitos fundamentais que se desenvolvem em uma dinâmica social em que instrumentos aceitos na estrutura do Estado Democrático de direito são utilizados com a finalidade de garantir sua fruição e seu resguardo. O patrimônio cultural brasileiro é constituído pelos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de fazer, criar e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (art. 216 da CF). A conceituação constitucional de patrimônio cultural brasileiro e a previsão do dever de tutela dos bens culturais pelo Estado, com a colaboração da sociedade, indicam uma ampliação na

Maria Cecília Londres Fonseca, “A diversidade linguística no Brasil: considerações sobre uma proposta de política”, Revista Patrimônio, http:// www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=215, acesso em 25.04.08.

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base de legitimados ativos e a obrigação do Poder Público em atuar positivamente (não ser omisso), no sentido de proporcionar a fruição e o acesso ao patrimônio cultural dentro de uma igualdade material. O reconhecimento do direito ao patrimônio cultural como direito fundamental ocorre na Constituição de 1988, com o estabelecimento de uma organização jurídico-política do Estado brasileiro que possibilita a criação e o fortalecimento de um aparato normativo e institucional que garante a liberdade e igualdade no exercício dos direitos culturais (plano normativo) e também que tutela os bens culturais (patrimônio cultural) como bens da vida, em uma perspectiva de interação Estado-sociedade para o desempenho dessa tarefa. Dessa forma, na atual Constituição, o direito ao patrimônio lingüístico é direito fundamental: a) pela estrutura normativa dos dispositivos que versam especificamente sobre a matéria, como a do artigo 215 (“O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional...”) e a do artigo 216, § 1º (com a previsão do dever de proteção e promoção dos bens culturais pelo Estado, com a colaboração da sociedade); b) pela colocação do direito ao patrimônio cultural intangível como pressuposto para o exercício dos outros direitos fundamentais, a começar pelo direito à vida digna e a se expressar com liberdade, a começar pela forma de expressão (nesse sentido, o direito ao patrimônio lingüístico é, também, garantia da base material para que muitos outros direitos individuais ou coletivos sejam exercidos em sua plenitude); e c) porque os direitos fundamentais estão espalhados em todo texto constitucional, sendo o rol do art. 5º meramente exemplificativo, por força do disposto nos seus parágrafos 2º e 3º. Os direitos lingüísticos, como os outros direitos fundamentais, necessitam além da garantia formal (prevista no sistema de justiça), de uma garantia real, que se revela pelo aparato jurídico-administrativo estabelecido para a tutela e fruição do patrimônio cultural. Uma das vertentes mais importantes da garantia real des-

ses direitos culturais é a garantia do acesso e fruição aos bens materiais e imateriais necessários para a sustentabilidade do bem, como bem de valor autônomo, que deve ser preservado para as próximas gerações. Nessa perspectiva, o direito ao patrimônio cultural lingüístico é um desdobramento dos direitos culturais, já que sua concepção pressupõe a diversidade lingüística (e sua fruição) e tem por base a liberdade e a educação. Assim, o direito do indivíduo, ou do grupo, em se expressar na língua que represente a sua identidade e sua memória decorre do traço de diversidade cultural que informa o sistema jurídico brasileiro. O direito fundamental ao patrimônio cultural lingüístico pode, também, ser analisado em duas dimensões: a) em uma vertente subjetiva, como direito do homem (ou do grupo que pertence) que pode ser invocado para limitar a atuação estatal; e b) em uma vertente objetiva, como direito à manutenção da língua e dos falares portadores de valor de referência cultural. O direito ao patrimônio cultural revela sua vertente subjetiva no direito de resistência do indivíduo (ou do grupo que pertence) à interferência estatal na sua liberdade de exercício cultural: desde as manifestações individuais cotidianas básicas, como a utilização da língua materna, a valorização da memória até as manifestações sociais essenciais para sobrevivência, como o exercício de atividade literária e de outras expressões ligadas à arte, a garantia de acesso aos bens culturais, o respeito aos direitos autorais, a garantia da conservação das bases materiais (por meio de registros, gravações, inventários, pesquisas cadastrais, digitalização etc) da língua portuguesa e das outras línguas (ou falares) do Brasil. Enquanto valor autônomo, o direito ao patrimônio cultural lingüístico, muda o foco na tratativa da seleção das línguas e falares que têm potencialidade para serem considerados bens culturais brasileiros. Pela dimensão objetiva20, o direito ao patrimônio cultural lingüístico é protegido como instituto que porta valores e direitos essenciais à estrutura da sociedade democrática. A proteção do patrimônio lingüístico está

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vinculada ao interesse da humanidade e da sociedade brasileira e se dá de forma autônoma, projetando-se nas relações privadas ou nas relações do indivíduo ou da coletividade com o Estado. Assim, o direito ao patrimônio cultural traz em seu bojo a vinculação dos operadores do direito ao seu teor, além de influenciar e direcionar a aplicação das normas infraconstitucionais, com a finalidade de maior penetração nas relações jurídicas. A indicação constitucional da oficialidade da língua portuguesa, de observância obrigatória no âmbito das relações públicas, pode se compatibilizar com a proteção da memória coletiva e com a construção da percepção social da existência de uma diversidade lingüística, apesar da hegemonia do português. Somente com o tratamento do patrimônio cultural lingüístico nessa perspectiva é possível atingir-se a finalidade de transmissão às gerações futuras do conhecimento cultural do passado, bem como de se garantir a produção de novos estudos e interpretações com base nas línguas e falares. Em sua dimensão objetiva, o direito fundamental ao patrimônio cultural lingüístico encontra seu maior desafio na dinâmica dos valores cotidianos essenciais para integração dos grupos minoritários, que utilizam outros falares diversos do português. Essa integração deve se pautar no respeito à diversidade cultural, sem prejuízo para sua identidade e com a valorização da memória coletiva dos grupos formadores da sociedade brasileira. Desse modo, com a acomodação de todos esses complexos elementos, pode-se trabalhar para a transmissão da diversidade lingüística como legado à geração futura. Por isso, no âmbito jurídico, a concepção do direito ao patrimônio cultural como direito fundamental repele a proteção patrimonial em função da homogeneidade da língua portuguesa para dar lugar à proteção em função da hegemonia do português e da diversidade cultural representada pelos outros falares do Brasil. Nessa perspectiva, o direito ao patrimônio cultural lingüístico é um direito fundamental e intergeracional que pode ser exercido nos planos individual ou coletivo. 20

No mais, a qualificação de direito fundamental ao patrimônio lingüístico significa que, para a efetividade deste direito, há necessidade da participação do Estado e da coletividade na sua defesa e em seu exercício, de acordo com as normas constitucionais, que indicam a oficialidade e a hegemonia da língua portuguesa, mas que não proíbe outros falares, desde que integrem a memória do grupo e sejam inerentes à identidade deste. O Estado, além da tarefa protetiva, deve também fornecer os meios necessários para o exercício desse direito, o qual deve se dar dentro da diversidade e do valor de referência cultural atribuído à língua ou falar como bem cultural, pelos grupos brasileiros detentores e utilizadores da linguagem diferente do português. Além disso, o reconhecimento do patrimônio cultural como direito fundamental resulta na incorporação imediata dos tratados e convenções internacionais que versem sobre a matéria pelo nosso ordenamento jurídico constitucional, por força do que prescrevem os parágrafos 1º, 2º e 3º do art. 5º da Constituição.

4. Línguas e falares do Brasil como bens culturais que integram o patrimônio cultural brasileiro 4.1. A língua portuguesa como bem cultural brasileiro

Por meio da língua portuguesa, a grande maioria dos brasileiros tem preservada sua memória e sua identidade. A hegemonia da língua portuguesa serve de base unificadora da nossa cultura e garante a fruição de outros direitos fundamentais. Além de ser o idioma nacional, por força da Constituição, também assume a posição de língua oficial. No art. 13 caput do texto constitucional é estabelecido que a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. Pode-se dizer que a língua portuguesa, como idioma oficial, tem prioridade sobre todos os

Daniel Sarmento, A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais: Fragmentos de uma Teoria, Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XII, p. 251/314, 2003.

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outros idiomas e falares e no território nacional, o português deve ser considerado o instrumento de comunicação por excelência, devendo a comunicação ser feita prioritariamente nessa língua21. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário devem promover e proteger, com a colaboração da comunidade, o bem cultural língua portuguesa, por meio de instrumentos nominados e outras formas de acautelamento e preservação. O Poder Legislativo contribui para a proteção da língua portuguesa mediante a propositura de diversos projetos de lei que tratem da proteção da língua portuguesa, bem como a incorporação destes projetos ao sistema jurídico brasileiro.22 Ao Poder Judiciário também cabe a tutela da língua oficial no exercício da atividade jurisdicional. É essa obrigação que perpassa os artigos 151 (que trata do dever do juiz de nomear intérprete para analisar documentos redigidos em língua estrangeira e para verter em português as declarações das partes e das testemunhas que não conhecerem o idioma oficial), 156 (que determina que o uso do português é obrigatório no processo), 157 (que apenas permite juntada de documentos redigidos em língua portuguesa se estiverem acompanhados de versão em português) do Código de Processo Civil e os artigos 193 e 223 do Código de Processo Penal.

O Poder Executivo protege o idioma oficial, utilizando-o obrigatoriamente em seus atos comunicativos internos e destinados ao público em geral. Cabe também à administração impor aos administrados que apresentem informações, relatórios e outros dados escritos que sejam úteis à sociedade, principalmente para participação em processos decisórios, em língua portuguesa. Por fim, os agentes privados nas relações em território brasileiro também têm obrigação de se comunicarem em língua portuguesa. Nesse sentido, foi proposta ação civil pública para tutela da língua portuguesa nas relações de consumo. A decisão que concedeu a liminar neste caso foi no sentido de que a língua portuguesa é elemento de afirmação da cultura e da unidade nacionais e por isso é obrigatória nas relações de consumo travadas no país23. A sensação de homogeneidade lingüística em nosso país, que parte da existência de uma língua (portuguesa) que se caracteriza como base unificadora da comunicação entre os brasileiros, não pode atingir os operadores do direito nem os órgãos (públicos ou privados) que lidam com a tutela dos bens e direitos culturais. Por isso, a indicação da língua portuguesa como idioma oficial não determina sua exclusividade nem significa homogeneidade. As comunidades indígenas podem utilizar suas línguas maternas no ensino fundamental

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José Carlos Barbosa Moreira, “Ação Civil Pública – Lei 7347/85 – 15 anos”. Coordenador Édis Milaré. A Ação Civil Pública e a Língua Portuguesa, p. 346. Editora Revista dos Tribunais. 2002. São Paulo. 22 Tramitam no Congresso Nacional diversos projetos de lei sobre o assunto. Tais como: PL-2646/1996 (proibindo o uso de língua estrangeira sem a correspondente tradução para a língua portuguesa na oferta e apresentação de produtos ou serviços, na sua publicidade, nos documentos decorrentes do seu fornecimento, nas embalagens destinadas ao mercado interno, bem como na sinalização visual de estabelecimentos), PL-1736/1996 (proibindo a utilização de língua estrangeira na identificação de estabelecimentos comerciais, bem como nos anúncios e nos rótulos de mercadorias), PL1840/1996 (dispõe sobre a obrigatoriedade de tradução para a Língua Portuguesa de expressões escritas em idioma estrangeiro nas obras literárias, técnicas e científicas), PL-2893/1997 (estabelecendo que toda mensagem escrita, falada ou audiovisual destinada a informação do público, deve ser formulada em português e corretamente corrigida, inclusive o teclado de computador), PL-1676/1999 (restringindo o uso de palavra em Língua Estrangeira ou “estrangeirismo”), PL-3288/2000 (dispõe sobre a obrigatoriedade de tradução para a língua portuguesa de indicativos e outros escritos em língua estrangeira e dá outras providências.), PL-1575/2003 (inclui parágrafo ao artigo 36 da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, Código de Defesa do Consumidor, para prever a obrigatoriedade da publicidade em língua portuguesa, e dá outras providências). 23 Cf Ação Civil Pública nº 2006.61.19.006359-5, 1ª Vara Federal de Guarulhos, com pedido de liminar, que o Ministério Público Federal ajuizou em face da União. Resumidamente, o MPF sustentou que: a) o uso indiscriminado de expressões estrangeiras nas relações de consumo, sem tradução, contraria o disposto no artigo 31 do CDC, o qual assegura que a oferta e apresentação dos produtos e serviços devem ser oferecidas em língua portuguesa; b) a conduta do fornecedor consistente em comunicar-se com o consumidor exclusivamente em língua estrangeira, ao menos nas hipóteses do artigo 31 do CDC, é contrária ao espírito da Constituição Federal, pois se trata de conduta antidemocrática e discriminatória, que exclui de mais de 90% da população o direito de entender claramente aquilo que se escreve nas vitrinas e anúncios de seu próprio país; c) o procedimento instaurado no MPF de Guarulhos nada tem de reacionário ou de xenófobo, caminhando apenas no campo da objetividade; d) não se pretende ressuscitar expressões imperiais, nem disciplinar o uso da língua nas artes, na fala do dia-a-dia ou em qualquer outro ramo da vida, em que deve prevalecer a liberdade de expressão; e) objetiva-se forçar o cumprimento do artigo 31 do CDC e proibir que a comunicação e o oferecimento de informações referidos no dispositivo sejam feitos exclusivamente em língua estrangeira; f) para democratizar o procedimento, foram adotadas as seguintes iniciativas: entrevistas, endereço eletrônico e oitiva de Pasquale Cipro Neto. A liminar foi concedida pelo Exmo. Juiz Federal Antônio André Muniz Mascarenhas de Souza.

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“Diante dessas evidências, chegamos necessariamente a uma conclusão compatível com as circunstâncias extralingüísticas que foram favoráveis a esse processo: o português do Brasil, naquilo em que ele se afastou do português de Portugal, é, historicamente, o resultado de um movimento implícito de africanização do português e, em sentido inverso, de aportuguesamento do africano sobre uma matriz indígena préexistente e mais localizada no Brasil. Assim sendo, o português brasileiro descende de três famílias lingüísticas: a família Indo-Européia que teve origem entre a Europa e a Ásia, da qual faz parte a língua portuguesa; a família Tupi, de línguas faladas pelo indígenas brasileiros e que se espalha pela América do Sul; e, por fim, a família Níger-Congo que teve origem na África subsaariana e se expandiu por grande parte desse continente. Conseqüentemente, povos indígenas e povos negros, ambos marcaram profundamente a cultura do colonizador português que se estabeleceu no Brasil, dando origem à uma nova variação da língua portuguesa – mestiça, brasileira.” 27

(art. 210, § 2º, Constituição). Além disso, não se exige dos estrangeiros que conheçam o português para transitarem pelo território brasileiro e também não é proibido o ensino e a prática de outros idiomas no Brasil, uma vez que isso seria contra o direito fundamental à liberdade das pessoas24. O art. 215, § 1°, da CF estabelece que o Estado protegerá as manifestações culturais dos outros grupos participantes do processo civilizatório nacional25. Assim, o emprego de idioma distinto do oficial deve se fundar em razão especial, enquanto o português dispensa tal justificação. Enquanto os direitos fundamentais de expressão garantem, no âmbito das relações sociais privadas no país, a possibilidade da utilização de outros idiomas, persiste a obrigatoriedade de utilização, pelos agentes públicos e privados, da língua portuguesa na comunicação pública26. 4.2. As outras línguas e falares do Brasil

Por meio da língua e dos falares do Brasil, os integrantes da sociedade brasileira expressam e transmitem os valores essenciais para o desenvolvimento das atividades e das relações cotidianas em nosso país. Como já abordado, a língua portuguesa é a base unificadora da cultura brasileira, sendo também o veículo por meio do qual a grande maioria dos brasileiros tem preservada sua memória e sua identidade. E não poderia ser diferente: o português falado no Brasil é o resultado de processo de acomodação das línguas faladas pelos grupos formadores da sociedade brasileira, sendo uma variação da língua portuguesa de Portugal:

Por isso, a hegemonia da língua portuguesa não deve ser entendida como proibição de grupos culturalmente diferenciados se expressarem em falares ou línguas maternas, as quais são essenciais para sua cultura e para fruição de seus direitos fundamentais. No plano coletivo, se a língua dos grupos de brasileiros for portadora

24

Nelson Nery Júnior, ao tratar do princípio do devido processo legal (due process of law) em sentido genérico (que é o sentido do art. 5º, LIV, da Constituição da República), cita o exemplo de sua aplicação no caso em que Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em 1923, ser inconstitucional a lei estadual que proibia o ensino em outras línguas que não o inglês, incidindo a proibição tanto para as escolas públicas quanto para as particulares. Nelson Nery Junior, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 8ª Edição, Revista dos Tribunais, p. 63/64, 2004. 25 Quanto à correção dos desrespeitos à língua portuguesa como “língua oficial” e como integrante do patrimônio cultural brasileiro, nos termos do art. 1º, IV, da Lei 7.347/85, é cabível ação civil pública, uma vez que se trata de interesse difuso. O interesse na observância do artigo 13 da Constituição da República é um interesse difuso, pois é transindividual, indivisível, cujos titulares são indeterminados e ligados pela circunstância de fato de habitarem país que adota certo idioma oficial. Segundo o autor, pode-se pedir que se substitua denominação noutra língua por denominação em português, ou para que se acrescente esta àquela. Dentre as associações civis legitimadas para propor a ação civil pública estão as academias de letras – a brasileira e outras congêneres (José Carlos Barbosa Moreira, A Ação Civil Pública e a Língua Portuguesa, p. 349). 26 José Carlos Barbosa Moreira, “Ação Civil Pública – Lei 7347/85 – 15 anos”. Coordenador Édis Milaré. A Ação Civil Pública e a Língua Portuguesa. Editora Revista dos Tribunais. 2002. São Paulo. A Ação Civil Pública e a Língua Portuguesa, p. 346 e 347. 27 Yeda Pessoa de Castro, “Das línguas africanas ao português brasileiro”, Revista Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08.

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de valores de referência dos grupos formadores da sociedade brasileira, pode ser considerada bem cultural integrante do patrimônio cultural brasileiro. Essa a concepção constitucional de dimensão multicultural na formação e tutela do patrimônio cultural brasileiro é consagrada pela interação sociedade-Estado na realização das tarefas que promovam tanto o exercício desses direitos como a proteção e fruição dos bens culturais materiais e imateriais que lhe dão suporte. A referencialidade dos bens culturais linguísticos e da diversidade cultural tem, portanto, fonte na Constituição e indicam a atuação do Poder Público e da sociedade em sua defesa: “O multiculturalismo permeia todos os dispositivos constitucionais dedicados à proteção da cultura. Está presente na obrigação do Estado de proteger as manifestações culturais dos diferentes grupos sociais e étnicos, incluindo indígenas e afro-brasileiros, que formam a sociedade brasileira, e de fixar datas representativas para todos esses grupos. Vislumbra-se a orientação pluralista e multicultural do texto constitucional no conceito de patrimônio cultural, que consagra a idéia de que este abrange os bens culturais referenciadores dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, e no tombamento constitucional dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. É a valorização da rica sociodiversidade brasileira, e o reconhecimento do papel das expressões culturais de diferentes grupos sociais na formação da identidade cultural brasileira.”28 Não há dúvida que se pode falar em línguas distintas da língua portuguesa como línguas brasileiras e como bens culturais integrantes (ou potencialmente integrantes) do patrimônio cultural brasileiro. As línguas faladas pelos brasileiros que integram as comunidades indígenas, remanescentes de quilombos ou descendentes de imigrantes certamente se enquadram no concei28

to de bem cultural supra, por serem representativas e identificadoras da própria cultura dessas comunidades. Desse modo, duas significações decorrem da utilização da linguagem falada como forma de manifestação e comunicação, com consequências jurídicas diversas: a) a significação normativa, expressa nos direitos relativos à liberdade; e b) a significação material, que se expressa na tutela da língua como bem cultural que integra o patrimônio brasileiro. Essa tutela tem raiz no art. 216, I da Constituição que arrola as “formas de expressão” como elemento integrante desse patrimônio. Nesse sentido, pode-se falar em línguas distintas da língua portuguesa como bens que integram (ou têm potencialidade para integrar) o patrimônio cultural brasileiro desde que sejam portadoras de referencialidade, isto é: estejam ligados à memória, ação ou identidade dos grupos formadores da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, essas línguas e falares devem ter uma continuidade histórica e uma projeção intergeracional que justifiquem a atenção do Estado e a adoção de políticas públicas para sua tutela. Nesse enfoque, além das línguas indígenas e africanas, as línguas de imigração faladas no Brasil devem ter atenção do poder público não somente por expressarem materialmente os direitos linguísticos, mas também porque os “falares dos imigrantes”, se não absolvidos na língua portuguesa, têm presentes elementos que se caracterizam como forma de expressão ligada à memória, identidade e ação de uma grupo formador da sociedade brasileira. Além de integrarem (ou poderem integrar), o patrimônio cultural brasileiro, as outras línguas brasileiras exigem, enquanto bens culturais, um aparato instrumental as tutele, que garanta a sua fruição pela geração presente e pelas futuras gerações e que as torne acessíveis e conhecidas pela maioria dos brasileiros que somente tem o português como língua brasileira. Mas a aceitação de outros falares como bens culturais brasileiros não elimina a dificuldade da atividade de identificação de referências cul-

Juliana Santilli, Socioambientalismo e novos direitos. Proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 75.

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turais que fundamentam a proteção da língua diversa do português bem cultural significativo para a sociedade brasileira. Por isso, vale destacar que, além do saber (do critério técnico), há também a questão do prestígio de um grupo a partir da preservação das marcas de sua identidade e dos vestígios de sua cultura, de acordo com as suas percepções e não pelo olhar do grupo dominante: “Como o português tornou-se a língua oficial e nacional do Brasil, sua relação com as línguas indígenas e africanas está ligada a um processo caracterizado por sua proeminência política, de poder, da língua portuguesa relativamente a esse conjunto de línguas. E nessa medida a língua portuguesa é significada como língua materna de todos os brasileiros, mesmo que não o seja de fato. Há brasileiros que não falam português. E esse cenário, que caracteriza o espaço de enunciação brasileiro, vem se modificando no decorrer dos séculos e faz parte do embate político da população brasileira, mesmo que sua maioria não tenha disso nenhuma consciência.” 29 Por isso, os instrumentos e atuações dos setores públicos e privados tanto para a seleção dos bens que integram o patrimônio cultural brasileiro, quanto para sua promoção e preservação, embora devam se pautar na atualidade e se desenvolver para atenderem ao interesse da geração presente, não podem deixar de ter a perspectiva da equidade intergeracional e da desigualdade entre os grupos falantes e a maioria dos brasileiros têm a língua oficial. Além disso, quando a língua ou falar brasileiro seja considerado idioma oficial e corrente para a comunidade falante, o português deve ser sempre considerado como segunda língua. Portanto, para esse processo formal de aceitação de línguas brasileiras diversas do português, há ainda necessidade de pronunciamento formal do Estado, por um dos três poderes, de excepcionalização da língua portuguesa como primeira 29

língua. Essa formalização não significa controle do Estado no exercício dos direitos linguísticos nem no teor do bem línguistico diverso do português, mas sim a garantia de existência de um aparato formal mínimo para a fruição do bem, pelas próprias comunidades falantes, nos espaços públicos ou nas relações privadas de repercussão pública. Desse modo, os estudos, a sistematização dos dados e a utilização dos instrumentos nominados ou não para tutela dessas línguas devem considerar a fruição imediata pelos grupos falantes e o acesso e uso das gerações futuras.

5. Instrumentos de tutela das línguas e falares brasileiros A perspectiva jurídica para consideração dos bens culturais como bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro é a de que os mesmos preencham certas condicionantes, sendo preliminarmente portadores dos valores de referência ligados à memória, identidade e ação dos grupos formadores da sociedade brasileira. Desse modo, a simples caracterização de um bem como bem cultural merecedor de tutela jurídica não basta para a utilização de instrumentos protetivos próprios para a defesa dos bens culturais brasileiros. Além da caracterização da língua ou falar como bem cultural brasileiro, vale ressaltar que todo o processo de seleção dos bens, elaboração e implementação das políticas públicas que abordem a questão lingüística e a sua diversidade no Brasil devem partir da previsão constitucional da língua portuguesa como língua oficial. A discussão acerca dos instrumentos protetivos cabíveis para os bens culturais lingüísticos, bem como o ganho efetivo para as comunidades falantes dependem da compatibilização entre a oficialidade do português e abertura de espaços públicos que abriguem a diversidade lingüística e comportem sua fruição pela comunidade falante, num processo que lhes garanta a manutenção de sua identidade cultural.

Eduardo Guimarães, “O multilingüismo e o funcionamento das línguas”, Revista Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08.

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Como bem cultural imaterial, as línguas e falares brasileiros dispõem de diversos instrumentos jurídicos para sua tutela, não somente os nominados pela Constituição (art.216, § 1º), mas também por todos os meios acautelatórios cabíveis, inclusive pela propositura de ações judiciais. Os instrumentos mais importantes para a tutela dos falares e idiomas brasileiros são aqueles que atingem diretamente a comunidade falante e lhes oferece uma aparato para que seus direitos lingüísticos sejam exercidos. Desse modo, o registro, o inventário das línguas faladas, a guarda dos dados lingüísticos, em meios audiovisuais e escritos, a produção de relatórios, a digitalização de dados colhidos em pesquisas acadêmicas e a elaboração e implementação de uma política educacional que acolha a diversidade lingüística, voltada especialmente para a comunidade falante, mas também leve em consideração a necessidade de dar conhecimento da existência de uma diversidade de línguas brasileiras à maioria da população (que não conhece os outros falares de seu país e de seus conterrâneos), são alguns instrumentos a serem utilizados . Neste artigo abordaremos o Registro como instrumento protetivo do bem cultural imaterial “língua”.

6. Registro de línguas e falares brasileiros como patrimônio cultural brasileiro O registro é um instrumento de gestão do patrimônio cultural que pode ser utilizado tanto pela sociedade como pelo Poder Público. Porém, com a regulamentação pelo Decreto nº 3.551/2000, que criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e instituiu o registro de bens culturais que constituem o patrimônio cultural brasileiro, o registro passou ser a entendido como instrumento administrativo específico para tutela do patrimônio imaterial. 30

Desse modo, o Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro tem o registro como o instrumento administrativo específico para sua tutela, que surge para proteger os conhecimentos produzidos coletivamente, que ultrapassam o plano individual, já que são gerados em determinados contextos culturais e históricos30 e se caracterizam pela repercussão social. Sem ênfase nos direitos de natureza patrimonial e afastando o bem imaterial da possibilidade de apropriação indevida por um grupo ou comunidade no momento de sua fruição, o instrumento do registro busca valorizar e promover o bem cultural sem suporte material, harmonizando, com sua inscrição, os diversos interesses para que este possa servir de recurso cultural a ser compartilhado por toda a sociedade brasileira. A atuação do Poder Público em relação aos bens imateriais, inclusive no procedimento administrativo de seleção e registro, deve ser no sentido de respeitar a liberdade de manifestação ou expressão cultural da comunidade, de acordo com os valores e princípios estabelecidos constitucionalmente. A intervenção do Estado em relação aos bens imateriais se justifica para promoção do bem, promoção que nessa seara se realiza por meio de atuação que evite manipulações e previna ou corrija distorções, as quais sempre inviabilizam ou prejudicam a existência ou a livre fruição do bem intangível31. O procedimento de registro, nos termos do Decreto nº 3.551/2000 culmina com a inscrição do bem imaterial em Livros de registros, dos quais quatro deles estão nominados atualmente: Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro das Celebrações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livro de Registro de Lugares. Além dos livros nominados, podem-se abrir outros livros, para registro de bens que não se enquadrem nesses. É o caso dos bens lingüísticos, que ainda não têm o Livro de Registro de Línguas, embora o pedido de criação tenha sido encaminhado ao IPHAN em 2004, pelo então presidente da Comissão de Educa-

Conforme Juliana Santilli, Patrimônio Imaterial: Proteção Jurídica da Cultura brasileira, III Seminário Internacional de Direito Ambiental. Série Cadernos CEJ, volume 21, Brasília 2002, p. 75.

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ção e Cultura da Câmara dos Deputados, Sr. Carlos Abicalil, com assessoria do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística (Ipol). A partir desse pedido, foi realizado em 2006 um seminário para tratamento do tema sob a perspectiva patrimonial. Neste seminário, a discussão de critérios e procedimentos para o registro contou com a participação do Poder Público de maneira mais sistematizada, com a formação de um grupo interinstitucional que trabalharia na apresentação de diretrizes para criação do Livro de registro das línguas. O grupo de trabalho pautou-se em três linhas de atuação para estabelecer as diretrizes do Registro das línguas brasileiras como bens culturais: a) a promoção do direito às línguas; b) a instalação de políticas de registro e circulação das línguas; e c) a elaboração de equipamentos - instrumentos e dispositivos – articulados às políticas lingüísticas.32 O Grupo de trabalho mencionado entendeu que a realização de inventário das línguas brasileiras - procedimento mais rápido que abrangeria todas as línguas faladas pelos brasileiros seria uma fase antecedente necessária ao Registro, posto que “o registro acrescentaria aos direitos auferidos pelo Inventário ainda uma explicitação da contribuição específica daquela língua e daquela comunidade lingüística na construção da cidadania plural brasileira.” 33 Certamente a realização do Inventário preencheria a lacuna da dicção oficial sobre a natu-

reza jurídica do falar como bem cultural. Porém, esse não pode ser o único instrumento de seleção da língua como bem cultural. A dicção do Estado pode vir por meio da atuação dos poderes legislativo, executivo ou judiciário. Desse modo, o pré-requisito para instauração do procedimento administrativo de Registro deve ser a conformação superficial da língua falada às exigências do próprio Decreto nº 3.551/2000, com a apresentação de indícios e traços referenciais do idioma permitam a continuidade do procedimento. Dessa forma, o procedimento de registro da língua terá tramitação no IPHAN, que deve instruí-lo e emitir parecer final que, publicado em Diário Oficial, poderá ser contestado no prazo de 30 dias. A instrução deve ser feita, a princípio pelo requerente, o qual deve instruir o processo com a descrição pormenorizada do bem, acompanhada de toda a documentação correspondente, devendo destacar os elementos que lhe sejam culturalmente relevantes. Mas ao IPHAN cabe a tarefa de subsidiar o requerente com todas as informações e dados que possa produzir sobre o bem.34 Além do IPHAN, participa do procedimento o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que se manifestará acerca do pedido de registro, após sua instrução, emissão de parecer pelo IPHAN, decurso de prazo para sua contestação e juntada das manifestações da comunidade sobre o bem35. Caso o Conselho Consultivo concorde com o registro, o IPHAN concederá ao bem o título de “Patri-

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“A intervenção pública na cultura serve para torná-la livre”, cf. Michele Anis, citado por José Afonso da Silva, Ordenação Constitucional da Cultura, p. 210/211. José Afonso, com base na doutrina de Michele Anis, complementa que a “promoção cultural tem por escopo corrigir as disfunções provenientes da relação que a cultura entretece com a praxe, descondicionando-a dos influxos que distorcem a livre expressão” (ob. cit, p. 211). 32 Conforme Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08. Nesse sentido, os autores explicam: “Ao estabelecer uma política de registro nesses termos, estamos trazendo para o debate o fato de que o reconhecimento jurídico, embora seja fundamental, não é em si suficiente para promover um espaço multilingüe. Essa promoção requer políticas de implementação de usos das línguas, de abertura de espaços para que elas se legitimem, para que os falantes se posicionem, se projetem identitariamente. Desse modo, o registro como política no sentido aqui posto estabelece para as línguas dois patamares de significação: o de registro como reconhecimento jurídico e como instrumento de documentação, acervo e circulação.” 33 Conforme Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08. Nesse sentido, os autores explicam: “Ao estabelecer uma política de registro nesses termos, estamos trazendo para o debate o fato de que o reconhecimento jurídico, embora seja fundamental, não é em si suficiente para promover um espaço multilingüe. Essa promoção requer políticas de implementação de usos das línguas, de abertura de espaços para que elas se legitimem, para que os falantes se posicionem, se projetem identitariamente. Desse modo, o registro como política no sentido aqui posto estabelece para as línguas dois patamares de significação: o de registro como reconhecimento jurídico e como instrumento de documentação, acervo e circulação.” 34 Cf. art. 3º, § 3º, do Decreto em comento. Nesse sentido Paulo Affonso Leme Machado:” As unidades do IPHAN ou qualquer órgão do Ministério da Cultura poderão contribuir para a formação do procedimento administrativo, assim como entidade pública ou privada que detenha conhecimentos específicos sobre a matéria” Ob. Cit, p. 916 . 35 Conforme, o art. 3º, §§ 4º e 5º, do Decreto em comento.

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mônio Cultural do Brasil”36. Os atos administrativos finais de registro e de concessão do título serão objeto de ampla divulgação e promoção pelo Ministério da Cultura. Se ao Ministério Cultura deve assegurar ao bem registrado a documentação por todos os meios técnicos admitidos, cabendo ao IPHAN a manutenção do banco de dados com o material produzido durante a instrução do processo37, quando o bem intangível candidato a patrimônio brasileiro não possuir suporte material, como é o caso da língua falada, devem-se buscar contribuições com registro gráfico, sonoro, audiovisual ou outro para efeitos de conhecimento, preservação e valorização, de outras associações ou mesmo os moradores da cidade e indivíduos, nacionais ou estrangeiros que tiveram contato com o bem.38 O processo de seleção de outros falares ou línguas brasileirias, como outros processos de seleção de bem intangível, é sempre singular, ainda que lastreado pelas condições estabelecidas no art. 1°, § 2°, para se deferir ou não a inscrição no registro (continuidade histórica e relevância nacional) e por dados e pareceres de caráter técnico. Acerca dos fundamentos para identificação dos bens imateriais a serem selecionados, o IPHAN explica: “A identificação desses bens culturais imateriais deveria se dar, portanto, a partir de sua relevância para a memória, identidade e formação da sociedade brasileira. Também foi visto como fundamental a sua continuidade histórica, ou seja: que fossem reiterados e transformados e atualizados, a ponto de se tornarem referências culturais para

comunidades que as mantêm e as praticam.”39 O procedimento está sujeito à influência dos diversos setores da sociedade e dos reflexos socioeconômicos conjunturais. Assim, a decisão pelo registro de uma língua como bem cultural é sempre produto do tempo presente. Atualmente a diversidade lingüística é tema que precisa ser discutido e aprofundado, sob pena da extinção, em curto espaço de tempo, das línguas brasileiras ainda faladas. Por isso, o registro serve como política cultural a ser implementada (ou continuada) em relação ao bem. A realização da política lingüística por meio do Registro deve ampliar a tutela todas as comunidades falantes cujos idiomas ou falares se enquadrem como bens culturais brasileiros: “A política de registro das línguas reforça a afirmação de que os cidadãos falantes das línguas brasileiras têm o direito a mantê-las, em conformidade com o que reza a Declaração universal dos direitos lingüísticos, elaborada sob os auspícios da Unesco (Barcelona, 1996), direito este reconhecido aos índios pela Constituição de 1988. Mas contemplá-la pela abertura de um livro de registro que resguarde as línguas como patrimônio imaterial da nação, estende esse direito a todos os brasileiros falantes de todas as línguas. E o amplia, na medida em que tratando de registro de línguas brasileiras, abrange todas as línguas, e não somente as indígenas. (...)

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Os bens são agrupados por categoria e registrados em livros, classificados em: Livro de Registro dos Saberes, para os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro de Registro de Celebrações, para os rituais e festas que marcam vivência coletiva, religiosidade, entretenimento e outras práticas da vida social; Livro de Registros das Formas de Expressão, para as manifestações artísticas em geral; e Livro de Registro dos Lugares, para mercados, feiras, santuários, praças onde são concentradas ou reproduzidas práticas culturais coletivas. 37 Decreto em comento, art. 6°, I. Destaca Carlos Frederico Marés de Souza Filho que: “Faltou ao Decreto a caracterização da criação de um suporte específico para o bem cultural imaterial sem suporte. Esta é uma questão delicada. Estes bens têm como característica a ausência de suporte material. Entretanto os meios de que se dispõe hoje, uma vez definida a importância do registro, deveria ser obrigatória a gravação de som ou imagem, ou ambos, da prática cultural de determinado momento. Isso significa a criação de um suporte específico, demonstrativo do que é, ou era naquele momento histórico, a manifestação cultural registrada”. Mas, a ausência de indicação expressa não inviabiliza o disposto no art. 6°, I e II, do Decreto, cabendo ao Ministério da Cultura e ao IPHAN o estabelecimento obrigatório do suporte físico. 38 No mesmo sentido, de participação de indivíduos ou grupos na formação da documentação, cabe ao IPHAN promover seu registro adequado, sempre que se trate manifestações culturais que associem suportes materiais diferenciados. 39 Os sambas, as rodas, os meus e os bois – A trajetória da salvaguarda do patrimônio imaterial no Brasil: 1936-2006. IPHAN, 2006, p. 18.

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O registro, por sua vez, produz um novo circuito de significação social dessa produção, interagindo com as tecnologias de linguagem. Nessa interação, os sentidos e as formas de registro devem ser negociados, construídos. Nesse processo, a língua deixa de ser mero objeto/ conteúdo de ensino para se tornar instrumento de leitura e compreensão do mundo, de posicionamento dos sujeitos, de produção de argumentos e de tecnologias.” 40 Por fim, vale lembrar que as medidas voltadas para a promoção e fomento das manifestações linguísticas, pelos órgãos públicos, devem ser sempre iniciativas complementares indispensáveis à proteção propiciada pelo Registro ou por outros instrumentos protetivos. Nesse sentido, vale trazer novamente as ponderações Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira: “A perspectiva do registro também fortalece o lastro das relações sociais e as formas de representação das comunidades lingüísticas. A esse respeito, e a título de exemplo, foram encaminhados alguns pedidos para registro do talian (língua de imigrantes italianos) ao Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, o que caracteriza ações pontuais na direção de proposta mais ampla do livro das línguas. No entanto, seu acolhimento e desenvolvimento dentro de uma política de registro reorganiza o estatuto de representação dessa língua, na medida em que esta, como qualquer outra, deve ser capaz de especificar-se como uma língua valorando – e modificando, se for o caso - suas demandas face às de outras comunidades lingüísticas. Verificamos, desse modo, que a política de registro tem um potencial organizador das comunidades lingüísticas, porque estas deverão se nomear e negociarem entre si e com as instâncias 40

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administrativas e políticas produtoras de equipamentos (instrumentos e dispositivos) as condições desejadas para sua existência e para sua circulação.” 41 Após o procedimento estabelecido no Decreto, a língua será reconhecida administrativamente como bem cultural brasileiro e inscrita no Livro de Registros de Línguas brasileiras. Com a inscrição, receberá o título de “Patrimônio Cultural do Brasil”.

6. Conclusões Embora o Brasil não seja um país que admita pluralidade lingüística e a língua portuguesa seja a língua oficial e hegemônica, as características do Estado Democrático brasileiro permitem a diversidade lingüística e previsão de cooficialidade de outras línguas e falares brasileiros, sejam porque estes exprimem o direito fundamental lingüístico, seja porque são bens culturais brasileiros. Desse modo, se em matéria patrimonial é certo afirmar, de modo categórico que no sistema jurídico brasileiro, após a Constituição de 1988, a oficialidade cedeu lugar à referencialidade e a hegemonia deu lugar à pluralidade cultural, no caso dos bens lingüísticos, a língua portuguesa é a língua oficial e pode ser, em situações excepcionais e previstas legalmente, compatibilizada com outras línguas e falares do Brasil (que podem ser co-oficiais). Por isso, a hegemonia do português não cede espaço para a pluralidade, mas sim para a diversidade lingüística, permitindo que os falares dos brasileiros que integram as comunidades culturalmente diferenciadas (formas de expressão, modos de fazer, viver) sejam tratados como bens culturais que integram (ou podem integrar) o patrimônio cultural brasileiro. A diversidade lingüística, decorrente da concepção constitucional de diversidade cultura,

Conforme Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08. Conforme Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras”, Revista Patrimônio, http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=211, acesso em 25.04.08.

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encontra fundamento na valorização dos bens que sejam importantes para a memória, a identidade e a ação dos grupos formadores da sociedade brasileira. A proteção jurídica da diversidade cultural significa o direito de participação de todos os grupos formadores da sociedade brasileira, especialmente dos que sejam étnica ou culturalmente diferenciados e se caracterizem como grupos minoritários, no acesso e fruição aos bens culturais. O sentido jurídico da diversidade também embasa o estabelecimento de políticas públicas diferenciadas, com previsão

de ações afirmativas que possibilitem a igualdade material entre os grupos formadores. O processo de inserção de outras línguas brasileiras em espaços em que a língua portuguesa tem hegemonia, exige a colocação do aparato administrativo à disposição da comunidade ou do individuo. A atuação do Estado deve ser centrada na necessidade de criação e oferta de estruturas que garantam a manutenção do falar da comunidade numa perspectiva intergeracional.

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