Cidadania de Sofá (1)

July 24, 2017 | Autor: A. Marques-Guedes | Categoria: Political Sociology, Political Participation, Political Theory, Portuguese Studies, Politics, Portugal
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Domingo 8 JUNHO 2008

Cidadania de

Participação cívica é estimulada por novas tecnologias ao permitirem a ausência de um comprom apelo chegou pelo correio electrónico. Exortando ao boicote a três marcas de combustíveis que, juntas, detêm cerca de 80% do mercado nacional, invadiu as máquinas ligadas à Internet no final de Maio. Tais mensagens – uma primeira, muito tosca e pejada de erros ortográficos, e a segunda, já com produção gráfica q.b. e a inserção dos logótipos das empresas-alvo — incitavam o receptor, e putativo consumidor, a não frequentar aquelas gasolineiras nos dias 1, 2, e 3. O intuito seria infligir prejuízos tais que as obrigassem a descer os preços; a lógica implícita era a de que, dada a posição dominante da BP, Galp e Repsol, a deflação daquelas suscitaria um efeito dominó que levaria à reacção global do mercado doméstico nesse sentido. Não colheu. Segundo Filipa Ferreira, da Galp Energia, “o alegado boicote não teve repercussões económicas”. Mas concedeu que um caso assim “não é irrelevante, é sempre encarado com preocupação e objecto de reflexão”. Não só das empresas visadas, mas eventualmente de todas as instituições, de todas as instâncias legitimadas de poder e representação. Porque, mais do que a questão económica e o êxito ou fracasso da mobilização, interessa a iniciativa e o método.

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Participação cívica ampliada facto de o boicote ter sido proposto e pela forma como o foi, e de alguém ter aderido, é, em si mesmo, significativo”, alerta José Manuel Mendes, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. A difusão generalizada de “mails” e mensagens de telemóvel (SMS) mobilizadores de acções espontâneas de massas no limiar da indignação implica uma nova era no âmbito da cidadania e da participação cívica. Com consequências ainda imprevisíveis. Mas que já fez vítimas. O paradigma será a derrota para a reeleição do então chefe do Governo espanhol, José Maria Aznar, em Março de 2004. Apesar do desempenho económico ímpar do país, os eleitores não lhe perdoaram a omissão de que os atentados de 11 de Março em Madrid haviam sido cometidos por terroristas islâmicos — motivados pelo apoio de Espanha aos EUA na invasão do Iraque — e não pela ETA. A mentira foi sustentada pelos media estatais, como a TVE, e por diários insuspeitos como “El País”. A revelação do engodo pela rádio Cadena Ser foi, porém, imediata e exponencialmente ampliada pela difusão de SMS apodando Aznar de “mentiroso”, que cada destinatário remetia depois para os seus contactos di-

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Multidões instantâneas ■ Novo fenómeno

Felizmente, a capacidade de recrutamento das TIC comporta também um lado lúdico, com os chamados “flash mob” (”multidão instantânea”). Tratase de um evento onde um grupo de pessoas chega de repente a um lugar público, e ali estabelece coreografias, sem sentido aparente e apenas por entretenimento. ■ Origem do lúdico

O fenómeno começou em 2003, quando as pessoas souberam, pela Internet, do evento denominado “projecto mob”, em Nova Iorque. Após reunirem-se em Manhattan, receberam instruções adicionais e um grupo de quase 100 pessoas convergiu para a secção de tapetes da loja Macy, reunindo-se em torno de um tapete específico. Um segundo mob, já mítico, foi organizado na estação Grand Central, com um aplauso espontâneo durante 15 segundos. Após a ovação, as pessoas dispersaram-se tão rapidamente como tinham aparecido. ■ Versão nacional

O primeiro flash mob em Portugal, embora muito publicitado, reuniu só três pessoas nas escadarias da Assembleia da República. O último terá sido ontem, a avaliar pela convocatória. Implicava o congelamento dos recrutas nas posições em que se encontrassem à hora aprazada, durante cinco minutos, na Estação do Rossio, em Lisboa. Para quê? Ora, porque sim…

rectos, gerando um efeito de bola de neve que resultou na negação do que as sondagens davam por certo — a vitória absoluta. Dir-se-ia que a rede social criada via SMS e pela Internet redundou na tomada de consciência política para muita gente que, até ali, encarava com apatia a campanha eleitoral. De igual modo, embora menos dramática, a eficácia de recrutamento ficou demonstrada na manifestação dos professores, em Fevereiro último, convocada por SMS, mail e blogues. A adesão e espontaneidade colheu de surpresa muitos analistas — além dos próprios sindicatos — que advogam a apatia cívica dos portugueses. De que discorda Mendes: “Há um adversário, uma lógica de mobilização efémera, mas que ancora numa tradição mais enraizada na sociedade portuguesa, que tem grande potencial de mobilização, com uma média anual de 200 manifestações reivindicativas”, contabiliza. “Temos rituais, acções, repertórios e memórias, designadamente de Abril de 1974, em que as pessoas já estão rotinadas”, afirma. Simplesmente, “os protestos, cá, são de base localista, não é como na França, que se repercutem nas ruas”. É esta “base localista” que ilude os observadores que alegam a apatia cívica dos portugueses, ao induzir um efeito inibidor para muita gente, dada a excessiva proximidade com o “adversário”. E os mais tímidos na participação activa, com presença física, são “a classe média e média-alta”, declara, e que anseiam, segundo o politicólogo André Freire, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), “por uma participação menos enquadrada, menos hierarquizada e burocratizada”. Ora, as tecnologias da informação e comunicação (TIC) correspondem a esse desejo: “A mobilização pela Internet e SMS permite novas formas de presença no espaço público, porque não tem que passar pelas formas estruturadas – partidos, associações e sindicatos –, que são mais lentas e exigem negociação. As TIC prescindem disso ao mesmo tempo que permitem às pessoas afirmarem-se politicamente”, explica Mendes. E Freire sintetiza: “Implica um acréscimo de cidadania, sendo positiva a entrada de novos competidores no jogo político”.

Descomprometimento odavia, as virtudes das TIC comportam também um lado obscuro, que a tentativa de boicote às gasolineiras ilustra bem: “Apela a uma participação, não de base ideológica, mas antes de base negativa. Em vez de propor uma agenda mobilizadora de ideias, mobiliza antes a resistência activa contra qualquer coisa.

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