Cidadania, Saber Técnico e Mudanças Sociais

July 15, 2017 | Autor: Jose Drummond | Categoria: Development Studies, Modernization, Citizenship
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Cidadania, Saber Técnico e Mudanças Sociais1

José Augusto Drummond2 Quero antes de mais nada situar o meu ponto de vista sobre o tema (que uso como o título desta palestra) proposto pelos organizadores deste encontro. Eu me graduei em Ciências Sociais em 1975. Tornei-me cientista político por prática profissional. Passei a maior parte de minha vida de adolescente e jovem adulto sob as mazelas de uma ditadura militar, com todas as suas deletérias implicações para as nossas magras tradições democráticas. Não foi por acaso que dediquei os primeiros dez anos de minha vida profissional a dois grupos de temas: (1) algumas instituições básicas do exercício da cidadania (partidos políticos, sistemas eleitorais e partidários, eleições, sindicatos, associações civis etc.) e (2) um dos principais obstáculos ao exercício da cidadania, o militarismo, fenômeno que defende a noção de que os civis brasileiros somos permanentemente incompetentes para a gestão da coisa pública. Tenho, portanto, uma sensibilidade aguda para com a questão da cidadania, particularmente da questão do exercício do direito político universal de participação na gestão da coisa pública. Transferi esse viés para os meus estudos mais recentes sobre problemas socioambientais, e creio que fiz bem. Tenho identificado em nossa sociedade uma forte tentação de adotar conceitos e procedimentos autoritários - mais propriamente tecnocráticos - no trato desses problemas. Não estou, porém, entre os que desprezam o papel do saber técnico. Não defendo uma cidadania adjetiva, nem adulo uma "vontade popular" onisciente, que

1

- Versão revista do texto de uma palestra apresentada na Primeira Reunião Técnica sobre Metodologias Aplicadas na Avaliação de Impactos Ambientais de Barragens, a convite da Superintendência de Recursos Hídricos e Meio Ambiente do Estado do Paraná (Curitiba, dezembro de 1990). 2

- Professor Adjunto do Departamento de Ciência Política, Universidade Federal Fluminense (Niterói - RJ).

2 dispensaria o saber técnico e os seus portadores. Quero deixar claro, portanto, duas coisas: (1) o exercício da cidadania depende do aprendizado e da competência dos cidadãos

livremente

organizados

para

a

defesa

de

interesses

legítimos

(e

frequentemente conflitantes e até mesmo incompatíveis entre si), interesses esses que não precisam ser expressos de forma cientificamente “correta”; (2) a eventual desorganização ou falta de eficácia organizativa de qualquer grupo de cidadãos não autoriza que o saber técnico decida revogar os seus direitos políticos ou decida descartar os seus interesses, por definição inerentes a todos. Ou seja, sempre existem graus desiguais de organização política no corpo de cidadãos de uma sociedade política, sempre existem conflitos entre interesses divergentes, e ninguém perde os seus direitos políticos por estar "mal organizado" ou "despreparado" (segundo um critério externo qualquer). Não custa acrescentar dois pontos importantes, frequentemente negados pelos que tomam o lado dos insuficientemente organizados, dos disenfranchised, ou simplesmente dos cidadãos pobres: (i) esses grupos também têm interesses próprios e (ii) os seus interesses não são necessariamente os da sociedade como um todo. Não há, portanto, fundamentos para, a priori, considerar que esses interesses tenham que ser contemplados sempre e na sua plenitude. Uma sociedade democrática é aquela em que os interesses e direitos de cada grupo social podem ser livremente expressos, mas nenhum grupo tem um monopólio da virtude política que justifique a expectativa de sempre prevalecer integralmente sobre os interesses dos demais grupos. Estamos reunidos aqui para discutir os impactos sociais de grandes barragens em particular, e de "grandes projetos" em particular. Trata-se, a meu ver, de fenômenos privilegiados para observar os choques entre os portadores do saber técnico e vastos setores da população que estão, via de regra, em estágios de aprendizado de organização política para a defesa de seus interesses frente à sociedade nacional. Ao invés de discorrer sobre impactos sociais específicos desses projetos na estrutura social e na cultura dessas populações, escolhi centrar a minha intervenção num aspecto político comum a quase todos os "grandes projetos": o conflito entre (i) empreendimentos marcados por teimosas heranças autoritárias e (ii) populações quase

3 sempre

insuficientemente

organizadas

para

participar

da

gestão

desses

empreendimentos. Creio que assim prestarei um serviço mais abrangente, embora menos "prático", aos técnicos e cientistas aqui reunidos.

* Proponho uma definição um tanto provocadora dos "grandes projetos": eles são agentes de penetração da "modernidade" nos rincões do "arcaísmo". Nas décadas de 1950 e 1960 proliferou uma literatura sociológica e econômica à qual me reporto quando proponho essa definição. Refiro-me à produção de duas áreas de conhecimento relativamente próximas entre si, conhecidas como "sociologia do desenvolvimento" e "economia estrutural". Esses dois campos intelectuais nasceram depois da Segunda Guerra Mundial, num contexto marcado contraditoriamente (i) pela "guerra fria" entre as grandes potências e (ii) por uma confiança otimista na cooperação internacional como instrumento para reduzir as disparidades entre países ricos e pobres. Foi dentro dessa extensa literatura que surgiram termos que se banalizaram nos debates políticos, como “desenvolvimento”, “subdesenvolvimento”, “substituição de importações” e "terceiro mundo", expressando um enorme campo de estudos sobre como países pobres (uma grande maioria) poderia superar as distâncias que os separavam dos poucos países ricos. Essas duas correntes científicas enfatizavam dicotomias, divisões bipolares existentes nas sociedades brasileira e latino-americanas em geral, quase sempre atribuídas ao seu passado colonial mais remoto e à sua inserção desfavorável no panorama econômico mundial contemporâneo. Um dos argumentos - e ao mesmo tempo umas das evidências - fundamentais dessa literatura é o contraste entre diferentes regiões e/ou setores sociais dentro de cada país. As seguintes expressões são típicas dessa literatura: "o tradicional e o moderno", "os dois Brasis", "o setor précapitalista e o setor capitalista", “campo e cidade”, "centros dinâmicos e áreas estagnadas", "subdesenvolvido e desenvolvido", "imperialismo interno", “polos de

4 desenvolvimento”, “centro e periferia” etc. Na década de 1970 surgiu uma também extensa literatura sociológica e econômica distinta, que argumentava a inexistência dessas polaridades. O seu marco maior foi a “teoria da dependência”, defendida por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Ela criticava a economia estrutural e a sociologia do desenvolvimento e afirmava que essas dicotomias expressavam facetas complementares de um único "processo de subdesenvolvimento", ou de "desenvolvimento dependente", ou de "desenvolvimento associado". Esse debate, hoje um tanto deslocado por outros temas prementes (como globalização), usava expressões como "modernização conservadora", "modernização pelo alto", “capitalismo tardio”, ou "crescimento não-redistributivo". Todas essas expressões, apesar dos diferentes contextos teóricos em que foram empregados, ansiavam por comunicar um fato persistente e perturbador: continuavam a existir carências agudas em sociedades que adotavam determinados tipos de produção econômica que prometiam melhorias gerais (principalmente a modernização agrícola e a industrialização para a “substituição de importações”). Não vou me posicionar aqui quanto a esse debate acadêmico. Eu o trouxe à baila primeiro por ser um referencial talvez comum aos cientistas sociais aqui presentes, e segundo porque mesmo aqueles que não são cientistas sociais podem perceber facilmente que esse debate não acabou. Ao contrário, ele se tornou atual a partir de 1985, quando o fim da ditadura militar nos colocou no pedregoso caminho da construção de uma democracia de massas moderna. O debate se tornou tão aquecido e tão atual que "ser moderno" se constituiu em um dos dois principais atributos reivindicados por todos os 22 candidatos à presidência da república em 1989 - o outro atributo crucial era ser "contra Sarney". O candidato eleito, Fernando Collor de Mello, durante mais de um ano de campanha e ao longo de seu curto mandato, afirmava semanalmente que iria colocar o Brasil "na trilha da modernidade". Há mais. A dramática expressão "década perdida" vai se consagrando no vocabulário político nacional para descrever a década de 1980. Nessa década, além de crise e estagnação, sofremos o que políticos de todas as correntes organizadas chamam de "sucateamento da modernidade". Alguns conceitos daquele debate acadêmico

5 relativamente obscuro travado por sociólogos e economistas, ao qual me referi, ganharam, portanto, o foro ampliado das campanhas políticas de massa e ajudaram a compor o vocabulário de muitas discussões e decisões de política econômica atual. Volto aos "grandes projetos". A conclusão de alguns deles, o pleno funcionamento de outros, e o início de construção de outros ainda são opções defendidas por todas as correntes políticos pós-ditadura militar para a "retomada do desenvolvimento" - outro chavão da campanha eleitoral de 1989. De fato, tivemos e temos no Brasil muitos "grandes projetos" (com variados graus de sucesso) que ajudaram a economia brasileira a ser a que mais cresceu no mundo entre 1945 e meados da década de 1980. A persistência do apoio popular à "retomada do desenvolvimento" e ao projeto de fazer do Brasil uma "potência mundial" coloca em pauta, portanto, a necessidade de avaliar, mesmo que retrospectivamente, os efeitos sociais e ambientais desses empreendimentos. Nesse ponto, há trabalho de sobra para preencher vários anos de pesquisa e reflexão de numerosas equipes multidisciplinares. Reunidos aqui para avaliar efeitos provocados por barragens neste estado do Paraná - já tão afetado por elas e sujeito a hospedar no futuro próximo pelo menos mais uma dezena delas – estamos, à nossa maneira, cumprindo uma parte da pauta “neo-desenvolvimentista” mencionada acima. Para efeitos de minha intervenção, porém, a ideia mais importante é que os "grandes projetos" são agressivos agentes da "modernização" econômica e social do Brasil. Eles colaboraram tanto para o PIB do Brasil estar desde a década de 1950 entre os dez maiores do planeta quanto para emparelhar alguns de nossos indicadores sociais básicos com alguns dos países mais pobres do mundo. Esses "grandes projetos" significaram a implantação “instantânea” de modos de produzir e de estilos de viver "modernos" em regiões "tradicionais". Nesses lugares ficaram mais visíveis do que em outros os efeitos socialmente perversos da nossa sôfrega busca da modernidade. Os "grandes projetos" foram e continuam a ser verdadeiras forças de vanguarda da modernização urbano-industrial do Brasil. Eles são versões atualizadas das primeiras ferrovias brasileiras, implantadas no estado do Rio de Janeiro a partir da década de 1850. Essas "ferrovias do café" exigiam grandes investimentos estrangeiros, tecnologia

6 não nacional, e parceiros ou clientes nacionais (públicos ou particulares). Penetravam os "sertões ignotos" do então remoto Vale do rio Paraíba do Sul e transportavam uma carga de produto primário majoritariamente destinada a mercados estrangeiros. Os trilhos seguiam os cafezais "modernos" e ao mesmo tempo favoreciam o seu contínuo deslocamento para novas terras “virgens” e mais remotas. Os trens dinamizavam as "arcaicas"

terras

florestadas

e

as

transformavam

em

modernas

plantations

monocultoras, mas tão perversa foi a dimensão propriamente ecológica (para não mencionar a ignomínia institucionalizada da escravidão negra) dos cafezais que em poucas décadas as vias férreas atravessavam centenas de quilômetros de áreas ambientalmente degradadas e agricolamente estagnadas, encarecendo os fretes pagos para transportar a produção de cafezais cada vez mais distantes dos portos. A modernidade desejada foi, portanto, “excludente”, destrutiva e de pouca duração. Os "grandes projetos" de hoje, mesmo quando gigantescos, nada mais são do que processos microcósmicos e acelerados de mudança social provocada pela modernização. Falar das "tensões" e "desagregações" propriamente sociais provocadas por esses empreendimentos é falar das consequências das doses maciças e instantâneas de modernidade aplicadas a regiões pobres ou de alguma forma deixadas à margem do panorama urbano e industrial do país. Essas regiões são escolhidas para sediar projetos de grande envergadura por causa de “virtudes” fortuitas (ocorrência de minérios, potencial hidrelétrico, localização favorável à criação de um porto etc.). Em cada região afetada há, num sentido figurado, centenas de personagens de uma canção de Gilberto Gil, em que um "Jeca Tatu" genérico vive "as dores de emancipação" ao assistir pela televisão a novela Gabriela. Os "grandes projetos" introduzem e forçam a adoção de novos modos de produzir e novos estilos de vida que, mesmo quando desejados pelos locais, têm implicações e negatividades que muitas vezes lhes escapam.

*

7 Quero agora falar de nós mesmos, dos cientistas e dos técnicos governamentais ou de empresas privadas. Nós somos por definição produtos acabados dos setores modernos de nossa sociedade. Temos papéis cruciais na formulação, execução e supervisão dos "grandes projetos", e dos pequenos também. Nós os planejamos, construímos, estudamos, operamos, fiscalizamos; nós consumimos os seus produtos e usamos os seus serviços. Via de regra somos urbanos de terceira ou quarta geração e exibimos sólida lealdade às nossas trajetórias. Temos boa escolaridade, atestada por diplomas de graduação e pós-graduação, frequentemente obtidos no estrangeiro. Muitos nascemos e crescemos em plena era do "nacionalismo desenvolvimentista" varguista-juscelinista e do "milagre brasileiro" da ditadura militar. Estivemos entre os maiores beneficiados pelos surtos de modernidade dessas duas épocas. Somos hoje, em muitas instituições e de muitas formas, os gestores dessa modernidade. Não estou querendo que os presentes se sintam culpados. Eu certamente não me recrimino por reunir quase todos esses atributos. Quero, sim, sugerir que essa trajetória coletiva - que apresentei em traços gerais - nos torna um grupo social que, mesmo dividido por lealdades partidárias e ideológicas distintas, é fortemente predisposto a estender a modernidade, tanto "verticalmente" (onde ela já existe) quanto "horizontalmente" (ou seja, transferi-la para onde ela não existe, ou parece não existir). Queremos, com razões bem fundamentadas, garantir e ampliar a modernidade, pois isso consolida e amplia a nossa atuação profissional e o nosso poder de influência. Queremos estender os benefícios da modernidade. Somos fluentes na linguagem e nos bens e serviços modernos e queremos que outros grupos sociais aprendam essa linguagem e tenham acesso a esses bens e serviços. Em geral, acreditamos que a ampliação da modernidade será benéfica para a grande maioria dos brasileiros, que por muitos motivos vive – ou parece viver - longe ou fora dela. Não se enganem: a exigência de "justiça social" - relativamente bem difundida entre os técnicos, acadêmicos e ativistas sociais - não é em absoluto uma postura hostil à modernidade. Desde os tempos da "sociologia do desenvolvimento" e da "economia estrutural" a exigência de justiça social implica uma crítica ao tipo de modernidade e/ou aos seus efeitos sociais “perversos”, e nunca uma crítica à

8 modernidade em si. Eu próprio estou entre os que, mesmo apreciando e entendendo a legitimidade de certos valores “tradicionais”, desejo para o Brasil e para os brasileiros uma modernidade com benefícios extensíveis a todos. Nós, os portadores do saber que planeja, executa, fiscaliza, licencia, estuda e até critica a modernidade, temos sido suportes sociais conscientes ou inconscientes da ampliação da modernidade. Assim, quando nos reunimos para discutir os impactos sociais de barragens, tal como fazemos aqui hoje, não é suficiente olhar apenas para os "outros" (“empreendedores”, “gestores”, "atingidos", "desalojados", "afetados" etc.). Nós somos agentes desses impactos, estamos ligados tanto aos seus benefícios quanto aos seus efeitos eventualmente perversos. Não devemos falar aqui apenas do que fazem os outros ou do que acontece com "os outros". Devemos falar também do que nós fazemos e do que acontece conosco. Somos parte tanto dos problemas quanto das soluções.

* Desde o início da década de 1980 a antropóloga Lígia Sigaud, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, estudou os efeitos sociais de grandes hidrelétricas brasileiras. Ela começou examinando o Nordeste e passou depois à Amazônia e à Região Sul, contribuindo para atrair outros cientistas sociais no tema. Vale destacar que quando ela começou os seus estudos o contexto era muito diferente do atual: não havia legislação referente a EIAs e RIMAs, nem pressões de investidores ou ambientalistas estrangeiros, nem as poderosas concessionárias regionais e estaduais de energia elétrica tinham criado as suas “políticas sociais” ou os seus "departamentos de meio ambiente". Sequer havia liberdade política plena para a organização dos camponeses afetados por barragens ou mesmo para a realização desse tipo de pesquisa. É curioso ver como num artigo recente Sigaud aponta a sua crítica para um novo ator que surge da superação das condições mencionadas: os estudiosos e avaliadores

9 de impactos ambientais e sociais.3 Sigaud analisa brevemente a literatura de RIMAs e EIAs, da qual provavelmente todos nós aqui já participamos, como redatores, consultores, avaliadores, leitores, participantes de audiências públicas etc. Ela identifica, ao meu ver com razão, uma forte tendência que temos de "desqualificar a região [do empreendimento] e por extensão [aqueles] que a ocupam". Ela sugere, portanto, que a literatura de RIMAs e EIAs como que "prepara o caminho" (essa expressão é minha) para justificar o empreendimento. Se a região e a população são tão carentes de saúde, educação, transporte, moradia e infraestrutura, como barrar ou de alguma forma constranger empreendimentos que implicam em investimentos maciços e sempre prometem melhorias generalizadas na vida da população local? Creio, de um lado, que Sigaud está certa, pois mostra exemplos claros daquela nossa predisposição a favor da modernidade e dos empreendimentos que a ampliam. Ela menciona alguns casos grotescos de "desqualificação" que comprovam os extremos a que essa atitude pode chegar. De outro lado, porém, Sigaud exagera na sua crítica a cientistas e técnicos. Não são apenas os nossos valores modernizantes que nos fazem dar mais atenção às mazelas das regiões e das populações pobres que as habitam. No início de minha fala eu mencionei que três gerações de cientistas sociais e economistas sustentaram criticamente, em tons diferentes, que as desigualdades regionais e sociais são efeitos inerentes ou perversos dos tipos de modernidade que adotamos. Não faltam, portanto, regiões e grupos sociais efetivamente carentes neste país, mesmo nos nossos estados mais modernizados. Não é preciso que autores de EIAs e RIMAs inventem regiões e pessoas pobres. Não me sinto à vontade num relativismo total e por isso me afasto da perspectiva de Sigaud. Eu não faço o “elogio” das carências que percebo, da suposta “felicidade” dos pobres em meio a carências graves, mesmo sabendo que a “tradição” contém alguma sabedoria e que a modernidade traz tanto soluções quanto novos problemas. Não é preciso estar predisposto a enxergar as carências para encontrá-las neste Brasil marcado por tão fortes desigualdades. A constatação dessas carências não

3

- Lígia Sigaud, A Política “Social” do Setor Elétrico. Sociedade e Estado, IV (1), janeiro-junho 1989, p. 55-71.

10 é causada pelo defeito das estatísticas, nem pelas falhas do trabalho de campo, nem por valores anti-tradicionalistas. Há grupos sociais verdadeiramente pobres e há regiões cuja economia é de fato modesta, cujas atitudes são mesmo rotineiras, cujas ambições são mesmo tradicionalistas. As pessoas que moram nesses lugares são diferentes de nós, mesmo quando elas desejam explicitamente se integrar às fileiras da modernidade, o que não é raro, aliás. De toda forma, nas nossas tarefas de planejar, executar, fiscalizar ou estudar os "grandes projetos", precisamos cuidar para não retratar etnocentricamente a tradição, a cultura regional distinta e as carências como "miséria", "privação", como a falta de tudo. Precisamos dosar as nossas avaliações, mas não devemos fechar os olhos para as carências “objetivas”. Creio que os cientistas sociais mais indicados para neutralizar o etnocentrismo do saber técnico são os antropólogos, felizmente representados aqui neste plenário, mas entre eles há também os que exaltam as virtudes da pobreza.

* Para concluir minha intervenção, quero recuperar o tema da cidadania, que logo de início eu disse ser do meu particular interesse. Sustento que os portadores do saber técnico somos "cidadãos plenos" das muitas manchas de modernidade que existem no mapa pátrio. Conforme se deteriorou a ditadura militar, o nosso grupo social, nos seus diversos segmentos, aprendeu rapidamente a se organizar para defender os seus interesses, a ingressar em partidos, sindicatos e associações, a participar da gestão política. Sabemos hoje nos informar, sabemos passar adiante informação, sabemos nos aliar, sabemos identificar opositores e inimigos, sabemos reivindicar junto aos poderes públicos, sabemos criar ONGs e sabemos “meter a mão na massa”. Mesmo tropeçando, vamos passando por esse aprendizado, defendendo os nossos interesses legítimos e consolidando os nossos direitos políticos. Quanto mais avançar o processo brasileiro de modernização, mais os megaprojetos que o caracterizaram até agora se implantarão a grandes distâncias das

11 atuais manchas modernas, principalmente no caso de hidrelétricas, terras agrícolas, exploração de florestas nativas, petróleo e minérios. A tendência, portanto, é que esses empreendimentos avancem mais sobre áreas remotas ou onde prevalecem sociedades “tradicionais”, nas quais a organização social e política é muito diferente da nossa. As culturas desses locais via de regra valorizam positivamente fatos que nós inscrevemos no rol do "atraso": formas ampliadas de organização familiar (parentelas, compadrio, família extensa), grande número de filhos, tecnologias simples, ritmos de trabalho pouco intensivos, pouca especialização e divisão de trabalho, produção para subsistência, artesanato doméstico, escambo etc. Embora eficaz para questões estritamente locais, a organização política desses grupos geralmente sucumbe perante os “grandes projetos” que carregam consigo interesses e exigências da sociedade nacional em expansão. Ocorre entre nós então a tentação de julgar a cultura dos moradores de regiões “remotas” inteiramente "retrógrada" e de considerar inexistente a sua organização política. É fácil também pender para o lado oposto, e cair num relativismo radical e afirmar que a "sabedoria popular" local é absoluta e intocável, mas vou aproveitar o tempo que me resta para criticar a primeira posição. Quero destacar que, por mais carentes

e

desorganizadas

que

sejam

as

populações

afetadas

por

grandes

empreendimentos, elas são constituídas por cidadãos brasileiros plenos cujos direitos políticos de cidadania não podem ser “suspensos” pelos técnicos “em troca” dos esperados benefícios da modernidade. Os direitos políticos valem para todos, independentes de renda, condição de vida ou instrução formal. Eu acredito que o cenário político mais provável - e confesso que prefiro esse cenário - para o Brasil dos próximos anos é a continuidade e o aprofundamento do processo democrático atual, de longe o mais longo e profundo de toda a nossa história. Nesse cenário, devem avançar muito o aprendizado e a organização política de todos os grupos sociais. Mais grupos passarão pelas "dores da emancipação" e aprenderão, quer queiram ou não, a manejar os instrumentos de participação política moderna para defender os seus interesses e para gerir a coisa pública. Durante os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1987-88, por exemplo, vimos com surpresa a eficácia e a

12 vitória do lobby dos grupos indígenas e o fracasso do lobby supostamente muito mais articulado da reforma agrária. Hoje estamos longe do tempo em que o critério técnico e econômico era o único que balizava as decisões sobre os grandes empreendimentos. Os técnicos e cientistas somos também agentes da introdução de critérios sociais e ambientais para conceber, gerir e avaliar esses empreendimentos, e isso também é ser moderno. Os grupos sociais organizados podem também ser agentes dessa novidade. Deles podem vir a defesa da pluralidade dos modos de produzir e de viver ou a tentativa de "filtrar" os impactos modernizadores. Temos hoje seringueiros organizados que querem continuar a ser seringueiros, para citar um grupo de trabalhadores pobres e remotos, que há poucos anos engatinhava nas formas de organização que o levaram a uma fama planetária

inteiramente

desproporcional

à

sua

importância

propriamente

socioeconômica. A lista de casos semelhantes é bem extensa. Temos hoje grupos indígenas que querem manter o seu estilo de vida e aprendem a se organizar autonomamente, enquanto outros pilotam aviões e usam a Internet. Movimentos sociais usam rotineiramente as chamadas redes e mídias sociais para trocar informações e preparar intervenções. Temos hoje camponeses que querem continuar a ser camponeses, na sua terra, na sua região, com as suas práticas, e que aprenderam a lutar por isso. Há hoje pequenas cidades cujas comunidades se mobilizam para tentar vetar grandes empreendimentos cheios de grandes riscos à saúde e ao ambiente. De outro lado, não faltam comunidades e grupos desejosos de sediar empreendimentos modernizadores. Nós, os portadores de saber técnico e científico, temos que aprender a trabalhar dentro desse cenário. Encontros como este me animam a pensar que estamos adiantados nesse aprendizado, que é tão político quanto técnico. Temos que aprender a lidar com grupos organizados que usam instrumentos modernos para defender interesses setoriais e muitas vezes contraditórios com os nossos. Temos que superar o mau hábito centenário da nossa cultura política brasileira que sempre enxerga em interesses particulares o estigma da ilegitimidade. Todo interesse publicamente organizado e expresso é, em princípio, legítimo. Temos que aprender a lidar com

13 processos sociais e políticos complexos nos quais os resultados são imprevisíveis, quantitativa e qualitativamente. Para concluir, e para provocar um pouco mais, lembro que, na nossa ânsia pela equidade dos resultados, precisamos resistir a outra tentação, à sua maneira também homogeneizadora e autoritária, quando não totalitária: a de propor políticas e empreendimentos 100% "limpos", isentos de conflitos, livres de negatividades. Democracia e cidadania não eliminam diferenças e conflitos – ao contrário, conduzem ao seu trato sistemático, civilizado. Uma das grandes carências nacionais, nas áreas modernas e tradicionais, é justamente a civilidade política na discussão sobre os custos inevitáveis de qualquer decisão substantiva. Nenhuma decisão importante - pró ou contra qualquer política ou qualquer empreendimento - é isenta de custos e de conflitos. Rio de Janeiro, dezembro de 1990 Madison, Wisconsin, março de 1994 Santana, Amapá, fevereiro de 1996 Brasília, DF, abril de 2015

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