Cidade resiliente (estratégia no espaço urbano)

Share Embed


Descrição do Produto

2 | SÁBADO, 26 de março de 2016

CORREIO DO POVO

CADERNO DE SÁBADO CP MEMÓRIA

1ª VIRADA SUSTENTÁVEL

Cidade resiliente (estratégia no espaço urbano) “Uma cidade resiliente é uma cidade que aprende a enfrentar essa incerteza que é própria ao desequilíbrio dos ecossistemas”

De 31 de março a 3 de abril, a Capital recebe a 1ª Virada Sustentável; professor aborda tema das cidades CARLOS FRANZATO

O

desenvolvimento das teorias ecológicas avança sobre as bases do pensamento sistêmico. Uma das principais contribuições desta corrente epistemológica é “ter posto no centro da teoria, com a noção de sistema, não uma unidade elementar discreta, mas uma unidade complexa, um ‘todo’ que não se reduz à soma de suas partes constitutivas” (MORIN, 2011, p. 20). Desde Descartes, a tradição científica moderna havia procedido reduzindo a realidade em partes cada vez menores, medindo suas propriedades intrínsecas e formulando as leis universais que regram as relações causais lineares entre partes consideradas isoladamente. O pensamento sistêmico não se concentra sobre as partes e sua medição, mas sobre as múltiplas relações que organizam as diversas partes em sistemas coerentes: interações e retroações que, seguindo esquemas não lineares, mas de rede, conectam as partes e, assim, geram o enredo do sistema e seus processos característicos (Fritjof CAPRA, 2012). O estudo dos esquemas de fenômenos físicos caóticos, como os vórtices, e, sobretudo, dos esquemas que subtendem à vida dos organismos revela a complexidade que os sistemas podem possuir. Tratam-se de sistemas abertos que necessitam receber fluxos materiais e energéticos para existir e de devolver, por sua vez, os resíduos decorrentes de

seus processos organizacionais. Dessa forma, não é o equilíbrio, mas o desequilíbrio que mantém tais sistemas. Sua existência ocorre nas trocas com outros sistemas e com o meio-ambiente. Assim, evidenciamos outro enredo de múltiplas relações inter-sistêmicas que organizam os diversos sistemas em um sistema de sistemas, o ecossistema. O homem faz parte do ecossistema e sua ação transforma-o sensivelmente. Especialmente a partir da industrialização, seu desenvolvimento chegou a ameaçar o equilíbrio ou, melhor, o desequilíbrio que garante sua vitalidade. O conceito de sustentabilidade é ligado à ação transformadora dos ecossistemas pelo homem. Segundo a declaração do Rio, é característica desses processos de desenvolvimento que, ao passo que possibilitam às gerações presentes o alcance de seus objetivos, garantem às gerações futuras as mesmas oportunidades: “O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras” (UNCED, 1992, p. 2)**. A sustentabilidade é o caminho que o homem deveria seguir. O uso do condicional é obrigatório, pois é evidente a insustentabilidade passada, presente e plausivelmente futura, dos nossos padrões de desenvolvimento, como relata o documentário “Uma Verdade Inconveniente”, com roteiro de Al Gore (Davis GUGGENHEIM, 2006). Hoje temos consciência da fragilidade do nosso ecossistema ambiental, social e econômico (WEF, 2015)****. Nossas cidades são sistemas especialmente frágeis e expostos a calamidades, nem sempre imprevisíveis. O escritório das Nações Unidas para redução de Riscos e Desastres (UNISDR, 2012, p. 9)***, en-

tre os principais fatores responsáveis pelo risco das áreas urbanas, inclui: O crescimento das populações urbanas e o aumento de sua densidade; A concentração de recursos e capacidade em âmbito nacional, em detrimento do âmbito local; A governança local fragilizada e a insuficiência da participação no planejamento e gestão urbana; A gestão dos recursos hídricos, dos sistemas de drenagem e de resíduos sólidos inadequada; O declínio dos ecossistemas, devido às atividades humanas; A deterioração da infraestrutura e padrões de construção inseguros; Os serviços de emergência descoordenados; Os efeitos adversos das mudanças climáticas. Disso, emerge a necessidade de elaborar e atuar estratégias para a construção de uma cidade resiliente. O termo resiliência é relativo à capacidade de um sistema de resistir em condições críticas e de se adaptar consequentemente. O planejamento e a gestão das cidades não parecem ser suficientes para construir uma cidade resiliente. As cidades devem aprender a agir em tempo real nas diversas situações, inclusive nas mais adversas, com competências projetuais e atitude criativa. O projeto da cidade contemporânea é tratado no documentário “Urbanized”, por Gary Hustwit (2011). Ainda, os documentários “Mind the gap” (Laura J. LUKITSCH, 2013) e “Growing Cities” (Dan SUSMAN, 2013) relatam a possibilidade de projetar alternativas, respectivamente, nos transportes urbanos e no sistema de produção, distribuição e consumo dos alimentos. O guia elaborado pelo UNISDR propõe um método de planeja-

mento, gestão e projeto que visa justamente à construção de cidades mais resilientes (2012). Outra contribuição relevante é fornecida pelo programa “100 Resilient Cities”, da Rockefeller Foundation, que financiou a concepção de um instrumento com o mesmo propósito (ARUP, 2015). Analisando os documentos dessas duas iniciativas, podemos individualizar alguns princípios estratégicos para a construção de cidades resilientes: Sustentabilidade: uma cidade resiliente deve se organizar para conseguir sua sustentabilidade e a de seu ecossistema, especialmente como forma de manter os desequilíbrios ecossistêmicos dentro dos limites críticos; Adaptabilidade: uma cidade resiliente deve evoluir junto a seu ecossistema, com flexibilidade; Robustez: uma cidade resiliente deve aprimorar a eficiência de seus processos e se fortalecer; Valorização dos recursos: uma cidade resiliente deve valorizar seus recursos e os de seu ecossistema, reconhecendo a inteligência que é própria de seus processos de organização; Autonomia: uma cidade resiliente deve operar com autonomia e valorizar a autonomia de suas comunidades e dos cidadãos; Integração: uma cidade resiliente deve reconhecer as relações de interdependência que conectam suas partes e procurar sua integração. Diversidade: uma cidade resiliente deve reconhecer e promover a diversidade, bem como as alternativas processuais e a inovação que dela derivam; Redundância: uma cidade resiliente deve implementar diversas alternativas infraestruturais e processuais, de forma que sua vitalidade seja garantida no caso de falhas de alguma parte sua; Distribuição: uma cidade resiliente deve distribuir sua infraestrutura e processo, de forma que

sua vitalidade seja garantida no caso de falhas localizadas; Participação: uma cidade resiliente deve incentivar a inclusão e a participação dos diversos atores que compõem sua estrutura social, garantindo seu envolvimento na tomada de decisões e no compartilhamento dos objetivos; Colaboração: uma cidade resiliente deve elaborar processos colaborativos de planejamento, gestão e projeto; Responsividade: uma cidade resiliente deve saber reagir às emergências decorrentes de calamidades naturais ou da explosão de problemas sociais; Reflexividade: uma cidade resiliente deve saber refletir criticamente sobre sua evolução e assim aprender; Responsabilidade: uma cidade resiliente deve responsabilizar seus líderes e os profissionais que assumem a competência de seus processos, ao passo que desenvolve a responsabilidade social dos cidadãos. Uma cidade resiliente deve incorporar esses princípios na prática cotidiana de seus processos, especialmente de seus processos de planejamento, gestão e projetos estratégicos. Dessa forma, aumentará sua capacidade de agir no seu dia a dia, como na frente de emergências. Como foi antecipado, o desequilíbrio garante a vitalidade dos sistemas abertos, como os sistemas urbanos. Para além de certos limites críticos, porém, o desequilíbrio se torna ameaça. Uma cidade resiliente é uma cidade que aprende a enfrentar essa incerteza que é própria ao desequilíbrio dos ecossistemas. * Designer, é professor e pesquisador do PPG em Design da UNISINOS. Organizador do Simpósio Brasileiro de Design Sustentável. ** “Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” *** “Como Construir Cidades Mais Resilientes”, Genebra: UNISDR, 2012. **** “Riscos Globais: mapas dos riscos globais”. Nova Iorque, 2015.

CIDADE RESILIENTE (ESTRATÉGIA NO ESPAÇO URBANO)1 Por Carlo Franzato O desenvolvimento das teorias ecológicas avança sobre as bases do pensamento sistêmico. Uma das principais contribuições desta corrente epistemológica é “ter posto no centro da teoria, com a noção de sistema, não uma unidade elementar discreta, mas uma unidade complexa, um ‘todo’ que não se reduz à soma de suas partes constitutivas” (MORIN, 2011, p. 20). Desde Descartes, a tradição científica moderna havia procedido reduzindo a realidade em partes cada vez menores, medindo suas propriedades intrínsecas e formulando as leis universais que regram as relações causais lineares entre partes consideradas isoladamente. O pensamento sistêmico não se concentra sobre as partes e sua medição, mas sobre as múltiplas relações que organizam as diversas partes em sistemas coerentes: interações e retroações que, seguindo esquemas não lineares, mas de rede, conectam as partes e, assim, geram o enredo do sistema e seus processos característicos (CAPRA, 2012). O estudo dos esquemas de fenômenos físicos caóticos, como os vórtices, e, sobretudo, dos esquemas que subtendem à vida dos organismos revela a complexidade que os sistemas podem possuir. Tratam-se de sistemas abertos que necessitam receber fluxos materiais e energéticos para existir e de devolver, por sua vez, os resíduos decorrentes de seus processos organizacionais. Dessa forma, não é o equilíbrio, mas o desequilíbrio que mantém tais sistemas. Sua existência ocorre nas trocas com outros sistemas e com o meio-ambiente. Assim, evidenciamos outro enredo de múltiplas relações inter-sistêmicas que organizam os diversos sistemas em um sistema de sistemas, o ecossistema. O homem faz parte do ecossistema e sua ação transforma-o sensivelmente. Especialmente a partir da industrialização, seu desenvolvimento chegou a ameaçar o equilíbrio ou, melhor, o desequilíbrio que garante sua vitalidade. O conceito de sustentabilidade é ligado à ação transformadora dos ecossistemas pelo homem. Segundo a declaração do Rio, é característica desses processos de desenvolvimento que, ao passo que possibilitam às gerações presentes o alcance de seus objetivos, garantem às gerações futuras as mesmas oportunidades: “O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras” (UNCED, 1992, p. 2). A sustentabilidade é o caminho que o homem deveria seguir. O uso do condicional é obrigatório, pois é evidente a insustentabilidade passada, presente e plausivelmente futura, dos nossos padrões de desenvolvimento, como relata o documentário “Uma verdade inconveniente”, com roteiro de Al Gore (GUGGENHEIM, 2006). Hoje temos consciência da fragilidade do nosso ecossistema ambiental, social e econômico (WEF, 2015). Nossas cidades são sistemas especialmente frágeis e expostos a calamidades, nem sempre imprevisíveis. O escritório das Nações Unidas para redução de Riscos e Desastres (UNISDR, 2012, p. 9), entre os principais fatores responsáveis pelo risco das áreas urbanas, inclui: • O crescimento das populações urbanas e o aumento de sua densidade; • A concentração de recursos e capacidade em âmbito nacional, em detrimento do âmbito local; • A governança local fragilizada e a insuficiência da participação no planejamento e gestão urbana; 1

Este texto foi elaborado para o seminário internacional Virada Sustentável, organizado em Porto Alegre nos dias 1 e 2 de abr. 2016. O texto compareceu no jornal Correio do Povo no dia 26 de março de 2016.

• • • • •

A gestão dos recursos hídricos, dos sistemas de drenagem e de resíduos sólidos inadequada; O declínio dos ecossistemas, devido às atividades humanas; A deterioração da infraestrutura e padrões de construção inseguros; Os serviços de emergência descoordenados; Os efeitos adversos das mudanças climáticas.

Disso, emerge a necessidade de elaborar e atuar estratégias para a construção de uma cidade resiliente. O termo resiliência é relativo à capacidade de um sistema de resistir em condições críticas e de se adaptar consequentemente. O planejamento e a gestão das cidades não parecem ser suficientes para construir uma cidade resiliente. As cidades devem aprender a agir em tempo real nas diversas situações, inclusive nas mais adversas, com competências projetuais e atitude criativa. O projeto da cidade contemporânea é tratado no documentário “Urbanized”, por Gary Hustwit (2011). Ainda, os documentários “Mind the gap” (LUKITSCH, 2013) e “Growing cities” (SUSMAN, 2013) relatam a possibilidade de projetar alternativas, respectivamente, nos transportes urbanos e no sistema de produção, distribuição e consumo dos alimentos. O guia elaborado pelo UNISDR propõe um método de planejamento, gestão e projeto que visa justamente à construção de cidades mais resilientes (2012). Outra contribuição relevante é fornecida pelo programa “100 Resilient Cities”, da Rockefeller Foundation, que financiou a concepção de um instrumento com o mesmo propósito (ARUP, 2015). Analisando os documentos dessas duas iniciativas, podemos individualizar alguns princípios estratégicos para a construção de cidades resilientes: • Sustentabilidade: uma cidade resiliente deve se organizar para conseguir sua sustentabilidade e a de seu ecossistema, especialmente como forma de manter os desequilíbrios ecossistêmicos dentro dos limites críticos; • Adaptabilidade: uma cidade resiliente deve evoluir junto a seu ecossistema, com flexibilidade; • Robustez: uma cidade resiliente deve aprimorar a eficiência de seus processos e se fortalecer; • Valorização dos recursos: uma cidade resiliente deve valorizar seus recursos e os de seu ecossistema, reconhecendo a inteligência que é própria de seus processos de organização; • Autonomia: uma cidade resiliente deve operar com autonomia e valorizar a autonomia de suas comunidades e dos cidadãos; • Integração: uma cidade resiliente deve reconhecer as relações de interdependência que conectam suas partes e procurar sua integração. • Diversidade: uma cidade resiliente deve reconhecer e promover a diversidade, bem como as alternativas processuais e a inovação que dela derivam; • Redundância: uma cidade resiliente deve implementar diversas alternativas infraestruturais e processuais, de forma que sua vitalidade seja garantida no caso de falhas de alguma parte sua; • Distribuição: uma cidade resiliente deve distribuir sua infraestrutura e processo, de forma que sua vitalidade seja garantida no caso de falhas localizadas; • Participação: uma cidade resiliente deve incentivar a inclusão e a participação dos diversos atores que compõem sua estrutura social, garantindo seu envolvimento na tomada de decisões e no compartilhamento dos objetivos; • Colaboração: uma cidade resiliente deve elaborar processos colaborativos de planejamento, gestão e projeto; • Responsividade: uma cidade resiliente deve saber reagir às emergências decorrentes de calamidades naturais ou da explosão de problemas sociais;

• •

Reflexividade: uma cidade resiliente deve saber refletir criticamente sobre sua evolução e assim aprender; Responsabilidade: uma cidade resiliente deve responsabilizar seus líderes e os profissionais que assumem a competência de seus processos, ao passo que desenvolve a responsabilidade social dos cidadãos.

Uma cidade resiliente deve incorporar esses princípios na prática cotidiana de seus processos, especialmente de seus processos de planejamento, gestão e projetos estratégicos. Dessa forma, aumentará sua capacidade de agir no seu dia a dia, como na frente de emergências. Como foi antecipado, o desequilíbrio garante a vitalidade dos sistemas abertos, como os sistemas urbanos. Para além de certos limites críticos, porém, o desequilíbrio se torna ameaça. Uma cidade resiliente é uma cidade que aprende a enfrentar essa incerteza que é própria ao desequilíbrio dos ecossistemas. Referências: ARUP. City Resilience Framework. New York, The Rockefeller Foundation. Disponível em: http://www.100resilientcities.org/page//100rc/Blue%20City%20Resilience%20Framework%20Full%20Context%20v1_2.pdf acessado em: 5 de janeiro de 2015. CAPRA, F. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 2012. GUGGENHEIM, D. An Inconvenient Truth. Beverly Hills, Lawrence Bender Productions Participant Productions, 2006. HUSTWIT, G. Urbanized. Los Angeles, Flatiron Film Company, 2011. LUKITSCH, L. J. Mind the Gap. Global Performance Media, 2013. MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2011. SUSMAN, D. Growing cities. Elmwood Motion Picture Company, Linseed Capital, Romark Entertainment, 2013. UNCED. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: UNCED, 1992. Disponível em: http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf acessado em: 5 de janeiro de 2015. UNISDR. Como Construir Cidades Mais Resilientes. Um Guia para Gestores Públicos. Genebra: UNISDR, 2012. Disponível em: http://www.unisdr.org/files/26462_guiagestorespublicosweb.pdf, acessado em: 5 de janeiro de 2015. WEF. Riscos globais: mapas dos riscos globais. New York, 2015. Disponível em: http://reports.weforum.org/global-risks-2015/#read acessado em: 5 de janeiro de 2015.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.